I Perguntei-lhe se queria ir beber um café. Sorriu escancaradamente, por detrás do guichet da recepção do ginásio que frequento. Fiz de propósito para criar tensão com alguém, porque a rotina deprime-me, e se me envolver numa situação confrangedora com uma funcionária que vejo todos os dias, crio ali uns picos emocionais que ajudam a diferenciar todos os dias que se assemelham cada vez mais, até ao dia em que a amante morte, me enviar um sms a dizer que quer estar comigo. Eu, o meu próprio constrangedor para me forçar a sentir vivo. «-Podemos ir almoçar, saio às 13.» O tiro saiu-me pela culatra. Fui simpático, «-Ok, saio do treino a essa hora.» A última hora, passada a nadar, passada foi a pensar, se ela tinha dado alguns sinais, e que eu inconscientemente tenha gravitado para ela longe do meu propósito consciente de criar confusão na minha vida interior. Nos últimos 200 metros, já nem queria sair da água. Ter de ir com alguém que não conheço e com metade da minha idade, não que essa merda importe. Prefiro a conversa com miúdas novas, que com as balzaquianas, que muito geralmente ficaram presas num ponto passado da sua viagem na vida. Estou a ser talvez injusto. Esqueci-me de respirar e quando venho acima engulo o segundo pirulito do dia, água com cloro e vestígios púbicos. Sento-me na borda da piscina, tiro os óculos e a touca, olho para a água e pergunto: «-Mas és paneleiro? Não é uma miúda gira? É? Então deixa-te de mariquices, pá, és um homem.» O cabrão do reflexo tinha razão. A dúvida só me prova, o quão alienado e magoado emocionalmente ainda estou. E fisicamente, porque passei meia hora a mais no remo, a dor muscular já vem no correio. Ao passar o torniquete, vejo que ela já me aguarda, rio-me e convido ‘-Vamos?’. Ela acena que sim, e digo que vou colocar o saco no carro. Há um restaurante ali perto, que eu conheço, e que é simpático e serve bem. Ela percebendo qual o restaurante, diz que não, que prefere o outro, do outro lado da Avenida de Berlim. Olhei para o dito estabelecimento e pareceu-me demasiado formal para o meu gosto. Gosto de comer comida e não peneiras de peneirentos. Algo em mim, rasteiro, fazia por convencer a ir, por causa da gaja, de rabo de cabelo espartano, preto e comprido, olhos de amêndoas azuladas que espalham uma alegria formatada em todo o redor. Caramba que boa máscara para esconder uma personalidade dentro. Calças de ganga bem juntas às pernas torneadas, e um blazer turquesa sobre uma blusa branca desabotoada até meio, e o peito dividido por um colar de lantejoulas. Enquanto eu observava o museu ambulante de bugigangas decorativas femininas, e tentava perceber a intenção por trás, o semáforo fica verde e ela pergunta, «-Mas afinal?» Sentámo-nos, pedimos, e pouco ou nada consegui extrair dela, quem era, do que gostava, nem sequer se trabalhava ali há muito tempo. Eu estava com uma sensação que ela estava a fazer algum frete, que tinha pressa em sair dali, não fossem as garfadas atulhadas de comida, que dificilmente ingeria mastigadas. Perguntei se só tinha meia hora para almoço. Disse que tinha uma hora e meia. Foi 3 vezes ao buffet. Porra, miúda de alimento. A cada pergunta minha que rompia o silêncio total, uma resposta críptica e telegráfica, como se respondesse por cortesia num contexto qualquer que eu desconhecia. Tão rapidamente respondeu que queria ir almoçar/cafezar, e, no entanto, estava aqui com uma postura, francamente medíocre. Outrora exclamaria para mim, que as mulheres não são de entender. Havia uma razão, eu é que não estava a chegar lá. O guacamole era fantástico. Assim do nada, ela levanta-se, e diz que tem de ir, que depois nos vemos. Eu fico a olhar para ela, já de costas e exclamo ‘-Andreia!» Ela vira-se para trás, e vê-me fazer-lhe o gesto do dedo que chama, contorcendo-se como larva de mariposa. Aproxima-se. Pergunto-lhe se não come sobremesa, que paga o mesmo. Ela responde ‘-Mas não pagas tudo?’ «-Não. Eu pago o meu, e tu pagas o teu.» «-Mas tu convidaste-me… e é sempre o homem que paga…» O meu fusível auditivo fundiu ao mesmo tempo que o entendimento sobre o comportamento dela recebeu a luz do esclarecimento. Parece que ela se indigna e fala alto, chamo o empregado com o gesto de pagar conta e ele traz o multibanco. Saio pela porta, a rir-me na exacta proporção do choque na cara dela. Ao fechar a porta exclamo lá para dentro, «-Até amanhã!» A situação deixou-me bem-disposto, ri-me várias vezes a caminho de casa, e ainda me cruzei com ela quando estava a sair com o carro do estacionamento, e fez-me aquela cara, que fazemos quando queremos manifestar aos outros que os desaprovamos imensamente. II Liga-me um amigo: «Rabeta, queres ir tomar café?» Respondo «-Bora papa-pilas, encontramo-nos no E. Leclerc daqui a 20 minutos.» Encostei-me a um pilar, que ele para variar chega atrasado, contemplo o Tejo, e relembro quantas vezes a paisagem foi alterada no meu tempo de existência. E no de outros que me precederam a respirar este ar, este Sol, esta Terra. Em tempos passados. Quando chega ambos nos desmanchamos não com o fenómeno do sugardaddying, mas com a minha ingenuidade. Diz-me ele «-Ao menos tens moral para abordar qualquer gaja!» Mal sabia ele que a abordagem era efeito de uma causa prévia. «-Meu, havias de ver, o ar de choque por eu não fazer o que é expectável. Achava-se com mais direito ao almocinho, que ao ar que respira e água que bebe.Não vou criticar, pareço os velhos, mas digo-te uma coisa, isto cheira muito a prostituição de má qualidade para o cliente. A Deco devia fazer alguma coisa!» Mais uma sessão de gargalhadas, só interrompidas quando a sua ex mulher passa, no estacionamento onde nos encontrámos. Passou, altiva e como se fôssemos dois montes de esterco ressequido ao Sol de Inverno. Eu percebi algo de anormal se passando, pelo olhar dele, pois eu estava de costas para ela. O olhar despreocupado e de criança em plena celebração de existência, tornou-se pesado e uma dor pareceu emergir do âmago mais sensível da sua pessoa, tão vincado que sem palavras percebi da carga da situação. Tive compaixão por ele. Reconheci precisamente aquele olhar. Já o vira n vezes ao espelho. III Se me visses na rua falarias comigo? Que se poderia dizer entre duas bocas unidas em tempos passados, em quimeras pessoais de futuros comuns que nunca se chegaram a desenhar? Como não engolir em seco perante a presença de quem nos destroçou por completo, sem qualquer remissão de pena, sem qualquer consciência do mal causado, das noites de choro asfixiante, onde com gritos de lamento se uiva ao Céu, porque vim eu para aqui passar por isto? Quando o despejo da tua vida se segue de uma vida plena, onde eu não passo de um pormenor apenas lembrado quando limpas a tralha velha e encontras uma fotografia de nós os dois. Como se alguma vez fosse possível asfixiar o monstro que cresceu de mim por ti, gigantesco e que lembra todos os detalhes do teu rosto, o cheiro da tua boca quando comias sultanas, o cheiro do teu cabelo quando o espremias por entre a toalha do banho. Como lamentávamos a morte dos nossos cães, o teu envenenado, os meus de velhice e decrepitude, e o quão concordávamos que indo, levavam uma parte de nós, as nossas melhores partes. Passo os dias a tentar não pensar neles, e a não pensar em ti. O resultado é o mesmo, choro. Às vezes sabe bem, tirar o peso de dentro, que me constrange de forma aflitiva e total, apenas com uma nesga de oxigénio, para permanecer vivo a experienciar a angústia, não da tua ausência, mas da tua capacidade de cortares a direito a minha vida da tua, como se excisa uma metástase que promete mais umas migalhas vida depois de retirada. O verdadeiro acto criativo é este de pegar nos meus bocados estilhaçados pelo chão à tua passagem, e refazer-me de novo, de forma a não parecer tanto um tumor, e mais um ser humano. Menos um bocado de carne viva, que se replicou para longe do teu amor e apreciação, sem culpa intrínseca senão existir. Como se explicam amores que desaparecem apenas porque as pessoas mudam, e não por falta de estima de uma das partes? As decisões tomadas a dois acabam sempre no capotamento decorrente de uma decisão de uma das partes. Mas nem é por teres ido. É por me teres esquecido. É por me teres cortado da tua vida sem qualquer possibilidade de ter voz, não para te convencer a ficar, mas para me sentir mais que o objecto transitório no teu caminho para os braços de outro. Tiraste-me de ti, disseste que a culpa era minha, disseste coisas cruéis de mim, para te convenceres a ti mesma, sem pensar no impacto em mim, como alguém que se aquece num braseiro na noite fria com o outro a arder. A parede fria da indiferença, de um sair do caminho, para magoar. E nunca ganhar a coragem de falar. Mas que há a falar. Nada. Há que falar, mas nada a ser dito. Por mais que olhe para trás não percebo que crime mereceu tal castigo. Da tua cobardia, ou da forma como encaras as relações com as outras pessoas. E eu não cheguei a ser pessoa para ti, passas pelo estacionamento da vida, voluntariamente alheia à minha existência. O meu crime foi só amar-te. Felizmente esse amor está enterrado.
0 Comments
Até os cínicos são românticos. É impagável o preço na cara de um tipo, quando confidencia ou pede opinião para a sua situação com ‘as gajas’, e depois não gosta da resposta que solicitou. De algum modo, acham sempre ser a excepção. Que o que encontraram, é a excepção, amor verdadeiro, a coisa mesmo a coisa, a combinação para o cofre da Existência. Da Existência feliz, da Realização. São (fui) gajos guiados por uma lógica enclausurada no coiso crânio-encefálico onde o fálico é rei e senhor, e o ence, figura de corpo presente meramente envolvida pelo crânio. Lógicos, avessos ao bio lógico. Quando as coisas eram mais reservadas, havia barbeiros e clubes só para homens, as experiências eram passadas de boca em boca, e as mentalidades formatadas assim de igual. O indivíduo não se sentia tão só, na tentativa de perceber o efeito do feminino na sua pessoa. Os pais, tios e avós, menos enconados, ensinavam os filhos a não cair nas ratoeiras, que já a velha Bíblia enumerava. Não por grandes edifícios de especulação teórica, mas por uma eficaz e basilar integração dos fenómenos que ocorrem entre homem e mulher, nos fenómenos que ocorrem na Natureza. «A mulher é como a sombra, se corres atrás foge, se lhe viras as costas ela corre atrás de ti.» «As mulheres não fosse a falta que fazem, não faziam falta nenhuma.» E outros adágios e dizeres que povoam os edifícios linguísticos das gentes. Hoje? Os papeis trocaram-se, e são elas que trocam conhecimento entre si, sobre como melhor fazer as coisas de modo a levar a sua água ao seu moinho, na bufa opereta do existir. Ninguém gosta destes gajos que acham que descobriram o mecanismo. Nem eu, e fui um deles. Conseguia detestar isso noutros, sem o ver em mim. Esses conas que projectam uma lógica masculina, no outro sexo, supondo com toda a certeza de que homens e mulheres obedecem às mesmas motivações, condicionantes, e estruturas de comportamento. Interpretando as contradições, como aquele inapreensível feminino, que aprenderam a ver como traço distintivo da fêmea que tanto os impressionou e faltou nos anos de formação adolescente. Este fenómeno, julgo decorrer porque o gajo que acha que resolveu o seu problema reprodutivo ou de acesso à vulva, se sente necessariamente, superior a outros, cuja insatisfação com as coisas da vida, lhe parecem decorrer da falta de sexo. Como 90% do mundo dos ‘homens’ gira em torno de sexo, mesmo quando é obtido, a avaliação dos outros é feita sempre a partir dessa referência. É a chamada situação win win. Quem dizia que os homens haviam ganho a guerra dos sexos porque a dança do varão se tornou desporto, esqueceram-se que a seguir à criança, a mulher virou fétiche no mundo ocidental. Toda uma civilização que se dedicou a facilitar a vida da mulher, tornou assim o homem em acessório, bem de prestígio. Não lhes é exigida congruência, e está entranhada a ideia de que foram oprimidas desde o tempo das cavernas. Sendo ao mesmo tempo sujeito histórico, e vítima crónica. Adoram espanta-espíritos e narrativas sobre energias e terapias, porque odeiam a frieza masculina da lógica. Tive de soltar um arroto. O champanhe da festa de casamento emergia por erupção através da minha garganta. O António casara-se, e convidara-me, primeiro para padrinho, mas como, entretanto, surgiram outras pessoas mais influentes, fiquei com o prémio de consolação de comer à borla, apenas. Fui eu que lhe apresentei a agora mulher. O António é realizador de cinema, e num guião meu que não foi para a frente, trocámos impressões e eu apresentei-lhe a Fernanda, uma ex conquista a braços com uma sede de vingança de mim, que se materializara por um desejo de me seduzir de novo e me descartar subitamente. Confesso que o Tó, me parecia sedento de mulher, de qualquer mulher, e que eu tinha um problema com Fernanda, que não me largava da mão. Preenchia-me os dias com love bombing, mensagens a toda a hora, telefonemas, e até com a sua presença em sítios onde sabia que eu ia estar. Bombardeava-me com o seu assédio como forma de me mostrar a veracidade dos seus sentimentos. Uma manipulaçãozinha bem aceite socialmente, especialmente nos grupos de gajas que consideram isto como fazer ver ao amado x,y ou z, a veracidade da sua adesão emocional. Visava convencer-me, e talvez a si mesma, da profundidade do nosso amor, e da gravação pétrea nas faces do destino, que fôramos feitos para estar juntos. Quando fodia, gostava de dizer que as suas coxas haviam sido feitas para estarem enroladas no meu pescoço. Eu gozava e dizia que ela era o meu melhor cachecol. Apesar da amizade recente, António já sabia como eu era. Não faço questão de esconder, essencialmente por um esforço de ser honesto comigo mesmo, que invariavelmente, acaba por ofender outros. Depois da cerimónia, das fotos, essa merda de liturgia toda, segue-se o que interessa, bar aberto e ‘comeício’. Ainda veio ter comigo quando me viu encostado ao bar, e eu disse-lhe para não puxar o assunto que ele não conseguia não deixar de puxar. Fui o primeiro, e talvez o único a dizer-lhe para não se casar, pelo menos com esta. Já estou habituado a ser peixe contra a corrente. Mas a sua sede, de dar um sentido à vida por via de outro (ela), já que não conseguia dar por si, levou a melhor. «-João, por mim podes cagar em cima do balcão, que não me importo nem deixo de ser teu amigo.» Eu estava encostado ao balcão, e a ideia não me pareceu descabida, o que me fez recusar a bebida que já havia pedido, apesar de a mesma já estar depositada à minha espera, e o empregado do catering, de costas voltadas. «-Agora, vais ter de me dizer, porque é que sabendo nós, o que pensas desta merda toda, aceitaste vir ao meu casamento.» «-António, sou apenas contra a hipocrisia, não contra o amor entre as pessoas. Sejam paneleiros, fufas ou sportinguistas, celebro a felicidade e decisões de todos. Gosto que as pessoas se amem. Não gosto que se usem. Tu ama-la, que eu sei. Ela usa-te. Eu vim por ti, não por ela.» Ele é sportinguista. … O olhar dele caiu no chão, e as minhas palavras revolveram-se no seu crânio-encefálico. Deu-me um abraço e disse-me que eu estava em casa, o que significa que eu era mais do que um convidado por obrigação a quem os noivos pagam a presença, devolvida em surdina pelas notas de euros, escondidas em envelopes entregues aos visados. Eu estava sozinho, não quis levar gaja nenhuma para mostrar que tenho vida social, ou para a fazer a ela, figura de corpo presente. Desejei ir sozinho, porque o António é boa pessoa, e sinto que desfruto mais das coisas se estiver acompanhado por mim mesmo. Mas ao ouvir as conversas da treta na mesa dos encalhados, na qual o cabrão me colocou, tive de ir para o bar, encostar-me e fingir que atrás de mim não dançavam pares, ao som de covers fatelas de músicas conhecidas, para gáudio dos sentados. Na minha mesa, uma das gajas, encalhada e solteirona, com um vestido cujo decote evidenciava as mamas, fazia questão de enunciar em voz alta, quer o seu estado civil, quer a sua decisão de ano novo, de não se envolver mais com o que ela designava de ‘miúdos imaturos’, leia-se, tipos que jogavam o mesmo jogo, mas que ela agora…que o espelho era mais austero, tinha dificuldade em manter no séquito, pelo sentimento de segurança que sempre temos, quando sabemos que há meia dúzia de gajos que nos querem copular, e até casar connosco, para manter essa cópula regularizada. Agora, nos seus 35 anos, nem de mão dada queriam andar na rua. O sentimento de liberdade no passado, agora só pretendia captar alguém. Controlar a permanência de alguém, num claro desencontro pelas fases da vida. O tinto beirão fazia-me ter pena dela, até ir abraçá-la, mas ela não se estava a lamuriar. Estava a fixar condições para o próximo, para o ouvinte, que podia até estar naquela mesa. Um pouco como alguém numa pastelaria dizer-me que tenho de beber o leite azedo, mas só por um copo e nunca do pacote. Lembrei-me da expressão, que os conas desencalhados murmuram entre si para serem engraçados e passarem por adultos, ‘happy wife, happy life’, e de novo, olhando em redor, para a boda, indagava se estes pobres diabos sabiam que esta expressão, era no fundo, um ultimato. Olhava para ela e perguntava a mim mesmo, qual a lógica por detrás de muitas coisas que as pessoas fazem. Por exemplo, este indivíduo publicitando assim o seu estado de carência, ao mesmo tempo exigindo algo, em troca da sua aprovação e do seu corpo. Pretende o que todas da idade dela e mais velhas, pretendem, respeito. Não um respeito qualquer. Aliás, nem é bem respeito. O que pretendem é deferência, pois sabem de forma cristalina, que são tratadas de acordo com o seu aspecto, e que um pretendente tem de saber que ‘ela’ exige ser tratada como igual, deferência, ou noutras palavras, poder. Alavancagem na potencial relação. Ser considerada algo de raro, com valor. Exige do outro, o tratamento que nunca deu, e por isso está à procura de alguém, ou que não sabe dar. No fundo o que exige, é ser bem tratada apenas por ser quem é. Que é tão idiota, como um homem desejar ser amado pela pessoa que é. E não pelo papel planeado na fantasia da amada. Do ponto de vista lógico, o homem deseja profundamente ser validado com o mesmo tipo de amor cego e romantizado. Para cada Florbela Espanca existem dezenas de Camões. Exige, portanto, uma reciprocidade na adesão emocional. Precisa de sentir no outro amado, a mesma entrega a um binómio sentimental que vá além do mero contracto. Para a maioria dos homens, creio, o amor vale por si. Por isso os rapazes parecem amadurecer mais lentamente que as raparigas, porque são de berço, idealistas. A verdadeira inveja freudiana, não é do pénis, mas da capacidade de idealização. É assim que vê a mulher, idealizada, raramente feita do mesmo barro, mas de um melhor. E a mulher, naturalmente, gosta de ser vista como deusa, sem as exigências menos agradáveis que decorrem da propriedade de ser deusa, por exemplo…ter um comportamento divino. De uma forma primária, recusa tudo aquilo que não é agradável nesta vida em que tudo se rege por um preço. Assim estava esta moçoila do outro lado da mesa, afixando como Lutero à porta da Igreja, as suas exigências. E eu a perguntar-me, se isto é lógica de vendedor. O vendedor, (e ela estava a vender-se, a publicitar o produto) comunica tudo o que de bom, o produto a vender, tem. Não começa por dizer as condições em que se efectua a venda. Mais do que uma táctica errada, ela apenas anuncia alto e claramente, que oferece a possibilidade de alguém lhe desempenhar um papel de utilidade na sua fantasia sobre a vida. Este latente tomar os indivíduos do sexo masculino como máquinas básicas com uma função limitada, como objectos capazes de celebrar contractos, é transversal em todo o lado. Fora os que ostentam uma riqueza material que os torna ‘vencedores’ natos, na vida, a maior parte dos gajos ditos ‘normais’ é vista e tratada como uma espécie de humanos detentores de uma deficiência cognitiva, que os impede de olhar para o mundo e para as pessoas da mesma forma rica e complexa das mulheres. Raios, até eu, na minha história com os meus amores, dou por mim a analisar a forma de tratamento de vários indivíduos diferentes, que por si, se julgam de um barro diferente, sobrevalorizando a sua interpretação das coisas sobre a minha, mesmo que apregoem o contrário. Esta à minha frente, não era feia, mas claramente havia perdido cedo a sua glória. E agora exigia culto, deferência, sem nada que o justificasse, apenas por ser quem é. Mas sabe lá ela quem é. Tem uma imagem de si. E nessa imagem, é-lhe devido o melhor, ser bem tratada, não chega. Tem de ser a religião de alguém. O contracto exige reciprocidade em ambos os sentidos, mas devoção só num. Estive para lhe perguntar, quais as suas qualidades como pessoa, podia estar interessado em experimentar o produto. Mas que em qualquer transacção comercial, é o comprador que tem de avaliar a coisa. Para não entrar em polémicas no casamento do meu amigo, levantei-me e fui-me encostar ao mármore branco do bar, que ainda não estava aberto, mas que o empregado também não me conseguia recusar. Disse-lhe «-Tira uma para mim e outra para ti.» Ele riu-se e os meus cabelos brancos ajudaram à quebra de protocolo. Ainda almoçavam todos e eu já ia na segunda caneca de cerveja com um copo de whisky a servir de sidecar submarino. Para África e em força. A minha suposição de que um casamento de realizador de cinema era o sítio indicado para não ser incomodado por outros, mostrou-se errada. Ao invés do expectável, não ficaram tanto a tecer micro-discursos em redor de micro-mundos onde todos se conhecem uns aos outros, mas boa parte das pessoas presentes parecia apreciar a saída da esfera de conforto, abordando os desconhecidos dos seus mundos de celulóide. Ao colocar a caneca à boca, alguém me aborda perguntado se a cerveja é de jeito. Um gajo magrinho e alto, olha para mim com um sorriso moderado. Digo que é, e pergunto se quer uma caneca. Olho para trás a tentar perceber porque não está o gajo sentado numa cadeira. Está toda a gente em pé, e este escolheu-me a mim para meter conversa. Começamos a falar de bola, do tempo, e do diabo a sete. À medida que se seguem as cervejas, o lubrificante etílico faz efeito, e já falamos como velhos conhecidos. Quando me descaí e falei de ser argumentista, ele soube quem eu era e disse. «-Ah eras tu o padrinho de casamento dele.» Sim, mas ela fez questão de lhe dar a volta e elegeram outro mais ‘adulto’. Curioso, como os outros parecem cheirar em mim, a aversão à participação nestes rituais. Tal como somos quase sempre temporários em relação às mulheres que esperam sempre por um candidato melhor, também sou o gajo fiel e constante que não se vende caro, e que nunca nega um café na pastelaria, ou um almoço na Baixa. Nunca nego, ou só raramente, a minha companhia aos outros, porque julgo fazer parte da minha responsabilidade como ser humano, para com outros a cargo de diferentes cruzes que têm de arrastar pelo chão. Sinto que confundem este dever ético e também de gostar de pessoas, confesso, com falta de melhor para fazer, e por isso, sou avaliado como alguém de menor valor, codependente de encontros, e de relações subordinadas a hierarquias de valores, onde a gestão dos minutos de contacto, o tipo de conversa, e a pretensão dos intervenientes, determina o algoritmo valorativo. Como juízes de coreografias subaquáticas, damos as nossas classificações de zero a 10, gravando na testa dos outros, os seus lugares nas escalas de valor. Eu sei, disso tudo. Não me ralo, prossigo a charada. Mesmo quando uma vez ou outra, cancelam o almoço comigo, para irem almoçar com amigos mais importantes. Não ligo a isso, vejo as pessoas sendo pessoas. Por isso também não me ralei com a troca de papel no casamento. E fiquei a saber que ela, já o tem em torno do dedo. Problema dele. Eu avisei-o. Já não sei o caminho que fez surgir o tema. Eventualmente o Tomé (o gajo magrinho que se aproximara de mim para beber cerveja e falar), aborda o tema das uniões matrimoniais e que se soubesse o que sabe hoje, não teria casado. Eu chamei-o de mentiroso. Há uns 40 anos atrás seria motivo para sessão de pancadaria, mas nos tempos que correm, ele só perguntou : «-Porquê?» «-Quem é a tua mulher?» Virou-se para o estacionamento de mesas e apontou timidamente com o polegar, na direcção de uma fêmea, que não sendo feia, também não era alguém que parava o trânsito. Disse-lhe «-Parabéns, é uma estampa!» Ele riu-se, e disse «-Obrigado!», com acentuada carga de orgulho. Isso disse-me tudo o que eu precisava de saber. Perguntei-lhe o que mais lhe desagradava na vida a dois, na monotonia de ter de suportar a própria vida e as flutuações emocionais de um outro, que sabe ter o poder na relação. Os queixumes do costume. No final do seu testemunho, perguntei-lhe se ser controlado pela sua biologia valia a pena, tendo em conta as lamúrias do que relatava, de ela ter uma noite só com as amigas por mês, de ele ter a sua man cave na garagem de um prédio de 5 andares na Regaleira, de só o foder em ocasiões festivas e no dia do seu aniversário. Perguntei-lhe com que idade casaram. Com que idade se conheceram. Qual o historial dela. Aí mostrou-se ofendido. Que não admitia esse tipo de inconfidências acerca da sua esposa. Mandei vir mais uma caneca, que lhe coloquei na mão, e perguntei-lhe se a esposa defecava. Ficou perplexo e exclamou que tem isso a ver com o que seja. Reelaborei, e expliquei, que se a mulher defecava, então isso era um indício de ser humana, e não uma deusa descida do Olimpo. A minha redução ao absurdo fez que ele entendesse para onde ia a minha argumentação. «-Repara Tomé, não tens de gostar de ouvir o que eu digo, ou sequer gostar de mim. Apenas aferir, se o que digo tem sentido ou não, se te ofende e porquê.» Ele parou de beber, pousou a caneca, e meteu-se a olhar para as paredes transparentes da tenda que compunha a campanha da boda. Após alguns momentos, lá aproveitou a oportunidade para tirar um peso do peito. É uma autêntica cruz que se carrega ao peito, quando somos ou nos tornamos, no adereço da vida de outro, especialmente porque não queremos perder um bem que parece ser raro, a vulva, ou a validação feminina, o que vai dar ao mesmo. Que maior validação podemos ter enquanto homens, que a escolha de uma mulher de perna aberta que implora para nos receber? Há qualquer coisa de primal nessa cópula, e por momentos a natureza parece dirigir-se pessoalmente a nós exclamando que ganhámos a luta pela sobrevivência. Que se casaram ali pelos 30, que ela lhe disse que estava farta de jogos, e queria uma relação estável. Que tinha tido alguns namorados, mas nada de mais. Dei comigo a divagar internamente, sobre a anti naturalidade do capitalismo, onde os barões da indústria fomentam uma suposta emancipação feminina para estimular a economia metendo as mulheres a consumir mais e até mais tarde, criando as ilusões de que até ao final do gongo é combate, deixando largas fatias da população, homens e mulheres, fora do combate reprodutivo. A conversa estava animada e a minha lógica, bem como o sistema de entrega da mesma, verbal e a confiança etílica, furava pelos ouvidos de quem me escutava. Não dei pela coisa, confesso. Como se começou a amontoar gente à minha volta, quer pela picardia, quer pelo o tema, que no fundo toca a todos, independentemente do que têm no meio das pernas, a multidão captava hipnoticamente mais gente para tentar perceber o que seduzira os outros a aproximarem-se. Levantavam-se das mesas e vinham-me observar, ouvir. Ou melhor, vinham ver o porquê de estar tanta gente reunida no mesmo sítio. Calhando olhar para o lado, notei uma mulher cuja forma de vestir chamava demasiado a atenção, com uma contraposição subtil para com os traços de fisionomia que visava compensar. As mamas grandes evidenciadas por um decote acentuado, enquanto o quadril mirrado era tapado por uma túnica excêntrica e colorida, que captava quase todo o potencial de observação, para longe dos pés grandes e gémeos enfezados. Eu reconheci a cara, mas não de imediato. Havia qualquer coisa nela que a colocava demasiado à vontade, quase que me confrontando directamente, na pequena ágora que entretanto se formara em torno de nós. Quando já desistira de identificar de onde conhecia aquela cara, foi quando a identifiquei. Susana Borges. A Susana Borges foi uma actriz porno muito conhecida pelos informáticos entre os anos de 2004 e 2009. A Susana, cujo nome de guerra era Susie Cu (julgo que em honra da música dos Creedence), fez certa vez uns filmes privados com o namorado, levou o computador para formatar numa loja de informática da Margem Sul, e os técnicos apropriaram-se do conteúdo e espalharam o mesmo por email. Meteu a dita empresa em tribunal, levando-a à falência, e aproveitou a publicidade que retirou daí, para dar entrevistas às TV’s que a abordavam como exemplo dos perigos da privacidade electrónica. Lembro-me de a ver indignada contra a exposição indevida do seu corpo. Ela própria fazia questão de se aperceber o mundo jornalístico e por isso apareceu algumas vezes, as suficientes para ser chamada, ou participar em alguns programas de segunda linha, como figura de corpo presente, em que apenas basta aparecer. Não foi com surpresa que ganhou um concurso qualquer da Playboy portuguesa e foi daí que se tornou figura pública em meia dúzia de anos até surgir outra mais nova, mais firme, com melhor implante mamário. Mas o mal estava feito. A atenção e admiração granjeada por causa da presença em capas de revista, e de milhares de gajos tocarem sarapitolas à sua conta, havia dado um novo reflexo da sua pessoa que adoptou como imagem própria. E quando a atenção se foi, havia que continuar a aparecer, sob pena de cair no vazio de se perder a si mesma, ou pelo menos regressar com os pés à terra. Daí aos filmes porno, foi um passo curto, e não sendo ela nenhum portento de geometria corporal, como compensava com façanhas cada vez mais ‘incusivas’ tornou-se mascote da ‘indústria’ dos trabalhadores do sexo. Mas até o Sol se põe, e cada vez menos iam aparecendo convites para filmar. Deduzo que como se dá bem em cada meio onde se insere, conhece o noivo, apesar de o noivo não ser esse tipo de realizador. Eu estava a debater o papel predatório da fêmea na C+S, quando elege especificamente os gajos mais influentes da escola, e que muitos desses gajos, sabem instintivamente, que se espancarem outros, há qualquer coisa a lucrar aos olhos delas. A ideia ainda mal percebida de que a fêmea aprecia quer o drama da violência, quer a vista do potencial parceiro espancando um outro. Perguntam-me porque motivo digo isso e respondo que o homem propenso à violência demonstra que é um bom dador genético e indica que a pode proteger de outros animais e homens. Alguém goza e diz que todas as escolas têm auxiliares da acção educativa, e eu respondo que o código não foi escrito ontem, mas no processo antropogenético, onde vivíamos em grupos de 30 ou mais indivíduos, e que portanto não podemos ajuizar facilmente a partir do nosso condicionamento metropolitano. Elas formavam grupos codependentes, que são no fundo a cola que une o grupo inteiro e as sociedades, e é por isso que todos os grupos de amigas são ao mesmo tempo expressões de codependência e competição, já não tanto pela atenção masculina para procriar, mas para mostrar às outras do grupo o seu valor por via da sua capacidade de sedução, de tirar um homem do sério. De como estes se tornam troféus exactamente iguais a todas aquelas que o sedutor come e cospe fora, convencendo-se a si e a outros, do seu valor como homem. De como na C + S e no resto da vida, elas são exímias a identificar onde reside o verdadeiro poder, e as mais hábeis a manobrar de forma a poderem manipular e usufruir dos benefícios desse poder, seja ficando mais próximo do chefe da tribo que esquarteja a peça de caça, seja sendo a secretária de direcção hiper séria que bebe tudo o que os executivos cospem. Susie parece ter reverberado com esta ideia. Ri-se, exclama que sou ridículo, e apela ao grupo (outra fonte de poder) para não ouvir as minhas chachadas. Calo-me, saboreio a cerveja, e dou oportunidade aos que me circundem de considerarem o meu ostracismo. Ninguém arreda pé, e alguém me pergunta sobre o amor. Rio-me e vejo que Susie também quer ouvir a resposta. |
Viúvas:Arquivos:
Abril 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|