I Ter de ir a Castelo Branco. Não me apetecia, já lá tinha ido umas sete vezes este mês, e apetecia-me fazer outra coisa que não conduzir. Ou ir de comboio. Pensando melhor, o meu enfado nem era com a viagem, mas com a certeza de que o destino era o mesmo, uma tarde ou um fim de semana a satisfazer a peça teatral de outro. A Mónica vivia para aquilo que os pais pensavam dela. Como lhe estava vedado algum tipo de introspecção – boa parte das mulheres temem o abismo – aferia o seu próprio valor e sucesso na vida, pela imagem de si reflectida nos olhos dos pais. Se os pais a continuassem a ver como a princesa que para eles sempre seria, bastava-lhe. Não via isto como manipular a percepção dos pais, mas como agradar-lhes e fazê-los felizes e orgulhosos de a terem como filha. Só isso interessava. Desde o primeiro dia que dava para perceber que eu, fazia parte de um possível esquema de dignificação da vida. Dava para apresentar a família e amigos, não sendo marreco ou desdentado. Mas o sexo simiesco de desejo puro foi apenas um prenúncio em forma de gancho para me capturar na ponta do anzol, e o sexo inanimado do aqui me tens aqui me levas, mero cumprir de calendário para que eu me fosse embora. A forma clássica de utilização do próprio corpo, por via do desejo de outro, para adoçar a visão de outros. Que nome se dá a organismos que captam de outros para dar aos seus? Parasitas? Predadores? Não posso criticar. Fiquei. Sou pior, tirei de mim para dar a ela. Organismo autofágico sou, cúmplice da minha própria relativização. Portanto não posso censurar a falta de respeito da parte de outro, se eu próprio me desrespeito a mim? E pelo quê? Por uma descarga de sémen que no final sabe a desespero? Pelo controlo da percepção dos meus progenitores? «-Ah, ele tem mulher, está orientado na vida, segue o caminho que os nossos egrégios antecessores seguiram, portanto está certo.» Matava no berço as minhas inquietações espirituais e intelectuais, para poder viver na casa da mediania, sabendo de perfeita mão, que o meu bairro era outro. II As carícias dela à mesa sabiam a esferovite aguado. Nenhuma corrente emocional era transmitida pelas suas mãos, para mim, por mim. Meras coreografias para os pais verem a sua dedicação e enamoramento, de forma a que posteriormente, a velha desculpa do ‘apaixonada estava’ servisse de desculpa se aparecesse um melhor, e o promovido a descartável fosse etiquetado com ‘não serve’. Os pais lembrariam de facto as coreografias de paixão, e anuiriam com a nova narrativa do ‘ah ele é um madraço, ou cheira mal dos pés, ou limpa o nariz com os dedos dentro do carro’ – ou qualquer outra desculpa que surja para desclassificar a fralda humana usada. A filha é imune a defeitos de carácter, pois o verdadeiro, o valorizado é a razão, e o ‘amor’, no seu carácter de sentimento emocional excessivo, ganha foros de verdade absoluta. Bem utilizado, o ‘amor’ é o mais poderoso desengordurante alguma vez inventado pela Humanidade. Para os pais, para os seus olhos, a filha estaria sempre correcta, a adesão emocional confere verdade a uma ligação, cuja racionalidade vai corroendo. O gajo é pacato, não vai a lugar nenhum? Veste roupa velha e conduz óxido de ferro? É portanto um incapaz cujo único destino merecido é o descarte, racionalidade que vence por fim a força do ‘amor’. A Susana, por exemplo, tornava-se propositadamente chata, narrando à mãe que eu era lindo e tinha cara de Tom Cruise, e era muito inteligente, e que a fazia sentir com borboletas na barriga. Isto à hora de almoço, reunida a família em torno da mesa. À noite em sua casa, trocava de roupa com a porta da rua aberta, para que os habituais mirones a pudessem espreitar melhor, a ela que era a anedota, infelizmente, da terra. Não há aqui vitimas, dança quem quer e quem pode. A viagem de carro, onde passa horas olhando para os pinheiros sem algo dizer, é um mero cumprir de calendário numa vida que abomina. Eu, o prémio de consolação em relação ao gajo que comeu uma vez na festa de espuma em Ibiza. Diz o povo, tanto escolheu, que ficou com os restos que sou eu. A bem dizer nem escolheu, nem sou restos. Passou de ‘paixão’ em ‘paixão’ atrás dos altos de endorfina, cada vez mais baixos e exigindo doses maiores para se sentir bem consigo mesma, através dos olhos de outros, que é o que é ser-se desejada. Ou se calhar, viveu uma vida a fugir, sem se ligar decentemente a ninguém, por falta de amor próprio, por acreditar ser-se a merda que se é, só o sendo porque nela se acredita. Apareceram baixos, gordinhos, desdentados ou engatatões de colónia barata. Nenhum com o aspecto respeitável e promissor de gajo para casar. E como a sua felicidade vem por intermédio da opinião que dela os pais têm, a avaliação, a entrega, e a escolha de parceiro, decorrer do que ela pensa que os pais pensam. Conduzindo entregue à minha solidão pela estrada nacional ladeada de eucaliptos e alcatrão solto, parto o juízo a tentar perceber como posso gostar de alguém e ser tão infeliz ao ponto de não conseguir escolher o melhor para mim e largá-la. Comodismo, covardia, ou falta de amor próprio, os cúmplices do costume. As conversas reduzidas a mínimos, vejo que ela já iniciou o corte emocional que expõe uma avaliação da nossa pessoa como sub-merecedora do menor esforço. Agora é só uma questão de descobrir quem é esta pessoa realmente, já que nos últimos 6 anos de casamento, sei que tenho vivido com uma personagem por ela composta, tudo parte de um complexo plano de levar àgua ao seu moinho. Sei também que no final, mesmo no final de contas, sentirá o abismo sussurrando-lhe que viver através de farsas que não consegue evitar, não é viver. É fingir. III Deixo-a em casa dos pais e vou ao café que frequento quando lá estou e encontro o Paiva, que é o gajo com quem me dou melhor, e com quem troco impressões sobre este tipo de assuntos, apesar da escassa convivência entre ambos. Passou a respeitar-me, porque uma vez caído de bêbedo, deu em bater na mulher na rua, e eu impedi-o, manietando-o. No dia seguinte fui encará-lo para o caso de ter algum ressentimento comigo, e demos a trocar ideias sobre o bicho de estudo preferido, as mulheres. Com a 4ª classe, mas dotes de observação admiráveis, deu-me lições de contextualização acerca dos porquês, dos comportamentos e das manhas que não conseguem evitar. Falamos sem qualquer tipo de animosidade sobre elas, como dois cientistas olhando para o mesmo tubo de ensaio. Gostamos de mulheres e de perceber como funcionam. «-Então, vieste cá cumprir calendário?» pergunta-me ele com uma mini na mão. «-Pelos vistos. Acho que agora é aguardar que apareça algum prospecto melhor na costa. Ela já cortou comigo na sua cabeça, e nem estou para tentar reverter o processo.» «-Nem vale a pena João. Agora é melhor arranjares outra e não te deixares afectar pela imagem desta, a verdadeira imagem, que só conheces agora quando nenhum interesse tem em fingir.» - retribui ele depois de beber a cerveja toda com goela de pato, e depois da costumeira celebração quando o faz «-Sem espinhas, ahhhh!» «-Sim, agora é por demais evidente que já só desempenha peça para os pais, sei lá eu o que vai contar de mim para justificar a ruptura…» «-Se calhar a verdade!» diz rindo. Causa-me uma gargalhada que rio-me até ficar vermelho, pois não me posso isentar de ter defeitos e de ser também por ela estudado consoante o seu interesse. De como posso ser útil na sua vida, é a sua motivação de estudo. E que posso aprender com ela, é a minha. «-Com toda a certeza, e são muitos.» digo gracejando a sério. «-Solipcistas, são solipcistas.» - desabafo eu com termos caros para não dizer que só pensam no seu cú. «-Claro João, nem podia ser de outra maneira. Ou achas que seria útil no tempo daquelas pedras que vens para aqui estudar nas grutas, que elas se ralassem com o parceiro, mais que com a criança? Nunca tínhamos chegado até aqui. Se te queres queixar, o que é uma perda de tempo, queixa-te da ilusão geral de que os sexos são estritamente iguais, e que o amor perfeito é comum a homem e mulher.» Por amor perfeito queria ele dizer amor idealizado ou amor romântico, uma merda inventada por homens criados na guerra que tinham de ter vazão em tempo de paz. Nada como a dedicação a uma causa superior e transcendente na figura da deusa feminina. Como sempre, eu levando banhos de realidade. Em casa os risos sem conteúdo, e eu sempre iniciando a cópula, que acabada me faz sentir pior que antes, mendicante, esperando encontrar na que jaz ao meu lado, o mesmo entusiasmo pela oração que acabámos de fazer. Só para levar outro banho de realidade. O de que qualquer vingança saloia assente numa remissão futura, é apenas o meu ego a falar. Vivo através dos olhos dele, como se fosse meu pai e mãe.
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As gotas cada vez mais grossas vindas do céu morrem no pára-brisas que antecede um cinzento tom no horizonte. Venho da casa da Sofia, e num semáforo que há ali para os lados de Telheiras, noto além do vermelho que me faz parar, que um pintelho está preso num interstício dos meus dentes, só se deixando perceber à passagem da língua. Coisa arriscada fazer minetes nos tempos que correm, onde as mulheres fodem por desporto e emancipação. Só falta usarem mangas de alpaca e fumar charutos, e a completa osmose dos trejeitos masculinos será completa. Chama-se isto ‘emancipação.’ E no entanto castigam-se os putos na escola, se copiam pelos colegas. As trombas de água que Novembro traz, provocam estes engarrafamentos, bicas de água que brotam do solo lisboeta, e taxistas que saem das viaturas para ensaiar óperas de pugilato com os restantes condutores com quem se envolveram previamente num duelo verbal. Enrolam-se os dois, caem na poça de água na berma, enlameando-se, os outros primatas observam na esperança de ver sangue ou só dois seres humanos descendo baixo na escala da dignidade, o que os faz sentir elevados na estratosfera moral. Levantam-se e trocando sopapos e desequilíbrios que os estatelam no solo, algures esbarram no meu carro, trazendo a atenção da plateia para mim, para a minha potencial reacção. No momento em que tento com uma senha de parqueamento, retirar a pilosidade do meu maxilar superior. Mais do que a tromba de água judicativa de todos aqueles que na minha cabeça penso julgando-me, o porco palitando os dentes sem modos, preocupa-me a ideia idiota de que não tinha problemas em dar prazer oral a mulheres de vinte anos, mas que agora, espera lá, por mais asseadas que sejam as trintonas e quarentonas, não beijo casa de outros. Mais que a filosofia do minete, estava perplexo com uma alteração de comportamento em mim, que era instintiva, completamente alheada do meu controlo. Interrompe-me o toque do meu telefone. Era Pedro. Telefonema muito estranho, dizendo-me que gostava muito de mim, e que me queria ver. Ok, combinemos. Quando estamos na fase de despedida para terminar a chamada, desata a chorar do outro lado e pergunta-me em desespero: «-João, ela vai voltar? Achas que ela vai voltar?» «-Não Pedro, ela não vai voltar.» Os soluços do outro lado acordaram-me para a minha falta de tacto, dizendo a verdade sem pensar na consequência da mesma, esvaziar o outro de esperança. «-Pedro, já te disse para te deixares disso.» - debalde, estupidez da minha parte, como se ele pudesse. A tipa violou-o com a sua ausência e eu para aqui a dizer para ele não ligar à violação, numa variante de sê um homenzinho. «-Já te disse para pensares, se ela voltasse a aceitarias de volta. Como já falámos, ela não era o que pensavas e os últimos meses não foram uma afecção de espírito, o ‘andar com a cabeça no ar’ como o povo diz. Os últimos meses foram a expressão do que ela realmente é. Quando perdes o valor de tal forma que já nem ache que mereças que ela finja, ela revela-se. Podem fingir anos. Mesmo que revelem os óculos do amor não te permitem ver defeitos. Diz-me, queres aceitar de volta quem te tratou assim?» «-Não…» - responde ele com um suspiro bem pesado e bastantes momentos de avaliação do que eu dissera. «-Então, não gastes energia mental nessa imbecil. Não teve o mínimo respeito por ti, pensares nela apenas é perder tempo com alguém que não merece isso de ti. Eu sei que dói, já passei por isso. Mas dói cada vez menos, todos os dias, até que um dia sem dares por isso, deixa de doer, e começas a sentir falta da dor que sentias, por ter durado tanto e desaparecida, só te lembrar a contingência do devir da atracção e da repulsão.» «-Que raio lhe fiz eu para ela proceder assim comigo?» «-Essa pergunta não é útil para ti, Pedro. As pessoas querem viver o melhor possível no curto espaço de tempo em que estamos vivos. As mulheres têm uma curta janela de poder sobre os homens, e uma longa velhice para se sentirem desapossadas. Descartou-te porque te perdeu completamente o respeito e não te respeitando não te pode amar. Apareceu algo que lhe pareceu melhor e a vida é curta e ela não fica mais nova. Já nada tinha a perder contigo, e arriscou no outro passar para uma liana mais elevada. Se correr mal pode ser lamuriar-se às amigas e familiares que seguiu apenas o «amor» . E como o que a mulher odeia mais a responsabilidade que Maomé a entremeada, confirmação umas com as outras e umas para as outras, que de facto o «amor», essa energia ou força invisível, é a causa última das suas tomadas de decisão.» «-Não valho nada, mesmo, não é.» - o meu discurso não edificara, tentando eu passar a ideia de concatenamento lógico, o indivíduo preso demasiado próprio do seu ego apenas via que aquilo que eu dizia confirmava a justeza do abandono e não a crítica a um conjunto de ideias Disney. «-Que merda de conversa é essa, então depois do que te tenho dito é essa a conclusão que tiras? Que o teu valor próprio está dependente das decisões e apreciações de outro?» Silêncio do outro lado da linha, agora era eu que reagia demasiado próximo do meu ego. «-Eu sei que pareço tão bruto como um ortopedista a lidar sem anestesia com a tua fractura exposta do fémur. Na dor dos outros somos turistas. Mas tu precisas de uma sacudidela nesse poço de negrume em que estás. Vais macerar-te ad aeternum com a ideia de que devias ter feito algo. Devias, mas não era agora no fim.» «-Então?» «-Lembras-te do casamento do Marques?» «-Sim…» «-Em que eu levei uma tipa que andava a comer na altura e passaram o tempo todo, os casais naquela mesa, a defender as virtudes do casamento burguês e o mito da alma gémea?» «-Sim, lembro bem, a mulher do Porfírio estava vermelha de ódio contigo, por defenderes que as mulheres amam oportunisticamente e os homens idealmente. Teve de vir o pai da noiva pedir para falarem mais baixo.» «-Essa gaja seguiu-me até à casa de banho quando fui mijar, entrou e agarrou-me na tomateira e disse-me que me queria chupar todo. Por isso saí da casa de banho a correr e atravessei o salão de danças em passo acelerado.» «-Eu lembro-me disso! Vinhas vermelho e a gente até gozou que tinhas ido depositar o mexilhão das entradas. A sério?! Porra, quem diria, essa gaja com cara de quem é séria e moralista…» «-Esta conversa não sai daqui.» «-Claro, o Porfírio é um gajo porreiro, porra.» «-É e não vai deixar de ser, até ao dia que descobrir que a mulher não é quem ele pensa. Adiante. Lembras-te da tua postura?» «-Não…» «-Estavas com uma postura confiante, e também tu tentaste rebater a minha argumentação. O teu motivo de confiança na altura era teres uma gaja ao lado, um totem externo que assinala ao mundo e aos outros o teu valor intrínseco, do tipo, sou amável porque esta gaja me ama. Venci a batalha genética, portanto algo estou a fazer de bem.» «-Sim, lembro-me, na altura disseste o mesmo.» «-Era nessa altura que devias ter percebido, que a tua relação não avançaria para lado nenhum. Porque tu próprio te anulaste para fugir ao abismo.» «-Sim.» «-Disse-te o mesmo, quando andaste aluado com aquela tua aluna, que vestia toda de cabedal, e que gostava de Aerosmith. Disse-te que se ela se comprometesse a dar-te acesso às gónadas em base regular, largarias a tua ex em 2 tempos. Quando te descartou, desculpaste-te com a ideia de que tinhas muito investido numa relação que era mais importante que uma relação passageira. Lembro-te isto apenas para que vejas que aquilo que agora te parece absoluto, parece-o porque os teus sentimentos estão a levar a melhor sobre ti. Racionalmente a situação é até risível.» «-É risível porque não é contigo.» «-Não, é risível, pela forma como ela meteu as mãos pelos pés, como alguém se deixa aviltar assim no tratamento com outros. Ou achas que no seu íntimo ela não sabe que só faz merda com os homens, elas sabem. Nenhum bando de amigas adúlteras lixiviará isso. Em bom português, as cabras sabem que são cabras, por mais naperons rosados que ponham por cima da canalhice. É a vida Pedro, uma triste anedota, que perde o tom assustador se nos rirmos dela.» «-Tens razão.» A voz dele parecia-me mais animada. Fiquei orgulhoso de mim por minha verborreia, ainda que pensada, servir para aliviar o sofrimento de outro. «-E tu que andas a fazer?» perguntou-me ele. «-Estou a sair da casa de uma tipa.» «-Como não podia deixar de ser, não mudas!» Como sempre gosto de contar os pormenores quer da sedução quer do contexto, para que os meus amigos possam discorrer comigo sobre a anedota que o mundo é. «-Metia-me com ela, dizia-lhe bom dia e sorria-lhe, mas sem nada ter como intenção oculta, estás a ver. Achava-lhe piada ao espírito e metia-me com ela, provocava-la, porque a sua reacção me divertia. Postava-lhe memes engraçados no livro das caras, e esse tipo de merdas, e ela deve ter começado a achar que eu queria alguma coisa. Tal como elas pensam sempre que um gajo as aborda, tem sempre segundas intenções, caguei para isso. Convencida deixou de me dar troco e até passou a evitar-me. Eu percebi e ignorei. Acho que numa altura em que estava vulnerável, voltou a meter-se comigo, e eu educadamente respondi. Tinha terminado com o namorado e nada como emoções presentes para abafar as passadas e eu deixei-me ir na coisa.» «-És incorrigível.» - a frase curta demonstra que ele não estava minimamente interessado na minha elaborada ruminação, e portanto não insisti. «-Sabes, és um bom amigo e tens sempre estado cá para mim.» «-Foda-se Pedro, não gosto quando falas assim. É abichanado e parece que te estás a despedir ou o raio.» «-Eu sei, não ligues, estou emocional que até enjoa.» «-Vai passar, e em menos de nada vamos estar com umas gajas boas ao colo, champanhe a escorrer pelas peles esticadas e cachecóis de plumas a envolver os beijos sorvidos num hino qualquer à alegria de estarmos vivos.» «-Podes crer, é uma imagem bonita. Vou-me.» «-Vai, alivia e tem calma. Depois ligo-te.» Terminada a chamada, prossigo viagem. A sessão de sexo atrasou-me o trabalho todo, tenho de regressar à minha secretária e compor 10 páginas de prosa minimamente decente sobre a escravatura berbere, e tentar não me afectar com os relatos e a aridez dos números, preso ao que as pessoas podem fazer umas às outras. Sei que o confinamento faz com que ninguém saia de casa e que por vezes se perca a noção do tempo. Passam dois dias, esqueci-me de ligar ao Pedro. Toca o telefone. É ele. Do outro lado recebe-me uma voz feminina. Conhecida. A mãe dele. O tom dela é desolador. O Pedro morreu, suicidou-se. Electrocutou-se num motor trifásico que andava a modificar. Deixou um papel escrito dizendo entre outras coisas, que te deixava todos os seus livros de ficção. Os outros, doaria à Universidade de Lisboa. Não consegui esgrimir uma palavra. Nenhuma mãe deveria passar pelo anúncio da morte do filho. O enterro é amanhã às 13 no Alto de São João. Terminada a chamada, dirijo-me à garrafa de whisky de malte que tenho guardada para as ocasiões, e só paro quando está vazia. Não sei quantos meses vou ter de anular a dor com álcool. Vejo o caixão descer ao chão e é como se um zumbido permanente ecoasse nos tímpanos, isolando-me do mundo lá fora. Dói-me tremendamente a cabeça da ressaca e o cabrão do pintelho ainda não saiu do intervalo dos meus dentes. Estou sozinho junto da campa. Rio alto pela anedota desta merda toda. Corro a agenda telefónica procurando quem queira anestesiar-me com sexo, sim fujo de novo. Mordo os dentes e acabo por não cumprir com as que acederam em dormir comigo ao telefone. Fecho-me em casa e baixo os estores e deixo o negrume abraçar-me. Ela liga-lhe, e o até agora homem dominante que parece tratar o mundo e as coisas com a certeza inabalável da sua convicção, encolhe-se sobre o seu umbigo, meio para forçar uma voz carinhosa, meio para esconder os meus ouvidos tal visão partilhada. Esconder a fofura ardilosa com que fala com a sua respectiva, por contraposição com aquilo que quer que eu pense dele. Como não ver nisto um peso, só pelo facto de se ser homem? A esposa inicia a conversa, que não consigo deixar de ouvir, por causa da sua proximidade. Não quero ouvir, mas quero menos sair da mesa para evitar ouvir algo que não me diz respeito. Fico na ponta da mesa redonda de tasca, olhando o horizonte da várzea, e o pires de tremoços demasiado salgados, e ordeno à linha de pensamento que se debruce sobre algo que me distraia da conversa que eles têm entre eles. Não consigo concentrar-me pois o smartphone emite o som demasiado alto. Ela inicia a conversa de modo suave, num tom jovial, com um ligeiro desafio cujas palavras podem ser interpretadas com segundas intenções. Ele, como que se um interruptor no seu espírito, se premido tivesse efeito imediato. Mudam as suas feições, o hipotálamo toma conta do seu ser, e um sorriso entretém-se nas feições dos seus lábios. Está a pensar em sexo, na promessa de sexo, que é geralmente melhor que o sexo em si. Ele escala, com a pressão de capitalizar a oportunidade, da forma atabalhoada que é habitual a quem sabe que é controlado pelo seu desejo, reage aos sentidos encobertos nas palavras dela, meio a pedir confirmação, meio a declarar o seu desejo. O seu corpo reage, o cocktail químico no neocórtex fá-lo sentir bem. Ela respondendo, escalando ao escalar dele, mantém a compostura, mas não se negando a manter a conversa com o mesmo metasignificado, que passa facilmente como expressão de desejo por ele. Henry Miller dizia que apenas somos irmãos da cintura para baixo. A alegria é contagiosa. Fico contente por ele estar contente, entendo o lugar do outro naquele limbo da promessa de pinocada, de sexo no qual passamos 24 horas a pensar, ou a tentar não pensar, o que vai dar ao mesmo. Ela, quando o sente domado pelo desejo, e entregue ao ponto de desequilíbrio, deixa escapar subtilmente, que no universo prometido nas palavras que não disse, apenas umas nuvens negras permanecem, apelando a que ele resolva esse problema, para realizar a promessa adiada. Se ele fosse às compras e buscar o miúdo ao infantário, o caminho ficaria desimpedido, e a promessa de dermes encostadas, mais perto. Esta era a intenção inicial, que se de forma imediata e directa fosse indicada, seria por ele rejeitada por causa do turno de trabalho que acabara de realizar, ao passo que ela saíra do trabalho depois do almoço. O sexo prometido, a cenoura que move o burro. Terminada a chamada, a postura dele vem vincada, de forma austera e indiferente, para mascarar a satisfação que na cabeça dele, a meus olhos, o mostraria vulnerável ou contraditório ao que anteriormente sempre comentara. Para ele, e outros, nestes momentos, sente-se o vencedor da lotaria genética da vida. Algo fez bem que lhe garantiu a execução da missão mais importante da vida, garantir o uso de um útero. Por contraposição a todos os desajustados que reprodutivamente ficaram pelo caminho. Esses inferiores, senhores da sua própria inaptidão, elevam-no a alturas olímpicas num duplo processo de validação que se soma ao cocktail da promessa de sexo. Mais intoxicado pelo seu ego, que pelas 12 garrafas de cerveja que jazem na mesa. Os inadaptados falham metafisicamente. O seu erro além de essência, é de interpretação da realidade. Imagina a cara de espanto dele, quando lhe passo o pires de tremoços para a mão e exclamo: «-És um conas.» No ano do desconfinamento em estado de emergência do nosso Senhor, encontrando-me eu numa sessão de coitus a tergo com a Noémia, que me havia convidado para pernoitar no seu quarto de residência universitária, olhava a parede onde a minha sombra aparecia reflectida pela luz das velas.
Aparentemente, em tempos de pandemia é quando há mais interrupções do fornecimento de electricidade e água. Como se de cerâmica grega se tratasse, mexo a anca como titereiro, divertido com as sombras na parede a preto e creme. Meto a mão na minha cintura e imito filme porno visto na adolescência, «Rocky X», onde no ringue, o actor com beiça à bico de pato, coloca a mão na cintura enquanto olha a regueifa da actriz, passando para o ecrã, alguma da luxúria que experiencia no momento. Noémia coitada, bem morde a almofada, suada sob o edredão, com a mão direita agarrando a minha mão direita, completamente submissa e entregue às maldades que lhe faço na cama. Por isso merece um monumental abraço, e afagos cafoné no cabelo e rosto, quando ejaculando encarquilho que nem folha seca de Outubro em torno do seu torso. Toca o telemóvel anunciando o ‘Hino à alegria’ do grande Ludwig Van. Como pousado na mesa de cabeceira, atendo,era Filipa. Desligo. Pergunto a Noémia, que tens que se beba? «-Há ali uma garrafa de Jameson, da minha colega de quarto que foi à Guarda.» Bebo da garrafa. Não porque Filipa seja um fantasma passado que evoque memórias ou erros, mas porque o contraste entre uma gaja batida, falsa, decadente, e manipuladora, e uma miúda pura, simples e carinhosa, se evidencia de tal forma que preciso de coragem líquida para cogitar sobre o contraste. Os gajos que já passaram pela mesma situação entenderão. A vida radiante e positiva de uma juventude que rejuvenesce, e a sombra de ruínas decadentes, não é algo de fácil encaixe. Tenho de deixar de beber. Está a tornar-se demasiado recorrente para meu gosto. Lol. Eu, o pinga amor, que procura sempre de novo uma prisão de endorfina amorosa para se anestesiar, a cagar sentenças morais sobre o vício do álcool. Toca o telefone de novo. Arrefoda-se. «-Que queres?» «-Olá João, estás bem?» «-Estou, que queres?» «-Não precisas de ser tão bruto, se quiseres posso ligar noutra altura.» O bluff não surtiu efeito, pois desligo-lhe a chamada na cara, e passados 30 segundos, volta a ligar. «-Preciso de falar contigo.» Beijo Noémia no canto da boca, e digo que já volto. Saio para a varanda da residência em frente às oficinas da Imprensa Nacional Casa da Moeda, perto do Rato. «-Fala.» «-Não, pessoalmente. Marcamos…» «-Nada. Marcamos nada, não quero perder tempo. Falas ao telefone e é se quiseres.» «-Mas que te fiz eu, para me tratares assim?» O mesmo expediente emocional visando uma vitimização e anulando a justa indignação da contraparte. A mesma manipulação inata e pacóvia de alguém complexado saído das serras interiores, que acha que tem de correr atrás de um algo que a torne igual ou melhor do que aqueles que a sua provinciana cabeça considera ‘sofisticados’. «-Não me faças rir. Tens uma distinta lata de dizer isso. Compreendo agora porque hostilizas e pintas a má luz, os envolvimentos passados, não é só para lixiviar as tuas escolhas, é para justifica-las, porque te parecem erradas no momento presente em que não és feliz. Não é só um lamento pelo ido poder sexual, é uma manobra que te permite viver contigo própria.» «-O quê? Mas de onde vem isto?» - sob o timbre da voz que fingia perfeita indignação, vinha um outro que admitia ter sido descoberto, mas que ao mesmo tempo não podia algum braço dar a torcer sob que circunstâncias fossem. «-Repara, dei-te o melhor do meu mundo, que convenhamos, é o único que interessa na minha realidade. Levei-te ao maior cemitério subaquático da Europa, tratei-te como toda a mulher diz que gosta de ser tratada e até suportei os testes de treta como que músicas ouvíamos no rádio do meu carro, dividindo a preferência com uma tipa que sempre fez questão de exprimir no comportamento, que eu não era opção, mas meio para algo. Aturei a tua arrogância das tuas insinuações de que heavy metal é para miúdos e não gente adulta como tu. A única coisa que trouxeste para a mesa foi o órgão por onde mictas, o teu arsenal de falsidade e a exigência de reconhecimento por algo que queres que pensem de ti mesmo que não o sejas. Muito pouco, para quem sabe que há mais.» «-Estás a falar do quê?» Noémia chama-me da cama, mostrando-me uns leggings em vinil com as pernas esticadas em direcção ao tecto. «-Quando quiseres falar com as cartas na mesa, de humano para humano, dá-me um toque. Caso contrário, saboreia as consequências das tuas escolhas, espertalhona.» Algo de vernacular é por ela dito, mas não escuto porque desligo o telemóvel e dirijo-me para a cama da Salvação. Ela olha para mim com uma expectativa, como se eu fosse uma reencarnação de psicopata passado. Isto serve dois propósitos, fazer-me sentir desadequado, censurando a minha conduta, e fazer-me duvidar de mim mesmo. Mano, não duvides, com gajas é guerra espiritual. Programadas para procurar segurança e ao mesmo tempo ficarem molhadas com a agressividade. Hibristofilia é o termo apaneleirado que lhe dão. É melhor evocares a tua raiva, que a tua emoção quando pensas no que as gajas te provocam, vais poupar o teu coraçãozito assim. Mano, esquece isso, lá está essa mentalidade de puta a pensar que elas são más. Da mesma maneira que coças a tomateira sem nisso pensar, elas fazem o mesmo, com todo o arsenal inventado na antropogénese. Podes fazer o que eu tento fazer, compreender o mecanismo do organismo, mas que benefícios tiras disso se não o aplicas? Se não testas a pessoa e tens a disciplina de exprimir um comportamento que provoque aquilo que estás à espera que provoque? Só para testar se a tua hipótese inicial se confirma, ou não. E pelo meio tens umas descargas energéticas, que o vulgo denomina de orgasmo, e contactas em primeira mão, pelo menos enquanto dura o período de encantamento, com o mais próximo contacto com esse estranho deus, o Eros. Ira, mano, ira. Revolta-te com essas putas que só pensam nelas e que cuspiram na tua individualidade. Deixa-las envelhecer com os seus rancores e ressentimentos, por causa de más escolhas e espíritos infantis, a que não podem escapar. Deixá-las aos fuckboys que coleccionam troféus tal e qual como já fizeste, desde as professoras da C+S a dondocas dos serviços na região metropolitana de Lisboa. Quero é que essas putas se fodam todas. Coitadas. Não quero, elas não são responsáveis, e eu deixem meu coração exposto. Tenho de optar, ou a minha integridade, ou a minha defesa, Blade Runner, caminhar de peito aberto sob a lâmina. Só respeitam a força, sê forte, é mais forte que elas. Tens de te perguntar é porque é que te dizem outra coisa, na TV, nos outdoors, e mesmo os conas dos teus amigos. Aí está a melhor questão. Porque soa bem, com este paradigma de que somos mais que macacos a vogar no espaço. Pergunta-te, como vês a tua própria companhia? Tratas-te como propriedade de ti mesmo, ou como alguém de quem gostas e com quem tens de negociar? Quando conseguires responder a isso, descodificas metade da tua vida amorosa. Ela havia enviado um parecer para o email do blog, querendo publicar em forma de livro, numa editora lisboeta, uma colectânea de textos que lá estão. Manda mensagem pelo Facebook, indicando que quer publicar-me, e pensei que fosse mais um esquema em pirâmide ou merdas do género. Ao insistir, e perante a minha indiferença, adicionou-me como amigo e o seu aspecto deslumbrante de 28 anos, fez-me fraquejar. Aceitei o pedido e o convite para jantar. Já tarde em sua casa, que tem mais livros que a minha, sussurrou que acredita que nos podemos apaixonar pela escrita de alguém, e que estava com medo de que eu não correspondesse às expectativas que havia criado em relação a mim. E correspondo? Perguntei eu. Não sei, és diferente, do que eu esperava, acho que muito melhor. – disse ela. Então já não tens salvação, disse eu, encostando-me para lhe provar a língua após o tinto minhoto do jantar. De manhã e com os primeiros raios de Sol, ao ver-me vestido e metendo-me ao caminho, onde vais? «-Escrever.» «-Tenho de falar contigo João. Tem mesmo de ser!» Oh diabo, pergunto mas que raio se passa, se precisa de alguma coisa, está a deixar-me preocupado. «-Marília, que se passa, estás bem?» «-Diz-me que vais ter comigo!» Dasse. Vou, claro que vou, mas o meu instinto me diz que pode ser uma das manhas dela. De outra forma sabe que não teria a honra, o prazer e o deleite de alguma vez poder voltar a privar comigo. Não depois das merdas que fez. Sabes, eu nem ligo às falhas de carácter. Mostram-me o humano que és. Ligo sim à completa boçalidade de asfixiares-te a ti mesma, e à tua consciência, só por paradigmas que definiste na tua cabeça. Com dizia o velhinho Kant, há uma lei moral em ti. Com a mania de que és mais esperta do que realmente és, atropelas essa consciência porque o brilho de uma ilusão te norteia o astrolábio. O vulgo diz isto com maior elegância «Tem a mania de ser esperto.» E ela tem. Aí vou eu para São Domingos de Rana onde ela mora. A meio caminho, liga-me, e já não chorando, diz que afinal não preciso de ir ter a casa dela, antes nos encontramos na pastelaria onde costumávamos ir. Mau. O sentimento de urgência em mim dissipa-se, e começo a suspeitar que é mesmo mais um esquema dela. Tenho trabalho de pesquisa a fazer, e ando aqui de volta dos natais passados a fazer nem sei o quê. É que nem sexo quero alguma vez, mais com ela. Ganhei um pó à pessoa, que prefiro não ter de lidar com ela. Sento-me na esplanada, porra que as noites ficaram geladas num instante. Mordo a gola do casaco, como forma de me entreter. A pele de um animal trucidado em morte agoniante, tem um dom de me acalmar, gosto da superfície orgânica, e não como carne para evitar o sofrimento dos bichos, mas na roupa não gosto de usar porcarias artificiais. Artificial. A minha relação com ela. Ela no costumeiro afã de resolver parte da vida dela para outro ver. Sexo imitando verdadeiro desejo nos primeiros três meses. Até me sentir anzolado. Depois só o suficiente para me manter mediocremente feliz sem desconfiar. Eu, sem sentir qualquer fulgor com a vida dela, com a sua vida interior e experiência subjectiva. Então porque raio me envolvi com ela? Começo a olhar para mim como um recolector de informação, surripiada por uma sucessão de pessoas a quem estudo como ratos de laboratório. E para me convencer que o que faço é ético no grande esquema das coisas, forço-me a gostar delas. O copo de cacau quente aquece-me as mãos, e ela desce do seu andar, vejo no prédio em frente a luz das escadas acender e apagar. Traz um casaco de cabedal negro, apertado à carne, e não podendo trazer mini saia, traz o decote do 36 bem à vista. Senta-se, força uma cara séria, mas não consegue deixar de sorrir. «-És tão macaca. Nada se passou de grave, que queres de mim?» «-Estava doente de saudades. Tuas. Queria mesmo ver-te.» Uma ira incontrolável avisa estar a caminho, e forço-me a manter a compostura. «-Marília, eu estou atolado em trabalho. Não te queria ver, a única coisa que quero de ti é o prazer da tua ausência. Enganas-me assim, usando a minha natureza de ficar preocupado e de não extirpar quem algum dia já significou algo para mim. Para quê, que queres dizer?» «-Tinha mesmo de ver-te. Talvez tenha procedido mal contigo.» «-A sério, achas? O que te leva a dizer isso?» O sarcasmo e ressentimento forçam-me a ter de engolir a bebida quente para desazedar a boca. «-Escusas de gozar.» «-Pelo amor da santa. Que queres de mim?» Pela conversa, o mesmo de sempre, as epifanias momentâneas em fins de ciclos. O retorno ao ponto de maior segurança conhecida, eu, para preencher o vazio e afugentar o medo do desconhecido. Por outras palavras, para entreter à falta de melhor. «-Sabes Marília, quando estudava as bases filosóficas do mundo e arredores, surpreendia-me que os filósofos não se debruçassem sobre estes assuntos da vida corriqueira, amores desamores, paixões e rupturas. Compreendo-os agora. A partir de certo ponto perde-se a paciência. E eu prometi a mim mesmo que nada de amargo ou pejorativo, diria em relação a ti.» «-Que tanto mal te fiz para me odiares tanto?» «-Eu não te odeio. Mas também não percebo, admites que fizeste mal, mas pelos vistos achas que te odeio apesar de nada teres feito. Em que ficamos, fizeste algo que mereça o meu desprezo ou não?» Apanhada na contradição lógica, nega a mesma, revelando que o assumir de culpa era também ele um engodo, instrumental. Começa a chorar, para me desviar a atenção. Não me comovo por isso, mas pela abstracta ideia de que perante mim, tenho um exemplo de humanidade que não devo julgar por via do meu ego. «-Marília, não há problema, por princípio, não te odeio. Estou magoado contigo, sim. Mas mais comigo. Por continuar a achar que as pessoas são aquilo que penso delas, projectando um peso que ninguém pode suportar.» «-Pensas que és perfeito?» «-Eu sei que não sou, muito pelo contrário, mas na economia afectiva, apesar da minha canalhice, não recebo lições de ninguém.» Pode o mundo estar mais civilizado, mas está na mesma completamente fora de controlo, joguetes do nosso desejo simiesco que continuamos a ser. Encostando-se à cadeira, como que pressentindo que eu era de facto carta fora do baralho, por me recusar a ir na conversa dela, encaixa rapidamente a minha insignificante perda, e apenas por consideração para com a sua imagem, não se vai embora, ouvindo com enfado as minhas palavras até ao fim. Para não parecer mal, sacrifica-se ouvindo, para no final ficar a pensar de si, que fez um esforço. Mas que pode ela querer de mim? Não tem dificuldade em encontrar outro papalvo que a valide. A não ser que seja pelos meus textos, sempre lhe deu pica os que escrevi sobre ela. Deve ser isso, está com a confiança em baixo e acha que escrevendo sobre ela lhe confirmo a inevitabilidade de a amar…como se eu escrevesse para alguém que não para mim. «-Não gostei do último texto que escreveste, sou eu né?...» Bingo, só não adivinho a lotaria. «-Ó rapariga, que tem isso de…» Paro a pensar que a alusão aos meus textos é outro pretexto, uma forma de mostrar que prestou atenção, que necessitou de estar em contacto com as minhas letras. Que lê as paredes de texto que escrevo, como amante dedicada. Faço-lhe uma festa com as costas da mão, no rosto. Levanto-me, deixo cinco euros em cima da mesa para pagar as bebidas, e preparo-me para ir embora. «-Onde vais?» «-Para casa estudar.» «-Espera, também vou para os lados de Lisboa, podemos ir juntos?» «-Não, quero estar sozinho, e esquecer esta merda, que não me voltes a induzir em erro, quando precisares a sério de mim, não vou acreditar.» «-Ok, como queiras.» - tentado imprimir o máximo de vitimização à expressão para ver se eu me sentia inadequado com a minha postura. Tenho de parar mais uns minutos na estação de serviço, e vejo o fim do jogo que estava a ver em casa antes de sair. Terminado faço-me ao caminho. Meia dúzia de quilómetros à frente, vejo um carro branco, na berma da estrada saindo fumo e com os piscas brilhando intermitentes, ao passar vejo que é o carro de Marília. Coloco os 4 piscas, o triângulo, o colete e vou ver o que se passa. Na berma, sentada, chora, completamente desamparada. «-Que se passou, estás bem? Apalpo-a toda para ver se está bem, se tem sangue, ossos partidos não visíveis no negrume da noite, com um candeeiro jazendo a umas dezenas de metros apenas. Nada, foi só chapa. Sob o capot, vejo o cárter partido e duas longarinas entortadas, por causa do choque com o fosso da berma. Este nunca mais voltará a ser carro. Ela sente o azar como um sinal do mundo, consecutivo, se calhar a dizer que ela já não tem lugar nele. Levanto-a, abraço-a. Sob os pedais, o toque de um cuco, revela a razão do despiste, vinha a trocar mensagens com o plano B. Com quem se ia encontrar, já que eu me recusei a ir para a cama dela. Rei morto rei posto. «-O meu carro, tem arranjo?» «-Não, nunca mais vai ficar nada de jeito.» Enterra o rosto no meu ombro. Abraço-a com força, e com ela bem esmagada no meio dos meus braços, dou graças à divindade pelo momento, graças a ele percebo que sou capaz de me elevar acima do meu ego dente por dente, e suplantar o meu inimigo, a minha carência. Fico orgulhoso por não proferir a lamentável falibilidade do farrapo humano que ambos somos. Por não lhe dizer o que realmente penso dela. Que adianta isso? Nada, de qualquer forma...esquece. «-Vem, levo-te a casa e de lá chamo um reboque.» Tapo-a, afago-lhe o rosto, e digo-lhe para dormir. Com o tipo do reboque junto ao carro, ele diz-me para onde é para levar. Para derreter, respondo eu. Nem ele nem eu temos já salvação. |
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