Bioma Dirigindo-me à Decathlon de Alcabideche, para comprar dois rolos de espuma para tapar as barras do tejadilho do carro. Estaciono notando que o calor do dia acumulado na viagem, me deu vontade de beber água, ao mesmo tempo que me apetecia regar umas plantas mictando. Sede e aflição, que julguei poder mitigar dentro da loja, que, contudo, tinha fila orientada à porta e controlo de acessos numa fila que envolvia várias pessoas anonimamente escondidas atrás de máscaras. Encomenda paga foi só levantar e nem pensar em esperar para comprar Gatorade ou andar a perguntar pelo mictário. Eram só 40 minutos de volta, aguentava bem, se e somente se, regasse a relva circundante. E assim o fiz, meti os rolos no carro e fui atrás de um arbusto contar automóveis passando na autoestrada contígua. O alívio que me encontrou no caminho para o carro foi interrompido com um som vindo por detrás do arbusto, de onde acabava de vir. Alguém por detrás do mesmo, chorava. Pelo tom do choro parecia-me mulher. Contornando o dito arbusto, vi alguém sentado no chão, com as mãos lançadas à testa, gemendo, perdida em frémitos constantes. Interpelei, perguntando se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa. Apenas vi a sua mão, acenando que não e pedindo-me para a deixar só. Disse-lhe que falar ajudava, e que podia falar comigo. Não respondendo, sentei-me ao seu lado e coloquei-lhe a mão no ombro. Ao toque, estremeceu e o choro convulso aprofundou-se. «-Nada é assim tão grave que se resolva com tristeza.» - disse eu, certo de que a convicção com que o dissera, era tão inexistente como a minha crença no conteúdo. Continuava olhando o asfalto e esgrimindo monossílabos de dor, como se o chão fosse o único interlocutor num diálogo entre o que está vivo e o que está morto. Como se a cada resposta do solo, ela tivesse de retorquir com um mais sonoro desabafo de desespero. «-Conta lá o que se passa, talvez eu possa ajudar.» - disse eu, confiando que a utilização da primeira pessoa do singular criasse a confiança para o ser humano à minha frente alijar o fardo, partilhando-o com alguém. O desespero levou-a a falar, com a convicção inconsciente de que poucas dores se curam sendo engolidas. Problemas de namoricos, oh espanto. Apeteceu-me dizer que ia passar, mas nem eu acreditava nisso, nem a ajudaria naquele momento. Lembrei-me de tirar a mão do ombro, o toque havia cumprido a sua função e prolongando a estadia, a mão daria vibes esquisitas, nos tempos que correm não podemos ser amigos das mulheres, estão tão habituadas a receber bajulação, que um acto fraterno e desinteressado rapidamente é interpretado ou usurpado para agradar ao ego. Culpa também dos muitos chico-espertos para quem tudo vale na difícil arena da sedução, para quem a única estratégia é o número, não importando a personalidade de cada um na equação. Que o namorado a largara por uma mais nova, o mundo é assim e que havia feito tudo por ele, e que não conseguia manter nenhum. Não me parecia velha, uns 32 no máximo, e evitei dar os conselhos da treta que há mais marés que marinheiros, e que ele voltará ou irá arrepender-se. Aliás nem ia dizer nada, apenas esperar que ela desabafasse, se recompusesse e abalar para casa para colocar os rolos de espuma no carro. Mas no seu desespero, e do meu silêncio, foi-me perguntando por palavras que aliviassem a mágoa profunda. «-Rita…» - a chapa de identificação no seu peito indicava um nome, ‘Rita Azevedo’. «-Rita, queres açúcar ou natural?» Parou um tempo a olhar para mim, olhando-me nos olhos pela primeira vez, e avaliando qual o meu grau de sanidade, até que percebeu a pergunta. «-Natural.» - respondeu, com um tom de voz que clamava por uma solução que trouxesse luz à dor maior de não saber porque as coisas não corriam bem com ela, no estado de alma em que estava. «-Tu és bonita, a menos que o teu ex seja alguém com opções, dificilmente te largaria.» Reagiu dizendo que as pessoas não se unem apenas por causa de coisas menores como o sexo, mas também por sentimentos. Tretas, respondi eu, dissertando sobre o pansexualismo que tresanda em todo o nosso redor. Disse-lhe que o abandono dele, sendo ela ainda atraente, se deveria mais a um possível ponto de saturação, auxiliado com uma rival que ajudou à separação unilateral. E que às vezes os pontos de saturação, nem são apenas pelo terrível feitio das pessoas, mas pelo pão sem sal que as suas personalidades apresentam. «-Tens hobbies?» «-Ultimamente não, sair com as minhas amigas…» Reparei que tinha um porta-chaves com o símbolo da Enterprise do Startreck, e relatei-lhe, que por vezes, as pessoas, conscientes desta sua falta de vida interior, adoptam tótemes que sinalizam aos outros traços mínimos de individualidade, nem que a mesma se dissolva nos mesmos lugares comuns, onde quase todos à volta recorrem para assinalar o mesmo, e no processo anulando os traços únicos do seu ser, querendo evidenciar os traços únicos do seu ser. Que por exemplo, as tatuagens também visam um controlo da percepção dos outros, na convicção do indivíduo, que a pigmentação pictórica da derme assinala etapas de vida ou traços de carácter, que por si só transferem para a pessoa, um trajecto, um percurso e uma evolução espiritual. Ouvindo isto, ela arregaça uma das mangas da camisa azul da farda de trabalho, e emergem à luz do Sol, dois dados de jogo e uma data, pintados a azul escuro, na face interior do antebraço. «-Alguma data especial?», perguntei eu. «-Foi quando decidi que a minha vida iria ser um sucesso na felicidade.» E precisas de tatuar isso no braço para te lembrares, pensei eu comigo, censurando-me, ao mesmo tempo, por explanar as minhas teorias, a alguém que se encaixa nelas. «-Continua com isso da tatuagem.» - pediu. «-Que queres que te diga, quem vê uma, vê todas. Geralmente em sítios onde não as veja amiúde, e se assim é, porquê gravá-las na pele? Que frivolidade é esta de gravar o corpo, ou que necessidade é esta de cravar significado em simbologias bacocas? Os motivos pouco variam, e na busca de individualidade as pessoas tornam-se iguais umas às outras, não porque se pintam, mas porque procuram o mesmo pelos mesmos meios. Pouca relação tendo consigo próprias, vivem através das avaliações dos olhares alheios, e isto é mais acentuado nas mulheres minimamente bonitas. Mas quase todas, parece-me, tentam controlar a percepção alheia através da imagem, como que se ao ver uma caravela tatuada no antebraço, o potencial parceiro inferisse que a história e vida interior do indivíduo fossem tais que merecem respeito e admiração. Torna-se assim a tatuagem um instrumento de obtenção de respeito e dignidade pelos olhos de outrem, manipulando a sua percepção, mesmo que os motivos sejam risórios, ou nada lógicos. E tal se confirma, quando usam roupa escolhida de modo a mostrar a tatuagem. É uma mensagem passada ao mundo, da forma como querem ser lidas e interpretadas. E os gajos também. Mesmo que tenha tatuagem de caveiras na omoplata e vá para casa comer bolachas de chocolate com leite Mimosa.» Posiciona-se orientando o corpo na minha direcção, o que mostra que está a interessar-se pelo que digo, e o interesse é sempre pelo que nos diz respeito, ergo, os pensamentos que escuta da boca de outro, são reconhecidos como algo já presente ao seu espírito anteriormente. «-Fica sabendo que esta tatuagem diz muito para mim…» «-Sim não duvido. A questão não é o que diz para ti, mas a necessidade de o tornar visível para outros. De dares pistas da tua persona, para que te interpretem de determinada maneira. Como por exemplo, a identificação tribal com qualquer obra de media pop.» Ela olha imediatamente para o seu porta-chaves, percebendo que eu lhe havia feito o raio x, e percebi que a minha conversa iria perder impacto, pois ela, tendo ego investido nestes símbolos, iria defendê-los. «-Os indivíduos, pouco satisfeitos com a sua autonomia ou falta de vida interior, esmagados pelas que observam nos outros, criam estas personagens que irão desempenhar. Ante o vazio, o Nada, compõem as mesmas e batidas representações de modo a obter estima dos outros. Fangirls de Starwars ou Startreck, facilmente entregues a movimentos de multidão, integram essa identificação na imagem que fazem de si. Para consumo interno e externo, pois se a tipa tem gostos ( e o ter depende apenas de querer ter) que são apreciados pelo sexo oposto, está a meio caminho de ser identificada com o arquétipo da ‘gaja porreira’ que qualquer gajo quer, e não aquela tipa sonsa, que em nada se distingue das demais. A gaja porreira, obtém assim, validação própria e protecção contra o abandono, ao mesmo tempo que aumenta a atenciosidade na forma de tratamento dos outros para consigo. E como sabemos que as melhores mentiras que contamos, são aquelas em que acreditamos, então estas personas são convincentes porque acreditam piamente serem quem são, quando na realidade são farsas iguais às restantes.» Temo ter soado amargo. Mas satisfeito pela articulação da minha ideia. E continuo: «-Mas, isto é apenas uma estratégia. A verdadeira evolução vem das vezes em que nos refazemos após as situações-limite por que passamos. E nisto o mundo é mau para a mulher também, pois a abundância de paliativos, de gajos dispostos a voltar a encher o ego delas com narcótica aprovação, impede-as de crescer como seres humanos. Para quê curtir a depressão e avaliar a minha personalidade se aquele ali está disposto a gabar-me o fantástico que sou, apenas porque sabe que é a única forma que tem de me obter e cativar? No fundo os súbditos são tão farsa quanto elas, ambos acreditam não ter valor por si, mas pelo que apresentam. E há muito casais assim, ardendo na fogueira ilusória de uma representação. Não somos nós que afastamos o outro por falhas do que somos. Mas porque cedemos à tentação do conforto de escolher o papel mais consensual para que nos amem.» Sou interrompido pelo olhar de uma cara seca, recomposta, com um trejeito no olhar de me ver como um bom recobro de auto-estima, até aparecer algo melhor. Coloco-lhe a mão no ombro, digo-lhe que espero que tudo lhe corra pelo melhor e que não se preocupe. Sigo para o carro vocalizando baixinho, algum vernáculo, por saber que mais de metade do que disse foi palha jogada ao vento.
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