Córnea Ando por uma Lisboa que já só remotamente me lembra os amores extraviados nela escritos décadas atrás. Cada esquina de basalto me lembra as namoradas que tive e os motivos fúteis do abandono. Lembra-me também do patético de dividir assim os períodos da minha vida, entre os estados febris de desejo de outros. Não me levo a mal, porque sei que o desejo era sincero e não lhes guardo mágoa. Revolta-me até a ideia de achar que colocar a hipótese de guardar mágoa é indigna de mim, que deveria saber de forma clara, que as coisas são como são, muito além da minha vontade. As que realmente importaram, foram as que, tirando um ou outro caso, não conseguiram evitar fugir de uma lucidez, que eu evitaria ter para mim. Se calhar por isso, me apaixono com facilidade, para fingir que não vejo e estou entretido. Choquei com o gajo, ali pelos lados da estação do metro da Cidade Universitária. Eu ia para casa, ele à Reitoria. Apesar dos anos passados, exclamámos em uníssono, pelo fortuito do reencontro. Epá anda ali beber um café, e acabámos por almoçar. Falámos de Professores passados e outras merdas que fervilham o sangue. Lá contou que migrara para o Porto, cidade que lhe parecia mais genuína que a desalmada Lisboa. Para longe do viveiro de seus demónios ali para o Barreiro. Penara por anos, sem saber o que ser ou para onde ir, e então decidira permanecer no caminho que o levara ali, ao local onde nos conhecêramos anos atrás. Perdido por 8, perdido por 80, e decidira fazer o caminho da ascensão académica. Não sei quantos anos de vida mais a queimar pestanas. A sentir-se como uma merda que não se concretizou, com idade avançada sem chegar a lugar algum de concretização. Eventualmente alguém lhe gostou da tese e fez força para que fosse contratado. Fugira do Barreiro, dos seus territórios de indigência material onde os demónios vivem. Quando o conheci era meio chanfrado por esses mesmos seres ardentes que o flagelavam entre duas perguntas, sobre o que fizera para merecer tal, e o que fizeram aqueles que amara para tal terem sofrido. Mas era autêntico, nada escondia, porque mostrava ao mundo que a sua entidade era por tal…afectada. Enquanto pedíamos a sobremesa, não largava o telemóvel, correspondendo-se com alguém. Estava feliz por ele, por finalmente, ter chegado a algum ancoradouro digno. Emprego estável e considerado, roupinha decente e já não andrajosa e datada, e até uma gaja, tornada esposa que se juntara, entretanto, a nós. Longe as noites de masturbação anónima e o conforto de sentir-se amaldiçoado pelo mundo por estar imerso em solidão e ostracismo. A mágoa afogada com bom bourbon e já não com vinho branco de pacote tetra pak, camisas engomadas e já não after shave reles e barato. A profissão de professor universitário, confirmava todos os dias uma estima que lhe era novidade. Aprazível e narcótica. Não o reconhecia, e dizia para mim que as pessoas mudam, ou «evoluem’. Mas reconhecia o seu modo de pensamento agora. Naquela indisfarçável pose revanchista para com a vida, que agora o recompensava após um esforço prévio de Ordem e Progresso, agora sentia que também tinha uma pedra na mão para responder em igualdade de moeda, à ‘vida’ que o agredira antes. Como se farto de ser empurrado para a lama sem motivo algum, agora se afirmava pronto a andar à porrada, com uma existência surda. A mulher dele veio ter à mesa, andava perto. Feia como um dia de Inverno e agressiva como um dia de Verão desértico. À primeira vista, protectora dele. Mas para gajos batidos, o que protegia não era o gajo, mas o seu investimento, a sua aposta. Parecendo proteger um bom de coração e ingénuo dos perigos do mundo e das coisas, protege afinal o seu prémio de consolação existencial, afastando-o de bocas e influências que possam quebrar o feitiço. Para ele, nada mais justo, o seu esforço prévio legitimava a nova roupa, a ‘nova’ vulva, o amendoim que a vida dá se jogares como ela manda. Não me conhecendo, eu era o inimigo para ela. Um dos quais pode mostrar o que é uma ilusão, porque também ele, eu, já viveu iludido. Aquele dos quais, pode mostrar ao sortudo, que afinal uma ilusão é uma sorte que não o é.
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