A neblina do vodka dissipa-se rápido assim que uma mão fria toca no meu ombro e uma boca sussurra: «-Queres dar-me boleia?» Lá à frente da plateia, as pessoas batem palmas e fazem-se muito honradas e dignas, em suma levam a sério estas minudências da vida, demasiado a sério, se me perguntas, para serem minimamente lúcidas. Muita gente acha que gozo com tudo, mas é falso. Eu não gozo com os outros, apenas com a sua falta de lucidez, tal como com a minha. Gozo com a minha envolvendo-me em discussões do lado de Deus e do Diabo ao mesmo tempo. Agora defendo algo, daqui a nada o seu contrário. Não por ser canalha, mas porque sei que a verdade é dialéctica, e quase tão inacessível ao nosso entendimento como o pito de uma lésbica feminista e anti machista. Peço desculpa pela redundância. Era mais um sarau de prémio literário, em que a malta se reúne para brincar ao ocupar a vida. Eu não ganhei nada, mas gostava de uma autora que lá estava e foi a minha espécie de homenagem, não sem antes encher uma garrafa de água do Luso de meio litro, com vodka sueco, para ajudar a passar o tempo. Ainda aquela merda não tinha passado da meia hora e já eu tinha emborcado metade. Deitava minha nuca na curvatura do banco de madeira no anfiteatro da FLUL, onde malta importante debatia o sexo dos anjos e que cus beijar. Há 20 anos, mais coisa menos coisa, assistira ao lamento do grande Professor João Belo, por Agustina Bessa Luís, ter combinado lá estar, e ter dado a boca a companheiros de painel e audiência. Coisa que obviamente se justificaria por motivos de força maior. Ao arrepio de qualquer ética pessoal. Apanhado em falso, o Professor, não defraudou a audiência, composta na maior parte, a aspirantes a autor, ao contrário de Filósofos, como eu e os meus colegas. E deu uma lição magistral, como grande Mestre que era. Completamente ébrio, olhava para os painéis de cortiça pendurados no tecto para efeitos acústicos, e pensava que esta merda da felicidade é um estado a que raramente sabemos dar valor. Pensava também onde caralho havia deixado o carro, pois ia sair dali de rastos. Chorei a pensar nas milhentas ilusões, arrojadas por aqueles corredores, da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Encolhidas entre milhares de outras, como as de Pacheco ou de Nemésio, se bem que este último viera dos Açores, para onde eu ia de seguida. A garrafa estava vazia e carecia de tempo de lixo, tentei levantar-me, mas…foda-se, estava mesmo ébrio. A mão até se escapou da cadeira de madeira, e com ruído perceptível o suficiente para fazer virar algumas cabeças, estatelei-me no ponto de partida. Fiz o que qualquer bêbedo faz. Fingir de morto até a lucidez e controlo motor voltar. Foi nessa fase que ela me veio picar. Tínhamos discutido uma questão de pormenor, acerca de diferentes versões marxistas do mundo e das pessoas. Uma merda qualquer sobre se o Esteves Cardoso e o Paixão serem escritores burgueses. A tipa era nada e criada em Tires. Claramente o conceito de luta de classes lhe passava ao lado. Mas achou graça ao facto de eu ser livre o suficiente para me encharcar numa cerimónia de vaidades. E eu, o velho eu, achou que por me darem mais de 2 segundos de atenção, queriam ter os meus filhos. Em Tires, um cabrão estava sentado numa cadeira de canto no quarto. Ela ia-me dizendo «-Não ligues…é só o meu marido.» Bendito o vodka sueco. Sem ele não teria visto o raro espectáculo de outro a chorar uma noite inteira vendo-me foder os meus fantasmas.
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