Vejo o fumo dançar de braços abertos após a lenta consumição do cigarro.
Sinto a nicotina fazer cócegas na garganta, e deixo-me ir no trenó do transe que me vem buscar quando me abandono ao eco que a suave tontura apenas pressagia. Palavras são desnecessárias agora. Medito ao som dos gemidos que ela confessa. Tenho um segredo que acarinho, um segredo demasiado íntimo...nem a ela o contei. É um daqueles segredos que temos só para nós. Será segredo? Não o contaremos de certo, mas vive-nos na cara a eminência de querer adivinhá-lo nas caras dos outros quando com eles falamos. Mas nunca o regurgitamos... A dúvida fazia parte desse segredo. O duvidoso é chicoteado, balança ao sabor da dúvida que é o próprio chicote. Ninguém vem ao mundo sem chorar, mas quantas vezes me faltaram as lágrimas, porque não conseguia respirar por causa do nó seco que sentia na garganta quando pensava na suspeita credível que emanava da sucessão dos acontecimentos? Quantas vezes chorei porque eu não o consigo fazer, e pensava que ela também não...queria nisso acreditar, mas algo nos diz sempre a verdade. Por um lado é melhor assim. Agora a dúvida foi-se (foi-se?), tenho à minha frente aquilo que me fazia dar em louco (vejam só os suspiros de prazer que ela arranca do corpo ...), o que imaginava...acarinhei imagens semelhantes a estas com medo que elas fossem verdade, e o nosso medo torna-se tão íntimo, que é como que o nosso melhor amigo, confidente, amigo em segredo que contamos só para nós. A dúvida venenosa na minha mente tudo consumia (agora tenho nada, apenas este cigarro e cicatriz que me marcam a garganta), a minha alma era como uma ave voando sob o Mar Morto, atraída para o abismo, chegada a meio caminho afundando-se exausta – sem forças para voltar para trás ou para seguir em frente – e no entanto, quando parecia mergulhar na morte e destruição, o próprio sopro ascendente da inerte massa de água me fazia voar mais um pouco, queimado por cima pelo Sol, corroído por baixo pelo Sal. Como uma andorinha. Ela contorce-se com uma vitalidade de ginasta, no turbilhão de lençóis da nossa cama, vejo à contraluz aquele vale entre os lombares (sempre fui louco por lombares carnudos), ondulando como se estivessem a ser controlados por duas mãos invisíveis de acordeonista. Vejam como se abandona, até inclina a cabeça para trás (é a mesma mulher que conheço?) fechando os olhos e meneando ( em jeito de pequena dança) o crânio, para retirar do pescoço suado alguns cabelos residuais que a fazem sentir mais calor, ou comichão, ou então é apenas um reflexo do prazer...Concentra-se na penetração e nas ondas e ciclo das marés que prenunciam o clímax, o apogeu, o orgasmo, quando a Terra parece nos sorver para o seu centro, quando nos encolhemos para nós, encarquilhando como folhas velhas e tombadas no Outono......o orgasmo.... A mulher que casou comigo, faz três anos... No início é tudo tão cor-de-rosa...connosco foi tão bom...fazíamos amor a qualquer hora e em qualquer sítio...As reverências de um para com o outro eram mais que comuns, mais que constantes. Como general no prenúncio da batalha, como os primeiros contactos com os amigos em vias de o ser, cada um apalpava o terreno e a pouco e pouco ganha-se intimidade, e metemo-nos à vontade – como se estivéssemos em nossa casa. Nunca nos podemos dar naquilo que realmente somos. É esta a lição que continuamente reaprendo. Há sempre uma fronteira na intimidade além da qual, mesmo quem te ama, te abandona, bicho humano que precisa de mistério e desafio. Isto se quiserem manter alguém. A melhor maneira de alguém perder é dar, apostar tudo. A devoção total é o inimigo de uma relação duradoura...provem-me (a)o contrário... Solidão não é estarmos sozinhos, é nunca poder dar o que somos. Não sou bom gestor de mistério e de distâncias. Nunca o fui. Não me sei dar, dou-me demais... Ficámos tão à vontade que se calhar, perdemos o interesse... Interiorizei que ia ser um homenzinho, ia tratá-la como igual, como deusa até, iria desempenhar o papel de responsável, de farol...(é esse o papel do homem, não é?)Quis fazer vida, comprar casa, carro, hipermercados, cinema ao fim-de-semana, jantares de amigos e de colegas de trabalho, fazer que os outros casais fazem (mas melhor, íamos ser felizes...), pensávamos que nos conhecíamos um ao outro, e a nós...Tornei-me estóico com frugalidade de asceta...(é preciso disciplina para pagar um apartamento uma vida inteira, e ter tempo para andar feliz depois de um dia de ditador trabalho). Talvez me tenha tornado sisudo com a responsabilidade(que outrora sedento desejei...), perdeu-se a alegria. Assim até entendo que aconteceu. O que está agora a acontecer. A impotência agora não me envergonha... dói demais para doer. Mas onde foi que me tornei estranho para ela? Para acontecer isto? Mas não devia ela amar-me fosse como fosse, mesmo que eu me transformasse num sapo? Nunca peçam a alguém para não fazer ou fazer algo determinado...ó espécie sombria que vos dá sempre o contrário do que vocês pedem... Pensar nisto agora é inútil e desapropriado. Prefiro apreciar as belas mamas da minha mulher balouçando ritmicamente a um som de comunhão ofegante. É este o pulsar da Terra. Todos os seios são mudos e não precisam de falar, são poderosos imãs para mãos e lábios. A cópula é o jogo do puzzle mais antigo da memória. Como a concha da mão cobre aquele monte carnudo na perfeição, como é bom sentir o mamilo duro na palma da nossa mão, fazendo cócegas que nos fazem render ao involuntário e ter mais tesão. Agarrar aqueles seios é um código secreto intemporal anunciante da volúpia, da embriaguez da carne. Os seios, as nádegas, as coxas.....a carne deixa-me louco. Imaginei esta cena por completo. Parece um filme. Se calhar a ideia veio-me de algum filme que vi. Já tinha imaginado tudo. Sentar-me aqui no toucador aos pés da cama, acender um cigarro (eu, que não fumo...), e ficar a ver. E a pensar. Que outras coisas podia fazer? Apontar-lhe uma arma aos cornos e dizer-lhe para continuar, senão dou-te um tiro no focinho? Filho da puta. Ela é minha mulher? Acho que é melhor assim, encarar lentamente esta tortura angustiante de frente, e pensar, pensar... Pensar na cara dela a fazermos amor, quando está por cima e lhe vejo entreaberto pelo meio dos cabelos, um sorriso um cometimento, um estar ali compenetrada em si... Como é belo, como tendemos a arrumar mesmo o que é mais precioso para nós em gavetas de incontestável propriedade...Não, não vou pensar que a culpa é minha, que grotesco... Que diria ela, depois de tudo isto? Teria palavras? Há quem lhes dê uma carga de porrada, que durante uma semana ninguém olha para elas a não ser com aversão e pena... Sempre pensei que se fosse, não seria assim...Nestes momentos é que as pernas da moral fraquejam e tremem sob o peso da fúria. As palavras que dizíamos de juras infinitas de não sei quê de eterno... Tudo vão, vago. Já tinha imaginado tudo. Sentar-me aqui no toucador aos pés da cama, acender um cigarro (eu, que não fumo...), e ficar a ver. E a pensar. Saí do trabalho mais cedo. Meti a chave à porta sem fazer barulho (como gostava de fazer amor com ela de lado encaixado no meio das suas pernas, abraçado, tão próximo que tínhamos de virar a cara para não nos sufocarmos um ao outro com a expiração), fechei-a no maior dos silêncios, tirei os sapatos para as meias abafarem o som da minha locomoção. Já tinha imaginado tudo, naqueles dias inteiro de prazer masoquista passados a fazer filmes (de terror, tragédias, ficção científica, policiais, sitcoms...)na minha cabeça. Já tivera a certeza quase comprovada (um homem sente estas coisas), de modo que a coisa esfriara de modo a eu puder ter uma certa distância para poder planear. Comprei o maço de tabaco mais preto do quiosque (de acordo com o meu estado de espírito de mártir), na algibeira o revólver que comprei e que tinha guardado na minha secretária do meu escritório. A porta do quarto encostada, no dia anterior tinha oleado as dobradiças, não fez barulho nenhum ao ser aberta...em bicos de pés sentei-me, aproveitei o passar de um avião para acender o cigarro, o isqueiro é a gasolina e faz algum barulho a acender...o cigarro vai agora a meio caminho. Como a minha mulher é linda, ainda a amo, se calhar a culpa é minha, tenho vontade de chorar, mas no frio da minha tristeza tenho a água dos olhos congelada em icebergs... Percebem o épico aqui? Os planos até à velhice, planos de felicidade, ecos de uma vida inteira, desde que em puto pensei pela primeira vez o que seria a minha vida futura, e a fé que tinha no casamento? É toda uma vida que desfila...É toda uma filosofia que nos esbofeteia acordando-nos violentamente para as mais pequenas coisas para as quais estávamos dormentes...Toda a perspectiva do mundo entra em suspenso e amarga. Percebem-me? Quero que se fodam... Ela está a foder, ou a fazer amor? (Ténue indício de esperança que renasce das cinzas...) Sinto-me ridículo nesta minha figura, (que saudades tenho de lhe lamber a boca e sentir o suor dela a cair-me no rosto e no peito), o corpo dela não está nas minhas mãos, oiço desabafos guturais que ele grunhe, os lençóis que agarra (com força) na minha cama, à medida que investe, e que ela responde (ás investidas) com gemidos...a comunhão entre não eu e ela...fico de fora, meto o revólver na minha boca, fecho os olhos mas logo apago esta imagem da minha imaginação, mudo para um levantar-me e encostar-lhe o cano às têmporas...mas e ela? O que lhe digo? Vejo o fumo dançar de braços abertos após a lenta consumição do cigarro. Sinto a nicotina fazer cócegas na garganta, e deixo-me ir no trenó do transe que me vem buscar quando me abandono ao eco que a suave tontura apenas pressagia. Palavras são desnecessárias agora. Medito ao som dos gemidos que ela confessa. Estão-se a vir. Estou-me a ir, vem aí a cena. Vou ficar calado não tenho nada para dizer. Espero que com o revólver na mão tenham medo e não me digam nada. Viraram-se, deitaram-se de barriga para o ar, extenuados, vão fumar um cigarro. Ele já me viu, ficou sobressaltado, tapa os genitais com vergonha, não sabe onde se meter, faz sinal (um encontrão com o cotovelo)a ela que reage da mesma maneira, tapa as mamas... Dizem algo, mostram-me as palmas das mãos, explicam-se, gesticulam, levam as mãos à cabeça, parece que se sentem arrependidos... Palavras são desnecessárias agora. Como a minha mulher é linda, ainda a amo...
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Ao senhor José Maria Vieira Mendes
(obrigado por não me dar alhos) Gosto de estar bem no meio do redemoinho . A primeira vez que aceleraram o carrossel , vomitei . Acho que não gostei de ver os pontos que os meus olhos fixavam , fugir e fitarem-me como a miudagem traquina , com a qual às vezes jogo na estrada. Gosto imenso de passar naquelas portas giratórias que giram mais nos filmes , mas por cá alguns hotéis já aderiram à deliciosa modernice. E não sou o único. Alguns amigos meus acompanham-me , e então é que é giro o girar da porta , aos quatro e aos cinco empurrando uma porta , como os marinheiros empurram aquelas coisas muito engraçadas que fazem levantar as âncoras das fragatas. Mas fecho-me às paixonites ... Não quero a cabeça a andar à roda... O mais que faço é sonhar com balões e com o Jardim Zoológico e com o sonho que tive quando estive quase a morrer , no dia em que fui dar uma volta de cacilheiro até à outra banda , para ver se enchia a memória de plaquetas e glóbulos vermelhos para dar sangue ao vampiro , e estive quase a morrer porque caí ao malagueiro , e eis que coisa nunca vista , ali no Mar da Palha a água dançou um vórtice para mim , e eu pari uma espiral , que hoje só de me lembrar , acossa-me a ciática. Entrevistei uma aspirina que ouvi na rádio , e ... não ... não ... isto dá muitas voltas à cabeça... Quando me masturbo olho avidamente para o espelho , como me observo , para depois sonhar e inventar e escrever. E faço coisas tão giras com a mão . Todo o meu ivaginário gira à volta (como aquelas portas giratórias que giram mais nos filmes ) das minhas doenças , maleitas incarnadas em solilóquios barrocos e a demagógica e mimada revolucionarite aguda. Visto revoluções e bonecas com vestidos engraçados , sou a imensa montanha , guardada por montes míopes que se sodomizam com a sua pseudo-cultura , e se assustam com a própria sombra ... e feitos de barro e de pelos de barba mal semeada , ornados de cabelos compridos e recortes de jornais como troféus nas mãos dos aborígenes que lhes povoam as guedelhas ... São os meus ratos. Falo de tudo como se estivesse de fora . E sou genial. Venho do genital e vou para o genial , e é muito mais que aquilo que o Bocage faz , respirando para o cano de uma pistola. Divirto-me imensérrimo com a loucura e com os interruptores disfarçados destas realidades que vou pintando. O que sempre tenho feito é olhar para o meu umbiguinho e decorá-lo de lago , boca , mistério astronómico , vagina , olho , telescópio ... E faço-o exortanto aos crocodilos , e nenhum dos nossos ídolos é destruído pelos martelos da carneirada. Mas pistola , pistola ... é o meu dedo , prolixo indicador de vampiro , pois que tudo é sangue e eu vivo fora dos homens para falar deles. Em honra de quê? Em honra de quem? Mato-me e faço-me a cada momento em que me escrevo , e único sofrimento a que me abro é o de girar à minha volta , como pião , peão , caravela quinhentista , bebedeiras de azul ... ando às voltas por Lisboa para contar histórias lá na terra , sou veículo de mundos , mas que mundos são estes ?Alternativos enquanto não reais? É que misturo as coisas e desconfio dos cowboys porque faço muitos filmes . Mas tudo isto dá muitas voltas à cabeça. Parece que retiro o sal do banal , mas de que forma o uso para o tempero? É tão espantoso olhar para o eu helicoidal , e andar à roda... À volta do meu umbigo. A boca caira-me no chão , e não havia maneira de a ir buscar. Só vem dia treze..
E que ânimo aquele que me fugiu pelas traseiras da nuca. Apeteceu-me dar o peito , desafiando qualquer onda da vida com a minha blasfémia. Este foi o dia em que a Terra parou. Tão quietinha como os teares de lã na casas das nossas avós. Doze dias em que a charrua da ausência me esventra encarniçadamente. Olho tantas pessoas neste vale das sombras da morte. Não nos enganemos. Eu sou uma sombra. E tudo me parece humano , demasiado humano. Sombras do que somos. Porque a sombra é filha da interposição do Homem e do Mundo . A luz que emana , pois para a escura sombra algo de luminoso tem de existir , e misturamo-nos em luzinhas do que somos , e actores em papeis que é conveniente representar . Trazemos papeis escritos por todos para dentro de nós , pensamo-nos sempre com medidas de outrém , como podemos falar em pesado? Depilava as pernas n a casa-de-banho que se voltava para mim. Pernas que outrora em jardins corriam , e agora sofriam o desbaste da lâmina lenhadora. A minha vida não se resume ao cinzento? Desde aqueles jardins que acredito no cepticismo. Amam-me até morrer , mas estão todos vivos.Aprendi com o meu corpo e com o meu espírito . E agora sou a amante da dúvida descrente. Logo de manhã fingi-me alegre e brincalhona , para poder mexer as pernas à vontade , é que a lâmina estava gasta e a carne ardia. Ele veio Ter comigo e disse que me amava. Um baque no coração ... A boca caira-me no chão , e não encontrava maneira de a ir buscar. Só vem dia treze... |
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Junho 2022
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