I Eu Quis a Providência ou a genética que eu nascesse com um temperamento brando e doce. Fui condicionado, ou melhor, educado a ser bem-educado e comportado, sendo compensado em amor pela minha mãe aos mimos que meu pai sonegava enquanto se divertia com outras. Talvez por ter nascido em berço de madeira com caruncho, a minha mãe tenha desenvolvido como todos os pobres deste país aliás, um fraquíssimo sentimento de auto estima, o que a levou a aprofundar ainda mais o já de si infinitamente profundo laço entre mãe e filho. O meu pai havia sido abandonado pela mãe, crescendo à moda antiga, com o trauma de ter sido preterido por um dos progenitores, pela sua mãe, o que influenciou o seu comportamento futuro em relação às mulheres, que eram o terreiro onde buscava a aprovação nunca conseguida ou suficiente para superar a rememoração em surdina da rejeição materna, numa procissão de mulheres seduzidas e logo abandonadas antes que primeiro o abandonassem ...de novo… Assim, com um marido semi-ausente e manipulador, a empregada doméstica na sua própria casa dedicava-se ao filho que cresceu mimado e amado como príncipe medieval. Outros meninos menos afortunados que eu, tratados de forma mais áspera iam calejando as armas do futuro, os punhos e a língua. Mesmo esses meninos com quem me comparava tinham pais diferentes do meu. Seus pais eram brutos, talvez secos mas mal ou bem, presentes. Infelizmente, havia pessoas, suponho com razão, com pais piores, abusadores e violentos, mas falo aqui de situações ainda dentro daquilo que era normal naqueles tempos, nos anos 80 e 90. Falo apenas do meu caso e da minha cogitação acerca dele, sei que há casos melhores e piores. O meu pai não é uma ‘má pessoa’, é também ele o resultado do seu meio e de uma forma de viver de antigo regime, decorrente do ambiente miserável do Portugal das classes baixas. Sempre me lembro de escrever nas fichas de aluno e nos questionários de escola e outros, a profissão dos meus pais, operário e operária fabril. Jovens com pouca escolaridade no 25 de Abril de 1974, conheceram alguma riqueza material nos anos entre 1980 e 1993, curiosamente até os dinheiros da CEE começarem a entrar e com eles os trabalhadores menos remunerados de outros países, não que tenha algo contra isso, mas posso afirmar que com a excepção dos empregados de escritório, a generalidade dos operários portugueses viu a sua riqueza material estagnar com a entrada de gente menos exigente a nível de salário. O meu pai sempre olhou de soslaio para a escola, recebeu pouco carinho do seu pai, e desde cedo se queria ter uma camisa melhor tinha de trabalhar para a ter. Chegou a comer as sandes que os outros meninos deitavam para o chão, no áureo Portugal salazarista, porque não havia comida em casa, e portanto julgo natural a sua aversão e dificuldade para com a escola, afinal, as deficiências calóricas e proteicas não ajudam muito no percurso académico. Para ele o filho era uma continuação do seu território, do seu valor sempre à prova provavelmente por causa do seu segredo de ter sido abandonado pela mãe, determinado até hoje. Não foi abandonado numa roda dos expostos, mas ainda conviveu com a mãe uns 3 ou 4 anos, o que é pior, pois uma criança percebe que há uma diferença entre uma mãe que a abandona sem a conhecer, e uma que a abandona após alguns anos de convivência, que é pior, pois numa há a rejeição do que não conhece noutra a rejeição é maior e mais profunda porque foi-se embora apesar de ter conhecido a criança. Percebo que isso seja perturbador e traumático. A sua pedagogia era desconcertante, a um bilhete do professor da primária queixando-se da minha caligrafia, toca de meter-me nas férias de Verão a fazer 50 e mais cópias de textos e não sei quantas vezes a tabuada, naquilo que para ele era um exercício no meu melhor interesse, mas que para mim era uma angústia diária de ter que fazer, pressionado, para mostrar ao pai castrador e juiz, que parecia ter sempre novas tarefas para o dia seguinte. Certa vez queixei-me que doía a vista e obtive uma saudável proibição de oito anos sem ver televisão. Era assim a pedagogia do meu pai, temia que eu fosse atropelado, e portanto proibia-me de ir para a rua brincar com os outros meninos e meninas. Não se podia esperar outra coisa de uma pessoa disfuncional, infelizmente, educada à moda antiga, também ela extremamente disfuncional, para não dizer psicótica, onde as crianças eram educadas de forma rude e quase despojada, para serem homens e mulheres antes de tempo, preparados para as agruras da vida e onde a única forma de ascenção pessoal era na mesa da ceia com a bagagem dos anos, exigindo aos mais novos uma reverência que era quase sempre negada na praça pública pelos pares de condição. Ouvi muitas vezes com admiração silenciosa, relatos de mais velhos congratulando-se com esta educação que haviam recebido, como se se engrandecessem a si próprios por terem suplantado tal teste de sobrevivência e como celebração do seu momento (então) presente nos fortes e vigorosos homens com H que se haviam tornado. Havia ouvido isso da boca de meu pai e de outros ao longo dos tempos e o meu espanto residia em perceber como podiam rememorar com uma espécie de saudade, a sujeição passada, a rudeza dos modos e a miséria dos actos. Mas era este o contexto do meu contexto social. É óbvio que cresci a temer e a insurgir-me contra tudo que fossem figuras masculinas ‘fortes’, ou dominantes, e sempre me dei melhor com mulheres que com homens que antagonizava mutuamente. O meu pai bateu-me umas quatro ou cinco vezes nos dezasseis anos que conviveu connosco, nunca faltou comida em casa mas tudo o que fosse gasto comigo, filho único, parecia ser desperdiçado a seus olhos. A violência do meu pai não se fazia sentir na ponta de um cinto ou de um chinelo, mas nas conversas desdenhosas, nas advertências ameaçadoras e saloias, nos afastamentos, e nos desdéns. Nunca percebi bem qual era o seu ódio em relação a mim. De certa forma olhando-o hoje vejo-o como uma espécie de autista, que tratava melhor os filhos dos outros, os amigos e as mulheres destes que a mim e à minha mãe. Ou seja, nunca tive quando precisei na infância e adolescência, um pai amigo, mas tive de forma muito sinuosa, uma espécie de educador. Talvez fosse a determinação que um filho traz. Quando tens um filho sabes que as promessas de juventude ficam irremediavelmente condicionadas. Meu pai e minha mãe eram crianças com 20 e 18 anos quando me conceberam, e portanto atalharam as vivências de aprendizagem atrás de um balcão fabril e uma renda para pagar. Talvez fosse por saber que minha mãe nutria um amor incondicional pelo filho em que o marido assume, normal e saudavelmente, importância secundária, e talvez isso para ele não pudesse ser, pois deixava-o inseguro, sentir que não controlava a mulher totalmente, sob risco de ela poder reeditar o abandono materno. Por isso a engravidou assim que pode, ele que tinha namoradas ‘em três freguesias’. A minha mãe tinha ‘jeito’ para a escola, e o sacrifício prematuro de ter um filho condicionou-a na sua vida futura. Conscientemente abraçou esse sacrifício. Filha de mãe alcoólica que encontrava no vinho a fuga para a monotonia de uma vida inteira a sublimar a sua individualidade, um ser bondoso com menos de metro e meio, maravilha filosófica devedora à sabia alimentação do Estado Novo, com nove filhos nascidos e sete criados, amadurecidos sob o estigma do Portugal dos pequeninos em que uma mãe agarrada ao vinho era motivo de chacota pelas freguesias, chacota e estigma estendida à prole. Porque gostava de meu pai, grande amor da sua vida até mesmo depois da separação, mas também para matar o borrego do estigma, a minha mãe casou-se prematuramente e originou-me. Como pérola de condição humana repetida por todo o globo, o amor materno é uma força determinada e determinante, e neste caso como em incontáveis outros, o centro de gravidade passa a ser o novo ser saído de suas entranhas, perante o qual tudo se sacrificou e sacrifica, bem mais que alguns pais, que olham para o filho como um competidor directo pelo fascínio da companheira. Das várias vezes que havia boas novas dos meus afazeres escolares, o progenitor em vez de orgulho, desdenhava e preparava o imberbe cachopo de oito, nove, dez anos, de que assim que fosse para a tropa, saía de casa sendo homem, ou que iria trabalhar para as obras. Eram esses os planos para mim, atávicos e redutores pareciam castigo, não fossem eles oriundos de uma ancestral forma de pensar. Felizmente nunca percebi bem essas ameaças de tão ridículo era o timing da sua expressão. Eram meros desabafos, mal formulados ou encobertos, dessa difícil existência, que culminara num trabalho monótono e num sustentar mulher e filho não porque se sentisse como tarefa própria, mas porque a preocupação era a opinião que outros teriam de si. Por isso a minha mãe nunca foi senhora de prosseguir estudos ou tirar a carta para poder conduzir. Para ir trabalhar, o seu grande escape no futuro, foi uma luta, pois era mais um domínio em que ele perderia controlo que precisava para se sentir seguro, mas lá percebeu que assim entraria mais dinheiro em casa, e logo poderia aceder ao objecto que melhor lhe conseguiria os favores sexuais das outras mulheres, o automóvel. É mais simples pagar o carro a dois, e dizer que é ‘nosso’, quando um rabo detém o monopólio do assento do condutor. Não fui tudo mau. Longe disso. A esta distância mostro-te mais o que me doeu e ficou gravado até que morra. Posso dizer que até fui um sortudo tendo em conta as circunstâncias e outros casos, infelizmente piores. Conto-te isto porque está na raíz concreta daquilo que te quero mostrar por detrás destas letras, mas lá chegaremos. II Tu Como te disse, cresci hostilizando e sendo hostilizado por figuras masculinas, e abominando a autoridade. A minha mãe compensava tudo, dando todo o amor e até mais algum. Ensinou-me até que por vezes o amor em demasia poupa-nos experiências que nos ensinariam duras mas valiosas lições. Ensinou-me também num pau de dois bicos a ser o homem que meu pai não havia sido para ela. O meu pai, como te disse, também é uma boa pessoa. É íntegro, e com consciência moral, mas o medo, a insegurança traumática levaram a melhor dele, que sem escolaridade, (isto é, sem as ferramentas reflexivas que lhe permitiriam ter noção da falácia dos seus sentimentos), fazendo-o sempre compensar o abandono com uma exagerado grau de egoísmo e atavismo. Ele é também uma vítima. Disse-lhe tudo isto uns anos mais tarde, sem qualquer medo da sua reacção oral ou física. Soube bem desabafar apesar de saber que o mal estava feito. Á suposta pancada que recebeu da vida, fez profissão de fé gostar dele mesmo a todo o custo, já que mais ninguém parecia gostar. É neste caldo contextual que me torno um rotundo menino da mamã, aliás figura comum naqueles tempos de maridos marialvas. Isto é equivalente a uma condenação à morte nos subúrbios do Portugal pré CEE. As minhas roupas eram pouco ou nada rasgadas, andava sempre arranjadinho, era aplicado na escola, até ter descoberto na 4ª classe que havia um ser estranho com feições bonitas que punha o coração a bater mais depressa, as raparigas. A partir daí de excepcional, passei a apenas fazer os mínimos para passar de ano, já que a minha atenção se ia dividindo cada vez mais desproporcionalmente entre escola e cachopas. Minha mãe, sempre para a frentex, vestia-me a seu gosto, o que me valia sessões de pancadaria com quem não lhe entendendo o gosto de vanguarda cometia o erro da chacota, sempre à conta do vivo manequim que envergava o traje. Estes pormenores todos deixam adivinhar portanto que a suavidade nos tratos e a dureza decorrente de um pai como Úrano, eram uma mistura explosiva para cair como tordo aos tiros de crianças com vida mais dura mas pais mais presentes. Por arrasto ficava mais exposto a levar na corneta dos mais velhos ou mais agressivos, numa banalização da violência e num sentimento de inadequação por causa da rejeição de meu pai, (que valho eu se até meu pai me rejeita? Devo ter alguma coisa de errada para meu pai me rejeitar) criavam invariavelmente barreiras, e o mesmo resultado, eu a chorar de encontro ao colo de minha mãe, e o regozijo do meu antagonista com mais um troféu para o seu amor próprio. Não porque me tivesse vencido, não, porque eu me vencia sempre e da pior forma possível, perdendo o respeito por mim, aninhado no valor que imaginava não ter. Não eram os murros amparados pelo queixo que doíam, mas sim o não saber porque era assim, maricas e sem valor. O meu pai forte não podia estar errado, ele me rejeitava porque eu era fraco, amaricado. Era esta crença que me limitava e definia. Nos primeiros tempos eu não era saco de pancada, a minha confiança decrescia ao ritmo proporcional que crescia o meu esforço para evitar combates que diminuíssem ainda mais o meu amor próprio. Para isso tudo valia, tornar-me chacalídeo, sem espinha ou sabujo, tudo para evitar o confronto, que aliado à inaptidão acreditada interiormente e confirmada exteriormente graças à falta de experiência social por não ter podido brincar com os outros meninos e meninas na rua, tudo isto só me aumentava a solidão. Isto fazia de mim o alvo preferencial das outras crianças que nestas idades, impõem o seu controlo e vontade através da força. Grande parte desses índios já exprimia assim, na lei do punho, a revolta sentida por terem pais negligentes ou que os tratavam ao empurrão, por contraposição a eu e outros que ao terem mães extremosas e aparentemente melhor sorte na vida, que assim atraíamos as vendettas existenciais, ou seja, os índios vingavam-se nos betinhos, betinhos que se transformavam em índios quando apanhavam outra malta mais polida nada e criada em Lisboa em meio de verniz citadino. Esta gradação em castas de complexidade social simiesca variava de acordo com a sorte ou azar de cada um na vida, dos pais, etc. Vítima transforma-se em opressor e vice versa num fluxo de ressentimento que lembraria uma guerra civil ou um confronto entre aldeias de canibais. Outros, nos subúrbios da cidade desalmada, tinham pais sociais que frequentavam cafés bebendo café ou imperial ou um brandymel no final da ceia no final de um dia de trabalho. Esses ficando na rua até altas horas estabeleciam as redes sociais que lhes garantiam mais á vontade na chilreada das ruas cheias de crianças até à hora de jantar, em famas conquistadas a sol e pulso que no tempo das hormonas daria outra perspectiva e facilidades. Eu e outros ficávamos em casa tentando esquecer o mundo lá fora. Meu pai, pouco ou nada circulava comigo ou com a minha mãe, se não fosse do seu interesse. Nós os dois parecíamos ser uma incómoda mochila que se carrega cheia de pedras, o que me acentuava o sentimento de vergonha. Vergonha e inadequação. Vergonha e inadequação. Vergonha proibições innuendos e desdéns. Eu era um empecilho nas conquistas prováveis. A minha mãe tinha de se vestir bem para sair com ele, para os outros saberem que ele tinha uma mulher boa, mas ai dela que os outros olhassem com agrado para ela, umas trombas e maus modos surgiam por se vestir de forma demasiado provocante. A vida era um carrossel. O passar do tempo em anos, apenas refinava a maldade e aumentava o dano provocado pelos punhos. Fugia fugia e fugia, evitando, evitando e evitando, furtando-me assim a relativizar os futuros confrontos. Fugia não por medo de doer, mas de ceder a meio do ensaio, por me sentir envergonhado sem saber porquê. Os terroristas de serviço começavam a poupar os meninos de boas famílias, sempre amparados no caminho de casa para a escola e da escola para casa. Quando o caso era grave havia sempre a possibilidade de mudar de casa para território mais pacificado. Nós, que nem éramos ricos nem indigentes, conhecíamos todos os caminhos. Ao evitá-los apenas lhes confirmava a errada lógica de que me achava melhor que eles, e eu, e outros, servíamos de petisco no abrir da caça. É no secundário que a coisa se refina e a violência ganha variedade. Violência aberta torna-se cada vez menos aceitável, não abertamente tolerada. No preparatório havia conhecido o meu bully. III Nós No ciclo preparatório passávamos do professor único, para uma multidão de docentes, bem como uma viagem de 25 minutos de autocarro até à escola. Carta branca para patifarias paixões e brigas. A parada começa no 5º ano onde os adversários se medem, nos objectos e nas posturas de forma a identificar rapidamente quem são ou o que são os intervenientes. Os primeiros choques começam após 5 ou 6 recreios. É com a habituação que começam os jogos de poder. O tactear começa geralmente a encoberto. O abusador insinua-se num grupo, enquadra-se alia-se e escolhe a vítima sacrificial. Vai aumentando a violência das provocações e o grau de enquadramento, de forma a não suscitar reacções do grupo. Em pouco tempo domina a jogada e obtém um ou dois aliados alheios à sorte dos 6 ou 7 que ficam à mercê do tiranete. De certa forma marginaliza com recurso a chacota e violência física o desgraçado ou desgraçada que lhe fixam o lugar no grupo. O sofrimento alheio serve como fulcro para a sua própria inserção. Nada como rebentar um pacote de leite com chocolate na cabeça do colega para fazer os outros rir, o agressor sentir-se como divertido, e as potenciais vítimas como querendo apaziguar este manipulador para que não lhes aconteça a elas como ao desgraçado a cheirar a chocolate. Depois há sempre uns tiranetes mais dominantes que aterrorizam o rebanho, e competem entre si no grau de popularidade. O medo que observam nos outros só lhes confirma a eficácia do método e corrompe-os a tornarem-se sobre confiantes. Penso até que a rapina serve para compensar alguma lacuna que possam sentir e cujo método são, desconhecem, em equipa que ganha não se mexe e se o método funciona, para quê mudar. As crianças não têm senão um sentido rudimentar de ética, que deve surgir em idade mais tardia com a experiência e a reflexão. Há sempre alguns imunes e que se impõem, quer porque os pais são suficientemente sãos, quer porque com alguma maturidade prematura percebem o que está em jogo. Eu como a maioria, só percebia que me acontecia, e que não era bom. No 5º ano como disse conheci o meu bully, que se revela completamente no 6º pois aproveitou as minhas fraquezas para ganhar ascendente sobre mim, e outros. É um facto inegável que há crianças mais meigas e crianças mais ariscas. É algo que nenhum psicólogo consegue explicar. O meu bully acompanhou-me até ao 10º ano, apanhando os piores anos para se ter dúvidas sobre o próprio valor. Nesse tempo se eu fosse cão engasgar-me-ia com a minha cauda sempre enrolada no rabo. Não tinha habilidade social nenhuma, por causa do episódio das cópias e das tabuadas que já te contei, por causa de não brincar na rua, e portanto também por ser menino da mamã. Valorizava talvez em demasia todos os amigos que tinha ou pensava ter. O China, ou Chinês, que eram as suas alcunhas, era uma daquelas crianças com talento nato para ler os outros e para a manipulação. Não era na altura, nem deve ser hoje, uma pessoa integralmente má. Era uma criança como outra qualquer. E qualquer criança é cruel. A suposta maldade é inerente não como defeito da nossa espécie, mas como factor de evolução, pois se fôssemos todos certinhos beberíamos óleo multigraduado e poríamos massa consistente nas axilas, ou seja seríamos máquinas num sistema fechado e não adaptável. O China tinha também os seus problemas em casa e familiares. Como te disse a técnica dele (e de outros) consistia em ganhar a confiança e depois dominar, geralmente com um momento chave de agressão ou ameaça de agressão. Sem o saber, fizemo-nos amigos e íamos ao centro comercial passear nos furos e comer croissants de chocolate. Pareceu-me ser uma amizade normal como outras que eu tinha. O tipo até morava perto de mim, portanto era tempo passado em conjunto entre viagens e aulas, pois éramos da mesma turma. Eu facilmente criava laços francos e incondicionais, e até tarde na vida tive dificuldade em cortar laços com amigos mesmo que o seu comportamento fosse sofrível. Ora foi com espanto que levei o primeiro pontapé no cu, literalmente, no pátio da preparatória. Tentei ripostar mas a tal aversão á porrada que te falei, lembras-te, para evitar a vergonha decorrente de sentir que de alguma forma merecia comer na corneta, evitou que fosse uma reacção firme, também perplexo pela agressão inusitada de quem tinha privado como amigo, pelo menos na minha cabeça. Ele havia escolhido nova amizade a quem respeitava mais do que a mim, pelas roupas ou pela melhor capacidade de gestão de relação, não dando confiança a mais, e sabes que entre crianças e adultos, se não sabes gerir as distâncias serves de repasto. Ora eu tinha encontrado mais uma útil função em que eu era bom, saco de pancada, com a agravante de ter o colo da mãe a alguns quilómetros de distância, e alguma revolta acumulada de vexames anteriores. Saco de pancada ou bode expiatório, sem reacção fiquei essa é que é essa, e recordei a contradentes da memória a incompreensão da rejeição que só comprovava a rejeição imcompreensível do meu pai. Hoje percebo que estamos todos condenados a viver com os nossos defeitos e falhas de carácter, na altura só me perguntava que raio havia feito de mal para merecer aquilo. Devia mesmo de haver algo de errado comigo, portanto devia merecer mesmo este castigo, por parte de quem me oprimia. Que justificação haveria para a opressão, só uma invisível que meu pai via e alguns outros também. Uma ou duas vezes me revoltei mas os murros e pontapés trocados, saiam de minha parte com pouco sal e salsa, e parava cobardemente a meio da contenda submisso como coiote enfadado cedendo à autoridade de dux de praxe de cara ameaçadora, dedos em riste e chapadas exemplares. A minha falta de confiança e submissão haviam por fim se tornado em 2ª natureza. Esse vexame e o sentimento de merecer, fizeram da minha vida um Inferno, ceder tornou-se natural para mim, e tornei-me carcaça predilecta dos abutres. Bem sei querido e forte leitor, que isto para ti são disparates, ou que nenhum sentido faz. Bem sei que resolverias linearmente a coisa com uns murros e berros para aqui e uns pontapés acolá, nunca te deixarias chegar a esta situação degradante, mas peço-te que do alto da tua força e poder concedas ao fraco, eu, deixar exprimir a sua fraqueza insustentável, com uma compreensão que exalas do alto do teu pedestal, ó vencedor da vida e ser perfeito. O China tinha uma boa lista de clientes. Alguns até o surpreendiam de vez em quando, quando ele confundia a postura de evitar conflictos e confrontos (apanágio da maioria das pessoas) com cobardia e provava um pouco do seu remédio, como o Rui certa vez fez à corredor de um pavilhão, em modo de brincadeira respondendo com violência disfarçada ao constante gozo e ridicularização. Murros nos ombros, palmadas nas costas e empurrões em violência ritualizada e escalando na intensidade. Entraram numa dialéctica engraçada, China gozava e Rui brincava mais pesadamente, China para salvar a face perante a audiência esgaçava risos e com lágrimas nos olhos e rubor na face gozava ainda mais e Rui calma mas decididamente tornava-se ainda mais assertivo. Nisso o China por vezes esticava-se, e a sua coragem via-se quando o opositor não tinha qualquer problema com violência, e o China tornava-se numa vítima suplicante como eu e outros. Desaparecia o dux, e surgia o nosso conhecido rabo entre as pernas. China, não era o único nem o pior, conheci outros, que por comparação tornariam China em Nobel da Paz e monge Zen, mas que felizmente nunca me tomaram como tarefa pessoal. Este acossava-me desde o ciclo, calhando sempre na mesma turma, até que no 10º escolhi de propósito uma área diferente da dele para ver se me livrava de um tipo que já quase homem, ainda recorria a humilhar os outros para se afirmar a ele mesmo. Bem, isso e o facto de o Professor Rosa de Matemática juntar álgebra e minisaiologia e premiar com melhores notas as alunas que optavam por peças de roupa mais curta. O seu ensino sempre me pareceu o de alguém que apanha cogumelos em pé com cinco varas de metro e meio atadas aos dedos. Graças a este talento pedagógico, eu e outros lentamente perdemos o gosto por algo que até então dava gosto estudar. Repito, falo do China apenas porque me acossava, ou eu deixava que me acossasse, desde o ciclo, hoje com toda a certeza é uma pessoa doce e agradável. Não vim aqui apontar o dedo acusador a alguém, a única intenção deste texto é apenas deixar-te sem palavras, pois o que se fala é parcamente abarcado pela palavra coacção ou ‘bully’ e no meio de tanta conversa, aqui entre nós, se pensar o tema te tirou dois minutos de novela ou tasca, tanto melhor. Podes também fazer queixa que sou uma espécie de bully virtual. Naqueles tempos tentei de tudo, aplacar, evitar, confrontar, ridicularizar (jogando o mesmo jogo), mas nada resultava. O dependente precisava da sua dose. O sujeito passava a ideia de maluco adorável, gajo na moda, de divertido bon vivant, e no topo da cereja ridicularizava os outros fosse por causa das roupas ou de algum traço característico, no caso do Rui era a cor da pele. Ridicularizava a mim e a mais um ou dois fregueses habituais, um deles era o cruelmente chamado ‘empanado’. Isto da criança ser o mel do sonho tem que se lhe diga, nada como uma criança para saber onde magoar. E já não éramos tão crianças assim. O empanado, creio que nunca o chamei assim, era meu amigo também, mesmas turmas, mesmos anos, e caiu na mesma esparrela que eu, deu demasiada confiança e tornou-se vitima também. A associação criminosa dos dois pequenos meliantes obedecia a pressupostos complexos, China não o respeitava, mas gostava da imaginação para novas diabruras que empanado tinha. Preferindo ser tudo menos vitíma as alianças simiescas faziam dobrar o peso opressivo sobre as vitimas. Quando por apetite uailde do China, empanado se via no lugar indesejável de objecto de atenção, os afectos da sua amizade alteravam para com aqueles que havia ajudado a humilhar previamente. Esta perspectiva é até muito adocicada pois quem merecia o respeito do China, achava-o um porreiraço, um gajo bacano, e partilhavam (quando raramente assistiam) a visão de que as humilhações e gozos só podiam ser merecidos. Vários amigos do China me olhavam com silêncio e apreensão, não censura do acto do amigo, mas procurando que raio se passava comigo…ou talvez, na melhor das hipóteses, pensando porque é que eu e outros tínhamos sangue de barata, não sei. Esta ambivalência era desconcertante e perturbadora. Como é que um gajo que é tão mau para mim, é tão porreiro para outros. Já estás a ver onde vai dar não é? Confirmando que eu só podia ter algo de mal em mim. Raio de pescadinha de rabo na boca. Em minha defesa posso contar com três ou quatro ocasiões em que esbocei uma revolta, mas como vos contei, faltava levar até ao fim a decisão de resposta violenta, sem a qual nunca faria cessar o abuso, e expliquei o motivo que agora entendo. A essa estúpida convicção de que eu tinha algo de errado e diferente, juntava-se o tenro horror a dentes partidos, dor e escoriações, bem como a vergonha de um espancamento sem apelo nem agravo, e assim ia sofrendo pequenas humilhações que pareciam mal menor em comparação à bomba atómica do tudo ou nada. IV Vós O pior é que não era constante. Acostumava-me a períodos de acalmia, e quando menos esperava lá vinha o enxovalho, o desdém o gozo e a violência, para servir de boneco e alvo de ridículo a outros no intervalo, ou um pontapé no rabo seguido de umas joviais gargalhadas. Perante os outros com quem se socializa, o nosso valor desce mais a pique que uma abóbora na cabeça do Newton, e a dignidade passa a ser uma palavra. No recreio o acossado é olhado de lado como se de tinhoso se tratasse. O desgraçado é olhado como infra humano, responsável pela sua menoridade. Muitos evitavam, iam para onde o agressor, o China e outros, não estava. Alguns saiam do ciclo vicioso, lembro o Armando, também tenro, mas que começou a vestir melhor, logo a pertencer a um ameaço de elite (grupo informal de populares ou míticos), cool, à qual não era cool agredir sob pena de represálias ou não aceitação. Os mal trajados eram bons para isso. Os polos coloridos de Armando por debaixo de sweats de marca puxaram-no para cima embora a custo, ao início. Mas assim que as hostilidades acalmavam, e para evitar o retorno, as vitimas que se haviam safado tornavam-se cúmplices. Acho uma estratégia normal. Anos mais tarde, percebi a preocupação de Armando e Nélson com a roupa, este era um dos motivos. Foram inteligentes. Com a separação de caminhos finalmente no 10º ano, que me custou ter de mudar de área e chumbar um ano, pura e simplesmente porque passava mais tempo agarrado aos jogos do Spectrum que a ir às aulas, ao menos podia sempre jogar mais um jogo para vingar a humilhação. Que tinha a escola para mim? Pouco mais que desassossego, enxovalho inesperado e grupos cujas cadeias de agremiação exigiam coisas pouco acessíveis à senhora de metro e meio mais dez centímetros, que ficara sozinha a tratar de mim, pois o velho Úrano havia rumado a outra Gaia. Assim, skates, computadores caros, ou roupas de marca estavam inacessíveis, chumbei o único ano do meu percurso escolar mas estava livre com 16 anos. Estaria? O mundo não se havia modificado muito com a ameaça distante. Via-o ocasionalmente mas as miúdas por exemplo continuavam a olhar-me de soslaio, perguntava-me porquê. Quando passas demasiado tempo de joelhos, se te levantas não sentes logo o alívio nas rótulas. Demora um bocado. Inconscientemente nas interacções sociais dava comigo a assumir automaticamente poses submissas e chacalídeas, por força do hábito e da tal crença interior várias vezes confirmada pela realidade. Sempre em sobressalto, condicionado pelos ataques extemporâneos do passado. Digamos que havia perdido para sempre a minha espontaneidade, e qualquer pessoa que não é espontânea não é autêntica com o que isso acarreta no relacionamento com os outros. O pior era esconder o segredo da minha submissão, esconder que havia algo errado em mim, confirmado por meu pai, meu carrasco e seus muchachos involuntários. E acima de tudo confirmado por mim próprio. Demorou algum tempo a perceber que afinal não tinha nada de errado a não ser uma opinião lisonjeadora do meu hardware masculino, com pouca confirmação num mundo regido pelas leis da Física moderna. O único mal que tinha comum à maioria foi ter tido uns pequenos azares. Não era eu que tinha o problema da necessidade de humilhar outros. É preciso algum distanciamento das ocorrências para perceber isso e eu começava a ter. Demorei ainda mais tempo a perceber a lasca cravada no meu espírito, que mesmo tendo desaparecido o barrote, teimava em fazer lembrar a existência da madeira, com consequências que nem hoje consigo ou quero quantificar. Em suma, opino que o dano cometido por abusadores a abusados, é irreversível. Nunca sabemos como mudariam as circunstâncias se determinada criança não fizesse o que fosse a outra criança. O que aumenta a gravidade desta difícil questão. Hoje em dia posso dizer que não sou responsável por crimes graves, a não ser falar mal do governo e ter alguém enterrado no quintal…chama-se Fred e é um gnomo de plástico. Não cortei as veias nem gosto de empalar vertebrados, mas sei que sou uma pessoa revoltada, com as injustiças essencialmente e com a forma como nos tratamos uns aos outros. Sei que o monstro do medo e o pavor de me sentir filho de um deus menor continuam em alerta para com os meus momentos de fragilidade. O pior do bullying não é os sopapos, a cara dorida ou o vexame superficial. O pior é a postura de vítima que se torna uma natureza, uma espécie de síndroma de Estocolmo a todos aqueles que no presente e futuro nos farão mal. Mistificamos os agressores e depois quase não sabemos viver sem eles. Em suma, a violência torna-nos menos nós, e escravos, escravos do nosso medo. V Eles Durante anos culpei a sociedade, os colegas que assistiam e nada faziam, e até a mim, raios até o Pai Natal culpei por não trazer uma doce cicuta que me raptasse para longe de tudo isto. Quando o ódio passou percebi que o agressor era também ele vítima, percebi que por vezes era inconscientemente eu o agressor, quando tinha comportamentos semelhantes aos que criticava, raras vezes, felizmente. O mais engraçado é que não há culpados, senão um único. O pensamento de que é normal isto pelos tempos, sinónimo de relativamente aceitável ou de uma mal amanhada ideia de ‘natureza humana’. Esta postura é a culpada. Geralmente este fogo arde-te por dentro quando acontece aos teus filhos. Podes dizer, quando te orgulhas do teu filho espancar outros na escola, que é natural como nos babuínos, leões ou lobos, mas devias seguir o curso lógico do teu pensamento e matar uma vaca à dentada rasgando-lhe a carótida. Lembro o impacto disto num colega nosso, que era exímio no seu skate e um paz de alma. A militância ao skate tornava-o inseparável do mesmo. Lembro-me de o ver cair numa poça de lama, com skate por obra de uma brincadeira do China, ao pé do refeitório virado para o lado do campo de futebol. Lembro-me de ver toda a gente a rir, com riso excitado de primatas, misturado com doses de curiosidade mórbida e alívio de ‘uff não fui eu’, e lembro-me que não participei da risada, mas nada fiz. Medo. Esse rapaz nunca mais foi o mesmo. Tornou-se calado e reservado, escolheu daí para a frente os seus interlocutores e nunca mais se permitiu ser aberto e confraternizar não fosse correr o risco de ‘dar confiança’. Ser cool era o código postal, era meio caminho andado. Ser cool ou ter um grau de agressividade ligeiramente superior podia aplacar as investidas dos rufiões que no fundo só caçavam os ‘underdogs’. O que dava poder aos bullys? O status. Ao inicio acreditei numa diferença de natureza, mais divina neles que em mim, depois esperteza ou inteligência, e depois perdi-me. Não era por certo uma diferença no índice de massa corporal, os piores que conheci não tinham cara para levar um estalo. Eram agressivos, manipuladores e dissimulados. Tardiamente percebi que a sua maior qualidade estava em saber ler as fraquezas dos outros e tirar partido delas. Meter o dedo na ferida de outro, para obter obter o biscoito para si. O agressor era oprimido por uma individuação desfavorável só sublimada pelo sacrifício de outrem. O pobre diabo mais próximo. Como relata qualquer cliché televisivo, as chamas só alastram no terreno seco mas não inflamável da natureza pacata das vítimas, da tendência geral, mais acentuada nuns que noutros para evitar a violência e o conflicto. É disto que o agressor vive para obter o status e a recompensa. Ele não faz por mal, mas tem de te usar para obter a sua própria validação. Não digas que a culpa é dos pais, eles por vezes nem sabem ou foram eles mesmos vítimas e tornaram-se parcialmente disfuncionais. E apesar de sermos responsáveis pelas nossas escolhas, uma escolha só é uma escolha quando aparece visível como escolha. Os bullys não vivem só na C+S. Se tens o azar de buzinar inadvertidamente habilitas-te a ter um em frente ao teu carro, disposto a aliviar a sua tensão ou a mostrar à mulher que consegue bater em gajos mais pequenos que ele. São sempre os mais dispostos a utilizar a violência, o velho e amigável método que sempre se revelou eficaz, e como a autoridade não tem o dom da omnipresença ou da ubiquidade, podes ser tu a próxima vítima. Se te preparas e lhe partes o queixo, passas tu por agressor. No trabalho todos conhecemos um colega que manda bocas e a encoberto da brincadeira rebaixa os outros. Ninguém se habilita a dizer nada pois na sua forma passivo-agressiva, pode defender-se dizendo que não se pode brincar, ou que o acusador não sabe brincar. Medo. O que não faltam são bullys à tua volta. É o medo que cria bullys. Se um filho teu ou filha levarem porrada ou pior, se forem rebaixados psicologicamente, que vais fazer? Bater na criança, malhar nos pais, preparar a tua filha ou filho para o inferno diário da escola? Vais falar com pais que sentem orgulho pelo filho ‘ser mau como as cobras’? Ou vamos todos fazer como no recreio, aliviar ou insurgir se a coisa tocar ou não a nós? Vais continuar a pensar no teu íntimo que as vítimas merecem este tratamento porque são mais fracas, ou porque merecem? Vais, graças à tua boa sorte negar a existência destas coisas feias ou se existem não queres pensar nelas porque a vida é algodão cor-de-rosa? Talvez as personagens do pequeno texto sejam fictícias, talvez o discurso na primeira pessoa seja trasvestido. Não há intenção de injuriar ou acusar alguém. O que passou passou, cabe-te a ti, perpetuar através dos teus filhos, a perpetuação dos bullys. Eu perdoei aos meus. http://www.imdb.com/title/tt1682181/
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I A Filipa fez-me uma cara como se eu metesse nojo quando contei algumas peripécias passadas com Susana. Senti que a sua sensibilidade burguesa crescera como virulento xenomorfo com hormonas de crescimento. Afinal já não éramos irmãos literários. Do grupo dos 9RH que sonhavam com devaneios da literatura, aparentemente só eu ainda pego regularmente numa caneta. Ela era das poucas que discutia literatura comigo, mesmo na Faculdade de Letras seguindo todos os pouco lidos escritores obscuros (à sombra dos gostos comerciais das editoras) que a mãe pátria portuguesa em forma de língua vai fazendo emergir. A pureza do seu coração andava de mão dada com a inexperiência sexual que vogou por mar crispado para assentar na feliz e tépida lagoa que é o casamento. Esforçada mesmo que as suas origens familiares o dispensassem, dei com ela anos mais tarde a ter posses e a ler livros de motivação para auxiliar a sua nova etapa de empreendedora e empresária. Excelente pessoa que perdi para a grande mole dos convencionais. É tão bom ser convencional. Saber que se está correcto a partir de uma visão do mundo que reflecte o nosso conforto material que nos enverniza e aliena a verdadeiras pulsões de vida dentro de uma prisão de veludo. Foi essa a cara que fez, de censura séptica a um turbilhão de experiências que anos antes lhe teriam servido para dissertar sobre a natureza do amor e da condição humana. Cresceu, evoluiu, parece. Não gosto de gente madura, não gosto de cautela estóica, nem da aura de satisfação pela vida menos ainda que o chilrear infantil das adolescentes. Gosto de ver as pessoas bem e felizes, mas vê-las confortadas com o destino faz-me olhar para elas como se tivessem abdicado do seu fogo interior, afinal análogo àquele de Prometeu que o roubara por sua vez aos deuses. Partem todos mais cedo ou tarde, para essa longínqua banhada que são as praias do envelhecimento. Fico aqui sentado neste rochedo olhando, e tornando-me em mais uma ilha esquecida e destinada a dissolver-se com as marés dos entardeceres outonais como um qualquer monte de areia de bom presságio. Todos entram nos fornos crematórios que os carris da longevidade das suas vidas conduzem por entre florestas de ossos dos que morreram pelo caminho, pela droga, acidente, doença, ou simplesmente desgosto. Eu infantilmente recuso-me a percorrer tal caminho, no entanto empurrado para os chuveiros de gás por quem vem atrás. Peter Pan chamam-me alguns, mas apenas não quero ser determinado por um conjunto de velas de aniversário sopradas, fico com saudade do que as pessoas eram, e morro sempre cada vez um pouco mais que percebo que adio o inevitável. Prefiro olhar para os meus amigos como doppelgängueres espectrais, risos joviais e sinceros que me ecoam na memória e já não nos ouvidos…das angústias fáceis e dos amores brutos de uma cruel existência que dá o sabor da juventude que tudo promete para retirar ao primeiro toque das papilas. Morrer é acamar o corpo ao húmus da terra, acolhedor e compactado como ele. Escrever tem um preço, Filipa nunca mais o pagará. Apagou a vela que nos conduzia na escuridão do bosque onde estamos perdidos, optou pela acolhedora cabana climatizada. Quem escreve queima-se a si próprio na fogueira da vida na qual arde e se aquece, mil vezes caralhos se fodam, se cedo ao canto das sereias. As belas matronas apaixonam-se pelos livros sobre amores tumultosos e paixões avassaladoras, que esquecem assim que acasalam, infernizando a vida em conjunto com o amargo de boca que é comparar o que se queria e o que se tem. Tento fingir, jogar em duplicado, fingir que compreendo a evolução. Seria mais fácil se tivesse dinheiro, se não tivesse que lidar todos os dias com a necessidade, se não tivesse de pagar duas míseras canecas de cerveja com os últimos trocos ainda resistentes no cartão de débito. Se eu tivesse mais dinheiro, o meu duplo seria mais cortês, bonacheirão, desapegado, de bem com a vida. Os meus devaneios, loucuras e imprudências seriam exóticos e não censuráveis pecados morais. Não, não posso. Contente, apaga-se-me a vela. Tenho de aguentar até ao fim. Contente e conformado engordo e desapareço, outro virá substituir-me. Responsável honrado considerado num grupo de iguais. Coloco citações motivadoras, sabedoria de vida escrita sobre fotos de bebés adoráveis, ou fotos picantes com comentários elegantemente alusivos, nas redes sociais onde me mostro aos outros que sabemos estarem a olhar para nós, que sabemos estar. Deixo de ser troll, os meus amigos já me passam a convidar amiúde para as suas casas, apresentando-me os recém-nascidos filhos, misturam-me com outros amigos mais convencionais, com quem querem privar e imitar. Deixo de ser um troll, um provocador, um pato preto no meio de tanto cisne branco. Foda-se caralho, deixo de ser eu. Mas que sou eu senão o conjunto dos meus hábitos. Encontro desculpas para a minha vida concêntrica no trabalho que à noite faço escrevendo escrevendo e nenhuma merda de jeito sai. Engasgo-me no meu sangue pelo tanto que puxo pela memória coisas do passado para vestir com roupas diferentes, ver se ficam bem num livro. Como Golem pétreo nada faço de jeito que não à base da força bruta nem consigo parar, e é com expressões de pedra que respondo às caras que esperam ver em mim o conforto do seu reflexo. Arrasto-me como lesma no gume de uma lâmina afiada, com a consciência que se divide na dor do corte. Toda a gente parece dedicada em percorrer um caminho e eu de passo ao lado vendo-os passar todos em fila indiana, rumo à morte e eu em vez de caminhar, penso, penso penso, foda-se penso. II Júlio já nem responde aos sms’s. Não responde. Quando a vida lhe parecia tão pequena ainda havia espaço para os amigos, e para os problemas existenciais, e alegrias da gente comum. Quando se dedicava às Belas Artes ainda recorria a mim para comunhão de ideias. Tornou-se polícia. Para a maior parte dos polícias não existe vida fora da sua profissão. Por causa dos horários marados, e porque tudo o resto à parte das excitações de manter a ordem pública, se torna sem relevo e cinzento por comparação com a adrenalina das perseguições da violência e dos tiros. O poder serôdio de cada agente da autoridade afasta os indivíduos de uma aproximação à realidade que se derrete sob uma capa de mentira. Ninguém gosta de polícia e as submissões servis e as simpatias fáceis mais exasperam cada agente que bamboleia entre a gota de poder que sorve e o amargor da manipulação que observa, sente-se puta, usado por calculistas que o ignorariam se não pudesse ser útil no futuro. É a punição que dá justificação ao ar grave e pomposo que cada agente revela quando circula por bombas de gasolina, minipreços e lojas dos trezentos. Se tivesse um ar aproximável seria presa fácil dos abusadores. Ar grave e pomposo, hipertrofia muscular passam a ser parte de si. O polícia é assim alguém que geralmente se leva muito a sério, que se julga em situação de excepção para fazer impor a regra. Amiúde se partilha na mesma esquadra, a caixa do continente, a gaja de rabo grande da roulotte ou aquela cabeleireira que adora fardas e empregos estáveis. Muitos deslocados dos montes e leiras deste Portugal fora albergam-se em Lisboa, numa vida atrás de farda, casteando-se à parte tão próximos dos malandros e prevaricadores com quem partilham o território pejado de redes de influência e de pessoas, de becos…convictos de serem o garante moral da sociedade que lhes paga para usar a violência entre sujeitos, com acesso privilegiado e monopolista à realidade da realidade com a qual pouco regateiam os discordantes. Júlio já só falava de bola ou de polícia. Nada mais lhe interessa senão a irmandade da corporação e a rectidão de uma imagem que contrapõe aos escândalos da noite. O mitra tem de ser enquadrado e o cidadão regulado, o agente está afinal entre os correctos da vida. O conforto financeiro ante a miséria geral, uma dignificação por proteger a vida burguesa, fazem com que se desloque como pater patriae rumo a um assento da reforma, na qual passamos os momentos finais a recordar a vida que se escoa quando fomos príncipes de algum reino e agora somos escudeiros do nosso próprio silêncio. III A discussão à mesa já fazia com que a sua mulher olhasse para mim com o olhar de quem aufere se o outro que parecia ser normal, tem alguma espécie de atraso. Atrasadinho sim sou eu. A convicção com que ele, o meu interlocutor, insiste no seu ponto de vista roça uma profunda adesão interior a uma mundividência, como uma reclamação de autoridade baseada nessa cagança, e também para impressionar o pai, que o escuta. É preciso fazer contas, meter a mão na massa. O progresso é betão armado e alcatrão, fábricas, emprego e nada dessas merdas de letras que servem para nada. Quer lá saber se o Rei da Restauração era o xico ou o manel, isso é conhecimento que nada adianta na vida. Não é útil como a soma dos catetos ou a raíz quadrada do círculo. O mundo é dos que fazem e dos que pensam em fazer. Não é de dos que pensam sobre o que se faz. O interlocutor é professor. A plateia, grave e solene, acatava reverentemente os remates, e ainda pensei ensaiar resposta mostrando as falácias do mundo de hoje. Mas admito, a convicção e pétrea basilar concatenação de argumentos deixou-me desarmado, como perante taxista que diz que os táxis de Lisboa são os melhores do mundo, sem nunca ter saído de Xabregas. Não só o interlocutor estava 110% certo do que afirmava, como ostentava a pairante ameaça de que qualquer resposta por mim dada que não anuísse com a sua postura, só me confirmaria como menino froufrou, alienado saído da universidade com neuras existenciais. Estes maricas de letras devem morar em estufas. Fazer contas que é difícil, eles não fazem. Madraços. Não tenho a ‘auctoritas’ proveniente de um poder público que desdenha as conversas e se hipnotiza com as máquinas, pago apenas o cheque de não saber retribuir em despeito e jactância com que me brindam. Ninguém regateia a um engenheiro o conhecimento de um circuito eléctrico, mas todos acham que a sua opinião é equivalente em quase todos os assuntos de que passou anos a ler a ‘República’ ou a ‘Crítica da Razão Pura’. Por todo o lado se repete que a Filosofia não dá respostas e que portanto isso é equivalente a qualquer resposta ser válida, ergo, as opiniões sobre assuntos filosóficos estão em grau de igualdade entre os iniciados e os que mais tempo perderam a tentar compreender o que outros passaram vidas a construir. Há alguma coisa a favor das Letras? O mundo das ideias é sempre menos óbvio que o das coisas, menos palpável e menos percebido como útil. IV Lembro-me dele na secundária, as marcas estavam híper na moda, e usou um blusão de ganga da Lee até à exaustão da gola se desfiar em fios de algodão murcho e lavado. Quando entrou na universidade eu já lá estava, fez-se melhor amigo até se ambientar. Sempre foi assim, nunca pude deixar de sentir que era muleta dos tempos menos bons. Mas só a mim me posso culpar. Talvez dê demasiado valor à amizade, ou então a minha amizade seja sufocante ou de baixo valor porque sempre de perna aberta. Lembro-me de falar de mulheres que escolhem os amores ou os assomos de acordo com a fabricação prévia do seu paradigma estético. Há homens que são exactamente iguais, em todo lado se vê a igualdade dos sexos, que de tão evidente, só emerge quando este meu amigo se deitou com mãos à vida para pagar as suas despesas. Arrumou o Luís Sepúlveda na gaveta, e ensinou-me algo sobre mim mesmo. |
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