I
1989 Entrei pelos portões da Escola Secundária de São João da Talha. Tinha visto esta escola ser construída num local que era cheio de oliveiras e sardões indolentes que se banhavam no Sol do Estio. Uns quantos velhotes que já a memória e a morte levaram, usavam o espaço para prender as cabras aos zambujeiros para ruminarem o pasto não fugindo da ponta de umas longas cordas de nylon de branco encardido. Quando começaram as obras, dizia-se que era uma escola que ia nascer ali. Portugal não tinha ainda entrado na merda da CEE. Nunca frequentei uma escola construída por fundos comunitários, e orgulho-me disso. E pá, foi uma festa, alegrámo-nos com a assinatura do bochechas, eu particularmente, afinal isto ia ser Europa, íamos estar em igualdade com os outros que vinham cá no Verão, com grandes carros de grande cilindrada e ares de quem vinha ao zoológico. Finalmente íamos ser evoluídos como os tipos que víamos na Eurovisão, e até julguei que vinham loiraças morar no meu prédio, (eu que era maluquinho por loiraças), e que íamos deixar de ver na televisão corridas de pipas de vinho motorizadas e o 70 X 7. Em 1988 cai o Muro e parecia que o mundo se revelava num futuro promissor e leve, muito leve, como prometia a propaganda americana em forma de filmes idiotas que se prolongavam até ao «Isto só vídeo» apresentado por Virgílio Castelo já nos anos 90. Não estive tempo suficiente na Escola Preparatória da Bobadela, para me afeiçoar a ela, que era como o nome diz, «preparatória». Que coisa vinha aí, que precisava de preparação? O Secundário. Ir para São João dispensava-me o passe social, e a respectiva liberdade de viajar em veículos pesados cor de laranja e brancos. O Secundário aparecia com uma solenidade mais rigorosa e adulta, que prometia exigir mais estudo e juizinho. Juizinho com 13 anos? Pois… Era uma aflição saber se ficávamos naquela escola ou íamos para a de Sacavém. Lá fiz a minha matrícula com a minha mãe envergando um largo envelope castanho caqui, formal como um Estado, onde dormitavam os papeis de matrimónio lectivo entre mim e a instituição que nascera naquele olival contíguo ao acampamento de ciganos que na altura não contava com mais que 4 ou 5 tendas e 3 ou 4 barracas de contraplacado e telhados de zinco ferrugento. As aulas começam em Setembro, e em Setembro nunca tinha visto tanta gente da minha idade junta, especialmente cachopas, de Santa Iria, Bobadela, São João da Talha e até de Póvoa de Santa Iria. A primeira geração pós CEE reunia-se no mesmo espaço. Na escola, que cheirava a nova, quando entrei, toda a área que rodeava o Pavilhão de Electrotecnia (não sei se ainda se chama assim) era em terra batida. Na Bobadela era ancião, aqui, começava novamente por baixo. 7º O. Fama de ser uma das turmas mais indisciplinadas, o que nos enchia, rapazes, de orgulho. Quem é que aos 13 ou 14 anos sabe o que é disciplina? II Aprendemos desde logo que aquele calor de Verão que lentamente ia morrendo esmagado pelo Outono que já se adivinhava nas brisas da tarde, era sentido como narcótico torpor emanado pelo cimento, aproveitado pelos nossos jovens corpos quando nos sentávamos nas bases dos dois mastros à entrada da escola, ou nos muros que compunham os canteiros e que circundavam todo o recinto. Nos intervalos ou nos furos, rumávamos em procissão para esses locais, falando falando falando, aproveitando o calor que da massa pétrea emanava, outros optavam pela sombra fresca ou pelas escadas, ou pelo corredor que levava à sala de convívio, ou pelas sombras arbóreas no limes do recinto, ou pela antecâmara de cada pavilhão, aquele espaço vazio em que nos amontoávamos à espera do professor ou professora, no qual dois degraus encostados à parede se enfrentavam, descendo de altura quando acompanhava o desnível em direcção à porta de alumínio e vidro que dividia o exterior do interior do pavilhão, lajeado por berrantes de tão sóbrios pedaços de grés cor de fígado, ladeada por paredes brancas e um relógio de rosto cinzento que supostamente indicava o tempo analógico. Nesta sala de entrada interior, se fazia a distribuição para as salas de aula, e ao fundo havia de cada lado, duas casas de banho, ao meio, os corrimãos conduziam ao piso superior, forrados a madeira para afogar as esquinas líticas, que culminavam em parapeitos elevados para evitar quedas que nunca ocorreram ao contrário das provocadas pelos rabos acelera via corrimões abaixo, cujas solas meio gastas não evitavam travar na aterragem. Sob as claraboias superiores eram os únicos acessos aos telhados que quando visitados se revelavam cemitérios de bolas descarnadas em cauchu tresmalhado. No pavilhão principal, aquele que aloja o conselho directivo e que está logo à direita de quem entra pelos portões, tinha o guichet da telefonista logo à entrada à esquerda e a Biblioteca à direita, em frente lá ao canto tinha o famigerado conselho directivo e ao canto as casas de banho para os professores. No piso de cima respiravam paredes cobertas de corticite que abafavam os sons indesejáveis e no canto Sudoeste está a sala de audiovisuais, protegida com o maior gradeamento da capital, mais sofisticado que o de um estabelecimento prisional, e até porta de ferro. Sempre foi uma célebre sala de visitas dos amigos do alheio, e consta que até aparece por vezes nos roteiros culturais das sociedades de larápios. Nas salas com cadeiras de ferro pintado de azul, e tampos de madeira envernizada, as secretárias com pernas pintadas de castanho e tampos creme pálidos, olham com atenção as ardósias pretas penduradas na parede branca, que babam pó de giz que se acumula na caleira inferior onde repousa o apagador de marca Cisne, e no canto da sala, quando não recolhido, dormita o retroprojector, vermelho ou laranja. No canto do segundo pavilhão fica a Reprografia, só visitada quando se faziam os convites para as festas da escola. Consoante a sala e o pavilhão, podíamos perder a atenção em paisagens viradas para o Tejo calmo e sereno, para os baldios da freguesia, rasgados pela estrada movimentada e extinto chafariz, para o acampamento de ciganos com suas pressões de ar apontadas e parabólicas expectantes, para o canto Noroeste do recinto de onde se avista uma árvore de grande porte e um ameaço de canil, onde em tempos como actividade escolar montámos um ninho de cegonhas. Pontificávamos nas janelas quando a matéria não puxava e ocasionalmente éramos saudados por um rosto conhecido, elevado acima das coberturas em fibrocimento, cinzento como pavimento de Inverno. O campo de jogos era tapetado por alcatrão, e não pela mariquice colorida que lá está agora. A Norte do mesmo, por detrás dos balneários havia um morro amatagado, de onde se podia estrategicamente espreitar para dentro dos dois pavilhões cimeiros à escola, autênticas torres de menagem de todo o recinto. Numa delas residia a sala da associação de estudantes, num rés de chão envergonhado. Quando andávamos a morrer de paixão penumbrávamos aquele espaço como cão vadio em traseiras de restaurante, a ver se a vista se lavava com os fotões do alvo do nosso desejo. Nas costas do famigerado pavilhão de Electrotecnia, a malta fumava a soldo do encoberto, resguardados de olhares inquiridores e meneios desdenhosos, e quando queríamos beijar os pares a salvo da falta de privacidade, era ali, com patches dos U2 nas calças, que de perna aberta e entrançada na do outro nos abraçávamos e curtíamos, como se dizia na altura. Nos interstícios dos pavilhões marginais, jogávamos à bola, ao bate pé, ao rei manda, imunes a queixas dos professores pelo barulho provocado. Anos mais tarde, apareceram por aqueles lados uns pavilhões pré fabricados, de madeira que já eram velhos quando eram novos, onde se encaixavam 20 ou 30 alunos em cima de um ruidoso soalho de madeira, paredes de aglomerado e total desconforto térmico não amenizado com as modernices do ar condicionado. No Verão limpávamos o suor e olhávamos as mini saias das confirmadas ninfetas, no Inverno, dávamos graças por estarmos juntos e assim aquecendo o ar da sala, pese embora os resquícios aqui e ali de humidade e lama que teimava em vir nos pés assistir às aulas. Uma dessas salas, quando no último ano eu já preparava as despedidas, foi a sede do efémero MAPA, Movimento para a protecção do ambiente, que após umas arrojadas incursões militantes no aqueduto sobre o rio Trancão, (contra o atentado ambiental de uma incineradora defendida por muitos nem tanto por outros, -especialmente por uma comissão ad hoc que tomou conta das operações até ao momento em que alguns elementos foram surpreendentemente regalados com promoções laborais e outras atenções-subtilmente emperrando o protesto) sala essa que sob o tecto falso, guardava garrafas vazias de cerveja de litro e até um colchão de campismo velho e gasto. III Naquelas mini ruelas e avenidas fazíamos competição de acne querendo rasgar a pele, até ele ansioso por uma efervescente liberdade de testosterona e estrogénio incompreendida. Gabo diz que as casas são as velas onde ardem as vidas dos homens. A nossa escola foi a lucerna onde ardeu o aromático azeite do nosso viço. Recordamo-la com saudade. Não apenas por causa dos verdes anos, mas pela inocência ainda assim que transpirava dos ébrios poros de betão. Na sala de convívio, grandes bancos longitudinais encostavam-se à parede, um desenho de um colega ganhou o concurso para nos saudar à entrada da sala de convívio, um boneco de surfista, naif mas na moda e de boas energias, que durante anos saudou os transeuntes. Assim que passávamos o pórtico do local de convívio com refeitório e tudo, tínhamos uma viragem à direita para os comes e bebes, para um canto onde se fizeram concertos de 605 Forte, Mistake e outros. No canto oposto ficavam normalmente os equipamentos de som e as colunas das festas da escola e onde eu e outros ganhámos umas eleições para a associação de estudantes, fazendo as contas à percentagem de alunos votantes mais motivados para votar, os do 7º ano, e portanto a campanha resumiu-se a disponibilizar jogos de computador em Commodore Amiga 500 e chupas, arrasando em sufrágio a concorrência, que só em rebate no quis conhecer após a derrota, na tasca da Maria onde fomos comemorar a democracia com cerveja. A meio pernoitava na Parede Norte, uma entrada de alumínio e vidro que não me lembro de alguma vez ter visto aberta. Quando se entra, de frente as casas de banho e à esquerda um amplo espaço onde durante algum tempo chegaram a estar 4 ou 5 Spectrum’s 128k numa época em que pouco ou nada se falava de computadores por iniciativa da Presidente do conselho directivo da altura a Professora Maria do Céu. Foi nesse espaço uns anos mais tarde que consultei as minhas notas de aferição para o passo seguinte, o Ensino ‘Superior’. À esquerda desse espaço, mais duas salas, para eventos, normalmente fechadas para os fregueses, mas num certo ano recuperadas por duas estagiárias de anglísticas boas como o milho, e que me levaram e a outros a desenvolver um interesse súbdito pelo alemão que por um lado levou a pintar a sala de jornalismo no pavilhão central, por outro a declamar um poema em alemão sem microfone para uma plateia de colegas incrédulos e enfastiados e por fim a privar com aquelas boazonas em início de carreira com uma natureza bamboleante verdadeiramente hipnótica. O tal carismático pavilhão central onde também havia aulas de trabalhos manuais, onde no 8º fiz uma estante tripé em pinho que nunca assentou uniformemente no chão. Nunca faltei ao respeito a professor ou professora, nem nunca tal me passou pela cabeça. O mais que fazia era lamentar a sorte de ser expulso, por uma qualquer tontice, numa aula de inglês em que uma graçola dita sobre o Bucha e o Estica provocou o riso geral e a companhia para a rua de mais alguns colegas que não conseguiam parar de rir de forma sonora. A Manuela branquinha como a neve, certa vez instigada por colega malandro, perguntou candidamente «-Oh stora, o que quer dizer ‘shit’», o que provocou risada geral pois o par ingénuo do lado dela e maroto do lado dele, indicava que não era o ‘sheet’ de ‘folha’. Manuela ficou vermelha. E a professora também. Lembro as viagens ao Gerês, onde a malta se embebedou com whiskey de Sacavém, que descobri mais tarde era feito com caramelo e álcool etílico comprado nas farmácias circundantes bem longe do projecto de ASAE por nascer. Nessa viagem lembro a professora de Geografia, uma estátua grega no feminino, que recusando as bebidas pagas oferecidas no Gerês pelos mancebos autóctones, preferia falar com os alunos e alunas, embora a maior parte deles estivesse interessado em dar azo às rédeas soltas, geralmente em companhia dos professores de educação física. Tive uma conversa adulta e muito interessante com ela, que me fez sentir homem além do rapaz que eu era, uma conversa humana, entre dois seres humanos. No dia seguinte polvilhámos as ribeiras e o rio daquele lugarejo no Parque natural, e alguns como eu decidimos experimentar uns mergulhos ficando horas posteriores a tremer à beira da hipotermia. Lembro outras viagens uma a Óbidos onde no 8º ano, em modo apache eu e outros trocando calhauzadas pelas muralhas fora, parti acidentalmente uma terrina abandonada aos elementos mas que por represália sua dona decidiu valorizar milionariamente junto do posto da GNR o que me valeu um puxão de orelhas por parte do Professor de Religião e Moral, e um silêncio de esfinge para que ninguém soubesse que era eu o culpado do atraso geral da excursão. Parámos na Nazaré, molhámos os pés no Oceano. Organizámos uma viagem aos confins do Alentejo com o Professor António, e debatemos o mundo olhando para as estrelas à sombra de duas piscinas iluminadas pela luz da nossa fogueira dentro de um parque de campismo. Fomos a uma discoteca no dia seguinte celebrar o Carnaval, e não se conseguia ver a cara de ninguém. Bons tempos. IV Tivemos um professor excelente de Físico-química que gaguejava, naturalmente mais gaguejava quanto mais nervoso ficava, tivemos uma professora excelente de Inglês, que a anos poucos de encetar a reforma, ainda vestia vistosas calças de cabedal, e andava de Honda Civic alheia a isso que fosse envelhecer, envergonhando com frescura de espírito muita adolescente. Tivemos o célebre professor Malaca, excelente professor de História, conhecido pela sua motorizada e cabelo caracolado, a professora de Português que sensível e sem saber como motivar os alunos travessos nos fazia apaixonar pela lírica, o professor de Matemática que também podia ter sido merceeiro, a professora de Relações Públicas que não se conseguia desligar dos profundos problemas que só conseguia apresentar, atrás de um rosto bonito com profundíssimas covas dos olhos e mágoas embutidas. Lembro a professora de Educação visual que teve a brilhante ideia de meter alunos a avaliar colegas. Lembro um jogo de futebol entre professores e alunos que terminou com umas trocas de sopapos e chutos nas canelas, lembro os torneios de ping pong, as trocas de prendas no Natal, lembro os jornais que fizemos, as visitas às rádios, as entrevistas ao João Pinto, Figo e Rui Costa, lembro as miúdas gemerem como Jorge Cadete e o seu penteado à cabeleireiro californiano, lembro-me das funcionárias, do Abel, das tardes de basquete, da Carina de olhos verdes, da Alexandra flor de lótus, lembro-me da aposta feita na Paragem da Talha e dos 4 bagaços bebidos que supostamente não me embebedariam e da consequente aula de Matemática dada por uma engenheira que tinha ido ali parar, e de ver a sala toda a andar à roda agarrado ao quadro e às cadeira para não dar cana. Lembro um colega que levava um símbolo da Volkswagen ao peito, e de outro a gozar com ele e o primeiro a perguntar: «-Tens a mania que és engraçadinho?»… Lembro um concerto de Delfins no Pavilhão Desportivo, lembro dos torneios de futebol à roda bota fora, do campeonato de vólei, do Barros, do Cajó, do Caveira, do Belfo, do Giló, do Cócóri, do Armando, da Rute, da Sónia, e de toda uma galeria de gente que se perdeu algures no tempo arrumada em qualquer gaveta agora ignota senão pelo esforço de rememoração. Lembro-me dos finais de tarde com o fluxo de baixa e preia-mar por entre as goelas daqueles portões, lembro-me das modas, lembro-me de ir nadar ao Tejo, lembro-me do incêndio da Unitarma, das festas dos Santos na freguesia, do rancho dos Cachoeiros, de jogar no campo do Sanjoanense, de treinar ginástica no pavilhão de zinco que estava onde está hoje outra tasca e uma coisa qualquer para a juventude, lembro-me da sensação que foi a inauguração do enorme centro comercial Arcada, de passar horas no Fojos, do Haunted House e as noites de snooker, do Harley Bar, do First Gallery, e da famosa discoteca no bairro dos telefones que esqueço o nome. Lembro desenhar um barco e um gajo com uma cana, num teste de Matemática a dizer «Não pesco nada disto.»…Lembro uma Professora mandar-me ir comprar dois chocolates um para ela e outro para mim, como prémio de ter tido a melhor nota do teste. Lembro um cão de Castro Laboreiro que foi por uns anos guardião daquela escola, afável com os alunos, irascível com os ciganos que acossava com um ladrar agressivo até que lhe saiam do outro lado das redes. Lembro por fim, após ter terminado o ensino Secundário decidi fazer uma pausa e ir à tropa. Lembro de passar fardado, por aqueles portões, e olhar para a escola que havia sido minha. Ainda era. Ainda é.
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Caveat emptor Arquivos
Junho 2022
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