I A Filipa fez-me uma cara como se eu metesse nojo quando contei algumas peripécias passadas com Susana. Senti que a sua sensibilidade burguesa crescera como virulento xenomorfo com hormonas de crescimento. Afinal já não éramos irmãos literários. Do grupo dos 9RH que sonhavam com devaneios da literatura, aparentemente só eu ainda pego regularmente numa caneta. Ela era das poucas que discutia literatura comigo, mesmo na Faculdade de Letras seguindo todos os pouco lidos escritores obscuros (à sombra dos gostos comerciais das editoras) que a mãe pátria portuguesa em forma de língua vai fazendo emergir. A pureza do seu coração andava de mão dada com a inexperiência sexual que vogou por mar crispado para assentar na feliz e tépida lagoa que é o casamento. Esforçada mesmo que as suas origens familiares o dispensassem, dei com ela anos mais tarde a ter posses e a ler livros de motivação para auxiliar a sua nova etapa de empreendedora e empresária. Excelente pessoa que perdi para a grande mole dos convencionais. É tão bom ser convencional. Saber que se está correcto a partir de uma visão do mundo que reflecte o nosso conforto material que nos enverniza e aliena a verdadeiras pulsões de vida dentro de uma prisão de veludo. Foi essa a cara que fez, de censura séptica a um turbilhão de experiências que anos antes lhe teriam servido para dissertar sobre a natureza do amor e da condição humana. Cresceu, evoluiu, parece. Não gosto de gente madura, não gosto de cautela estóica, nem da aura de satisfação pela vida menos ainda que o chilrear infantil das adolescentes. Gosto de ver as pessoas bem e felizes, mas vê-las confortadas com o destino faz-me olhar para elas como se tivessem abdicado do seu fogo interior, afinal análogo àquele de Prometeu que o roubara por sua vez aos deuses. Partem todos mais cedo ou tarde, para essa longínqua banhada que são as praias do envelhecimento. Fico aqui sentado neste rochedo olhando, e tornando-me em mais uma ilha esquecida e destinada a dissolver-se com as marés dos entardeceres outonais como um qualquer monte de areia de bom presságio. Todos entram nos fornos crematórios que os carris da longevidade das suas vidas conduzem por entre florestas de ossos dos que morreram pelo caminho, pela droga, acidente, doença, ou simplesmente desgosto. Eu infantilmente recuso-me a percorrer tal caminho, no entanto empurrado para os chuveiros de gás por quem vem atrás. Peter Pan chamam-me alguns, mas apenas não quero ser determinado por um conjunto de velas de aniversário sopradas, fico com saudade do que as pessoas eram, e morro sempre cada vez um pouco mais que percebo que adio o inevitável. Prefiro olhar para os meus amigos como doppelgängueres espectrais, risos joviais e sinceros que me ecoam na memória e já não nos ouvidos…das angústias fáceis e dos amores brutos de uma cruel existência que dá o sabor da juventude que tudo promete para retirar ao primeiro toque das papilas. Morrer é acamar o corpo ao húmus da terra, acolhedor e compactado como ele. Escrever tem um preço, Filipa nunca mais o pagará. Apagou a vela que nos conduzia na escuridão do bosque onde estamos perdidos, optou pela acolhedora cabana climatizada. Quem escreve queima-se a si próprio na fogueira da vida na qual arde e se aquece, mil vezes caralhos se fodam, se cedo ao canto das sereias. As belas matronas apaixonam-se pelos livros sobre amores tumultosos e paixões avassaladoras, que esquecem assim que acasalam, infernizando a vida em conjunto com o amargo de boca que é comparar o que se queria e o que se tem. Tento fingir, jogar em duplicado, fingir que compreendo a evolução. Seria mais fácil se tivesse dinheiro, se não tivesse que lidar todos os dias com a necessidade, se não tivesse de pagar duas míseras canecas de cerveja com os últimos trocos ainda resistentes no cartão de débito. Se eu tivesse mais dinheiro, o meu duplo seria mais cortês, bonacheirão, desapegado, de bem com a vida. Os meus devaneios, loucuras e imprudências seriam exóticos e não censuráveis pecados morais. Não, não posso. Contente, apaga-se-me a vela. Tenho de aguentar até ao fim. Contente e conformado engordo e desapareço, outro virá substituir-me. Responsável honrado considerado num grupo de iguais. Coloco citações motivadoras, sabedoria de vida escrita sobre fotos de bebés adoráveis, ou fotos picantes com comentários elegantemente alusivos, nas redes sociais onde me mostro aos outros que sabemos estarem a olhar para nós, que sabemos estar. Deixo de ser troll, os meus amigos já me passam a convidar amiúde para as suas casas, apresentando-me os recém-nascidos filhos, misturam-me com outros amigos mais convencionais, com quem querem privar e imitar. Deixo de ser um troll, um provocador, um pato preto no meio de tanto cisne branco. Foda-se caralho, deixo de ser eu. Mas que sou eu senão o conjunto dos meus hábitos. Encontro desculpas para a minha vida concêntrica no trabalho que à noite faço escrevendo escrevendo e nenhuma merda de jeito sai. Engasgo-me no meu sangue pelo tanto que puxo pela memória coisas do passado para vestir com roupas diferentes, ver se ficam bem num livro. Como Golem pétreo nada faço de jeito que não à base da força bruta nem consigo parar, e é com expressões de pedra que respondo às caras que esperam ver em mim o conforto do seu reflexo. Arrasto-me como lesma no gume de uma lâmina afiada, com a consciência que se divide na dor do corte. Toda a gente parece dedicada em percorrer um caminho e eu de passo ao lado vendo-os passar todos em fila indiana, rumo à morte e eu em vez de caminhar, penso, penso penso, foda-se penso. II Júlio já nem responde aos sms’s. Não responde. Quando a vida lhe parecia tão pequena ainda havia espaço para os amigos, e para os problemas existenciais, e alegrias da gente comum. Quando se dedicava às Belas Artes ainda recorria a mim para comunhão de ideias. Tornou-se polícia. Para a maior parte dos polícias não existe vida fora da sua profissão. Por causa dos horários marados, e porque tudo o resto à parte das excitações de manter a ordem pública, se torna sem relevo e cinzento por comparação com a adrenalina das perseguições da violência e dos tiros. O poder serôdio de cada agente da autoridade afasta os indivíduos de uma aproximação à realidade que se derrete sob uma capa de mentira. Ninguém gosta de polícia e as submissões servis e as simpatias fáceis mais exasperam cada agente que bamboleia entre a gota de poder que sorve e o amargor da manipulação que observa, sente-se puta, usado por calculistas que o ignorariam se não pudesse ser útil no futuro. É a punição que dá justificação ao ar grave e pomposo que cada agente revela quando circula por bombas de gasolina, minipreços e lojas dos trezentos. Se tivesse um ar aproximável seria presa fácil dos abusadores. Ar grave e pomposo, hipertrofia muscular passam a ser parte de si. O polícia é assim alguém que geralmente se leva muito a sério, que se julga em situação de excepção para fazer impor a regra. Amiúde se partilha na mesma esquadra, a caixa do continente, a gaja de rabo grande da roulotte ou aquela cabeleireira que adora fardas e empregos estáveis. Muitos deslocados dos montes e leiras deste Portugal fora albergam-se em Lisboa, numa vida atrás de farda, casteando-se à parte tão próximos dos malandros e prevaricadores com quem partilham o território pejado de redes de influência e de pessoas, de becos…convictos de serem o garante moral da sociedade que lhes paga para usar a violência entre sujeitos, com acesso privilegiado e monopolista à realidade da realidade com a qual pouco regateiam os discordantes. Júlio já só falava de bola ou de polícia. Nada mais lhe interessa senão a irmandade da corporação e a rectidão de uma imagem que contrapõe aos escândalos da noite. O mitra tem de ser enquadrado e o cidadão regulado, o agente está afinal entre os correctos da vida. O conforto financeiro ante a miséria geral, uma dignificação por proteger a vida burguesa, fazem com que se desloque como pater patriae rumo a um assento da reforma, na qual passamos os momentos finais a recordar a vida que se escoa quando fomos príncipes de algum reino e agora somos escudeiros do nosso próprio silêncio. III A discussão à mesa já fazia com que a sua mulher olhasse para mim com o olhar de quem aufere se o outro que parecia ser normal, tem alguma espécie de atraso. Atrasadinho sim sou eu. A convicção com que ele, o meu interlocutor, insiste no seu ponto de vista roça uma profunda adesão interior a uma mundividência, como uma reclamação de autoridade baseada nessa cagança, e também para impressionar o pai, que o escuta. É preciso fazer contas, meter a mão na massa. O progresso é betão armado e alcatrão, fábricas, emprego e nada dessas merdas de letras que servem para nada. Quer lá saber se o Rei da Restauração era o xico ou o manel, isso é conhecimento que nada adianta na vida. Não é útil como a soma dos catetos ou a raíz quadrada do círculo. O mundo é dos que fazem e dos que pensam em fazer. Não é de dos que pensam sobre o que se faz. O interlocutor é professor. A plateia, grave e solene, acatava reverentemente os remates, e ainda pensei ensaiar resposta mostrando as falácias do mundo de hoje. Mas admito, a convicção e pétrea basilar concatenação de argumentos deixou-me desarmado, como perante taxista que diz que os táxis de Lisboa são os melhores do mundo, sem nunca ter saído de Xabregas. Não só o interlocutor estava 110% certo do que afirmava, como ostentava a pairante ameaça de que qualquer resposta por mim dada que não anuísse com a sua postura, só me confirmaria como menino froufrou, alienado saído da universidade com neuras existenciais. Estes maricas de letras devem morar em estufas. Fazer contas que é difícil, eles não fazem. Madraços. Não tenho a ‘auctoritas’ proveniente de um poder público que desdenha as conversas e se hipnotiza com as máquinas, pago apenas o cheque de não saber retribuir em despeito e jactância com que me brindam. Ninguém regateia a um engenheiro o conhecimento de um circuito eléctrico, mas todos acham que a sua opinião é equivalente em quase todos os assuntos de que passou anos a ler a ‘República’ ou a ‘Crítica da Razão Pura’. Por todo o lado se repete que a Filosofia não dá respostas e que portanto isso é equivalente a qualquer resposta ser válida, ergo, as opiniões sobre assuntos filosóficos estão em grau de igualdade entre os iniciados e os que mais tempo perderam a tentar compreender o que outros passaram vidas a construir. Há alguma coisa a favor das Letras? O mundo das ideias é sempre menos óbvio que o das coisas, menos palpável e menos percebido como útil. IV Lembro-me dele na secundária, as marcas estavam híper na moda, e usou um blusão de ganga da Lee até à exaustão da gola se desfiar em fios de algodão murcho e lavado. Quando entrou na universidade eu já lá estava, fez-se melhor amigo até se ambientar. Sempre foi assim, nunca pude deixar de sentir que era muleta dos tempos menos bons. Mas só a mim me posso culpar. Talvez dê demasiado valor à amizade, ou então a minha amizade seja sufocante ou de baixo valor porque sempre de perna aberta. Lembro-me de falar de mulheres que escolhem os amores ou os assomos de acordo com a fabricação prévia do seu paradigma estético. Há homens que são exactamente iguais, em todo lado se vê a igualdade dos sexos, que de tão evidente, só emerge quando este meu amigo se deitou com mãos à vida para pagar as suas despesas. Arrumou o Luís Sepúlveda na gaveta, e ensinou-me algo sobre mim mesmo.
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Junho 2022
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