Joana havia sido meiga em criança.
Foi o choque com aquele que lhe aparecera outrora como receptáculo de todas as suas aspirações de felicidade e vida completa, que mais rudemente escarrou nessas legítimas expectativas. Não podendo aceitar a ideia de que perdera a batalha contra quem antes amara, contra quem não era suposto fazê-la sofrer, transformou a sua mágoa em bandeira para captar atenção e validação, espalhando ao mundo que a quisesse ouvir, mais esta etapa no seu processo de emancipação enquanto adulta, sobrevivente resiliente a todas as canalhices que esta vida cruel lhe lança. Fê-lo, e ainda faz, na serôdia língua do neurolinguisticoprogramês, aprendido em corredores estreitos de formações motivacionais em pardieiros átrios de hotel no meio de outros desesperados por perceber ou rachar. Reduzindo ou extirpando uma das poucas portas de autenticidade que ainda lhe restava, a mágoa. Deixa-me contar-te uma coisa sobre a mágoa. Nada aprendes evitando a dor. Ela, a dor, liga-te ao tecido do mundo, torna-te alguém vivente, sem ela és apenas um fantasma da tua própria consciência. A dor liga-te a procissão de representações ricocheteadas parietal e occipitalmente no teu crânio. É a âncora que te prende ao presente e ao teu ser. Se negas esta dimensão esporrando desculpas metafísicas onde a tristeza apenas aparece apenas como apanágio de quem vê o mundo do lado da vitimização e que nascer fraco, segundo o teu critério, é crime. E o crime de ser-se fraco é não se valorizar e proteger o que se é, ergo, se indulgência se concede a pensamentos que fazem sofrer, ou é estúpido ou fraco. Mas da forma como pensas, são duas palavras que denotam o mesmo. Joana parafraseia Pessoa, mandem as pedras, que ela faz o castelo. Sofrer dói, e as pessoas adultas e emancipadas consideram a dor como um erro de julgamento e juízo. Elas mesmas consideram o amadurecimento como um processo de adaptação ao mundo. Joana, como tantas outras adora o filme Fight Club. Ainda que de um ponto de vista espumoso, porque enfiar penas no rabo, não faz de ninguém uma galinha. Joana adora Bukowski. Embora sempre tenha sido incapaz de ir além do seu zero absoluto, dela mesma. De o aceitar de forma total e sem pingo de esperança a nossa condição de loosers e space monkeys. Falta a Joana a total honestidade do confronto consigo própria, como fazia Bukowski. Mas cita-lo sempre que pode. Ou porque ganha brilho de vida interior com isso, para que outros vejam, ou porque reconhece que quer algo que lhe falta e que está presente nesse autor, a total e irredutível honestidade consigo próprio. Joana e os positivos, aniquilam a parte tensional de uma saudável postura ante a vida, sob uma ilusãozinha que visa o controlo do impacto pleno da emoção, evitando a praia por causa da areia. Controlando assepticamente o seu mundo interior, cada risco um cálculo a partir de uma zona de conforto. Simulacros de si mesmos, Entre nós notou-se que porque o pai não lhe passara muito cartucho, eu era o papalvo nos seus olhos. Eu e qualquer um que a tratasse com consideração ou revelasse interesse. Os altos emocionais ficaram gravados em idades impressionáveis, toda a bem intencionada atenção aparece embotada ante o alto relevo dos tratos menos bons. Joana queria a atenção e validação, sem o compromisso cara a cara que não podia conferir a quem não respeitava, afinal, os moles são estúpidos e aos estúpidos não se deve respeito. Quase todas as pessoas desqualificam a partir de critérios de que nem se apercebem estar em uso nas suas avaliações. Geralmente a ausência de vida interior, a monhofonhice, são garante quase infalível de que não havendo trabalho de introspecção, o indivíduo continua a sua marcha pelo mundo cotovelando os outros com quem se envolve. Escravo de razões que a razão desconhece, porque pura e simplesmente a sua indigência e miserabilidade não dão para mais. Cada um nasce para o que é. Tudo o resto são invenções e ficções para justificar a decisão que já se encontrava tomada por esse quarteto de dâimones, que dita o seu comportamento com a mesma intensidade com que convence da existência ilusória do livre-arbítrio. Mas lá está, se não bate de início, para quê forçar? Para garantirmos reciprocamente as gónadas, para preenchermos com a peça final aquele puzzle da fantasia que desenhámos? Desde quando colocámos em segundo plano as ligações verdadeiras e genuínas que podem, de facto, acontecer entre duas pessoas? Desde que o mundo do relógio pendulou sobre nós? Desde que o autismo se tornou sinónimo de força e deixou de ser uma forma bastarda de alguém se esconder à vista? Sabes, quando o destino ou a providência, a divindade, o que seja, parecem segredar-te ao ouvido de forma sarcástica «-Então, tens a mania de que és esperto, queres mais ou vais finalmente admitir a tua insignificância e impotência, e sucumbir ao desespero de perceber que os teus melhores esforços de compreensão resvalam no rotundo nada? », cabe um ultimato? «Ou te entregas incondicionalmente na nossa mão, sem certezas, sem garantias de retorno algum, e vives em suspenso na possibilidade de algum dia lograres obter amor, ou estás condenado a vogar entre as ilhas do arquipélago do não ser.» No ocaso dás contigo a pensar sobre o que raio pensavas tu saber sobre o quer que seja, especialmente no que se refere a amar outrem. Sabes um caralho, e nem isso. Prostras como recém-nascido as costas de encontro ao chão, e desfrutas do sentimento (que te traz alguma calma) de total ignorância e desilusão. Sentes-te magoado. Recusas assumir responsabilidade. Partes para outras praias , retornando sempre à mesma sabendo que não resolveste a areia. Percebes que és responsável por más escolhas, e percebes simultaneamente que não saberias que outras escolhas fazer. Sabes que era só amor, nada mais havia senão um vínculo a um quid em forma de pessoa. Queimado como a mulher da terra morena, pensei que aprendi a jogar o vale tudo, até arrancar olhos. Come ou sê comido. Já que não consegues deslumbrar ninguém com a tua monótona forma de ser, finge e morre fingindo para que ninguém perceba, especialmente tu, que já nasceste morto. Que acontece quando o jovem ser ao mundo vem com uma mais aguda capacidade de sentir? Sucumbe eventualmente nos anos vindouros, ou adapta-se mutilando-se na espontaneidade do que é? Cria um monstro de Eukenstein, onde cola os membros ao torso e cabeça que vai observando na sua experiência traumática, de forma a que resultem na fuga à dor e à vergonha, como sacrifícios que apaziguem as potências exteriores. De forma a afogar a sua interiorizada vergonha e inadequação. Mas esses virtuais pedaços de cadáveres não formam um corpo grácil. Não, o que surge é uma massa de carne que se move de forma titubeante e que com os anos aparentará reduzir os problemas de locomoção, até ao fim da sua existência. A sua essência tornar-se-à gradualmente naquilo que finge, para longe do que nasceu. O sarcasmo está no que se chama ‘justiça existencial’ em relação ao sujeito, que por apenas ter nascido com menor carapaça ou maior candura de espírito, se torna no simulacro dos seus medos, inseguranças e numa mente colonizada pela violência dos agressores. Os brandos não herdarão a Terra, os brandos herdarão o Inferno no Inferno que a Terra é. Sim, todos sentimos. Mas a forma como a alma é afectada difere de individuo para indivíduo, e nesse ponto se origina a maldição de não se conseguir jamais retirar a lente que condiciona a luz que chega à íris, nem de conseguirá retirar a puta da carapaça que eventualmente formamos para proteger um ânimo ou um coração que de tão expostos não foram feitos para uma Terra de filhos e filhas da puta. Mas de certo ponto, justifica-se. A sobre-exposição da candura esbarra na anciã crença de que a bonomia equivale à tal estupidez. Afinal que não se defende é burro. A lei da selva é vista como dogma reinante, mesmo que a constância monótona e previsível das agressões se vá travestindo de contornos mais subtis. E quase todos se armam com espigões de defesa que podem ser também de ataque. A filha de putice torna-se epidemia ou fila de dominó em que os extremos criam um fluxo de violência, do mais pétreo para o mais aberto à existência, fazendo emergir uma legião de formatados pela estupidez verdadeira, e pela dor, como seara de trigo oscilante num mar de Sol. Há quem lhe chame ‘crescer’ ou ‘idade adulta’. Eu não, eu apenas percebo que me tornei um monstro, isto se comparar o que penso ser agora, com o quero ser. Já para não falar do que fui. Como despir esta couraça que se fundiu com a minha pele e auto-imagem? Como alijar o lastro da estupidez e filha de putice, de outros e minha, e ser o que sempre fui, agradecendo o dom de existir? Como não sucumbir na guerra sem o equipamento de protecção que se tornou parte da minha forma de me olhar? Como ser genuíno, espontâneo e empático quando todos os demais se esmagam uns contra os outros como pretéritos carrinhos de choque? «-But João(...)»-dizia ela em inglês macarrónico-«(…)dont you see i came here just to see you, to be with you?» Algumas lágrimas ameaçaram precipitar-se pelo seu rosto. Não por causa de mim, claro. Para que eu as visse, também. Algo a ver com uma vontade contrariada, ou pior, um medo de que ela suspeitava e que queria tirar a limpo, comigo ou outrem. Algo a ver com o desmoronar de uma ilusão acalentada em dias solitários na sua casa a milhares de quilómetros daqui. Algo nela me havia feito ir além da mera rejeição até à repulsa. E pela primeira vez em muito tempo, recusara sexo implorado por uma mulher bonita e muito inteligente. Mas ingénua na manipulação. Não mascarava de todo as incoerências ao ponto de tocarem as raias da mentira, fácil de apanhar com mediana memória. Não me pareceu ingenuidade até ao primeiro beijo. Até lá parecia-me a reedição da crença de que todos os homens são parvos. O beijo tardio e quase por pena da minha parte, revelou uma bifurcação, não da língua, mas da razão de tanta convencionalidade, ou para simular o atabalhoamento de uma forte reacção ao carácter romântico do primeiro encontro entre os lábios, ou por manifesta falta de jeito, que só pode ter uma explicação, falta de interesse. Um mero encosto entre beiças onde a sua língua se mostrava tímida em sequer passar da linha de caixa dos lábios, como se tivesse medo de soar algum alarme vexante. Respiração burguesa e percebia-se pulsação normal, numa enorme compostura mantida não para condicionar a minha percepção, mas por espontaneidade intrínseca. E era esse o seu dâimone. Convencionalidade agora que o calorzinho do confortável lhe piscava o olho. Ser velho é apenas a conformidade para com o que pensamos saber. E por isso já não vamos a todas nem nos impressionamos com foguetes de bailarico. Confessou que a viagem tinha valido a pena só por causa daquele beijo e por momentos vacilei, afinal era eu que costumava ter esta mentalidade. Fui para casa a pensar que tinha mesmo de ficar quieto, para aqui a queixar-me dos dóidóis que os outros me fazem, e eu a fazer igual. Seria esta a condição humana? Sofrer e fazer sofrer, apesar dos melhores esforços? Mas não, haviam padrões de inautenticidade e manipulação. Manipulação é toda e qualquer tentativa de tentar condicionar a percepção que outro tem em relação a x e ou y. Esforçava- se demasiado para me convencer dos seus sentimentos por mim, de forma a que eu baixasse as defesas. Da unicidade do que estava a ocorrer entre nós. Tentava manipular a minha percepção, e a dela, de forma a sentir-se na fantasia que formulara, justificando a posteriori as decisões que já havia tomado. E no entanto eu só mordia os dentes pois lembrava que todas as minhas escolhas haviam saído erradas, e mesmo apesar de pensar que a vida não nos dá o que queremos mas o que precisamos. E no entanto o sentimento da velha falta de sintonia, de emoção que reverbere em mim, e a lembrança de que o indivíduo, na ilusão do controlo, apenas controla o controlo de se iludir. A desesperante lembrança de que nada posso decidir entre as duas vias de Parménides. Ou é ou não é, e se não é, não se pode falar do que não sendo não existe. Não é tem carga de não ser, e de ausência de valor de verdade. Andamos portanto entretidos a foder uns com os outros, em binómios cada vez mais impossíveis e mais extraneados. Tudo parece aproximar-se da ideia que detesto, a de ‘felicidade adequada’. Como que passando pela existência no meio da estrada pisando a linha branca intermitente que outros borraram no chão para que eu respeitasse. Mas que fazer? Isentar-me não me liberta da renúncia à vida. Ou da renúncia a parte de mim mesmo. Mas mandar-me à água também me provoca a náusea. Parece condenação ou expiação, condenado ao não ser, pois sou o único que sou, Eukenstein, e o resto são muletas. A não ser que uma mão desça do céu e me torne abençoado por Deus de novo. Mas persistiria o prémio por boa conduta, ou outro estupefaciente para esquecer a estagnação?
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