I
Insónia. Sempre dormi bem, que nem pedra de calcária feita de textos de Torga. A meio da noite onde outras almas se preparam para segundos sonos e descanso semi eterno, levanto o rabo da cama e deixa-me lá ir para a secretária brincar com palavras. Publico-as depois. Cansado por demais mas sem sono para voltar a fechar os olhos, vou juntando letras vigilante para não cair nos mesmos temas amargos de sempre. Não consigo não não falar deles, nem de me sentir menor por meter o dedo na ferida. O trabalho de anos encaixotado na dialéctica da tragédia e da música, de Nietzsche. Nunca tive as ferramentas necessárias para pensar assim, tão mais próximo de Schopenhauer e da cruel piada que ele descreve. Mas outros campos se abriram, desde logo o de perceber que coisa esta somos nós, num mundo em que o que somos é ilusão, especialmente de que somos. Como fica a minha responsabilidade para um deus, se apenas sou a ilusão de ser algo diferente de ti, sob pena de não poder subsistir de outra maneira? Como consigo perceber o grau de 'especial' que recordo sentir quando era miúdo e brincava sozinho pelos cantos da casa, de que era um inventor do futuro, perdido em mundos espaciais. Inventando canhões de plasma e laser, robots gigantes operados por humanos tal como via nas séries de ficção científica que davam na televisão. Que significado particular por detrás desta ilusão, e que deus pode ser tão cruel que brinque com ela, só para se rebolar de riso lá nos Olimpos onde assiste à comédia. Mariquices. Cogitando, olhando o aparo de uma caneta que deixa lentamente tinta cair sob a minha mão, escorrendo por entre os dedos aquele negro especial de 10 euros o frasco, limpo aos calções velhos, e levanto-me para ir fazer um café. Coloco o grão no moínho e ao primeiro toque no interruptor, um cheiro a café fresco, como se fosse uma bandeira de esperança, irrompe pela casa, convidando-me, ainda antes de o beber, a ser produtivo e a forçar a matéria ao som da minha vontade. Organizando rectas, semi rectas e semi círculos em sinfonias de significado, feitas para que eu me perceba e não necessariamente para que alguém me aprecie. E penso, porquê esta necessidade de me entender, eu que me trato a mim como propriedade, como um negreiro trataria seu escravo a vender por preço baixo. Para quê entender-me, se continuo a tratar-me abaixo do que acho que mereceria. A lembrança de ocorrer por vezes um ataque de choro, ou um avassalador sentimento de falhanço, mas porquê? Se sou precisamente quem sempre quis ser e consegui todos os objectivos a que seriamente me dediquei? Não faças planos para a vida que estragas os planos que a vida tem para ti, dizia o grande Agostinho da Silva. Escaldo a chávena, vejo o creme do café creme encher até ao rebordo. Queimo ligeiramente a língua ao primeiro gole e me lembro que tomara muito ser vivo humano ser assolado por estas mariquices, que não me deixam esquecer da absoluta contingência do estar por cá, e que talvez isso faça parte da tal piada de mau gosto a que chamas vida. Mas olha, só perdemos o jogo se nos queixamos dele. Até lá, goza com esta merda. Se a complacência do homem fosse natural para com a vida, podia sobreviver mas nunca passaria de pouco mais que res extensa. Toca o som de cuco que tenho no Whatsapp. Quem me está a enviar mensagens às 4 da manhã? II «-Posso ir ter contigo?» Era a Adélia. Respondo «-Fazer?» «-Quero dormir contigo.» «-Ás 4 da manhã?» pergunto eu, não percebendo as aproximações e afastamentos das cachopas. «-Saí agora de um bar com amigas que foram para casa, estou perto daí.» «-Adélia, vai dormir que estás a precisar.» Sento-me à secretária, já com o café frio por ter estado a teclar com ela. Onde ia eu, ah já me lembro, o angst existencial. Como me poderia alguma vez esquecer, não falo de outra coisa. Coloco o aparo ao papel e ameaço umas linhas sobre a inevitabilidade de isto ser um jogo porque nunca repetimos a mesma forma de ver. Ligam-me. Porra. Era Adélia. Epa Adélia, é tarde, deves estar bebeda e a cheirar a tabaco. Quero ver-te e estar contigo, e não demoro nada estou já aí. Espera, estás a conduzir com os copos? Pára já o carro. Não tolo, estou num Uber, 10 minutos e estou aí. Olha que... Porra. Toca-me à porta como se fosse alguém de algum concurso televisivo a atribuir um prémio. Ainda nem entrou completamente pela porta e já me agarrou nos países baixos e morde-me o lábio superior numa encenação de desejo que viu em alguma ópera bufa dos anos 90. Estatela-se contra um computador que tenho desmontado no hall de entrada e que já devia ter ido colocar a reciclar. Partiu o salto demasiado alto e a placa gráfica que por sorte não lhe cortou pele ou tendão. Para disfarçar, começa a repetir que me quer demais, e que tem passado a semana toda a pensar em mim depois do café que tomámos. Que o que eu dissera lhe custara ouvir mas que eu tinha toda a razão. E eu sei lá argumentar com uma bêbeda. Vou-te fazer um café, e vais beber àgua. Não! Vim aqui para te comer como se fosses um pastel de nata na boca de um diabético. Achei tanta graça à expressão, que saiu tão pura e genuína que me passou o mau humor. Lembrei-me que o truqui truqui me viera bater à porta e que isso sempre me deixa bem disposto, como viciado em endorfina que sou. Já que não sei definir a verdadeira felicidade, que vá gozando a química. Tu não estás católica.Devias descansar aí um pouco e depois chamo-te um táxi para ires para casa. Ou vou-te lá meter, se bem que precise de dormir primeiro. Ao pensar alto ela seleccionou as palavras alterando a sua táctica. Sim, tens de dormir, vem, vamos dormir um bocado depois levas-me a casa. Pousei o saco de café e fechei-o para o gato não o mandar ao chão, que depois a cadela faz o resto, trabalham em equipa. Assim que me deito, mete-se em cima de mim e esfrega-se no meu corpo como os ébrios costumam fazer, de forma bruta atabalhoada e descoordenada. Acho mais graça imaginando a minha figura filmada fora de mim, que pela situação. O que me parece ter guiado toda a existÊncia, é relativizado perante todos os pensamentos introspectivos que sou capaz a esta hora. Parece-me que para ter alguma intimidade com ela, vou ter que passar o teste da cópula. Tento excitar-me olhando o corpo dela, para lá da ilusão. As pernas tonificadas e os pés bem feitos, as mamas do tamanho certo e uma carinha de querubim barroco, facilmente a minha língua lhe penetra pela boca dentro como caravela a estrear, e o mosto quente desliga-me de imediato a consciência, Deus toma conta a partir daí. Sei que não tenho forma de ficar saciado e que aquelas conversas pelo meio, são apenas para que o tempo passe mais rápido até à próxima. «-Adélia, nunca sentes vontade de render o teu ego e alijar o peso?» Ofegante e com os olhos entreabertos, abre a boca e não fala. Consigo cheirar as caipirinhas que lhe assassinaram a sobriedade. «-Do género, deixar de vomitar aquelas résteas últimas que temos nos confins de nós, de amargor, de irritação do estômago que só se quer libertar do veneno?» «-Estás a falar de quê?» Pois, nem eu sei. Nem eu sei que quero exprimir, mas que algo... Mariquices. Agora sou eu que não quero pensar no mensageiro que sempre aparece a lembrar-me que algo está fora do carril. Fujo para o meus escapismo preferido. Começo a beijar-lhe a cara, de certa fora invejando os seus olhos que ainda conseguem ver tudo de uma forma fresca. Fingindo ignorar que os beijos são um voltar à carga, vira-me o rabo e diz que quando acordar bebe então o café. Algo na sua cabeça a alerta para a obtusidade do que disse, vira-se para mim, força um sorriso, dá-me um beijo vazio de conteúdo para que eu saiba que gosta de mim, e não a leve a mal ou fique ofendido. Rio-me mais um pouco. Espero que adormeça e saio de casa sem fazer barulho. O ar fresco da manhã sabe tão bem como o aroma quente de café novo, e meto-me a caminho de Belém. Paro o carro perto da Embaixada do Japão. Saio e vou para o lado do estuário, em direcção à linha. Pelos pescadores lúdicos e outras testemunhas do mesmo tempo que partilhamos, de frente para o Sol, que não se farta de cair há eras sobre nós. Em lugar vago, sento-me olhando a baixa ondulação das àguas pelas quais um dia o Rosto de Deus vogou. Não é prisão ao passado que me faz sorrir, mas uma promessa de futuro. E que as coisas não são como queremos. Às vezes a benção vem em forma de vulva que nos enxota para longe.
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Num qualquer corredor de grande superfície comercial, viro à esquerda e entro na FNAC, subo ao lugar onde moram os livros, e vou bisbilhotar as novidades que surgem nas minguantes prateleiras dedicadas à Filosofia. Ano após ano, cada vez mais exíguas, até que se perdeu por completo o lugar que lhe era próprio, coroado por uma etiqueta com a magna palavra ‘FILOSOFIA’.
Ainda sou do tempo em que havia estantes só dedicadas à Imperatriz das ciências, e era até relativamente fácil encontrar trabalho temporário nesta cadeia de lojas para quem percebia de Letras, em particular Filosofia. Nada como um cabrão sôfrego de livros, para os reverenciar e arrumar nos devidos sítios. Agora, encaixada nas ‘Ciências sociais’, parece um eco de religião antiga, dedicada a nerds entusiastas de cultos Jedi. O grosso das estantes e prateleiras é propriedade da ‘Autoajuda’, o que se compreende pois as pessoas procuram o evangelho e a receita e não a dúvida e o espanto. Defendo que devia haver uma prateleira para ‘Processos revolucionários em curso’ e lá estariam Platão, Kant, Hegel, Nietzsche e Kierkegaard. Mas, a propaganda optimista do ‘The secret’ e ‘power positive thinking’ infectou esta merda como vírus polígamo. Vejo os novos títulos, quem fez as traduções, se têm rigos científico ou se é mais algum macaco a traduzir para os trocos da bucha. «-João?!» A voz por detrás de mim arrancou-me do torpor pseudo-intelectual no qual avaliava uma tradução de merda, de uma grande obra. Nem os brasileiros respeitam o acordo ortográfico. Só mesmo os tugas para vender a mãe à prostituição e ainda pagar para a ver num peep show, pelo preço de tabaco e bagaço. Que merda fizeram à língua. Virei-me para trás, era a Raquel. Ora real foda-se. «-Raquel!» - exclamei eu, lançando-me com vigor a ela, mais para usar a desculpa de um abraço para receber o seu ainda perfeito 36 no meu peito, que por um reviver de uma real ligação com uma antiga colega de liceu, que nunca próximos alguma vez havíamos sido. À vontade com o meu exagero emocional, congruente com a sua fácil capacidade de pantomina, abraçou-me também com força, gritando-me no ouvido «-Oh então, como estás?», lançando a quente expiração nos meus lóbulos e procurando com as mãos a minha pele além das mangas da camisa arregaçada, massajando a minha pele nua com as suas mãos frias, numa velha e batida táctica. Pela estratégia adoptada percebi o grau de sofisticação da donzela. Qual o arsenal presente nas mãos do inimigo. Mantinha algum do seu encanto juvenil, mais por esforço de ginásio e dietas de esforço, que por alguma bênção genética. Pouca celulite e dietas maradas que haviam deixado marca em estrias e numa cara cuja pele se agarrava demasiado ao crânio. A conversa levou facilmente a um café, e o café a um jantar, e o jantar a um almoço no dia seguinte. A atenção dela e a conversa da treta não parava de fluir, tanto que o santo, eu, desconfia. Fazia perguntas para ela falar de si, e quando a via abandonada ao assunto, introduzia pequenas questões que de outra forma ela não revelaria por detrás do acto representado. Consegui então perceber que estava numa fase de ressalto que é aquela que no basquetebol, mete todos a olhar para a bola a ver onde ela vai cair, e que os mais aptos saltam para abreviar a espera. O marido havia feito um upgrade, trocara a doce Raquel por uma mais nova, de melhor feitio, mais bonita. Ela sentia isso como uma traição da vida, não propriamente falta do gajo, mas despeito por a ter trocado apesar da exagerada imagem que tinha de si mesma. Como se atrevia a vida, essa puta, a abanar o shaker ou os dados e a dar-lhe outro naipe para jogar? Ela achava que tinha colocado o visto nesta parte do checklist do plano de vida, e o gajo larga-a por uma bailarina de ballet. Mas olhava o espelho e via que ainda tinha umas palavras a dizer na língua do mercado da carne. Infelizmente só falava préacordês e ainda tinha algumas coisas a aprender e reajustar. Uma delas era continuar a achar que os homens são uns tolinhos que deixam para trás Esparta por duas pregas de carne. A outra era que ao ser demasiado solícita e dar demasiada atenção inicialmente, seria interpretado como arrebatamento amoroso e não como tentativa de convencer, a metodologia da Célia, de novo. Depois do almoço, insinuou que eu devia levá-la para casa. Certo. Tenho uma cama de beliche, podes gritar mais perto do céu. Riu-se. Ao subir as escadas mandei-lhe uma palmada no rabo e ela disse «-Ainda não.» Não percebi e fiquei em curto circuito a pensar no que significava. Chamando-me com o encolher de indicador, beijámo-nos sofregamente e quando me sentiu entregue disse-me «-Bate-me!» Dei-lhe uma palmada no rabo. «-Não! Na cara!» Ri-me. Encostei a palma da mão e empurrei-lhe o rosto. Ficou com uma cara sombria e claramente irritada. «-Bate-me com força cabrão, deixa de ser um conas.» O apertar-me entre as pernas acompanhou-me a perplexidade com a frase e acelerou o ritmo simulando ao mesmo tempo mais desejo com a cara que se tornou mendicante. «-És parva, para depois ires fazer queixas à polícia de que te violei e bati e merdas?» «-És um palhaço, sempre foste e serás, ou me bates, ou me vou embora, não te preocupes, eu gosto assim. Não faço queixa nenhuma.» O ultimato enjoou-me imediatamente. Saí de cima dela, mandei-a vestir-se, e ir para casa. Perplexa, agora ela, avaliava se eu estava a sério. Vendo que sim, puxou umas lágrimas e agarrou-se a mim, pedido que a desculpasse, há muito que não estava com ninguém e talvez possa ter exagerado na aspereza. Eu disse que não havia problema, mas que se fizesse ao caminho. Apertou-me nos braços, e desta vez chorava copiosamente. Outra arma do inimigo que me comoveu, como é normal nestas situações. Abracei o ser humano no outro lado da condição, e como não ficara flácido, ela sentou-se em cima de mim com um prolongado beijo sôfrego. Quando ficou por baixo, nem sei bem porquê, dei-lhe o que me pedira, um estalo bem aplicado na bochecha e maxilar, de Este para Oeste, mas no regresso, a mão foi de novo ao mesmo porto e as costas da mão repetiram a dose, convidando um espirro de sangue a sair em direcção à parede branca do meu quarto. Ainda nem a mão tinha parado o movimento e já eu tinha o sombrio pensamento de que estava tramado. Se ela faz queixa de mim, faço o Doutoramento em Filosofia, no cárcere. Acaba-se a vida ‘normal’ passo a ter cadastro. Pensamentos de merda que me ocorreram em vez de olhar para o 36 que continuava perfeitinho. Ao olhar para ela, contorcia-se como alguém que estava a surfar nas ondas corpóreas do orgasmo. Afinal estava a ter um orgasmo. E eu mal cansado ficara, deve ser de correr todos os dias. Deitei-me ao seu lado, e fiquei a olhar para ela, não com o amor com que outrora fitava outros cadáveres, mas enfeitiçado pela paz que exprimia o seu rosto. Mesmo o sangue escorrendo do lábio aberto, o comprazimento expresso na sua expressão esporrava calma. Quando se lembrou que estava acompanhada, olhou-me com os olhos mais ternos que alguma vez vira nela, e fazendo-me uma festa no rosto disse: «-Tão bom.» I
Farto de estar em casa a ler Dante, e a esmagar tostas de queijo crime derretido pelas promessas de enfartes futuros, resolvi ir pela manhã correr num campo isolado. Os coelhos vespertinos fugindo à minha frente antes de mergulhar pêlos tufos de erva já meio seca. Gosto de vir cedo para ver a natureza a acordar, lembrando-me das mil e umas tragédias onde a alegria não entra, de presas predadores, infanticídios e outras merdas que os optimistas escolhem como mantra, para poderem viver neste mundo, não o olhando de frente como o horror infernal que é. Tu que lês, no conforto confinado do sítio onde estás, tens a sorte de não fugir de tudo o que tenha garras ou dentes. Sais à noite com amigos e queixas-te de conjuntura política e da fome no mundo, tragando uma bela bifana, e pousas a cabecinha na almofada para dormir, na satisfação de saberes que és uma boa pessoa porque te preocupas com a questão do mal. Ainda era Nietzsche um ‘puto’ e já se perguntava se haveria um pessimismo da abundância. Numa sociedade que tendo tudo, tenha ainda de contactar com o horrível para poder dar valor ao que tem, confrontando o horror da existência como maior inimigo e dizendo-lhe ‘-Eu vejo-te, mas não me determinas.’ Que merda de pensamentos para se ter quando se corre. Calei a matraca interna e liguei os phones, voltei a desligar e colocar no bolso. Quero ouvir os pássaros e aproveitar enquanto a merda dos aviões não voltam, consumindo o oxigénio da atmosfera e libertando ruído. O ar fresco da manhã beijando os contornos do meu rosto, e senti-me como há muito não me sentia, livre, algo me faltava, procurei, vasculhei os bolsos atabalhoadamente, para manter o equilíbrio da passada larga, , procurando algo incerto, e só depois me ocorreu, havia deixado o ego em casa. Pior teria sido se fossem as chaves de casa. O cabrão ficara em casa a dormir, eu saíra cedo demais para os seus hábitos. As pernas cederam ao fim de meia hora, os pulmões não. Esses nunca me deixam ficar mal, o quer que seja que lhes atire, correspondem sempre à altura, como dois bons cavalos de carga. Só quando o ar inspirado é sentido como enxofre ardendo por alvéolos fora, é que fica claro que há um fim possível da minha individualidade, e do especial que sinto ser, por ocupar um espaço único num mesmo tempo, só ‘meus’. Tal como o ego que deixei a dormir em casa. E tão livre me senti por ter abdicado de todas as lentes que deixava que me determinassem, que voltei a sentir leveza no trote entre as veredas numa planície perto do sítio onde o Tejo vem morrer. A liberdade que procurava, isto é, as condições óptimas, incondicionadas, para me exprimir, individuar-me em todas as variáveis que me tornam único e diferente de ti, sem pensar em gajas, erros, falhanços, insuficiências, sem arder no desejo de ver além das minhas próprias lentes. Para lá do que é vedado ao homem, e só possível através de um terrível esforço de introspecção. E de novo, o mundo pareceu voltar a olhar para mim como filho, como especial. Algo digno, na imensidão anónima do espaço e no anonimato imenso do tempo. Perdida a querida visão teleológica, regressei ao húmus original, normal, ao meu eu mais eu, mais elevado, de novo o Sol voltou a brilhar. Sei que me lendo, achas que são só achaques de gajo sinuoso que passou muito tempo a ler e a perceber mal, mariquices. Tenta imaginar uma vontade profunda de seres quem és, como se te envolvesses com um oponente em luta corpo a corpo sem quartel, onde ambos lutam por viver. O meu ficou em casa, após anos de vitórias, ficou finalmente a descansar. A sombra cancerígena que tão longamente me toldara o pensamento, dissipa-se a alturas do meio dia, e volto a sorrir com a bênção de estar vivo, depurado. Aqui. Contigo. E bastou apenas um pequeno ceder, um pequeno libertar, um pequeno abdicar da ilusão de controlo, que me controlava. Aceitar a morte que é viver, e olhar o monstro de frente, do sentido ser o que lhe quisermos dar. Aqui. Contigo. O milagre diário, só morto pela familiaridade. Apetece-me jurar nunca mais me deixar ser familiar, com ninguém, emprenhado na missão de me fruir a mim mesmo, mas isto é um inferno, e no Inferno testam-nos a ver como somos com outros. O restolhar da erva parece ser a resposta de contentamento indiferente que o mundo me dá a estes inóquos pensamentos de filósofo aprendiz. II A Érica passa por mim. Nem dei por ela, senão quando a uns metros de mim. Rindo-se, diz os bons dias e vejo-a passar com aquele rabo-de-cavalo oscilando em semi-círculo consoante as pancadas que os pés amortecem no chão. Entre a cabeça e os pés fica o rabo no qual perco o olhar tempo suficiente para ela se virar para trás e me ver olhando para ele. No mesmo instante em que tropeço por não ser possível manter o equilíbrio a correr, ao mesmo tempo que não se vê para onde vai. In extremis recupero o equilíbrio e por pouco não mergulho como coelho num tufo de erva. Se tivesse trazido o meu ego teria ficado envergonhado com o que pensaria de mim, agora que me via como um qualquer, a olhar-lhe o rabo, a reifica-la com desejo pelo apêndice adiposo. Nem me passou pela ideia, e continuei a correr imperturbável, até chegar ao local onde calculo que tenham estado as ruínas da antiga ponte de Sacavém registada por Francisco de Holanda. Gosto daquela zona e imagino quantos episódios de condição humana ali ocorreram ao longo das eras, que se sobrepõem umas às outras como folhas mortas após as estações. Nela solto a minha imaginação, erotizada pelo passado possível e pelo olímpico desfiar do tempo, que sai a correr pela planície como cão sôfrego, entre espectros de possível dos mortos que outrora por ali gastaram vida nesta Terra girando em torno de uma estrela, em mais uma volta. Vejo o cimento velho, gasto e amarelecido como pele de geronte, imagino esta zona, sem aviões, internet, quando a vida dos lugares era recheada de uma liturgia geográfica mais próxima do mágico e não tão crua e despida como a vida despida de encanto como é hoje. III Sem me aperceber, a Érica tinha voltado para trás, e com um riso jovial quando me vê com os passinhos curtos e atabalhoados com que fazia a inversão de marcha para voltar para trás, me pergunta se já vou desistir. Se tenho trazido o ego, já estaria a magicar que se me dá conversa depois de me ver claramente a olhar seu rabo, quase mordendo o lábio de desejo e luxúria, é porque quer algo. Como que se por me ver olhando com deleite os dois perfeitos cabos glúteos na viagem para Sul, com o mesmo deleito que olho ruínas e imagino vida passada, imaginando vida futura chafurdando naquelas nádegas, é porque só pode querer à viva força oitenta e três quilogramas de mim em cima dela irradiando calor e suor. Refogando ambos os corpos em lume brando à luz de uma janela virada para Oeste, para o mar, numa boa hora e meia em que se mexe o caldo, pronto a servir em tijela larga, que é o meu actual período de refracção, para voltar a mexer de forma a que por fim fiquemos ambos a arrefecer olhando o tecto, exaustos exangues. Ela diz qualquer coisa que não percebo por causa da distância, e seria rude continuar a correr não ligando ao que ela me queria dizer. Faço nova inversão de marcha e rio-me não sei de quê, chegando à sua beira e digo que não percebi. Ela responde: «-Estavas a ir tão bem, porque voltaste para trás?» Eu respondo, «-Não vês que estava a ir para Sudeste, e que tudo já foi descoberto há quinhentos anos?» Fazendo tábua rasa, responde «-Há sempre algo de novo a descobrir naquilo que já foi descoberto. Devias ser mais crente.» O diálogo não fazia algum sentido, nem mesmo para mim. Apenas o seu olhar terno e interessado por criar e manter uma ponte comigo, como que unindo a margem de um rio semelhante ao que passava ao nosso lado. «-Há, mas sou. Se calhar sou é demasiado exigente querendo que todos os momentos sejam tão especiais, celebrações de vida, mas diz-me que há de especial no Oriente, que todos querem há anos ir para lá?» «-Um sítio onde me vais pagar uma água com gás, que se calhar passas lá muitas vezes mas não vês.» Visava nitidamente que eu acedesse pois o desafio era lançado como plano B, caso eu não fosse fácil de convencer com a sua atenção, apelava ao meu orgulho masculino de conhecimento da realidade física que me rodeia. Onde fica o poço, o regato, o covil do tigre, os ninhos das aves comestíveis, as silvas prenhes de amoras silvestres. O cafés pastelaria ignoto. Eu respondi «-Está certo, estou com sede, portanto deixo-te pagar uma água que trazes dinheiro de certeza nessa bolsa em torno da cintura, que eu só trago as chaves presas ao cordão dos calções, arrebanhando-me a curta púbis pelo lado de dentro.» Era suposto ter graça. Riu-se ligeiramente. Responde, «-Podemos resolver de outra maneira, mas se calhar não é justo por causa da tua idade.» - aqui o riso foi audível numa espécie de provocação marota um pisar de risco que a familiaridade não permite, nem a irreverência deixa de exigir. Procurava claramente um gatilho emocional de um qualquer pórtico de reacção meu. «-Minha idade?!Fazemos assim, o primeiro a lá chegar, não paga. Paga o último. Onde é?» «-Perto da Torre Vasco da Gama.» Epá, ainda é um esticão, penso eu, sobre o cheque que a boca passara e que o corpo teria de pagar. «-Ok, vou contar até três.» disse eu, iniciando a contagem e preparando-me para corrar rápido. À entoação de ‘um’ ela dispara a correr desenfreadamente à minha frente como se a meta estivesse a cem metros. Fico atónito pela charmosa falta de lealdade, claramente revestida de uma intenção lúdica e intimista, e ainda me ocorrem pudores para continuar estoicamente a contagem, mas desconhecia o estado físico dela, tem corpo atlético, mas raios, sou um homem. Mas tais pudores só aumentariam o fosso da distância e não gosto de perder nem a águas com gás. Trezentos metros passados de corrida acelerada, o monsieur joelho começa-se a queixar da vida tal e qual o cabrão do ego se queixava de tudo o resto, sempre nas piores alturas, só para me humilhar, puxar para trás, reconduzir-me à zona de conforto onde podemos envelhecer mediocremente, todos juntos. Mando-o calar-se. Que é incómodo, uma birra de joelho, ignoro concentrando-me no belo rabo que à minha frente foge para que o persiga, tento não pensar no rabo afinal, porque é imperioso que controle a respiração ritmada. Rio-me sozinho nesta reedição de Marte versus Vénus e quando o meu joelho desiste de se queixar, e o ar fresco já não arde por dentro, acelero, passando por ela tão rápido quanto ela havia passado por mim previamente. Passei por fortes de guerras passadas rios navegáveis até há pouco, fábricas que deviam ser museus pelas vidas que nelas arderam incógnitas, pelo troço rodoviário inaugural de um Portugal passado, corria por veredas de História que deixava para trás, para longe, rumo ao Oriente. Nem era a promessa de vagina, alma mater do homem dono de si, no final da meta que me movia. Apenas a novidade e frescura da paisagem que passava como caleidoscópio, semelhante ao que recordava, mas tão diferente, era o olhar que estava diferente, e só por isso era o motivo de regozijo, afinal quantos de nós nos podemos dar por sortudos de renovar a forma de olhar para as coisas, as gentes e as palavras? O soalho de madeira dos passadiços começou a amortecer as minhas passadas e soube então que um pequeno sprint me colocaria em breve na meta. Lá chegado, ofegante e bem disposto, olhei para trás. Nem sinais dela. Quarenta minutos de corrida confirmei no relógio. Fora o tempo antes de a ter visto. Devo estar melhor que o que pensava. Quinze minutos de espera e por fim lá ao longe lá vejo a silhueta dela, a passo, e quando se apercebe que está em horizonte visível recomeça a correr, para não dar parte de fraca. Neste ano do Senhor do nosso confinamento, Érica chega ao pé de mim, por entre uma pequena multidão não confinada, uns tirando fotos com poses para redes sociais, e enchimento de egos não deixados em casa, outros pescando pobres taínhas com sabor a óleo, e ri-se. «-Tu és batoteira.» disse eu. «-Sou, mas como perdi, pago eu.» disse nitidamente alegre, pegando-me na mão e levando-me, para o que presumi, o tal café de que falara, realmente invisível porque por detrás de uns pilares, muito mal posicionado para estabelecimento deste tipo. Uma ou duas mesas de esplanada onde sentados podíamos ver uma nesga de estuário com Montijo ao fundo e outra nesga de Torre, onde o estandarte nacional dança orgulhoso, comido pelo Sol armilar. «-Corres bem.», disse eu, antes de meter a garrafa à boca. «-Corro, faço-o regularmente. Então agora, com a virose, os ginásios estão fechados e eu tenho tendência a ganhar peso.» Respondi, armando-me em entendido : «-Correr em estrada é menos lesivo para os joelhos.» «-Acho que na tua idade tens de ter cuidado.», disse, provocando de novo, rindo. Ri-me também. «-Não me digas que é a idade, ou o correr mais que tu, que vai ser o teu problema comigo, sua batoteira.» «-Não tenho nenhum problema contigo, pelo contrário. Que estavas a pensar ainda há pouco, quando estavas a olhar para mim?» Tinha de mostrar-me que me tinha visto, e que há outro sentido para o facto de lhe ter mirado e apreciado ás nádegas. «-Estava a pensar que queria passar a minha língua por todas as curvas do teu corpo.» Riu-se. Pousou o copo , descruzou os braços, e olhou-me, de certa forma aliviada porque tomei a iniciativa indo directo ao assunto. «-E isso é assim? Largas essa bomba e ficas a olhar para mim com essa cara tão bonita?» Chegando-se para trás inconscientemente como que abrindo um amplo carreiro como o que acabáramos de correr, entre ambos peitos e bocas. Só a opção por ‘cara’ e não ‘rosto’, me lembravam que a língua de Camões era a sua segunda, e aqui e ali uma pronúncia tropical numa vogal ou outra, deixava antever o castelhano que lhe era natural. Lembrei-me por momentos do enconado eu de 16, 18, 24 anos, que tentaria fazer-se de difícil, ou a faria vir até mim, porque sempre gostei que as mulheres me perseguissem tanto como eu a elas, mas apesar de teimoso, aprendi tardiamente que isso só nos filmes. Deixá-las ficar com os jogos e com a ideia de que são o prémio. Que têm de sentir que controlam a interacção, que quem persegue é quem quer e quem quer tem menos poder porque carece de algo que precisa da aprovação de outro que só a dá se quiser. Submissão a uma vontade externa para satisfação de imperativos internos. O meio termo são estas quase claras indicações de desejo. Antes que o macaco ruminante interior prosseguisse com mais verborreia que não cessa lancei-me na sua direcção, não cessa de falar, retirando espontaneidade a toda e qualquer acção. Afogado na minha massa encefálica assola como mosca africana na boca de cadáver, todos os pensamentos, afinal o ego ficara a dormir, mas deixara o primo afastado na tarefa de tentar sabotar a minha entrega ao presente. Ou seria eu? Parte de mim, outro, me puxando para a eternidade? IV O sabor quente e doce da sua saliva, as gotículas de transpiração no seu lábio superior esmagado entre os meus, com minha língua afagando os seus dentes certos e branco esmaltados, em breve ambos os corpos tomaram conta e suas mãos me percorriam o corpo, enquanto eu a despenteava entre respirações cada vez mais aceleradas. Ela perguntou, «-Sobes?» Acenei que sim. Deitada na cama deixou-se facilmente apartar dos suados leggings desportivos que arranquei ao mesmo tempo que as sapatilhas da Decathlon. O suor dos corpos quentes dançou sobre nós sem qualquer pudor de higiene bacoca, para não estragar a celebração de vida. Em breve os aromas misturavam-se com os gemidos e abraços, e dedos rasgando carnes e pele um do outro, como que cada um puxando o outro para dentro de si de forma a preencher um vazio metafísico e redentor. Para vencer a cisão de um mundo ilusoriamente apartado. Apartado como a minha língua lambendo-a de baixo acima, com o clitóris rasgando a extremidade molhada que ao primeiro toque provoca pequeno frémito incontrolável, sem traumas, jogos, sem me ver como peça no seu puzzle. Arrastada rio acima como barca do Nilo, nossas bocas se reencontram e dançam por cerca de 48 horas interrompidas apenas para beber água e deixar arrefecer os corpos sob pena de asfixia ou golpe de calor. Sem sair da cama os gemidos dão lugar a exclamações na língua de Cervantes de mares quentes. Tal como a minha língua foi sendo rasgada ao meio pela saliência da sua vulva, assim o Tratado de Tordesilhas dividia de novo o mundo entre dois poetas ibéricos, o meu corpo e o dela. |
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Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
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