I
Como todas as que querem estar na moda, no que consideram o Zeitgeist, tatuagens não adivinháveis sob os panos da roupa, com ridículas simbolizações de supostas mensagens que mandam para o mundo sobre o quer que seja que acham que são. Esta tinha um dragão no braço esquerdo. Feito estúpido perguntei-lhe o significado. Respondeu qualquer patranha obscura como que me convidando a insistir a desvendar o segredo tão importante por via de submissão e cortejamento. Serem criadas a achar que Deus é mulher, dá nisto. Como últimas bolachas do pacote, acham que os homens são uns imbecis, incapazes de ler as entrelinhas do seu comportamento. Territórios incógnitos há sempre, mas uma vez percorridos algumas vezes, uma é semelhante à outra. A sua imagem projectada ao mundo revelava inteligência prática, por saber o que funcionava. Não por originalidade mas por efeito de contágio. Uma ideia daqui, outra dali, e a frankensteina personagem emerge para cobrir algo de diverso que vive debaixo da máscara. O prémio dela era o olhar de aprovação que via na cara dos outros. Incapaz de se ver a si mesma a boa luz, precisava de ver nos olhos dos outros a aprovação que não se conseguia dar a si. Em casa chorava sozinha e amaldiçoava o mundo amargo em que vivia e pela pessoa que não conseguia deixar de ser. Por isso erguera uma máscara. Para mascarar o que não conseguia mudar. Nesses momentos esbofeteava-se e revitimizava-se com impropérios contra o ‘mundo’, essa entidade abstracta que tem as costas largas em relação a tudo o que permita alijar as responsabilidades pessoais. Eu puxava por ela, fazendo perguntas que expusessem o indíviduo além da máscara, a sua forma de ver as coisas, a sua forma de pensar. Nos olhos dela eu via que ela achava que lhe fazia perguntas por estar hipnotizado, para mostrar interesse nela de forma a cativar. Mas ela, outra viúva Alfa, já ouviu todos os discursos, todas as canções do bandido debaixo do Sol. Eu era só mais um, inadequado, apto para arder no fogo do seu solipcismo de rã que incha para ser boi. É um preço que pago, eu sei. Por esta atenção, que a vaidade das cachopas interpreta como vontade de sedução e por isso me desqualifica, ficando eu com a superioridade moral em surdina de saber que a peça que desempenhei sempre me traz o que quero, a conquista do território alienígena que é a mente da deusa escondida em cada mulher. O questionar heterodoxo camufla-me como inadequado jogador do Jogo. Mas nas poucas respostas honestas que obtenho, mapeio a casa psíquica do interlocutor. A linguagem, os ritmos, os padrões, as intenções, os esquemas. Dou-me até ao trabalho de analisar as fotos antigas nas redes sociais, os trejeitos, a evolução no decurso dos anos, as expressões nos olhos. E nela era bem visível o grau de elaboração da sua personagem. É assim que se vê a personalidade de alguém. A falta de carácter de num mundo que se acha ter sido cruel para nós, devolver o favor a outros, que nada tiveram que ver com isso. E no processo, justificar que se são íntegros, deviam ser espertos, que o mundo é um local competitivo. A personagem de Joana era tal e qual a máscara que Joana coloca na cara para parecer mais nova. Uma farsa, um logro. Um enganar os outros para se sentir bem consigo própria. Mas chamam-lhe cosmética. Cabras, perdão, mulheres com demónios, sem personalidade que se justificam pela falta de esforço moral, pelo simples facto de meter as culpas no ‘mundo’. E depois postam nas redes sociais frases motivacionais e advertências a vampiros emocionais. Não é hipocrisia, porque para ser, teriam de ser conscientes da contradição. Não são, e admiram-se que alguns homens as tratam como tolinhas. Claro que Joana tem o direito de me ver como um paspalho procurando vulva. No seu mundo, pequeno, não cabe mais nenhum tamanho. Tenho de prosseguir com o meu logro, se se sente observado, o objecto de estudo altera o comportamento. É imperioso que jogue em casa. Mas também não é justo da minha parte, eu sei. O indivíduo é mais que os seus defeitos. II Queixando-se, vangloriando-se, que tinha criado as filhas sozinhas, perguntei se o ex marido não tinha ajudado. Disse que sim. Então não as criaste sozinha, ele é que não as quis criar contigo por perto. O tipo cumpria com o que a lei prescrevia, mas não era suficiente para ela. E a história que contava a quem a ouvia, colocava-a no centro de uma injustiça de boa luz. Que era difícil criar filhos sem o apoio de um parceiro. E eu respondia que os direitos eram iguais, ela podia ter largado o marido, mas não preferiu azucrinar-lhe o juízo até que ele escolheu sair de cena. Que não podia dar-se ao luxo de querer ter o ex marido ao mesmo tempo agia de forma a que o afastasse. E ela dizia que era melhorar os defeitos dele. E eu perguntava o que fazia ele para melhorar os dela. Ela, Joana, começou a ver que afinal eu não era daqueles que a engolia por completo sem antes ver o que estava no copo. Que daria mais trabalho que validação. E então havia que reduzir-me dizendo que eu era negativo e tóxico. Eu ri-me e disse-lhe que em nada poderia inferir isso de mim, mas se lhe dava jeito que não me importava. Continuei dizendo que devia dar-se por contente por ter podido dedicar-se a criar o seu património genético, nem toda a gente consegue fazer o mesmo. Que as queixas dela derivam de achar-se a última bolacha do pacote, e que o mundo só é mau por não concordar com ela. A conversa começando a sair dos terrenos que ela julgava controlar, tornara-se desagradável para ela. Havia que descartar-me como inadequado e com a postura de que eu fizera bostada e não teria por isso acesso ao pito dourado. Os restantes à mesa pediram que ela cantasse fado, ela acedeu e aproveitou a oportunidade para eu me calar, agora que todos os olhos estavam nela, como ela gosta.
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I
Os telhados de chuva zincavam a tua paixão corroída pelas dores do pó. Continuo observador das equações prenhes de intermináveis variáveis, olho cada mulher com quem me envolvo como uma manifestação de Deus que me olha de volta através dos olhos de cada uma que olha para mim e interage comigo. Pouco mais que robots cartesianos filhos de um deus enganador. E finalmente vi ontem o que Deus me queria mostrar. O reflexo da minha fraqueza cuspida na corrida a que me entrego para a fornicação, para me perder nela, na mulher, esquecendo-me de mim ou de uma qualquer verdade fatal contemplada antes de estar vivo. Que horror é esse de que fujo, em mim ou de onde vim antes de nascer? Como estátuas de barro nos envolvemos na decadente dança da cópula, e enojo-me com o olhar surpreendido da alma que me vê, precisamente porque quero estar sozinho a observar. A verdade do seu olhar revela a mentira do meu, salva-me o orgasmo. Esperando por elas, de forma a enganar-me a mim mesmo, como se os momentos em que o corpo se contorce e alivia de uma tensão que logo volta, fossem apóstolos de uma eternidade de que se foge. Coitadas das cachopas assim usadas por mim. Castigo-me a mim mesmo amando-as, como se o meu desgosto pagasse a sua reificação. II Por vezes o deus enganador lá tem pena de mim, furtando-me ao sal da Terra. Ao amargo cloreto de sódio no meio das coxas de mulheres de pouca qualidade. Leia-se, cheias de demónios por elas vistos como anjos com cornos e pernas de cabra. Vejo os defeitos nelas e nos outros, só até ao momento em que amo. Com a clareza e simplicidade de criança. E desejo a fundo que sejam o melhor que lhes é possível. Ao mesmo tempo que tento perceber a máquina que lhes funciona por detrás dos olhos. Arrogante e orgulhoso que sou, jogo-lhes na cara como funciona essa máquina demoníaca, mas todas sem excepção convencidas de que são inteligentes o suficiente para verificar que sou louco, desdenham. Não se podem dar ao luxo de ver. Tolinho, eu, penso que consigo decifrar o código, e ganhar-lhes no próprio jogo. E de repente, percebi porque perco sempre. Porque me interesso. Interesso-me porque sinto. Sinto porque as uso com o meu frágil ego. Não chega suplantá-las em intelecto. Há que aniquilá-las moralmente. III Assim era Joana. Não fosse mulher, e seria um daqueles gajos intragáveis que só conseguem ter amigos com menos carácter ainda que eles, pelo fascínio da violência ou da falta de cobardia. Ou talvez não. Para as amigas ela era uma leoa aformigada, uma lutadora nesta vida cruel de primeiro mundo, onde uma leve tontura é cantada como decapitação. Forte, esforçada, lutadora. Para elas. Para mim, triste alma perdida na árdua batalha de desmantelar um homem, dia após dia fodendo-lhe o juízo em trabalho de sapa psicológico, só para ter o gosto de eventualmente o alterar, conseguindo assim a satisfação de saber que se influenciou alguém. E assim que o consegue, se segue o desprezo, por aquele que trucidou, ter claudicado, afinal se ela o vence, ele não era forte o suficiente. Porventura, alguns rebelam-se interiormente e dizem basta. E mandam a gaja ir dar uma volta. Totalmente dedicada em dedicar a vida a infernizar o ex marido que pela saúde dele, dela se afastou. Joana dedilhava-se à noite com torpor erótico numa fantasia de si própria como esta força contra o mundo tão cruel que a astrologia reflectia. Lutadora.Esforçada.Mãe coragem. Era a personagem que representava. A amiga em comum dizia maravilhas dela, conhecendo-a apenas de um local de trabalho partilhado em tempos. Quantos pederastas, estupradores e assassinos não andarão por aí à solta, a quem apertamos as mãos e dizemos os bons dias. Só conhecemos o outro pela superfície do convencional. É aí que eu entro, sou bom a revelar o que há debaixo do verniz, com a minha prosápia estéril. Pouco ou nada sabemos dos outros além das personagens que todos representamos. Sou bom a representar, a fazer emergir o Mr. Hyde de cada um. Não gosto, mas a vontade de saber sobrepõe-se. De ir ao limite e perceber de que é feito o outro. Joana queria a minha atenção. Saber que outra alma dependia de cada palavra sua. Atenção gratuita sem ter que dar nada em troca senão umas promessas vagas. Não é o método que me espanta. Mas a facilidade com que aplicam sempre as mesmas avaliações serôdias. Queria saborear com a língua o doce sabor da liberdade que vem com o sentimento de se ter opções. De se saber em posição de escolha. Era assim que seus olhos brilhavam quando olhavam para mim. Como um artigo com utilidade. IV Andava com outro, com quem concebeu um filho que já era mórula no seu útero quando me conheceu. Mas ainda assim não desdenharia em ver-me arder no seu altar. Porquê? É esta a pergunta mais interessante. Porque sou codependente? Porque me interesso? Porque sou curioso acerca da natureza dos outros? Ou porque fui educado a mirar a natureza maravilhosa da fêmea, esmagado pela sua divindade. É isso, quebro os ídolos pelos pés de barro. Porque a alma é uma dádiva sem manual de instruções. A dona do útero captando recursos de machos diferentes que assim também propagam genoma. A mulher é o portal da vida, é natural que se sinta deusa, ainda que não a produza sozinha. V A conversa decorria entre garfadas que eram como as vagas atlânticas entre as quais Joana se permitia infiltrar a sua personalidade ensaiada, e condimentada com uma resolução sem quartel, só visível para os outros, tal como os collants negro baço sob saia de xadrez desbotado um palmo de Goa abaixo do joelho. Artista de maquilhagem, sabia elevar o seu aspecto a alturas que o betume facial e tintas ocre permitiam. A diferença entre normal e bonita joga-se nesta atenção aos pormenores. A cor certa no local certo das pálpebras, o escarlate adequado e a base a tapar todas as imperfeições do rosto, como que uma empreitada paga à hora de aplicação de estuque e argamassa. |
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