«-És um porco!» Chateava-me a falta de originalidade. «-Tu não sabes tratar uma mulher, e eu devia estar louca para te dar o meu corpo, mas foi só isso que tiveste, nada mais, quem eu realmente amo, abandonou-me no passado, tu és só mais um merdas com quem me entretenho para me distrair.» Ao ouvir isto, ganhei-lhe mais respeito e apreço, não é frequente as pessoas serem honestas umas para as outras. E ela só o estava a ser porque se esgotara na sua cabeça, o repertório de insultos que me fariam reverberar de vergonha. Pila pequena, frouxo, mole, não masculino, palhaço, etc., todos os insultos que visam alfinetar o nosso âmago, e que por os conhecer já os sabia como isso, lanças para magoar. Elas também percebem que esses insultos só são eficazes quando temos 18 anos. Que com o tempo se vai ganhando calo, e que por isso os insultos também têm de ser melhores. Isso exige criatividade e inteligência, muito mais que estas gajas de Tinder estão dispostas a facultar a um gajo que apenas querem que as gabe, valide, e tenha tesão a pedido. Comecei-me a rir e ela pergunta-me se estava a gozar com ela, e eu respondi que o gozo com ela era algo de muito difícil de atingir. A sua vontade era bater-me mas sabia que levaria o troco. Limitou-se a olhar-me com os olhos vermelhos. Via no seu rosto ter-se arrependido de ter queimado as pontes, de ter cortado de forma radical as possibilidades de envolvimento futuro, pois essas portas abertas eram o que lhe permitiam vingar-se de mim de forma mais requintada. Assim havia exposto o seu jogo e eu estava preparado para ele, dessensibilizado. No perfil de Tinder dizia que valorizava a honestidade. E eu havia sido honesto, dizendo que a nossa brincadeira não duraria mais, e perguntou-me porquê, e eu disse que ela não era o que eu procurava, que me sentiria melhor com alguém capaz de se relacionar com outro sem uma agenda própria, que reflecte uma ideia precisa de como o mundo funciona, onde somos meros autómatos limitados pela capacidade de incompreensão que temos todos, de saber o que é a ipseidade alheia. E como não sabemos o que é, não conseguimos, achamos que não existe, ou que a existir, toda a dimensão emocional do outro é sua responsabilidade. Os seus gritos em torno de mim não me afectavam, ao contrário das restantes pessoas no restaurante, que nos iam observando tentando fazer a ideia do que se passava entre nós, da situação, e sentindo-se bem por serem pessoas normais e com vidas normais ao contrário de outros que gritam nos restaurantes e fazem peixeiradas identificáveis com a plebe. Um acha que a culpa é dela, outra acha que fui eu que cometi alguma ofensa. O normal. Grita-me de novo na cara, sinto as gotículas de saliva a esmagarem-se contra meu rosto como indicadores de raiva. Desde que não me toque está-se bem, isolo os ouvidos e levo-me para outro ponto melhor, onde encontro o que procuro, a fantasia inatingível da alma gémea, onde o apreço de um por outro é totalmente reciprocado. Essa é a total fantasia dos homens conscientes, que sabem que são eles a verdadeira potência de amor idealizado. A fantasia de encontrar uma mulher cujo apreço por nós seja tão incondicional como o nosso amor. Claro que não é. A natureza não programou assim, és o maior quando tens valor utilitário, quando és desejado por outras, ou quando dá jeito estares por perto. Ao sair a porta deixou entrar uns raios de Sol. Os outros no restaurante olhavam-me à procura de sinais de fraqueza no meu comportamento, que lhes justificasse as ideias feitas sobre a situação. Apreciei o sabor extra amargo da India Pale Ale, e deixei que meus olhos se fecundassem com a luz breve do astro rei.
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Mastigava uma pizza don Corleone média, não corrupta, mas carregada de queijo espremido de vacas moribundas. O prazer suicida da bomba calórica lembrando as bifanas enfarda brutos que a Rute, ex mulher do meu então melhor amigo, me trazia quando saía à rua para me ir buscar comida depois das noites e tardes de sexo, como forma de me cativar para o microcosmo da sua vida. De como eu saía de sua casa, enrolando o preservativo ainda húmido, e desabafava com o contentor do lixo:«-Puta de condição, esta de sermos marionetas do nosso desejo. É isto um homem?» - a exemplo do judeu Levi, mas tal como no campo de concentração, o contentor apenas se quedava de goela aberta para o céu, sem me responder. Sei agora porque bebo, quando escrevo. Não é para ter inspiração artística. É para celebrar o me sentir feliz, cada vez mais difícil de obter. Ultrapassar obstáculos, atingir objectivos, é bom, mas tão breve. Assim que consigo, apenas me apraz lançar a nova conquista esquecendo as anteriores, e sabendo isso de antemão, deixo de saborear os potenciais sucessos futuros, pois sei que vão durar menos que o amor de mulher. Interiorizava a ideia de que a gordura daquele queijo se alojaria nos vasos do sangue que emanam do meu coração, e que com sorte, viria no meu obituário, morte apressada por doença cardíaca. Mas, nem sabem os médicos, que é possível mascarar uma doença com outra, quando se morre do coração, às vezes o coração morreu antes de deixar de bombear pelas artérias e de receber pelas veias. Quando desiste, ainda em vida, de se alimentar pelo sangue arterial e fresco que lhe traz novas do exterior, e que está reduzido a tratar do rarefeito sangue que percorreu os mesmos cantos do corpo que apodrece e encarquilha lentamente. Experimenta respirar por uma almofada e após 10 minutos, volta a respirar normalmente, para saberes a diferença entre um coração com esperança e um que se limita a cumprir a função de não deixar morrer o corpo antes do tempo. Má obra de engenharia, esta ó Deus. Em sístoles e diástoles contínuas quando a alma há muito que abandonou o navio. Não seria melhor morrer a cada desgosto? Não ligues, sei lá eu do que falo. Crianças a morrer em África e eu aqui a falar em desgostos de amor, luxo de gente rica. «-Ó João, tu não seres feliz?» O sotaque nórdico espelhava o esforço em balbuciar algumas frases na língua do grande Camões. Camões e eu, se faz favor. Virei-me para ela e pelo esforço beijei-a na testa duas vezes, pois à primeira apenas lhe apanhei os cabelos louros, desgrenhados pelas avançadas horas e manobras da noite. Mas continuava a olhar para mim, para decifrar a razão do meu olhar taciturno pela janela aberta no seu quarto, que revelava uma Lua baixa e um frio polar que ainda assim não conseguia reduzir a temperatura do quarto. Como não sei um caralho de dinamarquês só lhe disse que era muito feliz desde que sua boca morresse até ao infinito, na minha. A posição dos seus olhos revelava que colava palavras em português que conhecia, para poder fazer sentido das frases, mas reparou que nas minhas pupilas dilatadas, apenas se exprimia o contentamento de estar na sua presença. Gostava, de saber que há uma parte de mim inacessível, até para mim, e voltou a mergulhar reconfortada por debaixo do edredão de penas da sua cama, para me insuflar ar arterial para a vida, sabendo que dentro de pouco tempo, a sua respiração seria tão ofegante como a de um coração afogado em dióxido de carbono. Com duas coisas tem de se defrontar quer o homem, quer o rapaz.
Com a vista de nesga da Morte, logo ali ao virar da esquina, e com a triste constatação de que é enganado pelo mundo, pelas coisas e pelos outros homens. Engolido este fel, está livre para caminhar ebriamente até à felicidade, se e somente se, tiver aprendido a lidar com esta merda. A senhora Morte explica-lhe, «-Despacha-te filho da puta, se queres deixar marca no mundo, estou a contar os segundos que passam. Deixa lá marca no mundo, que daqui a 100 anos ninguém sabe que exististe, e os teus descendentes nenhuma ligação genética terão contigo. O palhaço do Platão, a dizer que a imortalidade se conseguia de duas maneiras, foi a maior anedota que já ouvi, e geração após geração, vossas excelências acreditam nela.» Portanto, sócio, mano, se estás à espera de deixar legado, vive na ilusão, que eu também. Resta a segunda, a do engodo. Desde os jogos mistos no recreio da C+S sabes que não só és mortal, que o punho e falanges do outro menino te fazem chorar, mas também que os professores protegem as meninas, que são, dizem, mais frágeis, e que se te derem um pontapé ou encontrão, não deves responder na mesma moeda, afinal, o esperma é barato e o masculino dispensável, o mundo é feminino dizem-te mais tarde, e se estrebuchas muito, és chamado de misógino, machista, retrógado, e toda uma variedade de adjectivos acima de chamar uma homicida de «puta» na rua. Acreditas tanto nisto que te esqueces que as mulheres podem matar. Literalmente. Não falo cá de coisas de coração, falo de facas pistolas e mandar assassinar. Ah, e não é só delas, que defendem implacavelmente as vantagens da vitimização. É deles, dos que como tu ostentam uma pila no meio das pernas. O jogo é descolhoar o outro, para agradar à Ela, à deusa, que lá vai lançando umas migalhas doces, para aquele que passa por vencedor da vida. Não existem tréguas, não existe compromisso. Para uma estratégia de transmissão vencer, uma tem de se submeter. A mulher quer o melhor da vida. O homem também. Infelizmente nenhum dos dois coincide. À mulher, o macho vanilla serve apenas como prémio de consolação, não como sorte grande, essa que nunca se contentou com ela, o que lhe abanou o barco para toda a vida. Sabes o que é foder por favor ou obrigação, e foder a partir de desejo genuíno? Sabes o que é ter uma mulher de frente para ti, e perceber que o seu desejo é apenas o de superação de uma tarefa que lhe permita manter o puzzle do qual fazes parte? Sabes o que é ter uma mulher que se for preciso renega a própria religião ou vai presa contigo, apenas para estar contigo? Compara ambas e diz-me o que tem sido a tua vida até agora. Nunca pensara que a justificação para eu sentir saudades das fases de enamoramento, ser por nelas ter o melhor sexo, por elas se esforçarem para garantir aquilo que acham ser o melhor que conseguem Pelo menos até que alguém as convença que são melhores ou conseguem melhor. Portanto, também é discutível. A Cármen levou um pontapé em cheio no esterno, ficando a ofegar no meio do autocarro. Mas quem és tu para me bateres só porque não gostaste da minha brincadeira, igual à que faço com os rapazes? Os professores viraram-se para as meninas que choravam ao perder o jogo de futebol, e disseram-lhes «-Não sejam maricas, sejam mulherzinhas, se eles vos dão, vocês dão por igual!» Nada disto aconteceu, fui eu que levei um pontapé no esterno e fiquei sem ar, agarrado ao estômago até conseguir inalar algum ar. Porque brinquei com a Cármen, da mesma forma como brinquei com os outros meninos. Se me queixasse que tinha sido demasiada a distância entre crime e castigo, teria sido apelidado de mariquinhas. Quem é a Cármen hoje? Mais uma ressabiada com a vida, que vive raivosa de as filhas serem mais felizes longe dela e de o ex marido ter voltado a casar. Nada em si há de recriminável. Tem uma cona no meio das pernas e isso justifica todos os cheques em branco e mensagens floridas que a sociedade lhe dá. A mesma sociedade que lhe parece aliviar o angst de existir, condena-a à solidão nesta orbe celeste. Vive com gatos e agarrada à enxada para ainda poder pensar bem de si própria, com hortas biológicas e merdas que tais, apesar de usar adubos oriundos dos venenos do mundo. Os professores não se viraram para os alunos da primária advogando igualdade restrita. «-A uma menina não se bate nem a uma flor.» A associação de palavras, menina, flor, como se a fêmea fosse o pináculo da criação, claro que tudo o resto é a merda, os condenados da vida. Ser homem, branco e não elegível equivale a limpar da pool genética, o direito à ilusão da procriação e da imortalidade. Claro que soa bem, proteger as pequenitas. Até nós sabemos que sim, programados por 100 000 anos de antropogénese em que o útero é o esófago cuspidor de vida que devemos proteger, mas mano, olha em volta. Já não exigem protecção, mas total subserviência. Sabes quem ganhou a guerra, quando sequer declarar derrota é crime. O homem é um cabrão, se mentir, enganar e atropelar sentimentos. A mulher não tem defeitos. Lida com isso. E encaixa que os maiores cabrões são os outros homens, os conas moles, que são usados como parideiras de notas de euros. Conheci alguns, que as mulheres deles manipulavam bem, fazendo-os sentir vencedores, na vida, eh pah, detentores de acesso a um útero. As amizades entre homens duram aquilo que o tempo de codependência determinar. Curioso como podes começar uma sessão de porrada com um gajo, só porque os vossos olhares coincidiram durante mais do que 50 segundos, mas quando ela te larga e encorna, a culpa é do gajo que se aproveitou da falta de carácter dela. Em vez de a limpares da tua memória, passas a odiar aquele que te fez o favor de tirar uma imbecil da tua vida. Ah…tanta amargura. Quem te magoou? Tiveste más experiências. Vai para o real caralho que te foda. Mano, escuta, não te enganes com elas, e muito menos com eles. A tua tarefa é espiritual e apenas contigo mesmo. Se algum dia te sentires vencedor com dois pirralhos ao colo, não te esqueças do momento em que te encontras agora. Assim no meio do tórax, eu sentia um fervilhar de inquietação, ao lembrar as razões da minha ira. Continuamente me pergunto, que ganho eu em devolver ao mundo o ruído da minha indignação, apenas para o ver sorrindo com aquele esgar cínico de saber que me esmaga e vence em todos os rectângulos do jogo. Ah filho da puta. Mas a erupção interior não amaina, como cresce, ganho com ela, sinto-me injustiçado e isso me dá uma vitória moral. Uma mão fria me vira o rosto, arrastando-o dolorosamente do encadeamento de ideias e rememorações acerca do passado e das minhas teorias. O sotaque eslavo carregado, aplicado docemente perto do meu tímpano, «-Então João não pensar tanto rugas no testa.» Olho para ela, bloqueando o hipnótico strobe de uma discoteca em Cracóvia, onde nos encontrámos, imagine-se, para debater fontes sobre a expansão portuguesa. Loura, vestida de preto e com sapatos vermelhos bem altos, que a tornavam mais alta que eu. Olhar para ela com dois copos de gin tónico na mão, foi como se tivesse acordado de uma noite longa de sono e sonhos incompreensíveis. Demora a adaptar. A ira dissipou-se e esforcei-me por não passar a esta a merda que as outras me fizeram a mim. Deixa-me lá ver se tenho carácter. Tento. O seu vestido preto, e pálpebras pintadas de azul, lembraram-me que eu ainda não havia morrido. Até lá, cerveja livros e loiras são a missão. Abri as pernas para a deixar passar e antes que se sentasse já lhe havia tirado o copo da mão, trocado a mão do copo e assentado a mão na sua perna. Ela olhou directamente para meus olhos, apesar de eu estar de perfil, e vi que me julgava ébrio, contudo não protestou. Pediu-me para falar em português, e eu achei que fosse por ser exótico naquela latitude europeia. Comecei a falar, repetindo as merdas que agora te contei. Ao ver a paixão nos meus olhos, os trejeitos e as minhas expressões, riu-se e chegou sua cara perto da minha. Olhou para baixo, para um âmago imaginário no centro de massa do planeta Terra. A sua expiração começou a deixar-me cego e ofegante. O veludo da poltrona alargada parecia convidar imersão no vermelho. Antes que desse por mim, já nossas bocas se anulavam à vez, e a sua nuca na minha mão era apertada na exacta medida em que as suas pernas me apertavam na cintura, com espasmos indicando à distância, a necessidade de retorno a uma cama de hotel. O pôr-do-sol irradiava nostalgia por todos os meus poros húmidos, do banho tépido que me envolvia. Estava de olhos fechados, sentindo no rosto os últimos raios solares do dia e começava a sentir-me verdadeiramente livre de todo o papaguear interior que não cessa, que acumulo e que depois me faz falar em demasia para aliviar a pressão de tanta macacada interior. Comecei a sentir-me íntegro com o meu eu de criança, e com as crenças e vontades nucleares de então, mais puro, cristalino e acutilante em direcção ao que quero. No momento em que uma nova imagem do caminho para a purificação me ia aparecer, a minha consciência foi interrompida pelo estímulo exterior do seu braço em torno do meu pescoço, também ele tépido, e com a tensão do peso do seu corpo inclinado sobre mim para me beijar o lóbulo da orelha, como que me convidando para voltarmos ao leito lúbrico da nossa actividade nocturna, que eu me esforçava por disfarçar, para não passar por alguém que precisa de descanso senatorial. Puxei-a para mim, e ao sentir um quid mínimo de força, sentou-se nas minhas pernas, relaxadas pelo borbulhar da água, disposta sobre a serra algures em Frielas, virado para Poente. Motel H2O ou algo do género. A sua púbis rala e curta, ao esfregar-se na minha, despertou a múmia em suspenso e bastou um beijo bem molhado e pleno de desejo genuíno, não contratual, para que as águas se agitassem de novo tal e qual como o seu tórax na repetição das exalações. Abraçou-me tão ternamente, que consegui repousar a minha face num dos lados do seu pescoço, esforçando-me para respirar, contente por ela se entregar ao meu corpo para retirar um pouco de prazer para si. Não havia nuvens no horizonte, e só remotamente me lembrei que não são elas que se revelam quando deixam de ter interesse em nós, apenas se cansam. Se cansam de representar para nos manterem pegados a elas. Quando perdem o interesse em nós, o esforço deixa de valer a pena e portanto, deixam de representar, voltando ao que nunca deixaram de ser. Um raio de Sol no firmamento, à espera que venha a escuridão. E eu, beijando-a no rosto. «-Pára, tu vives no passado!»
Ela tinha razão. «-Vives a pensar nas pessoas que frequentaste e que não te ligam nenhuma. A maior parte delas nem se lembra do teu nome, ou das merdas que te fizeram, e aí estás tu a celebrar umas putas que passam por ti sem qualquer remissão de auto-análise, enquanto eu já te disse que quero foder e fazer cafoné…quão mais tens de me rejeitar?» A Xana tinha razão. Cada segundo que perco a amanhar textos manhosos, a destilar energia nervosa, é uma tentativa bacoca de me elevar acima dos trapos humanos que animam os meus relatos. Continuo a ver nelas uma profundidade dramática inesxistente senão na minha imaginação. Remetidas para os dias anónimos do resto das suas existências, alheias ao quão joguetes são das forças antropogénicas em si, só têm a ganhar com as minhas celebrações. Vêm aqui ler e verificar se estou feliz ou triste, e se lamento a putice delas, sentem-se celebradas porque não as esqueci. Passa-lhes ao lado o facto de que nada tem a ver com elas, apenas com o relato do que seja a condição humana. Acho que quando passas demasiado tempo a contemplar a imagem de Narciso reflectida no lago do teu umbigo, ficas incapaz de erguer o pescoço para o resto do firmamento. Xana, e fodo-te. Mas depois, tens pescoço para o resto? «-Não és nada, nem ninguém, és um triste falhado de merda que merece morrer sozinho!»
Ao sair fecha a porta do carro como se desejasse que o batente da mesma fosse o meu crânio. Preocupou-me mais o ajuste possível e previsível da fechadura, e o trabalho que dá a tirar as forras, que o contraste entre a simpatia e o bombardeamento, a saturação amorosa prévia, e o desabafo de fel, que afinal apenas revela a verdadeira natureza da pessoa. Como sabia estar a queimar as naus nas praias de Tróia, não se preocupou senão em soltar a sua frustração por eu lhe ter dito que não estava interessado em prosseguir a nossa interacção. No rádio passou uma música que eu ouvia muito no autocarro, quando ia para a FLUL, especialmente nos dias de chuva. De tudo o que de nostalgia, erotismo e aspiração a um amor fusional que agora sei ser uma ilusão. Quem me mandou a mim espreitar a deusa por detrás do altar e ver que não passava de pedra? Perceber que o melhor delas foi o que minha imaginação delas desejou ver. A Paula lia as minhas cartas de amor e exclamava que a do papel não era ela! Como tinha razão. A potência de amor é a capacidade de criar uma miragem que vá além da foda, pois só o envolvimento emocional parece dar sentido às coisas. Eu não queria as gajas pelas gajas, ou pela descarga ocasional de sexo. Queria apenas uma ilusão de finalidade, objectivo, missão na vida. Começa a chover no pára-brisas Sekurit, do mesmo vidro dos autocarros da Rodoviária da carreira 329, quando todos os dias fazia amor com a Filosofia. Lembro-me de quem era então, e pergunto-me se após tanta fêmea ter passado por mim como por vinha vindimada, se algo se alterara em mim. E se sim, se isso significava que eu padecia do mesmo crime que ‘elas’ a falta de personalidade, de mudar e passar a outros o mal que me havia sido feito. Pensei e respondi inconclusivamente, não mudei, simplesmente me resguardo com o devido respeito pelo inimigo e maior predador da Terra, a mulher. Pediu-me para ir ver o pai ao Hospital das Forças Armadas, no Lumiar. Ao subir pelo corredor para a unidade de psiquiatria, fui a galar o befo de uma enfermeira oficial, com os seus 30 aninhos, que te digo, se caísse no meu prato, comia até às lascas de contraplacado da mesa de jantar. Devem ter sensores no rabo, olhou para trás e viu a baba a escorrer-me pelo canto da boca. Não fiz, por acaso, qualquer esforço para disfarçar. Disse-lhe: «-Toma lá o biscoito da minha validação, dava-te uma foda de fazer cair o estuque na Nova Zelândia.» Pareceu-me demasiado à vontade com a minha declaração, mas um plim plom do elevador lembrou-me que chegáramos à ala psiquiátrica do Hospital. Tinha aqui o pai, que fazia anos em Dezembro, e não queria vir ver o homem, que estava internado desde que havia tido um ataque violento e espancado todas as gajas num jantar de Ano Novo. Foi internado por isso, e como havia sido oficial general no ultramar, não o levaram preso, apenas o internaram. A filha quarentona, havia levado três fodões, daqueles que ainda se escrevem com PH. Habituada a vida fácil na Linha de Cascais, habituada a herdeiros decadentes de fortunas antigas, conheceu aqui o je numa disputa de trânsito. Fui a Cascais procurar um cabrão de um livro, e na rotunda do centro comercial, ela ‘amanda-me’ uma passa no pára-choques direito. Eu vinha chateado por causa de vir a pensar na gaja do bumble, aquela que era veterinária e de como mais uma vez tinha deixado um pito fugir à minha frente, e podia ter uma condução defensiva.Não, segui o que aprendi nas lições do código, e eis que sou recompensado com mais um raspão no belo azul marinho do meu Toyota Corolla de dois lugares de 1994. Olhei para ela, ah puta de um cabrão, saí para fora da viatura e ao dirigir-me a ela, a sua calma acalmou-me. Percebi que era daquelas pessoas que têm sentimentos diametralmente diferentes dos meus. Se tenho ira está em paz, se tenho paz está em ira. Ou como dizem alguns, um vampiro emocional, mesmo que não o seja. «-Mas você não viu o triângulo pintado no asfalto?» -perguntei eu. Qual triângulo cuspiu ela. Apontei com o meu dedo indicador para o triângulo maçónico debaixo dos seus pés enquanto posava lateralmente junto ao carro. Ao olhar, apercebeu-se da burrada, ao mesmo tempo que na minha cabeça eu só me sabia recriminar por saber que mesmo cumprindo as regras do trânsito, tens de ter em atenção os outros, os conas que olham de placidez para a vida e que portanto, pernoitam num transe contemplativo que tu invejas, mas que por não teres dinheiro evitas, para não teres que reparar o cabrão do carro que tanto te enche de orgulho, por ser uma máquina de fiabilidade. Quando o comprei pensei que o pito me ia cair a potes no assento do pendura mas só depois percebi o meu wishfull thinking in regards of a reliable machine from the nineties. Cum caralho. Fala para aqui e fala para ali, disse-lhe que o dano era mínimo, que valia pelo menos um jantar. Jantámos em Sintra e alguma coisa devo de ter, porque à quarta garrafa de Casal Garcia, estava a meter-me a mão na perna, e eu disse-lhe tens meia hora para tirar a mão daí , e ela perguntou-me, senão o quê? Senão dou-te um fodão que o pipl da Nova Zelândia liga para o Marcelo a perguntar se Portugal declarou guerra à Oceânia. No meu torpor alcoólico lembro-me que fomos nós que descobrimos aquela merda e que não comi nenhuma australiana, mas comi uma americana que esteve lá, portanto tenho alguma afinidade. Quando abro os olhos desta cogitação, vejo-a já por cima de mim, nua, e a brincar com o ritmo das suas nádegas em cima do meu caralho, e eu ó amiga, isto é um motor a gasóleo, aquece-lhe as velas. Quando estava a saborear as coisas, diz-me: «-João , só fodo contigo se fores de manhã, ver o meu pai ao hospital.» Puta do caralho, fodilhona condicional. Se queres que te diga, não quis estragar a coisa com a minha racionalidade de examinar a coisa toda, e só disse que sim. A partir do momento em que lhe agarrei as nádegas, contraindo as minhas mãos como o australopiteco o fazia para se agarrar aos ramos das árvores, fui de bombar até me doer um músculo qualquer do torso. Pimba pimba pimba ah puta se não te vens. E veio. Várias vezes, e fiquei contente como Deus quando observou os seus dias da Criação. Exausta em cima de mim, só sabia dar-me a sua boca seca de tanto ofegar, e ao senti-la seca em cima, só me apetecia secá-la por baixo, mas qualquer coisa, a humidade, o impedia. A minha fantasia realizou-se, às 4 da manhã ela disse-me que nunca fora tão bem fodida, e que não aguentava mais, e que se os seus antepassados hebraicos.. Hebraicos? Judias dão-me tusa. Levou mais um. Não conseguia dizer que não, nem conseguia fechar as pernas com a falta de força. Lembro-me do meu mestre de artes marciais a contar a história de ter fodido uma judia, e para mim elas são gajas como as outras, ruivas, pretas, o que aparecer. A centralização do foco na cona, é o que de mais inclusivo existe. Como todas por igual desde que estejam vivas e sejam do sexo feminino. Quando já não me conseguia vir, e a minha pila parecia beata ao vento, debrucei-me sobre ela e beijei-a no rosto. Ela disse-me: «Eu sou má ao amor João…tenho medo de me apaixonar.» E eu respondi, não te preocupes meu doce, nunca ninguém me amou, portanto estamos a salvo. Enquanto eu estava, mais calmo da vida, debruçado sobre o seu ombro babando lamúrias, a última coisa que ouvi antes dela adormecer foi a sua lembrança de ir ver o seu pai e mandar um beijo seu. Foda-se, eram 7 da manhã e tive de me libertar dos lençóis, pois o seu abraço era demasiado forte para sair. Dei-lhe um beijo na testa e fui cumprir a minha promessa, que aprendi que as promessas têm de ser cumpridas. Ainda meio bêbedo a caminho do Lumiar, saio do Metro, com um sabor amargo na boca, e passo pela roulotte circundante e espeto duas imperiais no bucho. Ainda pensei ir ao WC comemorar o rabo da enfermeira, mas o sentido de missão sobrepôs-se. Chegado ao quarto 937, dou com um senhor olhando a janela na única cama do recinto. Sento-me na cadeira ao seu lado, convencido de que o homem está numa confederação espacial ao lado da nossa e que é por isso que a única filha não veio ter com ele no dia do seu aniversário. A oferenda das duas águas de Vialonga nas minhas sinapses, caem ao mesmo tempo, e sabe-se lá como, a minha boca só diz, «-Desculpe lá senhor Gouveia, mas dei um fodão na sua filha, que ficou estatelada em Alcabideche.» A coisa soa melhor aqui do que soa lá. Eu com as costas largas, por imaginar que o H omem estava demente ou vegetal. Ao afundar os meus cornos por minhas mãos abaixo, face ao silêncio que se seguiu às minhas palavras, uma mão me tocou no pulso. Procurei em vão enfermeiros, o próprio paciente me tocara. O homem tinha estado em Angola, Guiné e Moçambique. Tinha sido um militar importante nos 3 teatros de operações. Estava ali amarrado qb, porque pura e simplesmente, desde que regressara nunca mais havia sido o mesmo. O imbecil do je, ainda continuava convencido de que falava para um vegetal. Começou a falar dos tempos da Guiné. E eu a achar que por ter lido o Zurara, sabia do que ele estava a falar. Sabes lá tu pelo que passámos, e a malta hoje em dia… A sua narrativa ia para um sítio que eu não gostava, o da autoglorificação. E perguntei-lhe, «-O que era pior?» «-Não saber a que momento podíamos morrer.» «-Já experimentou namorar com uma gaja contemporânea, que tem pila a cada swipe de Tinder?» «-Estarmos na trincheira apenas para morrermos por uma baioneta enfiada nas costas…» E perguntei:«-Já experimentou ser atraiçoado pela mulher que achava sua amiga e amante?» Bem, o Homem ia para ali desfiando os seus traumas, e eu como imbecil, apenas arranjando paralelos de situações… que nada tinham a ver? Ao fartar-me, passei eu a narrar as formas como somos desfeitos pela selecção artificial intra-específica, ou seja, pela luta e adaptação entre sexos para gerar melhores proles. Uma comparação de merda, mas que ainda assim, repostado no cadeirão, ainda recebi um sorriso da tal enfermeira que entrara no quarto e ouvira a nossa conversa. Olhando para mim exclama «-Nunca o ouvimos falar assim!!!» Ébrio apenas respondo, «-Dou-te um fodão que nos faça esquecer os dois de quem somos.» Ela riu-se e saiu com o estetoscópio em círculos na mão. Eu, com a lágrima no olho por perceber a literalidade. É veterinária e tem uma clínica. Afoga as suas mágoas e vozes dos monstros internos, não se permitindo tempo a sós consigo mesma. Como outros afogam o desespero com canecas de cerveja na tasca, ela envolve-se de gente com quem lida como se coleccionasse pessoas. Não se permite ser ‘fraca’, e por fraca entende ser toda e qualquer pessoa que faz sofrer os outros e que não é independente. Tem um rosto bonito, e olhos esverdeados, que fotografados são colocados como foto de perfil nas redes sociais. Tal como o cabelo castanho descolorado a louro palha, tenta assim elevar-se acima da entediante multidão de morenas. Gente bonita e diferente recebe tratamento diferenciado na aldeia dos macacos. Contava-me da sua temporada em Sutton, e eu não estava na melhor das disposições para engate, e só me apetecia falar de Sutton-Ho e de navios afundados. Tentava esconder com excesso de normalidade, o facto de ambos os pais dos seus recentes filhos, a terem trocado por outras. Um, segundo ela, nem lhe fala. Ficou ofendida quando lhe disse que é estranho um homem abandonar assim os filhos, quanto mais dois. Pode dar-se o caso de ser uma mulher demasiado boa, no sentido de previsível, vanilla, PG13, o que lhe quiseres chamar. Essas de facto, também têm azar nisso. Como dizia Kant, se não tiveres uma pitada de maldade… Passou ao ataque dizendo-me que os homens evitam relações e não sei quê. E eu disse-lhe «-Joana, até te posso dar toda a razão no mundo, mas responde-me primeiro a isto, quem os escolheu?» Corou, calou-se, ficou a olhar para o chão, aproveitando para olhar para os meus sapatos e aferir se são da boutique cigano, ou comprados na Linha. Como não respondia, voltei à carga, «-Segundo a Lei de Briffault, é a fêmea que determina todas as condições da família. De onde a fêmea não pode retirar benefícios com a associação a determinado macho, essa associação não ocorre. Portanto, se tu escolheste os pais dos teus filhos, foste parte activa e responsável. Não tens legitimidade para agora passares o ónus para eles.» «-Olha, eu não vim para aqui para ser insultada, nem julgada, muito menos por ti.» Prepara-se para sair, agarro-lhe na mão e prometo que mudo o discurso. Que fique, que a compensarei. Percebi nesta altura, que me havia feito o raio x, e que decidira nos primeiros cinco minutos da interacção, que não iria foder comigo. Confirmando a lei de Briffault, com uma complexa equação de custo benefício, muito simplesmente não estava para lidar com alguém que lhe forçasse o espelho da lógica em frente ao rosto. Estava fodida, porque me havia dito ao telefone que não acreditava no amor, e, portanto, agora não podia usar a carta da paixão para desculpar as suas escolhas, só lhe restaria portanto, justifica-las a partir de a) a vida é assim, e não há problema nenhum e b) o que é preciso é olhar para a frente e sempre de forma positiva, pois quem nos fez mal é que tem um problema. Optei por meter o dedo no segundo ponto, pois é um que me faz achar as pessoas imbecis, além de que conheço todos os ângulos do primeiro. Finjo uma postura amena e passiva, e deixo-a falar o que quer, analiso as palavras que utiliza mais vezes, a forma como encara e formula erros e acções, e remato com uma pergunta inesperada: «-Achas mesmo que forçar fora da vida e consciência todas as experiências, pensamentos e pessoas ‘negativas’, é o caminho para uma vida de felicidade?» «-Ah, sem dúvida, sem sombra de dúvida. Estamos cá para ser felizes, e não tenho paciência para pessoas negativas, derrotistas e amargas.» «-Então divides o mundo entre pessoas positivas e negativas?» «-Epá, toda a gente tem más experiências e lida com isso sem infernizar a vida aos outros, passando por osmose as más energias. Eu trago-me a mim para cima, não preciso que os outros me afundem no poço fétido do seu sofrimento.» «-Certo, concordo, mas diz-me uma coisa, se concordas que a vida é sofrimento, e que todos sofremos, onde acaba a tua responsabilidade perante o outro? Uma vez que disseste que purgas da tua vida todas as pessoas negativas, e dizes que gostas de pessoas, então a questão que se coloca é se as pessoas que gostas são as que como tu limitam ou tentam limitar o espectro emocional com que subsistem na existência, e se só gostas ou tens empatia pelos positivos.» O bufar e ar de enfado na sua cara revelavam que ou estava prestes a levantar-se e ir-se embora, ou a usar-me como confirmação da sua ideologia da treta, encaixando-me nos negativos, pior, nos negativos chatos que nos perguntam coisas parvas. E eu fui-lhe contando para não levar a mal, é uma moda, no verdadeiro sentido da palavra, e que apenas os animais de manada aderem a ela. Que conheço muitos gajos que metem fotos com frases motivacionais nas redes sociais, e paisagens bonitas e bons sentimentos propagandeados como um bom xarope trasvestido de óleo de cobra. Que conheço inclusivamente um, que com boas frases e expressões públicas desta nova religião do positivismo, engatou pelo menos uma gaja, ainda mais tolita que ele. «-Então mas tu achas que temos todos de andar aí com cara de tragédia a olhar para o chão e a chorar pelos cantos por causa das agruras da vida?» «-Não, claro que não. Acho que a vida é para ser celebrada, mas essa militância do positivo, além de ser uma moda, divide o mundo em preto e branco, e se as gajas já andam todas baralhadas da cabeça e dos critérios de avaliação das coisas e das pessoas, essa diferenciação em dois tons apenas piora. É uma lavagem cerebral que cada um faz a si mesmo de modo a sentir que tem tudo controlado. Que é aliás a tua intenção.» «-Minha intenção?» «-Sim, tua intenção. Quando me convidaste para vir tomar café, e me contaste logo de início que apenas tinhas um dia livre para teres um relacionamento, sem que eu perguntasse algo, estavas a dizer-me uma regra. Queres um fuckbuddy, ou seja, alguém que podes usar para trocar intimidade, sem envolvimento emocional, que esgotaste nos teus parceiros anteriores. A outra regra, implícita, é que esse potencial parceiro de cavacadas, estará, portanto, sempre em quarto ou quinto lugar na tua escala de prioridades, primeiro os teus filhos e família e tu, em segundo o teu gato, terceiro a tua profissão, quarto os teus amigos. Para quem gosta tanto de pessoas como gostas de afirmar, só gostas de positivos e de que se deixem usar, ou no mínimo te façam sentir bem contigo mesma com elogios e poemas escritos no pára-brisas do teu carro quando te levantas de manhã para ir para o trabalho. O que me interessa perceber, nem é se acreditas no que dizes, pois sei que acreditas profundamente, precisas de acreditar. As maiores cabras precisam de acreditar que são boazinhas, especialmente no grupo de amigas que em relações de codependência, colaboram e cooperam para manter estruturas hierárquicas. Mostrando que são desejáveis, manipulando o desejo dos pretendentes como se fossem uma matéria-prima como outra qualquer. Gabando-se umas às outras para se sentirem acima dos homens, mas mostrando, como cromos as constantes conquistas, e a que saca o homem mais ‘valioso’, ou os mais atraentes e desejáveis, sobe na hierarquia do grupo. Curioso como de forma feminista advogam a igualdade, a destruição de hierarquias, apenas para se manterem nestes joguinhos hierárquicos. Existe competição num grupo de mulheres, não é só cooperação.» Este meu solilóquio já a apanhou de costas pois levantara-se e fora-se embora. Pago o café e vou atrás dela dizendo espera aí, não me digas que já não há sexo. Virou-se para trás para me bater, mas quando me viu a rir, percebeu que eu estava literalmente a gozar com ela. Espera aí Joana. «-Quem pensas que és para fazeres juízos sobre mim?» «-Sou um negativo, sou um daqueles que tu avalias como não merecedores da tua atenção ou de fazerem parte da tua vida. Pensei que se tu podias fazer juízos, eu também os podia fazer. É uma questão de igualdade.» Ao dizer ‘igualdade’ não consegui conter a gargalhada. «-Tu vais morrer sozinho.» «-Todos morremos sozinhos, mesmo que morramos numa hecatombe pública, nunca outro exala o último suspiro por nós. E antes sozinho que tua marioneta, que é o que acontece quando algum indivíduo se sujeita às tuas condições, é que ser positivo e não levantar ondas, é só mais uma forma de condicionares o comportamento do potencial fuckbuddy. Tu não queres mais um relacionamento, esgotaste-os no passado. O que tu queres é um adereço. Queres alguém que não te fure a bolha de ilusão que compões para ti mesma, de forma a não teres de pensar. Repara que até disseste que para ti, as pessoas não devem ser espontâneas e não dizer o que pensam porque podem magoar os outros. O que tu queres não é uma pessoa, mas um electrodoméstico. Estranho, gostares de pessoas...» Ela continuava parada em frente a mim, em frente à Zara do Louresshopping, não porque a conversa fosse a algum lado, mas porque estava ressabiada, e tinha de levar a melhor sobre mim, ou seja, tinha de ganhar a discussão (que ganham sempre que viram as costas e vão embora como ela fez) ou ridicularizar-me, quebrar-me. Era a intenção dela. Esqueci-me de lhe perguntar se querer humilhar alguém, ou ostracizar outrem que tem opinião diferente, é ser positivo, gostar de pessoas, ou não magoar as outras pessoas. O fácil destes crentes do positivo, é a estupidez de como se deixam encurralar. É só jajão, são só frases bonitas para se sentirem bem. Por isso detestam o exercício racional. E os que repetem frases positivas e motivacionais, são os mesmos que caso a moda fosse niilística, passariam o tempo a citar epitáfios no Instagram, para impressionar as cachopas. «-Joana, não é preciso olhar para as coisas como se fossem uma tragédia constante. Isso é o preto com que pintas a tua divisão infantil do mundo e das coisas a preto e branco. Ter a noção do carácter agónico do mundo, isso sim, é algo útil para valorizar a vida que temos, e os outros, que são pobres diabos como nós.» Ela já não queria ouvir nada, e ao despedirmo-nos no parque de estacionamento, ainda fez um compasso de espera a ver para que carro eu me dirigia. Esta malta positiva é perigosa. Gostam de um mundo melhor, onde podem queimar os negativos nos fornos de gás das suas certezas absolutas. Movie VHS (2012) all rights reserved - Fair use
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Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
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