Chet Baker - My Funny Valentine - Torino 1959 "I have spoken too long for a writer. A writer should write what he has to say and not speak it." Ernest Hemingway - Nobel Prize Acceptance Speech. Alfa (Explica-me tu se podes) Explica-me tu se podes Num movimento de calma, Porque razão Se te beijo num desvairo de prazer Às vezes sou todo corpo E às vezes sou todo alma? António Botto A noite estava fria, mas se dormisse encostado a ela, mitigava o frio que pudesse estar lá fora esgravatando as paredes, para se aninhar entre nós. Não confio em lençóis que não conheço, mas este que nos cobre tem várias manchas de humidade por causa dela e das vezes que me vim sobre todo o seu corpo, antes de adormecermos. O esperma ao secar na pele aumenta a dissipação térmica e depois de morto, parece um pedaço de fita-cola que arranca os pelos, se não for limpo ainda vivo. Ela limpa com os lençóis. Antes do silêncio que agora grassa, ela chorou e eu perguntei, mas que raio, porque estás a chorar? «-Eu não te disse, mas sou casada.» Foda-se, respondi eu, mas que…foda-se. Epá, isso é desonesto. No meio do choro balbuciava que não sabia o que fazer, pois sabia que se me dissesse que era casada, que eu não lhe prestaria mais atenção. Podes crer, epá, isso é desonesto. Mas ela chorava e eu caio sempre na esparrela. Pá Júlia, devias ter dito. Mas depois pensei que se me tivesse dito, tinha razão, eu não me teria envolvido com ela. Ou teria. Não sei, só sei que não aguentava estar longe dela. E ela sabia que eu iria contrariar para não me apegar, e assim não se poderia alimentar do meu amor por ela, ejaculado pelos meus olhos. Abracei-a para parar o choro, e pedi desculpa em pensamento a um desgraçado qualquer a quem eu enganava comendo-lhe a mulher da forma como eu gosto, forte e à bruta. Não é por algo moral, escrito em livros semitas. É por uma ideia de honra e fraternidade com outros homens, mesmo sabendo que no mundo do acesso ao útero, à vulva e à validação, qualquer um deles me faria igual ou pior. Aliás já fizeram, sem apelo ou agravo. A alguns agradeço, porque me levaram monos da mão. Eu tenho princípios, quer dizer, tenho directrizes relativas ao meu comportamento, que coloco acima das conveniências, das circunstâncias. Enganei-me a mim mesmo que esta era uma circunstância especial, pois via nela a excepção num longo caminho de regramento, de não encornar outros, sabendo. Claro que já encornei outros, sem saber no acto, e vir a descobrir depois, o que para mim equivale a escusas de qualquer responsabilidade minha. O encornado e o enganado pela mentira, às mãos do mesmo corruptor. Nunca tinha comido uma mulher que eu sabia de antemão pertencer a outro. A esta, também já descobri depois, mas continuei. E continuei, e convenci-me a mim mesmo, de que valia a pena ir contra os meus ‘princípios’. Por mim, não por outros. Boa parte dos outros não merece. Boa parte dos outros encorna-se aleatoriamente e de forma fractal, dormindo bem à noite com a certeza de que a culpa da traição é do encornado. Boa parte dos outros, não perderia uma noite de sono ao relento, se pudesse aquecer-se numa fogueira dos nossos gritos. Boa parte dos outros trai um contrato formal e informal com a sua contraparte, para acesso a terceiros, nos empregos, nos ginásios, nos hospitais, nas escolas, em qualquer sítio povoado por símios bípedes. O som dos aviões marcava cada hora, que assim folgava cronologicamente os corpos para aproveitar ao máximo a noite. Sessões de vigília e dormência tão alternadas quanto as porções de carne do corpo de cada um, a explorar à vez. Não é curioso que qualquer gajo que tenha por hábito agredir outros, tenha sempre pelo menos uma gaja na ponta do braço? As penitenciárias estão cheias de assassinos, a braços com mulheres fiéis e pretendentes a visitá-los e a escrever-lhes cartas. Porque devemos ter então, qualquer sentimento de honra, para com gajos, conas e assassinos igualmente, que facilmente nos matariam para gáudio das suas deusas, fornicando em cima, logo de seguida, dos nossos cadáveres? Quem fica, além de conas e assassinos? Epá nunca mais me esqueço de uma situação de trânsito, em que um puto que vinha atrás de mim na 2ª Circular, atravessa o carro à minha frente, porque eu vinha a respeitar o limite de velocidade. Atrás de mim parou outro carro que trazia dois tipos lá dentro e o condutor apercebeu-se da situação. O tipo do carro da frente, vem na minha direcção e eu saio imediatamente do meu carro para não ficar limitado na movimentação. Aviso-o a cerca de 3 metros de mim, para parar onde está e não se aproximar. Esbraceja vigorosamente e fala alto, imita gestos de pistola na mão como viu em videoclips de gangsta rap, num pardieiro qualquer dos subúrbios onde arruma o seu Honda Civic com escape de rendimento. Ainda aponto para o sinal de trânsito com a velocidade máxima, mas ao ver-me argumentar, calculou que fosse medo da minha parte e que estaria a tentar retirar o fusível ou o rabo da situação. Isso deu-lhe coragem e avançou mandando um pontapé na porta do meu carro, com a intenção de me magoar, pois eu estava atrás e apoiado nela. Já não havia nada a dizer. Quem procura confusão, acaba por encontrá-la sempre. Desvio-me um pouco para o centro da primeira faixa de rodagem, fechando os ouvidos às buzinadelas e plateia que abrandara, entretanto, para apreciar o espectáculo. Dentro do carro dele, estava uma miúda não mais velha que ele, e eu conseguia ver pelo grande decote da sua blusa, os movimentos de elevação do seu peito, respirando excitada pelo seu ‘homem’ que pelo à vontade com que saiu do carro para confrontar outro, não era novato nestas macacadas. O tipo tenta acertar-me de novo com o pontapé, mas a minha esquiva de bloqueio com o meu antebraço na sua perna esticada, colocaram-me numa diagonal à direcção do golpe que ele intencionava, e como tinha ambas as mãos livres, dei-lhe uma bofetada com as costas da mão, apanhando-o pelo sobrolho que assim que acusou o toque abriu-se para mim sorrindo através de um vermelho vivo, morno e líquido. Sentindo a dor e algo quente a escorrer pelo rosto, tentou fazer sentido do que se passara, e a minha calma suscitava-lhe dúvidas acerca da sua escolha inicial. Sabendo que ao ver sinal de ferida aberta, muito bom indivíduo comete o erro de se tornar emocional e fazer um all in que raramente resulta, disse-lhe calmamente: «-Pensa bem no que vais fazer a seguir, pode ser doloroso para ti.» A primeira reacção dele foi olhar para o seu carro. E eu percebi que era só mais um pobre imbecil a tentar impressionar a dama à conta do sofrimento alheio. Um egoísta que tenta manter a vagina húmida e disponível, da forma que sabe que funciona, pois a pobre de espírito que serve de espectadora da cena, o vê como prémio nestes pitorescos ataques de violência. Também ela, fica enfadada escolhendo um neuro típico. A opção dele seria meter-se no carrinho, perdendo o intuito inicial da sua acção, impressionar. Afinal que impressão, quando sai de uma dança com o rosto a sangrar por causa de um tipo que tem idade para ser seu pai? Ou continuar, e arriscar o que não conhece. Estava entre a espada e a parede. A testosterona e a mentalidade de carência levaram a melhor dele, se o pontapé não servira, troca para murros e agarres, tentando agarrar a lapela do meu casaco, que deixo, mas que ao mover-me um passo atrás na diagonal, o coloco em desequilíbrio e impedido de usar a mão que fechada não consegue chegar ao meu rosto. Mas eu conseguindo chegar ao dele, golpeio-lhe o queixo com a palma da mão aberta, e não deixo que solte a mão que tem na minha lapela. Está totalmente desequilibrado, e um ligeiro varrimento com a minha perna esquerda, é o suficiente para fazer cair no chão com estrondo. Perde o fôlego por momentos, e ao levantar-se está a sangrar da boca e da testa. Pergunto se está bem. Digo-lhe que é melhor ir para casa, e ficarmos por ali. O terceiro ataque que me faz, já não tinha nada a ver com a gaja dentro do carro, mas sim com o seu orgulho. Da mesma forma que os anteriores, foi atabalhoado, e agarrou-se a mim para me deitar ao chão, como viu nos vídeos de mma, mas não sabia que sem luvas, as mãos podem induzir dor na cana do nariz ou nos tímpanos, com determinadas formas de pressão, e levantou-se largando-me e gritando de dor, quando o ergui à minha altura, agarrado pelo músculo do pescoço que fica saliente quando gritamos. Tinha uma perninha à frente, e varri-a novamente, naquilo que seria seguido por um som seco e poroso que no relatório policial apareceria como ‘fractura do perónio’. Agarrado à perna no chão, a gritar, dirigi-me a ele, e agarrando-o pelo colarinho lhe perguntei se não tivera a escolha de sair dali incólume, se tinha valido a pena ser estúpido apenas por causa de uma gaja…a gritar também. Ao ver-me nesta posição, a tipa dentro do carro, sai disparada na minha direcção com o seu grito de guerra e as suas unhas de gel, apontadas à minha cara. Mal me arranha porque me desvio, mas sinto a ferida arder. Ficando próxima de mim, cheiro-lhe o perfume barato, tenta reorientar as unhas de novo, mas dei-lhe um estalo que a fez recuar, esfregando a bochecha que tinha sido a anfitriã da minha palma da mão. Um dos tipos que parara o carro atrás, veio na minha direcção e não me apercebi a tempo, pelo que o soco que recebi quase me apagou. Tento recobrar rapidamente os sentidos e a clareza, e quando a visão fica menos turva reavalio, e vejo que o outro, o pendura, ficou dentro do carro, tenho apenas de lidar com mais um, e que este novo contendente não parece ser conhecido do outro que está estendido no chão aos gritos. Está de volta da esbofeteada, a verificar que está bem, e volta a vir na minha direcção com um espírito de missão, que acaba com ele estatelado no chão a tossir. Ainda pensei agarrá-lo pelos colarinhos e perguntar-lhe se a tentativa de impressionar a dama também tinha corrido bem. Encostei-me à berma, à espera que chegassem as autoridades, que não demoraram. As ambulâncias sim, e as fracturas e escoriações ficaram a apurar um pouco mais no ar frio da noite. As expirações da pequena multidão que se assenhoreou do local, eram visíveis em forma de vapor saído das bocas de forma sincronizada, num belo contraste entre o frio cristalino e o calor gerado dentro, nas fornalhas onde ardem os minutos de vidas a caminho dos seus fins. Doía-me o maxilar, na zona onde apanhara o soco. Tudo para a esquadra, relatei o sucedido, e disse que tinha sido em autodefesa. O miúdo tinha cadastro, e o cavaleiro branco que só tinha saído do carro quando a dama foi esbofeteada, não apresentou queixa, limitando-se a sair da esquadra, meio torto e a fazer cara de mau para mim. Só já quando um agente me veio dizer que podia ir-me embora, que o processo seguiria os trâmites legais, é que reparei que ela era bonita de cara, apesar de ter umas unhas com as quais eu seria incapaz de fazer a minha higiene diária. Saindo primeiro que eu, olha directamente para mim, e sorri de forma embevecida e promissora. Devo estar embruxado, pois este tipo de merdas está sempre a acontecer-me. Paro numa roulotte e peço uma mini. Agora posso dar-me ao luxo de tremer das mãos. Penso de como cada vez mais detesto conduzir em Lisboa. Sinto remorsos do gajo que vai ter de andar com gesso na perna. Mas depois penso também que se calhar vai pensar duas vezes, para a próxima, antes de agredir alguém. Invade-me uma profunda tristeza, por observar repetidamente, a natureza torpe de alguns homens. O por quanto se vendem. Se um pito é tão bom como outro qualquer, a mulher bonita é apenas um capricho. Mas o problema é que a mulher bonita é símbolo de estatuto para outros homens verem. É bom termos algo desejado por outros. A mulher, tal como o homem, transformados em objectos de prestígio, em troféus de como triunfamos na ‘vida’, de como sabemos ‘fazer as coisas’. Mas ainda assim… Porra. Mas a honra não é pelos outros, mas sim por mim. Repito e tento convencer-me. E eu também já fui daqueles que se sentia ‘vencedor’, por trazer uma mulher bonita pela ponta do braço. Como se fosse algo de mais, de extraordinário. O que só revela uma mentalidade de carência. Ou então a forma como somos todos feitos, e é inescapável. Ninguém o consegue evitar, é apenas mais uma cilada neurotransmissora com que a mãe Natureza nos prende à promessa de imortalidade genética. Sentindo a minha carícia no seu corpo, geme suavemente e vira-se para mim, criamos um halo de calor em torno do nosso peito, e eventualmente a raridade do oxigénio afogado em dióxido de carbono, torna impossível estarmos parados e voltamos a encostar as bocas e a dançar as línguas, esfregando nossos corpos num transe que mereceria eternidade. «Chet Baker in Tokyo» - 1987 Beta “Why should you love him whom the world hates so? Because he love me more than all the world.” Christopher Marlowe Eu devia ter estranhado a sua disponibilidade de tempo. Consta, portanto, que o tipo é camionista, e só faz serviço internacional de modo a sacar mais uns trocos lá para casa. A capacidade desta gaja em dizer-me o que dizia, e sendo casada. Foda-se, é de tirar o chapéu à sua lata, ou à sua verve. Ou à minha estupidez, que ainda caio nestas operetas. Se calhar é um gajo porreiro com quem seria interessante beber uns canecos. Ou então não. Se calhar é um dos tais que acha que tem a coisa controlada e é um vencedor da vida por ter ‘conseguido’ sexo mensal. Que descobriu o segredo, o que por si só, o valida como ‘vencedor’. Ou o sentimento de ter acesso a um útero que nunca será necessário. Um tipo relativamente desconhecedor da diferença entre desejo genuíno e cópula contratual. Ou não. Às vezes, fingirmo-nos de mortos, é a melhor maneira de viver. Ela não quer engravidar, diz que detesta como ficam as mamas das mulheres que dão à luz. Mas tu tens 36 anos, daqui a um tempo é mais difícil, digo-lhe eu. A verdade é que ela e ele, mais ela, não querem fazer o esforço de abdicar do seu estilo de vida, para acomodar a descendência. Que, bem vistas as coisas, faz sentido, pois esfalfamo-nos uma vida inteira para cuidar de legado genético que desaparece ao fim de 4 ou 5 gerações. Diluímo-nos todos, uns com os outros, desde sempre, em vagas cada vez mais afastadas, onde os indivíduos que participam, não passam de marginais notas de rodapé. Os nossos filhos têm 50% de nós, os netos 25, os bisnetos 12.5, e por aí adiante até chegar a uma pessoa que pouco mais que nada tem a ver connosco, se as voltas ao Sol forem suficientes. É por isto, que fazemos tanto barulho? Por um legado? Ou para sentir, passar pelas sensações decorrentes de constituir família? De amar incondicionalmente um filho ou filha, já que não o podemos fazer a um esposo ou esposa? Chego-me mais a ela, encaixando-me bem no seu rabo virado para mim, mas estou na fase em que preciso de uma hora para voltar a tesão. Se passar meia hora pelas brasas, geralmente é o suficiente. É preciso sonhar. Se sonhar nem que sejam 5 minutos, volto ao teatro de operações. Cheiro-lhe o ombro e escuto a sua respiração, aperto-lhe uma nádega e festejo arrastando a palma da mão pela sua perna flectida abaixo até me esticar para agarrar a rótula do joelho. Ao contar-me, quando deixou de chorar, perguntei quem era, como era, e depois disse para não me contar, não queria aumentar o meu sentimento de culpa. Seria fácil pensar que o mundo é um lugar de cão mata cão, e assim passar ao traído o ónus da traição. Olha, fiz uma rima. Mas não gosto de hipocrisia e incongruência. A responsabilidade era minha e dela. O corpo que jazia ao meu lado, não era meu. Mas o que é isso de alguém ser ‘nosso’? Para o amante infeliz, a posse é apenas a forma de garantir a repetição do favor amoroso. Tomamos posse total e completa do corpo e alma de outro, quando é o nosso corpo que manda e não a nossa cabeça a braços com a taxa de conveniência. E nisso, quando estava comigo, era minha, jorrando água a partir do baixo-ventre, apesar da secura quando vivia a sua vida paralela, oficial e verdadeira. Todos sabemos que o contrato entre dois, é geralmente exclusivo de outros. Tudo o que leva à quebra do contrato, é todo um outro mundo de contexto. O contrato é em abstracto, uma promessa de dedicação e cedência futura, a partir do princípio de que o elo emocional entre os dois elementos vale por si e dispensa dispersão por terceiros. E que se mantém inalterado. Ora isso não acontece. E muitas traições ocorrem, porque na mente de um dos elementos, o afastamento, na forma que for, justifica a facadinha matrimonial. O que custa mais na traição é saber que o nosso eu, não é suficiente para o outro. Nem sequer ao ponto de merecer uma frontal admissão. Porque o que se pretende na traição, é manter várias coisas ao mesmo tempo, derivadas num/dum triângulo. Geralmente ou é uma esposa baunilha na cama, no caso das traições deles, ou um monótono mouro de carga em casa, e um garanhão excitante nas pensões em torno de Lisboa, no caso das traições delas. E por isso, por a sentir tão feliz comigo naqueles momentos, naquelas nesgas de tempo que apenas servem para alimentar a memória, é que sentia ser intolerável que me traísse com outros, em especial, com o marido. Apetecia-me dizer que não vales nada, não és boa para ti, não és boa para mim, não és boa para ele. Passas pela vida a fingir, como egocêntrica que és. Que conforme a luz que bate do Sol, te fazes vítima das tuas escolhas, ou as abraças. A finalidade última é sempre sentires-te bem contigo mesma. E o esforço que isso te exige. Custe o que custar, mesmo que queimes outros. És uma grotesca puta egocêntrica. Mas eu não dizia nada, um dos meus princípios é não fazer ninguém se sentir mal sendo o que é, ou trazer palavras de despeito ao mundo. Os tiros de luz dos carros que passavam lá fora, riscavam o tecto para onde eu olhava, analisando-me atentamente, se me sentia diferente por estar consciente da traição em que participava, e se isso também fazia de mim uma pessoa fraca ou má. Até porque o meu sentir, é responsabilidade minha, mesmo ante as putices dela. Ordenando hierarquicamente os homens na sua vida, eu nunca seria prioridade para merecer tratamento decente. Em círculos concêntricos ordena o deve e o haver, impedindo todos aqueles que estivessem mais afastados do seu centro de interesse primário, de exigirem sequer uma forma de tratamento decente entre humanos. Quanto mais afecto, respeito, atenção ou congruência. É impossível, para ele e para outras como ela, ver outros como humanos, se não cabem nesse círculo de interesse egoísta e primário. São, todos os que não oferecem valor utilitário, vistos como adereços em forma de gente, num role playing game cujo objectivo está algures no seu umbigo. Longe vão os tempos de arrebatamento, adolescente e total. A vida aproxima-se da curva, e já não há combustível no depósito do ‘apaixonar-se’, nem tolerância a erros que minem o conforto. Perdão, a ‘segurança’. Na economia do interesse pessoal, é impossível ver o outro como pessoa, ou pouco mais que objecto. A adesão emocional tem de ser forçada por auto gaslighting. Um autoconvencimento, bruto, áspero, esquizóide, um sentimento de missão, em que não é o outro que nos arranca pelos pés, mas onde nos entregamos numa fantasia urdida na nossa cabeça. Para fingirmos, que após os 35 anos, podemos ainda acreditar em mitos de alma gémea, predestinação, ou tudo o que não seja ‘felicidade adequada’. O amor, é tal como o fruto da árvore do conhecimento, impossível após provado. Palavreado finório para dizer que as mulheres a partir dos 35 anos perdem a fé no amor, ergo, a capacidade de amar. Mas só me chateava com isso ao início. Com o tempo, aprendi a achar graça às suas macacadas. Aquilo que outrora eu considerava destratamento, passei a ver apenas como a manifestação da sua personalidade, presa num inferno em miniatura enclausurado na sua massa encefálica. E nas ficções que cria para justificar as acções que tem. Júlia a ser o que é, Júlia. Júlia é o que é. Qualquer avaliação moral da sua pessoa, é escusada. Até porque sempre lhe dei corda para se enforcar. É cruel, mostrar a alguém, quem realmente é, com um espelho à sua frente. Do género ‘-Olha aí, o teu verdadeiro rosto.’ – geralmente disforme. Especialmente alguém de quem gostamos. Porque não podemos gostar do feio. E ela sabia. A caridade que fazia na paróquia dela, nos grupos de apoio social, não era senão o pagamento ao barqueiro, uma indulgência de Capela Sistina, onde pagamos por boas acções, para podermos continuar a acharmo-nos boas pessoas. É os sem-abrigo, é o feminismo radical, é os gatos na rua, a cada nova cruzada, a vida ganha um placebo de sentido, tornando-se suportável. Ficamos a achar que somos boas pessoas, porque fazemos boas acções. Que alimentámos gatos, apesar de erradicarem os pardais. Que demos uma refeição quente a um sem-abrigo, mas que fomos uns filhos da puta para um qualquer transeunte que se cruzou connosco. Que fomos amigos de uma mulher neurótica, e maltratámos um homem neuro típico. Nos tempos que correm, nada existe de caridoso na caridade. Somos uma porção de demónios nos saldos da boa consciência. Qualquer erupção emocional da minha parte, seria absorvida por ela, com algum contentamento, porque sabe também que no fundo, no fundo, a emoção é a verdade. Por debaixo da preocupação com o aspecto e a postura vaidosa, está a verdadeira mentalidade de carência, pequenina, rasteira, atávica. Por saber que se alimentava disso, nenhuma vez lhe permiti ver em primeira mão qualquer emoção minha. Até porque sabia que ela era, e é, daquelas pessoas que se alimenta das erupções emocionais alheias, para erguer o ego. Parasita emocionalmente os outros, e preserva-se a si mesma de forma autista. Alimentou-se no passado, de forma sistemática, dos colapsos nervosos e emocionais de todos os amantes pretéritos, a braços com a sua parede de indiferença, decorrente da fartura ida de ofertas sentimentais em tempos mais recuados. Tem num especial lugar numa gaveta, coberta por cuecas velhas, uma pasta com todas as cartas de amor, ou só de desespero, de todos os rapazes no seu cemitério. Eu imaginava-a enquanto criança, como aquelas crianças que facilmente cortavam com todos os que de alguma forma as ofendiam, e fechando-se, apenas exponenciando o ressabiamento daquele que ‘ofende’, e se vê assim descartado do mundo de outrem. Ela aprendera desde cedo este modus operandi, onde se sentia em casa, e que considerava ser um traço distintivo do seu carácter. Impassível, portanto, de ser considerado de forma ética. O seu poder, maior e único, é retirar-se de qualquer equação, sem o mínimo problema de consciência, simplesmente porque não atinge ou se rala, com a profundidade da fundamentação ética das suas acções. Palavreado fino apenas para dizer que para Júlia, a ética é como um vestido, que pode ou não, estar fora de estação. Não é um imperativo pouco variável pelos anos. É apenas uma voz interior simplista e simplória, que quer eliminar tudo o que possa fazer sombra a uma opinião favorável de si mesma. Nada de caridoso existe na caridade. Não existe remissão na remissão dos erros passados. Apenas um impulso lenitivo dependente do perdão do outro. Até a remissão é traída nesta história. A traição revela uma situação de insuficiência e de auto-engano autista. Que existe um quid que tem de ser procurado fora do binómio. Toda a traição pode, portanto, ser lida como teste ao contrato, porque não existe fusão de almas. Não existem borboletas na barriga. O que existe são duas subjectividades convencidas da sua individuação, que apenas, em teoria, concordaram com algumas premissas emanadas da tradição e do senso comum. Palavreado finório para dizer que procuramos fora o que não temos dentro. Lê isto da forma que quiseres. Imaginei o óscar, recuso dar-lhe a humanidade de um nome concreto, de um ser amado e criado por uma mãe e ensinado por um pai, como um daqueles tipos de quem dizemos serem ‘normais’ e que a psicologia diz serem as pessoas neuro típicas. Por contraposição com outros primatas com diferentes níveis de energia e trauma, que lhes faculta uma aura de excentricidade e de serem o ‘prémio’. Pessoas pacatas, baunilhas (que combina com tudo), sem traços distintivos aparentes que as façam transparecer como prémios, mas que ainda assim, como todos nós, têm um ou outro traço encantador que nos faz apaixonar, especialmente se for um defeito. E pode até ser o ordenado ao fim do mês. Isso colocar-me-ia como um pouco acima dessa normalidade, numa hierarquia que inclui os assassinos que estão na penitenciária? Ou seriam as minhas emoções, um confortável extra com valor utilitário? Ou eu fui o único, ou o melhor, a aparecer e a sujeitar-me em determinada fase da sua existência? Ela gosta de dizer que sempre teve muitos pretendentes, e que por isso eu me devia considerar…especial. Quem é a Júlia? Conhecemo-nos há uns anos num campo de padel. Eu ia jogar, ela tinha acabado, e as amigas, que foram ao seu casamento, incentivaram-na a aceitar o meu convite para café, pois por nenhum motivo eu deixaria passar ao lado aquele cabelo preto, preto, preto, olhos castanhos amendoados e um sorriso extra fácil. Tinha mamas grandes e ombros demasiado finos para o 36 possuído, se bem que pela bacia, a anca de vespa combinava bem com as pernas perfeitas, simétricas. O seu rabo de pavão, não é a cor berrante do cabelo. Não é a pele coberta de tatuagens. Não são os leggings arranjados para evidenciar os glúteos, ou os decotes generosos a deixar respirar parte dos seios. O seu anzol no meio da multidão, é a forma como pinta os olhos. De um negro carregado que chama a atenção por combinar de forma gloriosa, com o seu cabelo. Na cama vocaliza muito, o que por vezes entusiasma, noutras, aborrece e irrita. Fora dela é uma pessoa de trato fácil e polido. É bonita de cara. Na primeira semana em que nos envolvemos, sem me explicar porquê, disse-me que se queria enrolar comigo em todos os motéis e pensões ranhosas da capital. Eu achei uma graça doida à ideia, e disse-lhe que a originalidade merecia um ‘-Claro que sim!’ Já sabia que para justificar a quebra de contrato, iria montar a motivação, na crítica da sua relação ‘oficial’. Todo o discurso que justificasse a minha pila na sua boca, seria devido ao quer que seja que o marido fazia. Pedi-lhe para não falar dele, mas ela foi falando e dizendo que ele isto e ele aquilo, e num ou noutro ponto, a queixa parecia razoável. Mas nenhuma me parecia justificar a manutenção de um contrato que estava condenado, mas que ambas as partes se recusavam a deixar morrer, fosse pelos motivos que fossem. A sua relação evoluiu normalmente, para uma codependência. Com erupções de individualidade temporárias, onde eu ou outros e outras, entram. Percebi que Júlia apesar de ligada ao marido, já se tinha emocionalmente divorciado há uns tempos. Um sentimento de honra, e carinho por ele eram a pele que sustinha a fractura exposta. E por vezes, após algumas sessões de foda após discussões, reemergia essa atracção, que ele tinha a inteligência de manter, sabendo que o que as vicia são os picos emocionais que cada um é capaz de lhes facultar. A Júlia colocou-me no meu lugar dentro da sua cabeça, num dia de Agosto. Estávamos numa praia do Sudoeste, sozinhos, e ela olhava para mim apoiada sob o seu ombro esquerdo, e eu vi-a pelos meus olhos entreabertos, a olhar para mim e a meter aquelas roldanas a funcionar. Pesando, confirmando ou não, variáveis a partir dos juízos que formulara sobre mim. Chegáramos à altura de perceber se podia fazer uma troca directa, ou se eu era apenas uma paragem de autocarro para um destino qualquer, o dela. Depois de olhar, cai nela, e tal como criança que desmonta um brinquedo, decide dirigir-se à alteridade, eu, dizendo ‘-Se calhar vou ficar solteira até morrer.» Era congruente com tudo o que de negativo dissera sobre a relação oficial. Interpretei como um teste, para ver se eu avançava, sinalizando uma vontade de a acolher, desposar. Olhei para ela e só pensava como podia ela dizer aquilo, estava casada e não largava o marido, embora por vezes me tentasse manipular implicitamente, nunca às claras, indiciando a possibilidade de o largar e dedicar-se a tempo inteiro comigo. Nunca às claras, para não ficar escrava das suas palavras, salvaguardando todas as opções até ao último momento. A casualidade com que disse o que disse, mostrou-me que a minha resposta não era importante. Já decidira que eu era útil, mas não tão útil assim. Ou melhor, era útil para algo que não era assim tão central. Uma espécie de cereja que jaz no topo do bolo. Mas nada mais que um ponto vermelho em cima do que realmente alimenta. Ou então, vira na sua bola de cristal, que eu nunca me comprometeria com ela. Que muitas delas, nos conhecem melhor que nós próprios, só porque convivem connosco um dia ou dois. O que eu tinha a dar, escritor por ‘conseguir’, fascinado com os temas ‘académicos’ que se sucediam ao longo dos anos, as calças de ganga rasgadas e os casacos de cabedal de adolescente, não lhe dava a ela, garantias de vida adulta, que ela precisava na sua ‘idade’. A ‘segurança’ como elas lhe chamam. Era atraída para mim, gostava do nosso diálogo horizontal, eu constituía um desafio, mas ela sentia que tinha de ser prática. Percebi nesse momento, que só seria um ser humano para ela, se lhe fosse útil. Estava condenado a ser um espectador da sua peça no mundo, nunca uma personagem no seu palco. Os períodos de glória coincidiam com a maior entrega dela à missão marital. Dava jeito ter gajos por fora, permitia-lhe gerir o seu comportamento, a sua mentalidade de carência, a sua linguagem corporal, e acima de tudo, o seu sentimento de condenação a determinada situação. Comigo perseguindo, sentia-se mais livre, com possibilidade de escolha. Com posse ainda, daquilo que atrai. Existia também toda uma história de investimento ou autoconvencimento, nesta última fase (e decisiva) da sua via pelas ruas do desejo e dos compromissos sexuais. Dizia para si própria ‘-É este.» e reconfortava-se na certeza da decisão madura. Vestia a pele, que não podia deixar de ver ao espelho. O tipo cumpria os pontos sine qua non da sua checklist, e contribuía para a ideia daquilo que ela quer e espera da ‘vida’. Nesta fase… Era baixista numa banda relativamente bem conhecida pelo grande público, não o suficiente para viver da música. Trazia para casa o bacon como camionista, e tinha estatuto social, reforçado sempre que algum fã o reconhecia na rua e pedia o autógrafo. Ela gostava de ser a sua mulher, a gravitas do prémio conquistado, jorrava por ela também, como que por osmose. Frequentavam grupos de ‘artistas’ e ‘intelectuais’ lisboetas, onde uns se validam aos outros como pertencendo a uma espécie de elite, seja estética, seja de adequação a um zeitgeist. E no entanto, o tipo, detestava Lisboa, migrado de outra zona do país, sentia-se condenado a ter de fazer vida pela periferia da capital. Sentia-se mais puro que os autóctones de Babilónia a Grande, e torcia por todos os clubes da bola, que não fossem da metrópole. Mantinha a crença bipolar de que era sofisticado por conhecer as sarjetas de Lisboa, mas puro porque oriundo das serras setentrionais. Mas o que lhe faltava na relação, era o sentimento de poder, que vem de se saber objecto de desejo de outros, e toda a historieta de gerir expectativas e distâncias decorrentes da manipulação desses desejos. Eu percebia claramente porque me escolhera. No passado ela esgotara todo o seu stock de oxitocina, e agora, precisava de meus olhos para se sentir ainda no jogo, e não na recta final de uma existência que passou a correr. Como eu, e outros, não temos um stock limitado de oxitocina, podemos apaixonar-nos até idades respeitáveis. O que fica só a impedir, é o reconhecimento de padrões que vem com as voltas ao Sol. Se as fizermos de olhos abertos. Nos homens, a desilusão apenas vem com a acumulação de informação. Ver nos meus olhos que gostava dela e a minha crença em amanhãs felizes, alimentava-a. Distraía-la para a memória das emoções sentidas nos períodos de cortejamento. Recordava a oxitocina perdida. Dentro da sua cabeça era claro o desejo de adiar a monotonia implacável da invisibilidade crescente que já não nos alimenta o ego. Ego, esse dragão alado insaciável das doses narcóticas, que tem dificuldades com a metadona decorrente de ter de voltar à terra com cabelos brancos. Por isso também, por não conseguir acreditar num enamoramento que lhe era física e emocionalmente interdito por ter sido gasto previamente, só conseguia julgar como parvos, todos os que escolhiam, ou se permitiam gostar dela. Um carro dos bombeiros passa na pensão onde estamos. Vejo as luzes azuis rápidas pela parede, e ouço as pessoas conversar lá fora. Alguém se sentiu mal. Não posso queixar-me de Júlia. Fala-me de si, e não me trata de forma bipolarmente áspera, nem descarrega em mim a frustração das suas escolhas. Disfarça muito bem o que retira desta escapadinha, o que revela preocupação com o que eu penso, e não uma postura decorrente de uma visão redutora da minha pessoa. Aparentemente. Mas é sombrio, saber que ela entende o suficiente da situação a 3, para evitar maltratar em demasia, o meu ego. E acima de tudo, parece apreciar o tempo que tem para passar comigo. No pub do Cais do Sodré estava realmente contente e investida em fruir a nossa interacção, e não a expor pontos de vista pessoais sobre a sua relação, das coisas, dos caprichos que o macaco interior não deixa de sugerir. Isso só me fez respeitá-la. Não sei se faz de propósito. Não noto premeditação. Está mesmo investida em alimentar-se do meu apreço por ela, e eu alimento-me da sua espontaneidade. O que retira de mim é claro, e não é uma função, é fruir o natural apreço que sai pelos meus olhos. Nesses estranhos momentos fomos felizes um com o outro. Mas ela não me deixa voar com a lembrança deles, não vá criar ideias acerca do meu papel. Um braço continuamente estendido para me manter à distância aceitável, e não me deixar ir embora de vez, agarrando-me ao mesmo tempo com a promessa daquilo que sabe que eu quero, a si. Será que é quebra de contrato quando o tempo pára e só existo eu e ela? Quando nos esquecemos da outra parcela da equação, e conseguimos libertar a nossa preocupação, agindo como namorados normais? Quando vem com a conversa de «-Vais ver, um dia vais encontrar uma rapariga que te estime como mereces.», fico logo a saber que as coisas estão alinhadas ou a alinhar-se com o marido. O tal fatalismo assumido, que me prova que sou uma solução a prazo, de recurso, paliativa e conveniente por enquanto. Que quando eu exigir algo mais, passo a cliché, esperado, do tipo que não soube respeitar os limites, as regras. Desqualificado para ser mais do que uma distracção. Quando diz que «-És um vórtice para mim, e existe algo de metafísico no nosso encontro.», fico a saber que as coisas estão estagnadas lá por casa, ou é o anzol para alguma validação, ou é ainda ela a soprar arco-íris pelo meu rabo acima, dizendo-me o que acha que quero ouvir. Talvez para se convencer a si mesma de uma espécie de tragédia na nossa relação, no contexto da sua vida, e em todas as suas falhas de carácter. Justificando para si mesma, a instrumentalização que faz da minha pessoa, pois as culpas passam a morar no reino metafísico. Justificando o passado rejeitado no presente sob a batuta de escolhas que não se puderam não tomar. Eu aprecio de facto, este esforço serôdio e bem-intencionado – e totalmente desnecessário – de me sarar ou tentar salvaguardar o ego. Vale pela intenção, e pouco mais. É que os momentos são tão absorventes que constituem um mundo só por si mesmos, e quando a realidade acorda, é quando a alienação bate à porta, cada um apartando-se para a normalidade presente que é a consequência passada das nossas escolhas. Das escolhas que tomámos quando éramos outras pessoas e que temos de honrar apesar das mudanças. E esta é a natureza pétrea de qualquer contrato. Lambo-lhe a omoplata, numa relação minha com a sua carne, cujos trejeitos do meu rosto vincam com a tesão por ela existir. A minha língua levando para casa, as pequenas células de pele e sabor da sua derme, que mitigam o desejo de fundir os corpos num orgasmo colectivo prolongado. Sarah Vaughan 'My funny Valentine' - 1969 Gamma «Quero acordá-la. E digo : «não me deixes morrer, não deixes…» Penso para comigo, repito para me convencer: «esta pequena mão, âncora de carne em vida, estas amarras suas veias artérias palpitantes, este peso dum corpo e este calor, não me deixarão partir ainda…» E aperto-lhe a mão com força, e acabo às vezes por adormecer assim, quase confiante, agarrado à sua vida.» Luiz Pacheco 'Comunidade' Mas este adultério não tinha só coisas boas. Parte do seu comportamento emanava daquilo que chamo a ‘barriga cheia’ que é uma transbordante confiança observável no discurso e na postura geral da pessoa, que exprime a oscilação entre períodos de contentamento e descontentamento na relação principal. O oposto de uma mentalidade de carência. Como se o ente fosse incapaz de amar simultaneamente outros dois, optando sempre pelo vértice oficial do triângulo, excepto quando não o suporta por perto, independentemente do motivo. Há sempre uma relativização do vértice menos importante do polígono. O mais facilmente substituível, e com menos esforço investido. Mesmo que denotado esse vértice como ‘vórtice’. Geralmente, o justificativo para esta confortável reificação do outro é a desculpa que dizemos para nós «-Ele sabe as regras, e se não sabe, devia saber, que aprenda.» A boçalidade é um estupendo branqueador de qualquer responsabilidade pessoal. A tal ideia do mundo como um lugar de cão mata cão, ou de o homem ser o lobo do homem. Como as águas limpas do Jordão, esta variação do homo homini lupus elimina qualquer nódoa de falsa empatia prévia. Quando o nosso umbigo dança no meio da sanzala, os princípios voam pelo rossio. Resta ao corpo estranho, eu, oscilar entre as migalhas que caem do pão dos maus momentos entre dois indivíduos. De outra forma, não bastando meter-me no meio do contrato de outros dois, só sou merecedor de afecto e consideração, se as coisas correrem menos bem entre eles. Que é vexante, e me faz sentir menos homem. Como se o meu valor não fosse o suficiente para captar a gaja por inteiro, ao mesmo tempo que fico preso no serôdio orgulho de ‘roubar o troféu de vida’ a outro homem, ainda que por breves instantes. Que a escolha intermitente por ‘mim’, exprima uma qualidade superior em algum aspecto meu, sobre outros. Que é uma traição a mim mesmo, mais do que a um camionista. Mas a verdadeira traição não foi esta que acabei de auxiliar nesta cama espalhando o meu esperma por orifícios inférteis e corações gastos. A verdadeira traição foi aquela onde ambos fomos genuinamente felizes um com o outro, deixando o terceiro de fora. Esses momentos de verdade…ainda que relativa, constituem por si mesmos, a maior traição de todas, a de ela a si mesma. Não bastava a minha a mim mesmo. Até pelo simples motivo de querer renegar todas as consequências das escolhas passadas, como alguém que pede ao senhor guarda para fazer vista grossa à multa por ter passado um vermelho em contramão. Para o observador externo, Júlia passa da carente do que emana dos meus olhos, a monopolista das escolhas várias que lhe facultam uma sensação de valor e de liberdade. Júlia usa o amor que lhe têm, como aspirina existencial. Mas é alguém que se considera altruísta e empática. Não consegue ver além do ego, que lhe martela as cogitações como uma lavagem auto, onde a ideia de si mesma sai sempre limpa no final. A traição espraia-se como onda explodida no areal. No fundo, o único feliz na relação a 3, é o que a ignora. Esses momentos de ilusão, onde eu sinto aquilo que quero sentir, a existência de um ‘nós’. É uma coisa tramada, ser a terceira roda de uma bicicleta, que só beija o chão quando a corrente sai da cremalheira. Quando a bicicleta anda normalmente, sou um acessório quase descartável, apenas porque aceitei o contexto de partilhar a minha mulher com o seu namorado, com o seu marido. O pedal de descanso. Com o seu contexto, com o círculo de amigos, com a família, com o tudo que acaba por dizer respeito a ambos, excepto aquela semente de descontentamento ou inevitabilidade onde eu caibo, aquele buraco da agulha por onde entrei na vida dela, e por arrasto, dele. Mas, não sabendo de mim, não existo. Já ela, não querendo saber de mim, deixo de existir também. O vínculo dela por ele é profundo e complexo, com aromas agradáveis e outros fétidos. Dos planos de fecho do casino, a afeição que foi ganhando por ele, a gratidão, o habituarem-se a serem vistos como um casal, uma unidade composta de duas partes. Toda uma imagética, difícil de voltar costas. Tudo o que investiu, da sua escolha definitiva aos esforços contínuos, que por vezes passam por gaslighting que faz a si mesma, tudo isso cria massa crítica que dificulta e vai contra qualquer ruptura. Mas também tenta convencer os outros com esse gaslighting, para ter parceiros no crime, acreditando acompanhada, que não é um ser humano não apenas com defeitos, mas um completo destroço feito de carbono. É necessário que outros acreditem nas suas racionalizações, sempre simpáticas para a sua pessoa, para que também ela, possa acreditar. Não é apenas o meu amor por si, que parasita. Parasita também a minha boa opinião dela, que com tanto afinco tenta perpetuar e defender, apesar do seu comportamento. Mas não lho posso dizer, porque como disse atrás, acham que tudo o que não é simpático, é dito por ressabiamento. Como alguém que perde um anel de baixo valor numa poça de areia movediça, quanto mais o procura e investe esforço, menos se consegue soltar do que já investiu, mesmo que o anel não valha a pena…mas já se esforçou tanto que passa a ser por teimosia ou rentabilizar a energia gasta. Como explico então a sua presença na minha cama? Fora o afecto que tem por mim, fora o sentimento de liberdade que advém do sentimento de ter escolha, fora do engano à morte que acena de longe, como posso ver o motivo de jazer aqui nestes lençóis ali além por detrás do fumo do cigarro manipulado pelo vento que sopra pelas frestas da janela? O terceiro elemento, está sempre dependente do alinhamento dos astros e dos humores, para poder colher o carinho e a atenção do parceiro ocupado na sua outra relação. Acossado pelo sentimento de menoridade, de esperar que a discórdia traga os lábios que quer nos seus, segredar aos ouvidos que foi sentida a sua falta. Mesmo após a escolha, para salvar o seu casamento, nada ficou resolvido apesar da parede de silêncio e afogamento premeditado do quer que se passara entre nós. Mas nada há a resolver. Há um sentimento de coisa pendente, mas non sequitur, nada se segue. É um dos castigos do Inferno, este de sentir algo análogo à predestinação impossível em assuntos dos encontros com outro. Condenado a cair para a frente, em movimento eterno, ao mesmo tempo que, uma mão brusca e incógnita me agarra pelos cabelos e me sustém no mesmo desequilíbrio adiado, sem alguma vez lograr a cair de vez ou andar direito. Percebemos claramente que não somos apenas uns meros novelos de lã que se cruzaram em algum ponto do tempo. E isso é tão raro, mas a vontade e a escolha das pessoas aparece a esta luz, de forma radiosa, há de facto um quid que decidimos na nossa existência. Alguns chamam-lhe ‘desencontro’. Não gosto do termo, falta-lhe o tom trágico, pois a falta de encontro mais não é que uma divergência de transeunte do mundo. Falta-lhe o carácter trágico de ser a negação de um plano escrito por alguma entidade cósmica em que se queira acreditar. Não é desencontro, é desafio, é vincar a individualidade sobre a evidência. O aleatório, sobre o destino. Um pouco como alguém que tenta suster a respiração de vez. Quase ninguém consegue morrer por apneia voluntária. Suster o fôlego é uma decisão firme de não querer seguir o plano. Mas que plano? Só o vértice solitário do triângulo, acredita em predestinações, pois é a forma que tem de justificar para si mesmo, o tal sentimento de menoridade, de ter de partilhar o alguém do seu desejo. Seja para saber que estou no outro lado da linha, seja porque tem pena de me deixar sem si, Júlia vai mandando um ‘oi’ por sms, um ‘olá’ por whatsapp, um ou outro suspiro, por via de uma situação para a qual também não vê resolução mais satisfatória que não aquela a que se acostumou, confortavelmente. O Diabo condena e Deus tem pena, dá-nos o esquecimento como hóstia para perdermos a ideia da falta daquele que nos faz sonhar acordados, indagar se pensa em nós, emigrado noutro país de que não nos conta novidades quando vem de férias, para a pátria dos nossos braços. Abre os olhos e vê-me pensativo e a fumar. Faz-me uma festa na perna flectida onde apoio o braço que sustenta o cigarro, e como não me arranca da cogitação, agarra-me os testículos, como que exigindo que olhe para ela, e aproveite o momento enquanto dura. Sorrio e digo que sim com a cabeça. Faço-lhe uma festa com as costas da minha mão no seu rosto, e finjo que não sei que amanhã vai estar a beijar o marido, e a aninhar o seu rosto contra o seu peito. Penso cá comigo, que não existe futuro para nós. Sei que nunca fui a primeira escolha, ou até relevante o suficiente para ser escolha, a não ser pela longevidade do nosso envolvimento à distância. Isso é algo que mesmo que engula, fico sempre a sentir-me menor, por uma questão de dignidade própria. Talvez no passado. E no passado ficou também qualquer possibilidade de encantamento pueril, à desgarrada por Lisboa, que descobriu com outros que não comigo. Com viagens por aí a fora, que fez com outros. Que tem para oferecer um cemitério de rapazes, a alguém que ainda é capaz de apreciar o enamoramento? Até nisto a solidão se infiltra implacavelmente, sem mitigar nada, por mais fodas dadas. Impossibilita a escrita de um texto de nós dois, que não seja um decalque fanhoso de outras histórias passadas, de outras pessoas. Um pouco como construir castelos de areia no meio das ruínas de Roma. Nós queremos Eternidade, não o momento remediado. O amor exige grandiosidade, é totalmente avesso ao carácter pragmático da ‘vida’. Viver uma história de amor manca, é pior que viver de restos. O amor não é assim. O meu, pelo menos. Como resumo da minha situação, condenado a cair para ela, nunca a podendo abraçar, e mesmo que pudesse, a sua alma está sempre algures onde não posso ainda seguir. Quando falamos, nos abraçamos, ou vamos ao cinema, nunca fez aquela alma, perguntas sobre mim. Fala sobre si, muito, retendo informação que a exponha ou que eu possa usar contra ela. Cedo percebeu que facultar informação para mobilizar para a causa das suas racionalizações, podia ser-lhe atirado à cara. Justifica agora a omissão, com a necessidade de não misturar esferas, coisas com outras pessoas que não tenho de saber. Mas de facto, ela não gostou do espelho que lhe era colocado à frente. Ia contra as interpretações simpáticas a que convenientemente se habituou. Fala do seu filme preferido, das epifanias ao longo da sua existência. Sem alguma vez me perguntar, qual o meu filme preferido, e porquê. Qual a minha cor preferida e desde quando. Qual a minha primeira grande paixão e onde. Num triângulo, o vértice excêntrico nunca usufrui do direito a ser gente. Reduz-me implacavelmente a uma figura pela qual não quer ter interesse, pois sabe ser incapaz de adesão emocional à minha causa. A minha utilidade é meramente distractiva, e várias vezes pensei, quando bebíamos uma cerveja à beira do estuário, na esplanada, deixar uma orelha e um olho, e ir dar uma volta, deixando-a a falar. Ela obteria a atenção com que ventila a avalanche de emoções do seu solipcismo, e eu, veria as variações da maré sem perspectiva da profundidade. Escutaria os pássaros que chafurdam no lodo, só de um lado, não estereofónico. Duas almas gastas por passados, por vagas no temporal, de várias dimensões, que desgastaram os nossos paredões, com o passar dos anos. Lembramos a tempestade de determinado Inverno, quase esquecemos as pequenas vagas, mas no fim de contas, já somos mais areia, que uma parede a 90 graus capaz de chocar com a ilusão do amor na vida. Só lá para os 70, 80 anos, talvez a solidão seja tão insuportável, que possamos estar juntos. Isto na cabeça delas soa a romântico. Confere a segurança de companhia e bajulação para ali além da velhice. Exige do amante um apego a-carnal na atracção por ela. A cru, é apenas vacilar finalmente com o papel secundário a que nos quiseram condenar. Mas aquele que ficou de fora, vai sempre pensar que só agora, às portas da Morte, é que merece algum tempo, a esmola cronológica que os românticos dizem que é melhor que nada. Comprou a sua boa consciência dizendo o que eu queria ouvir, assim como que por frestas de insinuação, e o que eu queria ouvir era a sua respiração no meu ouvido. Conduziu-nos a bom termo, para poder voltar a ignorar-me, desta feita, de consciência tranquila. E eu disse-lhe: «-Epá, podes usar-me como seringa de auto-estima, mas ao menos deixa-me ser eu a escolher onde espeto.» A comê-la por trás, a determinada altura comecei a ver não um corpo, mas o símbolo que aparece nos ecrãs dos telemóveis quando estão a carregar, gradualmente enchendo um rectângulo em forma de pilha, até chegar acima, à cabeça da mesma, de Júlia, do pólo positivo. Que visto de frente parece um pequeno mamilo, e de perfil, uma cabeça. A Júlia a carregar a sua auto-estima, o seu amor-próprio, que é para isso que eu, ainda, sirvo. Mas apesar dos seus defeitos, Júlia é de uns anos a esta parte, uma das minhas namoradas preferidas. Gostar desta puta faz parte da minha identidade. E a opção é claramente oscilar entre posturas que me humilham ou rebaixam a seus olhos, OU, permanecer fiel a mim mesmo e mantendo sempre uma porta aberta para a expressão do meu amor por ela. De que adianta dizer que os amores são escritos nas estrelas, se depois nos convencemos a nós próprios de que não gostamos de quem gostamos, só porque gostam de outros que não nós, e nos tratam como merda? Que raio de amor escrito nas estrelas é esse, que acaba no momento em que percebemos que a gaja por detrás da maquilhagem e do cabelo de cor estridente que mascara os brancos, é um destroço humano cuja maior força era a ilusão que conseguia mascarar tudo isto? Que raio de amor é esse que acaba se percebemos que a amada é uma pobre de espírito? Pode o amor amar o que não vê como bonito? Pode. Porque eu e o camionista, a amamos. Há que ser congruente e complexo, com incongruências simplórias. Mostrar ao putedo, que o amor que um homem sente, não é circunstancial, mas que também não é a nossa biologia que manda em nós. Não, nem pensar. Amá-las com todos os seus defeitos. Amar os seus defeitos. Apenas não cair no erro de nos transformarmos em destroços iguais. Tal como Deus, não mergulhar na miséria dos homens, mas elevá-las à Sua Glória. Justifico para mim, que desrespeito o mandamento bíblico de não cobiçar a mulher de outro, dizendo a mim mesmo que é por um motivo especial. Por estar apaixonado por ela. Quem sabe, única paixão na minha vida. Que ela não quer. É demasiada responsabilidade, e nunca a pediu. Tal como eu nunca lhe pedi para largar o marido. É confortável justificar um homicídio com a desculpa da ofensa pessoal. Matou x ou y que eu apreciava, ergo faço justiça pelas minhas próprias mãos. Felizmente nem eu acredito nisso, e a desculpa que melhor me torneia é a de que, já me fizeram a mim tantas vezes, também eu faço aos outros. O problema é que não foi ESTE tipo, foram outros. Mas também sei, que mudando o contexto, também ele o faria a mim, pois nós os homens, não produzimos milhões de espermatozóides por dia, para não sermos oportunistas ou guiados pelo falo. A carência é um sentimento, e a mentalidade de carência são sentimentos a determinar pensamentos. Os rebarbados são por isso, determinados pela sua biologia. A honra é antinatural no homem, apenas porque também é uma negação da temporalidade e da circunstância. Só pode ser honrado aquele que acredita na Eternidade. E o amor é eterno. Tal como o Nada. Finjo alguma elevação e digo a mim próprio que uma cona não vale a perda da honra. Mas olhando para trás, quantos gajos não se mataram em duelo, por essa perigosa palavra. Muitas amantes me confidenciaram que apenas procuram na vida um homem honrado. E eu rindo-me por dentro não consigo deixar de pensar, querida, se fossem realmente honrados, nada iriam querer contigo. Ela liga-me e vem com a lengalenga de sempre. Tem a inteligência de apalpar o terreno com uma remissão de culpa, depois finge participar na minha fantasia de que somos predestinados, bombardeando-me com atenção, e eu ainda sem perceber bem o que ela quer. Depois guina como lebre, sabendo desde adolescente, que se tiver este comportamento, os homens, por algum motivo, perdem o juízo. Não sabe que é pelo facto de que o ser humano masculino ser um resolvedor de problemas nato, e que está sempre a procurar fazer sentido das coisas a partir do princípio de razão suficiente. E que por isso, o jogo do quente e do frio lhe parecem ilógicos, e tem de extrair mais informação, o que o prende. Não por elas, mas para resolver o enigma. Por isso as alterações bruscas de comportamento, de direcção, são difíceis de perceber para quem tem uma mente analítica e sistemática que busca as constâncias e padrões na vida. E elas sabem disso, e usam e abusam dessa determinante psicológica, em seu benefício, como crianças brincando com barras de dinamite. Elas, as altruístas, as empáticas. A melhor camuflagem do arsenal feminino não é a maquilhagem. É perceber o carácter lógico do homem, e jogar ali pela colina parda, com o ilógico, onde eles perdem a cabeça com as mensagens contraditórias. É refinado terrorismo psicológico, nunca se comprometer, dizer hoje uma coisa e amanhã o seu contrário, ou dizer que me quer e que se masturba, e depois passar dias sem nada dizer. O objectivo é sempre o mesmo, ainda que se confrontadas com isso, inventem historietas acerca da complexidade do Cosmos. Fazem-no de forma tão despudorada e automática, que levar isso a mal é parecido com levar a mal que os cães cheirem os rabos uns aos outros. Se quer uma forma barata de passar o tempo monótono, vingar-se ou parasitar-me os olhos, onde consegue ver o amor que lhe tenho pela forma como olho para ela. Não sei. Não me interessa muito. Por vezes está prestes a descobrir-me, vendo o esforço e plano que faço para lhe reflectir a mais fiel imagem de si mesma. Quando é cabra, sou amável. Não lhe dou um motivo que seja para me culpar ou odiar. Tudo isso fica no seu campo, até um dia a chegar, porventura, em que a sua natureza humana finalmente reconhece, que passeou pelas vidas dos outros feitas de papel de arroz, com pés de chumbo dum escafandro oitocentista. Mas João, se me achas assim tão má pessoa, como consegues suportar a minha presença? Como podes ainda querer estar comigo? És masoquista? Não te vendas barato, amor, tu não és má pessoa. És a pior que conheço. Bem, aqui exagerei, por estar chateado com ela, mas de certa forma, não sendo a pior, estava no top 10 de certeza. Esta não é má com toda a gente, só comigo. Assim o diz. Ou assim quer acreditar. O que a ajuda a justificar quer a atracção que tem por mim, quer a traição que comete a ela, a mim, ao marido, ao mundo. A Deus, que se ri por certo das nossas misérias. Mas se eu quisesse gajas puras, decentes, não te procurava a ti. Não dão pica, tu sim. As tuas acções comigo e depois eu reflectir para teus olhos o teu comportamento, como alguém que sinaliza luminosamente para montanhas vizinhas através de um espelho que brilha ao longe reflectindo o Sol…isso sim, é um desafio. Não consigo, nem quero mudar-te, domesticar-te, insuflar-te elevação, por nenhum orifício. Apenas aceitar a pessoa que és ou em que tornaste. Vencer a ilusão que os meus colhões insuflam no meu neocórtex. Nada tem que ver contigo, amor. O que és agora, resulta de um processo histórico, que quero entender. No fundo quem sou eu para avaliar judicativamente o bem ou mal dos outros? Para mim és uma cabra e uma puta, e isto dito com o maior carinho possível. Para outro ou outros, a luz dos seus olhos. Apenas te posso avaliar a partir dos meus minutos passados contigo, da nossa relação. Mas tu não acreditas quando te digo que és especial para mim, João? O reflexo condicionado de indignação ruboriza-lhe o rosto, para aumentar a teatralidade do ataque de vergonha implícito. Amor, respondi eu, da tua boca acredito em tudo, desde o dizeres o teu nome, até a dizeres como te chamas…mas às vezes tenho algumas dúvidas. Quereres que eu acredite que sou especial para ti, equivale à história daquela gaja que dia sim, dia não, levava na corneta do ‘seu’ homem. Mas ele diz-lhe que lhe bate por amor. Por profundo amor. Como sei que dificilmente alinharias em exemplo análogo, não entendo como queres que acredite que sou especial para ti, quando depois tens comportamentos de merda. Sou uma cabra para ti, mas é porque és especial para mim. E se te chamo à atenção, só revelas a cabra insensível, que diz que não há direitos nem contrato para nós os dois, nesta relação extraconjugal. Nenhuma obrigação ou consideração, só devidas a quem paga as contas lá em casa. Nem a cortesia da empatia, de colocação no lugar do outro. Mas se calhar isto, já sou eu a deambular na maionese emocionalista. Mas olha que se calhar, há algo de verdade nesta merda. Mas João, és especial, há alguma coisa que a Providência estabeleceu entre nós… Pousei gentilmente o meu dedo sobre a sua linda boca escarlate, mordendo-me para não a beijar e lamber. E disse-lhe, não tens o direito de dizer isso. Alguma vez. Se queres que continue a falar contigo, não usarás mais alguma vez, essa arma. Esse argumento é meu, porque acredito nele. Prostituis todo o seu significado, usando-o para os teus fins. Copiares para fins de meu convencimento, a descrição que te faço do meu amor por ti, é pior que beijar profunda e apaixonadamente uma boca cheia do sémen de outro. Respeito mais uma bardajona que assume o que é, que uma sonsa que se faz de fina. Diz-me o que queres sem rodriguinhos. Não desrespeitas é o que sinto profundamente por ti. Isso não to permito. Nem que o uses contra mim. Ou eu mesmo. Gajo que é gajo, ama de forma total e incondicional. Não pede desculpas, nem admite gozos, pelo amor que assume integralmente. Nem mesmo da puta que ama. Mesmo que te tentes convencer a ti mesma, essa ideia é minha, só minha. Convence-te com outra merda qualquer. Convence-te que o côncavo do meu falo é o único perfeito para a convexidade da tua vulva. Qualquer coisa, menos abastardares o meu amor com a tua boca e as tuas manhas. Aceito-te como és ou te tornaste. Ou sempre foste. Não me ralo muito que me aches parvo. Agora não pode passar a relativização que está na base de estar ainda a falar contigo, apesar de tudo o resto. Isso é meu, e não deixo que o conspurques, usa outras coisas. Olha, usa os meus textos. Ambos sabemos que é o meu ponto fraco, e pelo menos faz-me sorrir o esforço manhoso que fazes. Fazes-me sentir que lhes dás importância, e por arrasto sinto-me importante para ti, também. Acho que te entendo João. E não sei o que é mais perturbador para mim, se pensares assim de mim, se teres motivos para pensar assim sobre mim. Ou seja, para ti o problema não é se de facto entras na loja de porcelana a alta velocidade e ao pé-coxinho. Apenas se pensam em ti como velocista ou não. Ri-me com o meu próprio exemplo, martelado à pressa. Foderes a loiça toda à tua passagem, é irrelevante. Não foi isso que eu disse e percebeste bem o que quis dizer. Prefiro que me magoem a mim, do que magoar os outros. Preferes nada. Gostas de pensar assim. Mas não vamos por aí, porque também não quero fazer disto um melodrama. Somos todos seres imperfeitos, a braços com os nossos estilos de estupidez. Ou pensas que eu não sei, que tu és uma folia a que me permito. Eu não deito fora os presentes que me dão no Natal. Sejam quais forem, venham de quem vierem. A Providência meteu-te no meu caminho, e eu gosto de ti. Sempre gostei. É contigo que tenho de trabalhar para entender ‘nós os dois’, tal como um cego de nascença tem de aprender a ver o mundo à sua maneira. Agora, nunca me ouvirás dizer que o mundo é um lugar escuro. Gosto de ti desde que te vi pela primeira vez. Gostas, mas fodeste outras. Ri-me sonoramente. Isso vindo de uma tipa casada… Só para função da argumentação. Não, eu ia-me manter virgem e quase por estrear, num sótão qualquer, à espera que tu deixasses de foder todos os que fodeste e achaste melhores do que eu. No fundo, abdicar da minha vida para te provar que os meus sentimentos eram verdadeiros. Abdicar da tua vida? Não, mas se como dizes te ocupo o pensamento desde que me viste…tens passado muito tempo inconsciente…ou esquizofrénico. Riu-se. Quando te disse que te queria comer e andar contigo, na primeira vez, disseste-me que tinhas muita vida pela frente e não te querias prender. Sim, eu lembro-me, e tu disseste que só não tinha muita vida por trás porque não (te) deixava. Ri-me, com as minhas piadas, congruentes ao longo dos anos. Por que raio haveria eu de ficar preso ao meu celibato à espera de me tornar num supremo prémio de consolação? Eu não digo isso, só notei que é estranho, incongruente. Ri-me jocosamente. Isto dito pela tipa do ghosting, dos silêncios prolongados, dos hot and cold, que deve ter uma caderneta em casa quase cheia dos cromos de como fazer de mim idiota, de todas as maneiras e feitios. Já só te deve faltar a maneira do ‘Sem mãos’. Rimo-nos os dois só com a ideia, e com os meus maneirismos ao exprimi-la. Parvo. Parvo o caralho. O que estou a dizer é sério. Eu não permito que usem as minhas emoções contra mim. Isso é um privilégio meu. Já que Deus me lançou ao caminho uma gaja que não gosta de mim o suficiente senão para foder ocasionalmente, para matar tempos mortos, para encher a bilha de auto-estima, ou para não dizer o meu nome, ao menos que a experiência sirva para eu continuar a aprender sobre as pessoas e o mundo. Mas quem te disse que eu não gosto de ti o suficiente? Não precisas de dizer, as tuas acções dizem-no. Atenção que não estou a censurar, é mesmo assim. Mas quais acções, toda a minha história é demasiado complicada… Não duvido, e não me interessa. Só noto que, sempre que me ponho a adivinhar algo sobre ti, fazes questão de mostrar que ou errei, acertei ao lado, não entendo. Já sobre mim, a tua certeza, certezas, são sempre apodícticas, em cheio, finais. Curioso como a tua estrutura cognitiva supera a minha em ordens de magnitude. Não sejas sarcástico. Tenho de ser. Há anos que te apanho nesta tinta de choco, ou fuga de lebre, que muda constantemente a direcção da fuga em ângulos rectos, para dificultar o predador que é mais pesado e menos ágil. Por algum milagre os outros nunca entendem a assombrosa profundidade do teu ser. Esse não entendimento é uma medalha que usas ao peito, prova de que és especial e feita de um barro diferente dos demais. Fazes questão de não te entender e ser honesta contigo mesma, porque isso te dá margem de manobra para te continuares a enganar sobre quem realmente és, e é uma posição confortável. Além de que, se fizesses introspecção e assumisses frontalmente as tuas acções, e pensamentos, seria difícil continuar a canalhice, pois aumentaria o sentimento de culpa decorrente do grau de consciência. «-Sentir que se está em pecado, é o pecado.» Tudo o que te diz respeito, é algo de complexo e só acessível aos deuses. Tudo o que diz respeito à minha pessoa, clarinho como o vinho tinto. Afinal de que defeitos te queixas tu, visto que não acerto em nenhum aqui do meu lado? Oh. Que querias que fizesse, que largasse tudo? Eu gosto do meu marido. E depois que pensas tu de mim, que largo um e me jogo logo nos braços de outro? Sou alguma puta ou quê? Fugiu da pergunta. É tão certo e previsível que chega a ser monótono. Se querem perceber o grau de introspecção de uma mulher, perguntem-lhe quais os seus maiores defeitos, e que os expliquem. Tinha sentido o toque e no fundo sabia que eu tinha razão e que nunca poderia falar comigo do ponto de vista exclusivamente lógico. Perderia toda a margem de manobra. Do apelo ao sentimento, da manipulação dos meus sentimentos por ela, do controlo da informação sobre si, de modo a limitar os meus juízos, e até que lhos mandasse à cara. Por isso desviara o assunto de partida e com a palavra ‘puta’, que escala logo a conversa para um nível que exige mais tacto e menos análise. Sob pena de um e outro poderem dizer coisas difíceis de retirar a posteriori. A conversa também já evoluíra até onde tinha de evoluir. E quando dou por mim, não suporto fazer sempre o mesmo, isso de mostrar ao outro como ‘é’. Até porque já o fizera. Sim, sou cabrão por vezes, e coloco um espelho defeituoso na cara das pessoas. Isso é cruel, porque também o faço comigo. E o que somos está sempre além do reflexo. Por isso devemos apenas olhar para as acções. Elas não mentem…tanto. Estava condenada ad aeternum a negar a minha compreensão. Tal como a lebre, a perseguir os buracos da armadura linguística, e da cortina de tinta que fica em suspenso na água, até que a passemos com os nossos óculos e snorkel. Ela prosseguiu com a sua defesa, basicamente um chorrilho de vitimizações, de enunciação de um Cosmos nublado, opaco em tudo o que lhe dizia respeito, e eu não a ouvia. Fazendo da sua incapacidade introspectiva, uma medalha, uma garantia de complexidade. Como um míope que se gaba de ver o mundo de uma forma especial. Ou um cego que defende que não ver é uma forma de visão. Estava preso na ideia de que ela não dizer o meu nome, negar-me a consequência dos meus processos cognitivos, emergia da mesma zona da idiotice do que me dissera no Areeiro. Quando dentro do meu carro, me censurou por eu dizer ser mais versado em Nietzsche, que o seu respectivo que não eu. Uma erupção violenta sobre uma arrogância tola, minha, e de que os outros também podem saber tanto ou mais do que eu, etc. Na altura pensei que o estava a defender. E como tenho pudor em assinalar as minhas medalhas, apenas mencionei que seria normal eu ‘perceber’ mais de Nietzsche, por ter formação de filósofo. Não lhe quis dizer que fiz um mestrado cuja tese se intitulou ‘Nietzsche Evolutivo, a teoria evolutiva na Filosofia de Nietzsche’, e do trabalho que essa merda me deu. Ela não o estava a defender, estava a defender-se a si mesma. Ou quando riu de forma arrogante e jocosa quando lhe disse que era o melhor escritor português vivo, como se eu tivesse dito um qualquer absurdo, apesar de ela não os conhecer a todos…os escritores portugueses vivos. O despeito falou mais alto e imediato, que qualquer consideração sobre o meu auto-elogio. Só comigo nas caves ou nas masmorras da sua apreciação, sou eu seguro para ela. Para poder instrumentalizar, tolerar, porque não se consegue afastar. Ou porque conseguindo, fica a sentir que parte de si está ausente. Ou porque sou um adereço conveniente para o tempo das vacas magras da auto-estima. Não é porque tenha medo de que aprofundar algo comigo, a leve para longe do Outro. Não. É porque se aprofundar algo comigo, e não é apenas no sentido horizontal, será levada para longe de si mesma, especialmente para longe de todas as ideias feitas que tem sobre mim, e que tenta martelar em tudo o que faço, para justificar que a profecia de início era correcta. Aquela profecia sobre o meu imerecimento e condição inferior nas suas potenciais escolhas... Se se permitir ver-me como humano complexo e significante, tem de abdicar das tretas que lhe são mais confortáveis pensar. Apesar de repetir que me vê com olhos muito diferentes, agora. Ela apenas estava a defender o seu sentimento de superioridade em relação a mim, pois é o mesmo, a única desculpa que teve ao longo dos anos, para não estar comigo. Aposto que Deus não viu de antemão esta possibilidade. Do tipo, faço estes dois cabrões para estarem juntos e foderem que nem coelhos, mas um deles vai-se convencer de que o outro é insuficiente. Mas nem isto é novo. Muita gaja dá a falsa desculpa (para si mesma) de que o gajo que ela não quer é demasiado bom para ela. Para justificar a sua escolha pela malta não baunilha. Como a maior parte do gajedo é capaz de lidar bem com duas crenças opostas só para seguir o ‘feeling’, papam bem esta falsa moeda, melhor até que a crença de que Cristo andou por Israel no dorso de um triceratops . É virtualmente impossível à mulher cair no abismo da personalidade de um homem. Tem de o ver como item, para não se apaixonar por ele. Pelo menos, as que conseguem. Nela, na mulher capaz de amor, a entrega e a fé são os degraus iniciais da paixão. No homem, é a simetria facial. Não, Júlia protege-se a ela mesma. De tudo e de todos, não sou o único a arder para a aquecer. De uma forma análoga à maneira como alguns dos colonizadores europeus viam os pretos, amarelos e vermelhos. Como uma subespécie, infra-humanos, porque retiravam prazer de se sentirem genética e civilizacionalmente, superiores…Oxitocina junkies. Assim ela. Tem de negar todo o meu universo, e contentar-se com as suas ideias feitas. Só me reduzindo a merda, a um canalha em potência, se pode sentir bem consigo mesma, tratando-me como merda, como um canalha de facto. Na esperança de que, levado ao desespero, me torne num canalha para lhe confirmar a crença de origem. Negando todo o meu contexto, a partir do feeling emanado do hipotálamo, a partir da primeira vez que me avaliou. O juízo feito à minha pessoa, a partir de estruturas decorrentes dos tempos em que a malta partia sílex para sobreviver. Na era do silício nada mudou. Há homens para foder, e homens para desposar. Não se devem misturar as coisas. Assim é claro, que a luta dela é contra aquela predestinação em que acredito e sinto. Predestinação de nós dois, onde ela para conseguir viver consigo e com as suas escolhas, só me pode anular, diminuir, reificar, humilhar intencionalmente. Porque não consegue, ao mesmo tempo. Viver sem mim. Embora o faça. Ambos de igual forma. Só depois vem nela, a necessidade de me colocar no lugar que me concedeu, o de sidekick. Queres, queres, não queres, não te queixes. Há que não deixar o secundário levantar a cabeça acima da sarjeta. Calcar o crânio para o forçar a ir para baixo e respeitar o lugar que ela escolheu e determinou para ele. Olha o filho da puta a querer mais…que descaramento! Vai para baixo, cabrão. As regras são estas e concordaste com elas. Só desumanizando o outro, se podem manter os matrimónios felizes. Há homens bons para casar, há homens bons para foder, e há homens bons para amar. E às vezes conjuga-se tudo numa mesma pessoa, o que é raro e não era o meu caso. Eu sabia o meu lugar, e estava preso, por opção própria, se aqui se pode aplicar a ideia de opção, às regras. Mercantis e contratuais. Não de comunhão de bens ou uso usucapião. Apenas de usufruto. Olhando séria para mim pergunta-me, se tivesse de escolher, entre um momento de felicidade possível, se escolhia ter acontecido ou não. Devolvi-lhe a pergunta. Ela respondeu que termos estado juntos era resposta suficiente. Eu concordei. Mas atalhei, pena que eu veja que o nosso destino um com o outro fosse mais que foder e asfixiar sentimentos. E para isto ela não tinha resposta. Certa vez também lhe perguntei, de forma desapaixonada e com a maior curiosidade genuína «-Porque és tão puta para mim?» «-Não te consigo ver como vítima, e és o único a quem trato assim, porque és especial.» E eu lembro-me de pensar em Ockham, e no princípio de economia, face à sua explicação. Instada a justificar este ou aquele comportamento, Júlia elaborava sempre uma narrativa que em algum momento batia de frente com a sua própria possibilidade. Para justificar a falta de respeito por mim, dizia e acreditava que era por não sermos indiferentes mentafisicamente, um ao outro. Para justificar desaparecimentos sem qualquer apelo ou agravo, decorrentes das fases rosa do seu casamento, dizia que era para se defender, pois estava-se a apaixonar perigosamente por mim. Todo um chorrilho de racionalizações que me faziam oscilar entre o humor e a aflição, onde por vezes até lhe dizia, não tens de me dar explicações. Cheguei mesmo a implorar, por não aguentar mais tanta treta. E ela gostava de justificar alguns comportamentos que tinha. Fazia questão. Comigo, pois recebia a atenção e sentia-se observada e admirada, por quem tentava entender a sua pessoa. O que lhe confirmava a crença e desejo de se sentir ‘especial’. Ter alguém que a desejava, e que a tentava entender, era uma espécie de paliativo para o contraste da memória entre duas fases da sua vida. E eu, sempre sonegando aos seus ouvidos a conclusão a la Ockham, a explicação mais simples tende a ser a mais acertada. Não é uma conspiração galáctica, uma tragédia grega. É apenas uma pessoa medíocre. Ou melhor, e para não ser tão rude assim, és uma pessoa menos limitada por exigências éticas, não superficiais. E mal nenhum há nisso. Se o mundo fosse feito apenas de gente decente, seria mais monótono que um matrimónio em velocidade de cruzeiro. De volta e meia, quando a consciência apertava, por saber ou que eu gostava dela, ou por se sentir culpada pela felicidade intermitente que sentia com o marido, lá dava umas migalhas de atenção. Uma sms críptica, uma parede de texto a louvar a pessoa que sou, uma chamada a perguntar se eu estava bem. Na sua cabeça fazia sentido. Elogiar-me para eu salvaguardar o meu amor próprio, atacado de todos os lados pelo amor-a-ela. Sentia-se bem, moral, humana, por dar-me graxa devido às suas exigências éticas, superficiais. A mentira justificada para fins humanitários. Mas não podia ser mentira porque se sentia bem a ser caridosa, e o sentimento é a única verdade. Um pouco como um magarefe escolhe uma martelada forte no topo do crânio de uma ovelha, em vez de um corte na jugular. Essa bonomia fá-lo sentir mais empático, humano. Eu lia, ou ouvia o seu discurso, ficava comovido com a atenção (apesar de tudo é de louvar o esforço, anda muita cabra por aí incapaz de fazer o mesmo), e ao mesmo tempo bem-disposto por causa da sua dissonância cognitiva. Pois se era tão bom como ela dizia, porque nunca caía eu no saco de opções possíveis? Não é humano querer coisas boas e mantê-las? E ela não tinha a desculpa de amar o marido, quando duas semanas antes eu a tinha deixado ofegante e colada às tábuas de uma cama na Almirante Reis. A não ser que nos enganemos na definição clássica da diferença entre amor e foda. Ou amor e atracção, que é por onde quer que se viaje, sempre, a admissão de que o parceiro oficial, não nos atrai. O suficiente. É uma espécie de soberba, dizer a outro que és fantástico. Mas se sou assim tão bom, e não norteias os teus afectos por critérios económicos, porque raio não te casas comigo? Ah, é uma questão de compatibilidade. O que é a compatibilidade? Uma zona de cinzento, nevoeiro e bruma, de onde saem todas as possibilidades de rejeição que exijam contrabandear uma razão lógica. A compatibilidade é o país que se usa, quando se rejeita outro, e não queremos mostrar a mão que lançou essa pedra. Veio da zona cinzenta. Se sou tão bom como dizes, porque me desejas para outra, ou para ti a pedido? A minha pila numa mochila da Glovo, em que eu sou o estafeta que leva nutrição a casa. Pedalando ofegante entre os quarteirões da tua conveniência. A agência é só uma, fugir a qualquer responsabilidade pessoal, ou ver cristalinamente, quem se é. Porque para a mulher, ser-se quem se é, é ser-se quem se sente . E sentir quem se acha ser. A tal coisa, a malta achar que por os pensamentos e lógicas serem só nossos, são vedados e inacessíveis a tudo o resto. Como se num grau ou noutro, não fôssemos todos feitos do mesmo barro. Ou seja, faço y, e o gajo nem sonha que faço y por causa de x, porque ele não tem acesso ao meu pensar. O que se passa dentro da minha cabeça, é a minha ópera privada. Há coisas que só eu penso, únicas nos 8 biliões de outros que povoam esta rocha. Únicas, apesar de só ter acesso à minha cabeça e não à dos outros. Há também a questão da diversidade, que a malta diz que comer todos os dias bife, cansa. Ela é uma pessoa atraente, e tem por certo outros pretendentes. Mas parece escolher-me a mim sistematicamente, talvez porque se sente menos falsa ao fazê-lo. O que invalida de certa forma a questão da diversidade. Mas surge outra, a da segurança. Ela sabe que não dou com a língua nos dentes, nem vou a casa deles provocar barracada alguma. Essa é mais verosímil. O que me torna numa pila segura, que passou no controlo de qualidade, apenas com o inconveniente de que penso demais nas coisas, mas até isso é suportável, e às vezes até ajuda a passar o tempo. Sabe que a minha ruminação nos assuntos à procura de todas as parcelas de informação, porque sou viciado em tentar perceber, me fazem escrever paredes de texto, de análise, de introspecção. E que eventualmente o diálogo para ela acaba por extravasar a presença mútua. De vez em quando chateava-me com os joguinhos dela e entrávamos os dois no ram ram de preservar o ego do outro. Ah tu és o maior e o mais bonito e mais bom. Ah tu és a minha sístole e diástole, e comia-te n vezes, que para os homens, equivale a uma expressão básica de apreço…mal conseguida porque não é difícil meter um homem a comer seja quem for. Mas o que conta é a intenção, não é? Esta cordialidade mantinha as aparências e o carácter monocórdico da Existência, ao mesmo tempo que maquilhava o problema não resolvido da atracção mútua. Lembrava-me muitos dias, de que ela era a minha maior apreensão. Prefiro ver na rua um leão ou tigre fugidos de um circo ou do Jardim Zoológico, que a ver a ela. É que eu dos predadores quadrúpedes, consigo ter possibilidade de fuga. Com ela, apenas cerrar punhos e dentes, e dar mais uma volta numa relação que dura há anos e à qual não consigo, nem quero resistir. E ela sabe. E usa isso em benefício próprio. Mas a tipa era engraçada. Era de ideias feitas e achava ser maleável no seu cosmopolitismo. De volta e meia decidia que ia ser esposa exemplar e mantinha-se firme nas suas decisões, que invariavelmente incluíam o meu afastamento definitivo. Apesar de eu fazer todos os esforços para a fazer pecar. Tal durava até voltarem os blues de uma relação forçada, escolhida e insuficiente. E até, suponho eu, uma voz interior em surdina, que não cessava de lhe murmurar o meu nome. Depois lá voltava a dar sinais de vida, como se nada fosse, como se não tivesse unilateralmente cortado o cordão umbilical das palavras trocadas, e eu pensava cá comigo, mas porque raio não me calha um tigre ou um leão na rua? Ria-me para dentro e agradecia as pessoas serem tão estranhas. Eu deixava-a tomar estas decisões por nós dois. Não por alguma soberba ou oportunismo sexual a rentabilizar no futuro. Apenas porque reconhecia nela, nestas posturas engraçadas, uma expressão da condição humana no geral. Como podemos nós levar a mal, as pessoas a serem pessoas? Para onde guinará a lebre, a seguir? Gostava também de ver em mim, que por detrás da raiva e da profunda ira, havia sempre a capacidade de perdoar. Perdoar não me faz sentir bem. Faz-me sentir parvo. Mas ao mesmo tempo, o que existe de elevado em mim, quem sabe se o alter ego, vai além do meu ego. E torna-me maior. Poucas pessoas não mereceram o meu perdão. Geralmente quando percebo de forma clara que era apenas a conveniência que as unia a mim. Isso não perdoo. Mas mesmo essas, se se dão ao trabalho de pedir desculpa, com cervejas e tremoços lá sou levado, mesmo que esse pedido de desculpas seja instrumental. Eu compreendo a falha moral nos outros, melhor até que em mim. E sei que é difícil. Mas lá está, depende sempre das pessoas. «-Mas que pretensioso e convencido tu és João.» dizia-me ela com suas pernas entrelaçadas nas minhas, comendo o hambúrguer que tínhamos encomendado via Uber Eats. «-Quem te disse a ti que não sou feliz na minha relação?» Eu nada dizia e deixava-me estar calado, e ela acabava por continuar a falar. «-Sabes que a ideia de felicidade muda ao longo dos anos e acabamos por ser felizes na medida do que achamos que a felicidade é. E eu vivo uma felicidade possível.» Eu olhava para a sua bonita boca cheia de ketchup a escorrer, e achava graça, em silêncio, às suas racionalizações para se convencer a si mesma. Naquela posição não me chateava nada, oscilar de acordo com as decisões de outro. Que me dizia «-Vem.», «-Senta.», «-Pára.», «-Dá a pata.». Estava a observar in loco, a natureza de primata em funcionamento por via de um intérprete. Tarado como sou, relativizava o sexo que era oferecido em troca do meu bom comportamento, nada exigindo, não levantando ondas, apenas tirando notas mentais. Já que me usam na sua vida, ao menos retiro notas para os meus livros. E quanto mais notas tiro, mais vou descobrindo um continente inteiro, que boa parte da literatura burguesa, dos conas, deixa de fora, para não alienar leitores. Fazia-lhe festas no rosto, e limpei o ketchup da sua boca com a mão, ao mesmo tempo que ela não se calava com as narrativas sobre as ofensas do marido, ventilando assim todas as tensões acumuladas, relaxando, e bastando uma cópula conjugal, para limpar o sentimento de culpa e remorso, da noite que se aproximava. Quanto mais carinho lhe depositava no rosto, mais à vontade ela se sentia para falar, mais eu me alienava nos meus pensamentos melancólicos, em torno de ideias pouco agradáveis acerca da relação entre os sexos, especialmente na era das redes sociais. Quando caía em si, lembrava-se do seu motivo de estar ali, e perguntava: «-Porque não me enches a boca quando começo a falar demais?» Eu ameaço que me levanto e que pego na gaita na direcção dela e quando olha para a minha cintura agarro-lhe a cabeça, e deito-me em cima dela beijando-a profundamente com a língua na sua boca, o que faz arfar a respiração a ambos, e voltar às actividades lúbricas que tratam do diálogo entre nós. O silêncio apenas cortado pelos suspiros ritmados e a luz cinzenta pelas janelas do Inverno, calava os relatos prévios dos seus dramas pequeno-burgueses, mundanos, irrisórios, mas que lhe polvilhavam a vida, com os altos emocionais possíveis, para que se conseguisse sentir viva, presente. As intrigas de modista, as conversas sobre competências e hierarquias, sobre as tensões efémeras nos relacionamentos entre indivíduos, passavam como metadona pela sua ‘felicidade adequada’. Bem longe daquela que em tempos me dissera que o seu futuro era grandioso demais para se contentar comigo. Os períodos de quente e de frio, alternavam com as estações, e também me apanhavam por vezes, sem paciência. Então dizia-lhe, irritado e com enfado: «-O quê Júlia, que poder ainda julgas ter sobre mim? Que espada de Dâmocles pensas possuir sob o meu pescoço para retirar algo? As fodas? A validação? Que pensas tu de mim, com o tamanho da tua visão? Pára de me menorizar e confundir com as pequenas crenças e opiniões que tens acerca do mundo. Ganha juízo, pá.» Creio que por vezes, ela se afundava em cenotes de pena por mim. Porque não sendo capaz de reciprocar da mesma maneira a minha forma de amar ardente, afligia-se por não corresponder, como se um pássaro na sua própria gaiola se sentisse mais livre que uma ave migradora. Como olhar nos olhos de uma caveira que está convencida que vive? Ocorria-me a ideia de que podia ter uma função exactamente oposta à que parecia óbvia. Eu ser o lembrete para se forçar cada vez mais nos braços do marido. Lembrei-me de Susana e de como dizia que a primeira coisa que fazia quando iniciava uma relação, era trair o amante, para depois ser forçada pelos remorsos a comportar-se decentemente, a entregar-se. Não é estranha para mim, a ideia de ser lubrificante matrimonial. Do meu valor utilitário estar em existir e representar alguma percentagem de tentação. Forçando a mulher a entregar-se à ética escolhida. Assim se justifica a falta de ética comigo. Não somos éticos com objectos, nem ela conseguia considerar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo. Aparentemente. Abraçada por trás, sabe que se segue virar a cabeça na minha direcção, de onde abocanho a sua língua ordenhando-lhe todo o cuspo que consigo e bebo, trazendo-o para dentro de mim, para aplacar a deusa da separação. Frank Sinatra with Nancy 'My Funny Valentine' - 1957 Delta O meu ritual de manhã é sempre o mesmo, lamentando-o apenas por não poder partilhar com ela. Não podermos despertar com o cheiro de café triturado e raios de Sol lambendo nossas caras pela alvorada. Estamos condenados às frias masmorras das pensões lisboetas. Nem para alugar um quarto de hotel no Algarve, onde os pais dela têm casa, eu sirvo. É lá que vai dar as suas fodinhas sem ninguém saber, e não usa a casa de praia dos pais, para ninguém saber. Mas conhece a zona, o que a faz sentir em casa. E não passa por tolinha, pois conhecendo a zona, sabe sempre onde ir, o que fazer. Vivemos na clandestinidade, seja no coração dela, seja nas chamadas nocturnas a avisar que o marido vai estar fora 2 semanas. Nunca me come na cama conjugal, considera isso uma suprema traição, um desrespeito ao homem a quem tanto deve. Eu permanecendo na órbita, aceito implicitamente as regras, e ai de mim queixar-me delas. Passo por amante infeliz e inapto. Corro o perigo de ‘perder’ a sua atenção e favor sexual. Por vezes na cama excedo-me e deixo um chupão ou uma marca dos meus dentes. Geralmente quando me convenço de que isto não vai a lado nenhum, e que é uma coisa meramente animal, sem conteúdo significativo. Fizeste uma bela merda, fiquei marcada, assim não dá. Estás zangado comigo, não metas outros ao barulho. Não quero discutir e sei que no fundo, ela tem razão. Irrito-me pela preocupação que tem pela percepção dele, secundarizando-me no processo. Pergunto-lhe se acha que a sua cona vale assim tão mais do que eu. Finge surpresa, mas noto aquele sorriso que me responde debaixo do fingimento, e que apenas nota a minha presença ali. Como se o meu desejo fosse a resposta à pergunta, crua e cristalina. A sua percepção satisfeita por reconhecer em mim reacções familiares nos outros que conheceu, e que assim sabe claramente onde estou, enrolado em torno do seu dedo. O nosso casamento clandestino durou cerca de 18 anos, e teve umas 4 ou cinco crises graves, onde ela me ostracizava da sua vida, para se poder dedicar exclusivamente à missão e à escolha cuja intensidade de sedução variava ao longo do tempo. De acordo com as suas fases de vida e resoluções de Ano Novo. Lembrava-me a razão definida por Kant, com a infernal natureza de colocar questões às quais não conseguia responder, tal como Júlia tomava decisões que não conseguia cumprir, e isso roía-la por dentro. Talhava uma autonomia e força de decisão que julgava ter, mas não tinha. Mas depois ou a consciência lhe mordia ou a monotonia, e lá dava sinais de vida, uma vida ao longo dos anos onde observávamos a decadência um no outro, os dentes que ganhavam espaços maiores entre si, o cabelo que se tornava cada vez mais rarefeito, as covas dos olhos cada vez mais pronunciadas, os corpos com menor tónus muscular, e acima de tudo, o parqueamento das personalidades numa espécie de mentalidade fechada da velhice, onde o confortável se torna única instância a que se chama lar. Nas zangas mais virulentas eu dizia «-Júlia, pá vai levar no cu!» - ao que ela respondia dando uma palmada numa das nádegas «-Podes crer, e é já!» insinuando que ia dar o rabo ao marido, convencida de que isso me fazia ciúmes estarrecedores. Ou ela dizia «-João, olha, vai à merda!» e eu respondia «-Não preciso, já te tenho a ti!» Com o passar dos dias, ambos nos arrependíamos do que fora dito, e nenhum dando o braço a torcer, lá metíamos conversa por whatsapp ou instagram, como se nada fosse, com um meme, ou imagem, que nada tinha a ver com o motivo do arrufo. Geralmente o sentimento de culpa, maior ou menor, determinava quem reiniciava a conversação. Fomos assim envelhecendo, e eu habituei-me a partilhá-la com o seu dono, a ficar com as sobras, e a interiorizar que não seria alguma vez merecedor da sua devoção, apesar do seu jogo de insinuações nesse sentido. Os encontros regulares, permitiam ir mitigando o vínculo emocional que me ligava a ela, e quanto mais lhe percebia o feitio, mais me afastava, finalmente. Até que já mais recentemente, era frequente chegar ao ponto da lucidez pós-ejaculatória (sem ejaculação), onde vemos o outro como é, se por acaso os tomates estão vazios. Perguntava a mim mesmo, se era de facto uma evolução na minha relação com ela, ou, se tinha a ver com o meu envelhecimento e a gradual incapacidade de acreditar, tanto, no amor. Ou nela. Tinha a ver com ela. Eu era o único que permanecia inalterado, porque a minha vontade era de viver uma paixão colegial e adolescente com ela, pelas ruas do meu outro amor, Lisboa. Alimentar-me, uma vez que fosse, do seu desejo por mim. Finalmente, o véu começara a desfazer-se, e eu a ter pena e até asco dela. Asco das patranhas que inventava, e que não podia não inventar. De que era tudo muito complexo e trágico, mas que afinal se resumia a manter um estilo de vida, uma imagem de si mesma que dependia de um conjunto de situações que se esforçara por garantir. Em suma, de sobrevivência própria, dentro de um contexto. Por contraposição à minha paixão por ela, que era incondicional, ou pelo menos, só condicionada pela sua capacidade em provocar-me uma erecção rija o suficiente. Desde a localização e recheio da casa, ao placebo de trabalho na paróquia, cujo rendimento dava para o tabaco e pouco mais. Mas era trabalho, e dava a sensação de não estar estagnada e de estar a caminho de algo. O óscar, nas longas viagens pelo centro da Europa, ocasionalmente lá pensava na contribuição de Júlia, e em simultâneo, justificava com ser uma cena de gaja, ilógica, inconsequente e emocional, mas também uma voz em surdina lhe dizia que a maior cola da sua relação e do acesso à vulva de Júlia, ao coração, à mente na primeira escolha, era essa mesma capacidade de por ele, trazer o bacon para casa. Claro que não podia sussurrar isto para si, muito alto, iria desfazer a sua mais querida ilusão, a de que o amor vale pelo amor. E não pelo que cada uma das partes, faculta à outra. Ele, preferia acreditar nas cavalgadas de Jesus sob um triceratops a galope, em vez da natureza contratual das relações. E no entanto, havia algo de reconfortante na ideia. Enquanto o bacon entrasse em casa, as hipóteses de ser rejeitado diminuíam. Esta condição reconfortava ao mesmo tempo que aviltava. Ele acumulava a pressão de saber o quão contratual era o amor de ambos. Os amantes calculando, afinal encarando a natureza das coisas que se esforçam por rejeitar, as variáveis que afastam ou aproximam a rejeição. O sexo medíocre que tinha com ela, tornara-se norma e batuta de avaliação de tudo o resto. Esquecera totalmente o que sentira desde os 17 anos, que se assemelhava a desejo genuíno. Aliás, negara a existência dessa quimera, para poder aceitar o impostor que lhe tomara o lugar, o temido desejo contratual. Ele e eu, desejando a entrega de Júlia, total, irrestrita, mas só ele encontrara uma forma de se convencer de que essa entrega podia ser afinal uma miragem, pois isto das relações que duram muitos anos…é território sem mapas. Ele era simpático com ela, com o anzol no beiço, e o sacramento na cama, e a sua baixa auto-estima (que ela trabalhava como artífice sem remissão ou remorsos porque achava que o fazia por um bom motivo, garantir que ficavam juntos se ele sentisse que só tinha direito a ela no mercado da carne), afogada em mares de negação, segredava-lhe ao ouvido, de que não arranjava nada melhor que isto. Nenhum gajo, que tenha olhos abertos, é apanhado em falso no que toca a traições d@ cônjuge. Nem mesmo ele, que instalara geolocalização pirata nos smartphones que comprava por via da empresa, e que oferecia à esposa de dois em dois anos, sabendo exactamente por onde ela andava. O que começara como defesa das suas próprias traições, sabendo onde não se iria cruzar com Júlia, levando outra pelo braço, tornara-se numa folha de excel, onde registava pensões, data e hora, para um potencial divórcio justificado por adultério e garantindo os bens materiais. Claro. A materialista controlada por um materialista, que isto é malta que vira frangos há muitos anos. O que varia é a reacção. Uns batem, nela, no outro. Uns matam e matam-se. Outros, observam, e tentam dançar com o diabo, esquecendo que o diabo também dança com eles. Outros aceitam, outros rejeitam, outros só observam. Eu e ele éramos parecidos nisso. Os mesmos smartphones que ela dedilhava ansiosamente, nem sei se por medo que ele visse através do ecrã, se para me convencer que eu era especial por ela ir mesmo assim adiante no ilícito. Ele, para limar os excessos de lucidez, e repor os índices de negação, apanhava uma bebedeira descomunal, uma a duas vezes por ano. Ia para uma tasca, sozinho, e pedia Triple Seco, copo atrás de copo, mordendo o pulso, olhando o horizonte desfocado e afogando a revolta sob eflúvios laranja. Chegava a casa de gatas, e a revolta passava, quando ela o deitava no sofá, como faz uma mãe, ou quando lhe dava banho no chuveiro, e lhe trocava as cuecas borradas por via do semi coma alcoólico. Ele andava envergonhado por uns dias, e voltava a convencer-se de que a vida com o seu amor, era assim, e que outros havia, com vida pior. O que o fazia não sentir-se tão mal. Até porque era meio comunista e achava que não se podia queixar muito da mulher que Deus lhe deixara no prato. Sabendo disto ou não, Júlia tinha o instinto correcto de ser extra doce e devota a ele, nestas alturas. Faziam amor ‘Top Gun’, (ao som de Take my breath away em loop) com carinho, demorado, sentimental, e iam passear junto ao rio, em tardes bonitas, de mão dada e em direcção a Alcântara de onde o Sol Poente espreitava por detrás dos pilares da ponte, e acenava simpaticamente nestas renovações de dedicação e reconfirmação de votos conjugais. Eventualmente as coisas voltavam a um mesmo ponto de estagnação, assim o sentia Júlia, e ele (mas bastava meia hora de sexo para ele se sentir de novo nos eixos da Fortuna), e eu voltava a ser ressuscitado na triangulação. As primeiras cópulas comigo traziam ainda um travo a revolta e vingança, nem era dele, mas da ‘vida’. Umas horas depois, já ela estava impregnada de mim, e já se moldara de novo à minha existência. A saliva confunde-se com a sua lubrificação que jorra em êxtase para meus olhos cujo choro passa por ser de felicidade, como se de um abraço vincado entre dois corpos condenados por estarem apartados um do outro. Holland Mariah Grossman & The Will Bridges Quartet «My Funny Valentine» - 2010 Épsilon Ela era fascinada por filmes antigos a preto e branco, tipo ‘Casablanca’ e afins. Via e revia centenas de filmes, fosse na Cinemateca, fosse em casa. Percebi que adorava todos aqueles em que o fatalismo era sublimado, onde os amores não se mantinham, onde era fácil tolerar os encontros e desencontros entre homens e mulheres. Dava-lhe algum sentimento de liberdade, de não prisão, somente às suas escolhas. Fazia parte da imagem que tinha de si mesma. Ela detestava absolutamente os filmes que eu adorava, com o ‘Wuthering Heights’ à cabeça, pois esse celebrava o irracional, o arrebatamento, e toda a minha visão de que a verdade das pessoas está no excesso e no trágico. A sua pegada na vida era muito mais ligeira que a minha, e ela orgulhava-se disso. Tomava-me por vezes como um tolo abrutalhado, arredado das finuras da vida em sociedade. Onde eu via um mundo onde todos vivemos numa bolha de oxigénio, no meio de um palco contraposto à ‘verdade’ do mundo, ela via uma realidade fixa com pouca margem para mudar. O endless summer generalizado dela, contrastava com a suspeita e a interpretação agónica da minha parte. Eu tentava perceber a dela, ela parodiava a minha, por se sentir superior. Odiava tudo o que fosse excesso, transbordo, especialmente o amor, como o de Cathy e de Heathcliff, que erradicariam tudo à sua volta apenas para poderem fruir um do outro. Excepto se algo ganhasse com isso, por exemplo uma paixão de alguém por ela, se e somente se, essa paixão não incomodasse. Querer sempre o bolo-rei, sem que calhasse a fava. O que equivale a dizer, manter o controlo para levar para si, o melhor da vida. Era uma crente e uma defensora da convenção e da elegância apolínea. Eu, um dionisíaco inveterado e até ao tutano. Ela vivia em sociedade, eu vivia entre as pessoas. Ela acreditava no verniz, eu vira a violência. Fazia beicinho por eu não comentar o seu filme preferido, o ‘Splendor in the Grass’, mas nunca me perguntou porque ‘Blade Runner’ era o meu. Por tratar a autenticidade, a veracidade da memória, o compromisso ontológico, a escravatura sexual normalizada. Tudo o que tinha afinal, a ver connosco. Por isso, eu lembrava-me das lamúrias daquela canção do Rui Veloso, do anel de rubi. E sentia-me lamuriar também, por querer um sentimento determinado, de alguém que não o conseguia sentir por mim, o que é idiótico, se pensares bem nisso. Cada um convencido do seu acesso verosímil à realidade. Ambos partilhando a mesma ilusão, a de que existe mais do que a nossa perspectiva sobre a realidade. Ela não considerava valer a pena aprofundar algo sobre mim, fosse por medo, fosse por despeito instrumental. Como não podíamos passar daquilo, não podia deixar crescer nada, sequer o meu sentimento de ter direito ao quer que fosse. Pois esse seria o ponto em que lhe exigiria algo, e portanto, dificultaria a sua leveza. A sua insustentável leveza. Eu o romântico, ela a realista. «-Felicidade adequada.», dizia sempre, para me calar. Detesto esta ideia, sempre detestei. Onde ela via lamechices da minha parte, eu via o prodigioso da ligação entre os entes, entre pessoas, entre macacos sem pêlo que escolhem entre si, determinados indivíduos para dedicar toda a sua excitação nervosa, a que o vulgo chama ‘emoções’. Quando me tentava manipular mandava-me à cara algo que eu já tinha admitido, o fazer as pessoas olharem para o seu reflexo a partir dos meus olhos. Fazia-lo a partir de uma crueldade com ares nonchalance dizendo algo do tipo «-Que coisa medíocre, fazeres as pessoas ver a imagem que tens delas, como que lhes quebrando as ilusões, aquilo que lhes permite viverem consigo mesmas.» Eu invariavelmente respondia «-Tal como tu gostas de filmes de época, que mais não fazem que exprimir uma ideologia datada.» Ela olhava-me sempre seriamente e censurava-se para dentro, por cair sempre na mesma resposta. Porque em algum grau de consciência sabia que uma obra de arte cinematográfica é um conjunto de imagens e ideias mastigadas por outros. Para um público definido. Eu sabia que ela sabia, e respeitava-la por isso. Mas também lho mandava à cara quando se armava em esperta. Sugeri-lhe ter uma foto minha em algum móvel da casa, com incenso a arder 24/7. «-Porquê?» - perguntou ela «- Porque eu já fiz mais pela vossa relação que 10 conselheiros matrimoniais.», respondi eu. «-Parvo.» Ele beneficia do teu sentimento de culpa e vontade extra de dar amor na hora de copular, tu por causa do arco-íris que te sopro rabo acima na forma de auto-estima. E a paga é sempre a mesma, ele é que te come regularmente, e eu é que sou descartado como fralda cheia de uso, no fim de não te servir mais. «-Que estupidez!» - responde ela fingindo indignação. Nestas alturas, ela já nem se dava ao trabalho de puxar pela indignação como se puxa por lágrimas para manipular o outro. Pois sabia que a minha análise era fria, e já não tinha ilusões sobre a natureza do seu carácter. Mas um gajo quando gosta não escolhe quem, e olha, o meu amor é marreco, mas não consigo deixar de gostar dele. Até porque eu não estava errado. Até porque a minha existência era uma lembrança constante de que era necessário respeitar o contrato original. Coisa engraçada, esta da rejeição. Nos períodos de digestão do seu desprezo, eu analisava prolongadamente o que é isto de ser rejeitado por outrem. Parece ser algo exclusivo das relações amorosas, mas não é. Os pobres, os doentes, os subordinados a castas implícitas ou explícitas, os feios, os destituídos de virtudes intersubjectivas ou savoir faire social, ou simplesmente os indivíduos sem traços distintivos dos demais e sem necessidade de os ter, são rejeitados pela sociedade, leia-se, pela maioria. Eu chamo-lhes ‘desapossados’. Eu não era, ou alguma vez fui, um desapossado pleno, sim, existem graus. Sempre tive cá o meu jeito vincado de ser, e uma certa arrogância que não facilita que seja muito adaptável ao que a maioria quer ou aprecia. O meu traço distintivo é tornar-me quem sou. E devo confessar que não me posso queixar de nada na vida. Mas é perceptível para mim, que outros não têm a mesma sorte. E sim, é sorte, é uma lotaria genética ou ontológica. Ninguém nasce com os dons que quer, ou sequer, com dons apreciados pelos outros. O mercado da carne é capitalista, e na verdade, um férreo monopólio nas mãos de quem selecciona o parceiro, que muitos acreditam ser a mulher. Para haver um seleccionado, outros são rejeitados. É assim que a coisa pia. Os desapossados ficam pelo caminho. E eu era visto como desapossado, embora de todo não o seja. Nada tem, portanto, a ver com o desapossado, mas com a avaliação dos outros sobre o desapossado. Júlia apreciava mais os dons do marido, do que os meus. E o que me custou a entender, que aquilo que eu aprecio em mim, e que no final é tudo o que conta, não era o que Júlia apreciava em mim. Os critérios de Júlia nada tinham a ver comigo. Os seus critérios de hipster, eram tão só uma expressão da sua comunidade de critérios com os demais. Onde eu vira uma excepção há anos, via agora uma regra. Também nunca embarquei numa comparação com o marido dela. O que há a comparar? Quem tem a pila maior? Quem tem mais dinheiro? Quem é mais inteligente? Quem é mais adaptado aos contextos do mundo? De que raio de forma é possível comparar duas pessoas? Portanto o tipo nunca me interessou, ao contrário dos critérios de Júlia. A opinião menos favorável de Júlia para comigo, fazia que fosse estúpida comigo, pois aos olhos dos convencionais, os desapossados são a lembrança de que o sorriso existencial, é uma questão de sorte. Qualquer um pode ficar pobre, qualquer um, nas condições certas, pode ficar marginalizado, burro, o que seja. O mau tratamento com os desapossados, é uma espécie de superstição para afastar a má sorte dos condenados merecedores, por certo, da condenação. Foi quando percebi que nada havia que eu pudesse fazer em relação à rejeição de Júlia. Desde o primeiro momento em que me viu como inferior, não mudou ou podia mudar de ideias, porque eu nunca poderia representar o que ela valoriza, a segurança de se relacionar com os convencionais que considera seus pares. Só elevando a minha apreciação aos olhos de outros, poderia por arrasto, mudar a de Júlia. A chamada validação social, geralmente por via de artefactos onerosos. Mas sendo como sou, nunca aceitaria essa situação para mim. O objectivo sempre foi que Júlia viesse por desejo genuíno, chupar-me a pila. E não por conveniência contratual. Não é só arrogância da minha parte, é uma questão de princípio. O desapossado é o único que já perdeu o jogo ainda antes de o começar a jogar. O desapossado é aquele alguém que queremos retirar da nossa consciência para podermos viver com alguma felicidade, é mais um que queimamos para nos aquecermos. Porque todos já fomos, em maior ou menor grau, indigentes, rejeitados, desconsiderados. Fugimos do segundo toque no forno quente, como o diabo da cruz. O desapossado está condenado a não receber amor. Nem genuíno nem contratual. Eu sempre fui condicionado pela avaliação de Júlia, pese embora ela repetir que havia alterado a forma de me ver, ao longo dos anos. O desapossado é incapaz de gerar desejo no desejado, e cai geralmente no erro de achar que é algo de pessoal, de facto inerente ao seu valor como pessoa. O que é apreciado pelo grupo, pela multidão, é o que dita as escolhas. Tal como a mulher bonita habituada ao elogio, passa a tomar o elogio como o estado natural do mundo para consigo, também o desapossado passa a ver o mundo como o reflexo do sem valor que sente lhe ser conferido pelas pessoas. O despojado é o bode expiatório das comunidades, tal como eu era o bode expiatório do casamento de Júlia. E o mais sombrio que descobri, foi que sendo o desapossado de Júlia, era ao mesmo tempo a encarnação do maior medo de Júlia, sempre tão preocupada em não mostrar as falhas da sua armadura, encontrava-se totalmente exposta, a um tipo que considerava inferior, ou incapaz (ela) de amar, que vai dar ao mesmo. Imagino o que isso a corroeu, logo a ela, tão apegada às suas crenças sobre a sua individuação e ética superficial. Eu era a antítese da mentira reconfortante da vida de Júlia. Ella Fitzgerald «My Funny Valentine» - 1956 Zeta My Funny Valentine My funny valentine Sweet, comic valentine You make me smile with my heart Your looks are laughable, unphotographable Yet you're my favorite work of art Is your figure less than greek? Is your mouth a little weak? When you open it to speak Are you smart? But don't change a hair for me Not if you care for me Stay little valentine Stay Each day is valentine's day Is your figure less than greek? Is your mouth a little weak? When you open it to speak Are you smart? But don't change a hair for me Not if you care for me Stay little valentine Stay Each day is valentine's day Júlia andou uns tempos aos caídos, antes de encontrar o ‘seu’ homem. Antes de encontrar o músico camionista. Quando era fácil deslizar de homem para homem, sem mais consequências que o impacto emocional em cada um. Sentir um tipo de leveza, liberdade e fartura na vida, que nos fazem sentir bem por estarmos vivos. Ser desejado é um dos maiores prazeres que os bichos humanos conseguem sentir. O desejo de outro por nós, faz-nos sentir justificados perante o Nada. Parece uma relação pessoal e próxima com um Deus que se rala connosco. Liberdade de escolher e ouvir coisas bonitas dos lábios dos outros, ser tratada com deferência, genuína ou metódica, não interessa. Ser convidada para fins-de-semana no Dubai ou escapadinhas para Bali com tudo pago. Cada homem era uma prenda da existência que só confirmava a Júlia que o umbigo do mundo coincidia com o seu. Como criança mimada que no Natal não chega a desembrulhar as prendas todas, passando de cada uma para a próxima, Júlia insuflava novidade e excitação na sua existência, com cada nova conquista, sem se preocupar prender a ninguém. Prendeu-se já tarde, e apenas quando esbofeteada pela constatação que já não bastava um sorriso, uma insinuação, um rubor, para chamar a atenção de quem lhe agradava. Em vez disso, a ‘qualidade’ dos homens que lhe batiam à porta, começava a fazer cair a dúvida sobre si mesma. Dois ou três ‘de jeito’, para uns 10 que há uns anos atrás não teriam coragem de a abordar, porque a beleza os deixaria sem palavras. Espera lá que isto da beleza acaba-se. Inteligente, percebeu que a porta se estava a fechar, e convenceu-se que crescera e era preciso dar outro rumo à vida. Ele apareceu em boa altura. Não era de todo um grande abismo dos cavalos a que estava habituada, para burro era até aceitável. E este, ela conseguia fazer comprometer-se. Lembro-me dela contar-me as façanhas de sedução do marido, mais para se convencer a ela do prémio, que para me informar. Por um ou outro apontamento eu percebia que o tipo não era parvo, mas ainda assim não conseguia deixar de indagar comigo mesmo, se ela fala embevecida, das conquistas prévias do marido, de outras a quem o roubou, como pode ser tão estúpida comigo, que de acordo com o mesmo critério, tenho uma fila mais extensa de campas de amantes, com ordenações de todo o tipo, desde alfabéticas, alfanuméricas, de acordo com as auto-estradas na sua zona de residência, cores de cabelo, desenvoltura na cama, etc.? Lá está, mais vale cair em graça que ser engraçado. E por vezes na cama, lá gabava o marido por ser um urbano SUV, enquanto não conseguia ver o Unimog 8x8 ao seu lado. Para todo-o-terreno. Lembro-me de me lembrar, nessa ocasião, de outro episódio, à mesa de um restaurante, onde a minha namorada da altura e as suas amigas, gabavam um potencial pretendente que passava por ‘amigo’ reforçando entre si, o seu carácter de sedutor. Das formas como flirtava com as empregadas e de uma suposta vida emocional activa. Eu reconhecia capacidade nesse indivíduo, mas ainda assim fiquei meio chocado, pelo à vontade com que falavam assim abertamente comigo ao lado, e com a minha relativização, totalmente subvalorizado, sob critérios em que sei ter excelência. Lá estava a mente colectiva feminina, encomiasta sem garantias concretas de eficácia. O que mais me chocou foi o embarque da minha namorada nessa narrativa. Pois bem, na semana a seguir, tive em minha casa, duas amigas diferentes, para me falarem de sedução. Eu na altura achava que era uma vingança serôdia, mas ainda assim, um alívio da pouca conta em que a espertalhona me tinha. Lá está. Mais vale cair em graça, do que ser engraçado. Mais vale a percepção que a essência. Que isso da aparência é bem visível e concreto. A história da minha vida pode ser feita deste tipo de episódios onde o cisne que sou, é subvalorizado por patos-marrecos. E a minha história não é única. Nem pretendo que seja motivacional. É o que é. Há qualquer coisa nas minhas penas, no meu bico, que me inferioriza na opinião alheia, aquela que conta, que é a gutural opinião alheia. Não que eu faça grande drama da forma como estas tolinhas me vêem. Até porque é sua liberdade verem-me como entenderem, embora eu não seja obrigado a participar, ou participe na sua visão. Olho para isto de forma completamente química e desapaixonada. Observando as observações e tentando perceber os seus juízos. E digo ‘tolinhas’ porque no final das contas de deve e haver, e embora não o admitam para si e para os outros, ficam sempre a perder, o que realmente importa. Até porque é assim que surgem todas as minhas vitórias, do ser desvalorizado. Claro que o ego em mim se indigna, mas no fundo sou como uma rapace camuflada, que observa e caça sem qualquer som emanado nas penas da noite. A forma que tenho de me relacionar com o outro é a da proximidade, de esbater as fronteiras da diferença de forma rápida. Outros sabem gerir a aura de novidade e a gravidade das suas peças de teatro, de forma mais hábil, e mais insípida. É no fundo uma questão de estilo. Pela qual, conscientemente, pago o preço. Ela havia identificado o que achava ser a via segura e eficaz para chegar até mim, sempre que quisesse. Aludir a memórias comuns, e a uma linguagem emocional que considera característica em mim. Como camaleão, adequa o discurso para voltar a abrir portas, após ter sido cabra. Um verdadeiro zoo na forma de teatro amador. A falta de oxitocina torna-lhe natural o desprendimento. O tratar o outro como res extensa. Acha que por ser fria e calculista, ou melhor, emotivamente não praticante, a forma de viver dos outros se assemelha à sua. Mas ela não se acha fria e calculista, ela acha que a frieza e o calculismo são propriedades da maturidade e da objectividade. O que limpa a sua auto-imagem, afinal, quando está a ser cabra, vê-se a si mesma, no fundo, sendo adulta e imparcial. Como a verdade está no seu corpo, tudo o que não seja sentido a partir do seu umbigo, é tomado como falacioso. Se magoa outrem, por exemplo, desde que não sinta na sua pele, é como se não tivesse ocorrido. É virtualmente impossível para a mulher, a constatação clara, do quão puta é para os outros. E por isso não pode estar em pecado quando peca. Pois sentir que se peca é o pecado. E ela não sente, portanto sabe que nada faz de mal. Curiosa esta ideia de pecado, palavra e conceito que se usa pouco hoje em dia, e que quer dizer ‘falhar o alvo’. O alvo é não sermos uns filhos da puta uns para os outros. E ela, meus amigos, peca. O melhor de todas estas gajas que nos subestimam consecutivamente, é que com o tempo, gradualmente, vamos vendo que nós também as sobrestimamos. Eventualmente percebemos quer os seus pés de barro, quer as lentes exageradas em nossos olhos. E quando tiramos os óculos do amor, a imagem crua e nua que fica por trás, é tão feia, que nos sentimos envergonhados duplamente, por elas que são no fundo farrapos humanos, e por nós, que caímos tão fácil e totalmente na ilusão, porque no fundo, no fundo, o que queremos é viver uma grande história de amor, mais profunda que o bolso de linho cosido de uma qualquer carteira. Romancear a coisa, é precisamente essa fuga à realidade. Amamos para forjar, à bruta e com força…sentido. E a culpa não é delas, porque os sinais estavam lá. A culpa é nossa, por cedermos à fraqueza e chico-espertice, porque não controlamos o nosso desejo…ao invés, somos controlados por ele. O maior aliado do gajedo, é o desejo masculino. O corpo feminino, um mero instrumento. Olhava para a cara dela, que não via há anos, os dentes haviam ganho mais espaço entre si, as sapatilhas exageradas de há umas modas atrás. Ao passarmos num passeio com diarreia de cão, a minha reacção natural foi colocar-lhe a mão nas costas para a desviar da merda espalhada pelo chão…que ela vira e começara a evitar com a direcção dos pés. Arrependi-me logo que lhe toquei, ela é incapaz de ver mérito nos outros, ainda fica a pensar que é uma jogada consciente e premeditada minha, para a engraxar ou convencer do quer que seja. Sempre me viu assim, e eu pelos vistos ralo-me com o que ela pensa sobre mim, o suficiente para o escrever. A sua cara era uma irónica lembrança do que fora noutros tempos. E pela cara dos outros vemos a decrepitude da nossa. De uma forma ou de outra, envelhecemos apartados, em vidas que defenderemos até ao último fôlego, como decorrentes das nossas escolhas e volição. Tentou prolongar a extrema unção, como se fôssemos amigos ou como se houvesse lugar para nós os dois, num mundo paralelo futuro. Em abstracto e de forma pétrea, a coisa é simples, clara e concisa. Eu sempre perseguindo, ela sempre escolhendo tudo o que não eu. Enorme conquista perceber isto, e admitir finalmente, que o mundo difere da minha crença. Viva o mundo. Disse-lhe que não. Não volto a ir ter contigo, não volto a ligar-te. Fiquei a olhar para ela enquanto se esgueirava para o ninho marital com a comida quente à espera. Depois de termos dado um abraço esquisito, ela como se eu tivesse lepra, e eu sentindo que ela me afastava para que eu não me aproximasse. Em toda a interacção, o meu coração não bateu fora do ritmo, uma sístole ou diástole que fosse. Fiquei orgulhoso. O que haviam sido, então, as semanas anteriores, em que eu não conseguia não pensar nela? O canto do cisne do amor que lhe tinha, só possível por força de uma ilusão sobre ela, que construí para mim. Valeu ter ido ter com ela certa vez sem anunciar, por ter visto a cara dela quando lhe disse que me devia um beijo. Ao lembrar disso, na linha Vermelha a caminho do Oriente, não consegui evitar um riso largo. Ela ficara para trás, e tornara-se num capítulo fechado por uma redução ao absurdo. Nada mais havia a dizer, não pela falta de palavras, mas pela falta de vontade de falar com ela. Estaria o feitiço desfeito? Júlia oscilava entre o desejo de querer acreditar que não se conseguia afastar totalmente de mim, e a mais genuína reacção da sua natureza, desprezar e ignorar metodicamente qualquer outro que perca utilidade ou constitua ameaça à imagem superficial e positiva que tem de si mesma. A ilusão de não se conseguir afastar de mim, era apenas isso, uma ilusão confortável, que cobria a outra metade, a naturalidade com que despreza. Por isso oscilava também por períodos em que me dava demasiada atenção, e dizia coisas desnecessárias no contexto. Que se ia masturbar olhando uma foto que tenho no Facebook, ou fotos da sala comunitária da paróquia, sem que eu tivesse solicitado algo do género. Pequenos ameaços de algo, ou esforço mal conseguido de me convencer de alguma coisa. Uma caridadezinha desnecessária, tal como a melanina na sua pele branca. Por mais perdões que eu lhe oferecesse, ela não conseguia perdoar-se a si mesma, e por isso, oscilava nestas macacadas. Em algum ponto sabia, que me traía e a ela, e que não conseguia não trair. Eu era, portanto, o maior teste à sua personalidade. Aliás, como sempre lho disse, nos períodos de yo-yo da nossa relação. O fim começou-se a desenhar numa tarde na Pensão Vieira. Penetrando-a de lado, com ela na posição de decúbito lateral, perguntei-lhe «-Esporro-te essa conaça toda?». A pergunta era retórica. Nunca havia ejaculado dentro dela, sem que mo dissesse. Corria o risco de cometer a traição suprema com o marido. Além de que é o mais repetido cliché. Mas por algum motivo, fez uma cara absolutamente séria e disse «-Nem pensar.» Aquela resposta caiu-me mal, fez sentir ter alguma moléstia. A prontidão com que passou ao estado de seriedade, desfez-me a última ilusão que tinha, que ao menos a foder, nos dávamos bem. Tudo o resto se havia tornado uma merda, e até a minha paciência se havia esgotado com as imbecilidades desnecessárias dela, incapaz de fazer a única coisa que lhe pedia, ser franca. Quando apanhada em manhas que não conseguia não fazer, dizia que as fazia, porque não aceitava quando era franca. Reclamou porque parei, e me comecei a vestir. Ficou a achar que era infantil da minha parte amuar, por ela não me deixar ejacular dentro dela. Nem me dei ao trabalho de responder, e deixei de lhe responder às mensagens e atender os telefonemas. Também lhe passou rápido e voltei a vê-la por Lisboa, mas já com outros pretendentes, que descobri, alternavam comigo. Afinal as ausências do marido eram mais prolongadas do que ela dizia. Há um grau de estupidez, a partir do qual, a estupidez se torna tóxica. Intolerável. Incluindo a nossa própria estupidez. Eu finalmente percebera que mesmo que nada mais seja pedido a outros, o quer que seja que pedimos, eventualmente não é respeitado. Só te peço para não me fazeres perder tempo. Toda a relação é uma perda de tempo. Só te peço que me trates como gostarias de ser tratada. Trata-me pior. Porque eu deixo, é certo, mas porque sou teimoso e acho sempre que do outro lado, está alguém racional ou decente. Mas, há sempre uma gota de orvalho rebelde, na consciência dos indivíduos, que rejeita esse imperativo pedido e aceite. Parece que dá mais gozo fazer o contrário do que o outro pede. Aquele prazerzinho mesquinho e pequenino, de fazermos por magoar, por despeito com qualquer coisa. Ou porque podemos e não sofremos consequências. Eu fixara um novo limite, já que não havia muito mais a espremer da nossa ligação pequeno-burguesa, a nível de material para escrita, iria exigir apenas em troca, que me tratasse de forma franca, sem os joguinhos de merda que lhe pulam espontaneamente, na cabeça. E nem isso, consegue. Portanto, arrumei o meu amor numa mala roída pelas ratas, e chutei-o de vez para as minhas masmorras do esquecimento. E não me soube a derrota. Porque aprendi, finalmente, que nada temos a reparar nas avarias dos outros. Passou um, dois, três anos. Recebo uma chamada e era ela, tinha mudado de número. A 14 de Fevereiro, só podia ser gozo. Não desligues, vou ser rápida. Eu sei que não queres falar comigo, mas eu sei que te fiz mal e fui cabra contigo. E que pedir desculpa não adianta. Mas ainda assim queria que soubesses que estou arrependida. Eu disse-lhe «-Tens razão, não adianta pedires desculpa, já te desculpei uma vez e voltaste a fazer exactamente o mesmo, não temos nada para dizer um ao outro Júlia.» Desliguei o telefone. E continuei o que estava a fazer, felizmente não murchei, e a minha amante, em posição de decúbito lateral, não esperara o suficiente para perder a vontade. Passaram mais uns anos, e no Metro ali por zonas dos Olivais, uma mão toca-me no ombro, pois eu ia sentado perto de uma das portas. Era ela, mas foi difícil reconhecer o seu rosto. «-Eu vi-te entrar, mas evitei dizer-te algo, com medo que não quisesses falar comigo.» «-A puta que nega discurso aos outros és tu Júlia, não eu.» «-Touché.» disse ela. Ambos ficámos irritados por motivos diferentes. Eu fiquei irritado por ter ficado irritado. Era-me impossível ser indiferente a esta gaja. Ó reais caralhos me fodam. «-Tens tempo?» perguntei. «-Tenho.» disse ela sorrindo timidamente. Saímos e fomos tomar café, e falar, que eu estava curioso para saber dela. Ela faz questão de trazer ambas as chávenas, e eu noto que na mão já não tinha o anel de casamento que mordia, quando a comia por trás e a almofada estava longe. Ela reparou que eu reparei, e baixou os olhos, bem como o volume do sorriso. O seu rosto perdera toda a esperança, as covas dos olhos estavam completamente cavadas por desilusão, e usava roupa muito justa para mascarar a magreza que se exprimia toda no rosto, como prisioneiro agarrado à única janela acessível. «-Sim, ele deixou-me. Não teve gratidão nenhuma. Fui trocada.» Não me deu vontade de rir. «-Quem com ferro mata, com ferro morre, e tu também o roubaste a outra.» disse eu. Na conversa vim a descobrir que voltara a andar aos caídos, que esteve 3 ou 4 anos amantizada com um tipo casado, que fez com ela, algo de parecido, ao que ela fazia a outros do seu séquito. Com a diferença que ela fora largada pelo marido primeiro, e quando pressionou o amante a desfazer o triângulo, o amante lhe disse que nunca na vida ficaria com uma gaja que encornava o marido. Que ele não era parvo. Não tive vontade de rir, mas considerei que a realidade supera a ficção, em tudo. «-E tu João, como estás, conta-me coisas de ti!» diz ela com um acesso súbito de optimismo fingido. Eu rio-me finalmente e belisco-me na mão que pousa a chávena, ela faz um olhar de estranheza e pergunta-me porque me belisquei. E eu respondi: «- Em todo o tempo que andaste comigo, nunca me fizeste essa pergunta, porque será que ma fazes agora…» «-Olha, eu sei que não fui totalmente correcta contigo…» «-Pára. Não é preciso.» disse eu. «-Não, eu quero dizer…» «- Mas eu não quero ouvir.» «-Posso dizer que senti saudades tuas? E que lia os teus textos no blogue?» «-Pronto, lá vem a mesma história outra vez.» disse eu vencido por uma persistência dela, que era nova para mim. «-Eu sei que isto é ridículo João, mas hoje é o Dia dos Namorados, é o Dia de São Valentim. Não pode ser acaso termo-nos encontrado casualmente.» «-Sim, é ridículo, mas tens razão, é 14 de Fevereiro. Não me digas que acreditas finalmente na predestinação.» «-Em muitos sentidos, sempre te senti como meu único e verdadeiro namorado.» Eu senti por ela, o que toda a mulher odeia que sintam por si, uma profunda pena. O indivíduo humano à minha frente, esfarelava-me por dentro, por desejar muito melhor para ela. Tentei matar a pena ou a compaixão, repescando a mala ratada, com o meu amor por ela lá dentro, das masmorras para onde a mandara, mas só já restava a pega da dita. «-Não digas essa merda Júlia. Não digas merdas como essas. Deste o teu viço, as tuas preferências imbecis, o teu corpo a outros. Usaste-me para os teus fins egoístas, e eu deixei. Achas mesmo que faz sentido, passado este tempo todo, teres a lata de puxar esse assunto?» Ela olhou desconfortável, em torno do tampo redondo da mesa. Insisti: «-Tu que vias tanta merda de filme velho na Cinemateca, com historietas sobre a passagem do tempo e das consequências das nossas escolhas, caíste no maior cliché de todos? Tu não és estúpida, só pode ser o teu pathos…» Um ou outro trejeito dela, mostravam-me que havia um lamento genuíno por detrás. Mas eu não conseguia acreditar que fosse por alguma ofensa a mim, podia ser pela consequência das suas escolhas, no seu resultado final naquele momento. Os olhos que tanta vez vi chorar fingimento, olhavam para mim, e completamente arrebatada pela emoção, disse-me «-Eu sei que não te mereço, nem mereceste o que te fui fazendo, por saber que gostavas muito de mim. Eu não sei ser de outra maneira! Desculpa.» As palavras desta frase passaram de pausas relativas a monossílabos graduais, à medida em que a profunda tristeza e desespero, impediam qualquer racionalização, e os únicos sons possíveis, são expressões sonoras arrastadas que levam o desamparo para fora do corpo. Foda-se. Por mais ódio que lhe tivesse, esfacelava-me o coração vê-la assim. Tal como os velhos, que conhecemos como velhacos, e que parecem cacos após um AVC… e que nós preferiríamos ver continuar velhacos, com o fogo da vida a queimar a peida para a frente, em vez da apatia. Comecei a chorar também, e no café tal foi notado. Arrastei-lhe o banco para perto de mim, e abracei-a. «-Esquece isso Júlia.» Fiz-lhe festas nas costas, e percebi que o choro me levara a raiva, e o dela, amainado, levara-me a aflição. «-Perdi uma história de amor contigo, não perdi João?» «-Perdeste amor, mas esquece isso, há coisas piores se perdidas.» Lorenz Hart « My Funny Valentine» - 1956 Eta My Funny Valentine My funny valentine Sweet comic valentine You make me smile with my heart You're looks are laughable, Unphotographable Yet you're my favorite work of art Is your figureless than greek Is your mouth a little weak When you open it to speak Are you smart But don't change a hair for me Not if you care for me Stay little valentine stay Each day is valentine's day Ela ligou-me numa tarde de Agosto, e eu respondi, já sem qualquer réstia de paciência, «-Júlia, que queres de mim, para que me estás a ligar de novo?» «-Quero ir sair contigo e de forma incondicional ver os pássaros chilrear no Jardim Constantino. Apenas eu e tu.» Fomos e no regresso, perto do Metro, numa daquelas máquinas a la minuta, tirei umas fotos de nós dois abraçados e rindo como crianças para a objectiva. Ainda hoje tenho essa foto na minha secretária, eu e o meu amor, o meu braço por cima de uma porção de ar transparente, ambos rindo encadeados pelo flash, provavelmente acompanhados pela memória de Júlia, antes de se enterrar a si mesma no seu túmulo escolhido. Richard Rodgers & Lorenz Hart « My Funny Valentine» - 1937
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Ela estava sentada à minha frente, e tinha uns olhos verdes enormes que eram acompanhados de uma profunda expressão de tristeza, daquelas tristezas em que só me apetece mergulhar. Sou atraído pela tristeza dos outros, especialmente se decorre de uma quebra que a ‘vida’ dá no sujeito. Já me disseram que sou uma espécie de condor que voa preguiçosamente pelas alturas ascendentes, à espera de pequenas mortes para rodear os cadáveres que me alimentarão a escrita. O que vale é que não é como ratos de laboratório. Mas como entes, sujeitos ao mesmo esmagamento que eu. Compreender os processos que nos erodem até sermos meros grãos de areia incógnita num qualquer cemitério. Ela tinha um rosto lindo, e para a idade não estava mal, sendo apenas pouco mais nova que eu. Eu conhecia-la de fotos do grupo de Facebook, do grupo de investigação onde estou metido. A foto que tinha no perfil, era bem pior que o rosto à minha frente. Uma pessoa honesta, pensei eu. Mete a foto actual, sem filtros, e não a foto onde está melhor. Tinha de meter conversa com ela, queria conhecer a sua história, e obviamente comê-la. Quem não presta para comer, não presta para trabalhar. E eu estava num jantar de um grupo de trabalho. Na ponta da mesa, no restaurante chinês, tinham ficado as 4 mais novas cachopas do grupo, que mandavam vir mais vinho verde que crepes, e ainda eu não tinha terminado o meu crepe, e já as ouvia com gritinhos estridentes. A que estava à minha frente, na foto de perfil, estava mais gorda, deduzi que tivesse passado por um período de abuso de tinto, o que faz inchar logo a cara. Mas de alguma forma deu a volta, porque estava muito bem agora. Da ponta da mesa ouvi a frase que acompanha o brinde «- Cada tacho tem a sua tampa!» Preferi ignorar a imbecilidade, mas não consegui, colocando-me a forçar conversa com alguns professores que estavam no lado oposto da mesa, para me distrair das intencionais chamadas de atenção vocalizadas alto, para todos ouvirem. Parece que lhe chamam ‘liberdade de expressão’. Cruzei a perna e toquei ‘acidentalmente’ nela. Desculpa, estas mesas são demasiado apertadas. «-Não faz mal.», diz ela. Tu pertences ao ramo filosófico do grupo de investigação, perguntei eu, sabendo de antemão a sua formação académica. «-Sim, eu também sei que és filósofo, vi no teu CV no website do departamento. Como vieste parar aqui? A um departamento de História?» «-Podia perguntar-te o mesmo.» - digo eu a rir, mais por perceber que ela também sentira a curiosidade de saber quem eu era, do que pela piada do meu apontamento. O tal grupo de 4 miúdas, ainda nem viera o segundo crepe e já estavam enfrascadas com vinho. Falavam cada vez mais alto e com intenção crescente de chamar atenção e de vincar a sua individualidade, um pouco como os rapazes falam alto para também dar nas vistas. Duas eram bonitas, e outras duas pintavam o cabelo de verde e púrpura respectivamente. Para não variar, as que tinham menor sorte genética, eram as mais agressivas. Quase toda a gente na mesa parecia desagradada, mas sem coragem para uma expressão de desagrado que fosse, para não passar por agente de censura ou opressão do mini ‘matriarcado’. Não sei se era pelas 4 serem indefectíveis pesquisadoras dos estudos de género, leia-se ódio ao masculino, e, portanto, estarem na crista da onda da moda académica, se era por terem medo de quem pinta o cabelo com cores adequadas a alcatifas de bordel. O catedrático da coisa estava no canto oposto ao delas, e só quando gritavam de forma estridente, fechava momentaneamente os olhos, como que a proteger o cérebro, dos estímulos nos tímpanos. Rodeado de culambistas como é normal nestas ocasiões, não tinha mãos a medir nas interacções que o solicitavam. «-Momoa!» - gritavam bem alto, fazendo um brinde a cobro de uma piada só entre elas, que não custava adivinhar a quem estava de fora. «-Mas qual é o teu tema de investigação?» pergunta-me ela, sabendo que o mesmo estava escarrapachado no mesmo sítio onde obtivera a informação anterior. O que denotava uma vontade de continuar a falar comigo, pois já seria detentora da informação solicitada. «-Naufrágios, de navios e de pessoas.» respondi eu, arrancado da minha cogitação em relação ao brinde das excelsas cachopas. «-Naufrágios de pessoas? Como é isso?» «-Sou um filósofo existencialista, estudo o naufrágio do indivíduo, no navio da Existência.» - confesso que disse isto com algum desdém, como qualquer arrogante quando instado a definir o que raio faz em meios estudantis, quando devia estar a dar aulas para suportar uma qualquer gaja que o aprecie pela generosidade e feitio marcado. Ela, se fosse outra, diria «-Ah, interessante.» e esquecia a resposta críptica. Mas parecia realmente interessada. «-Espera, estudas as pessoas que morrem nos navios que se afundam? É isso?» «-Sim, mas também estudo as pessoas que morrem afundando-se na vida.» Um silêncio incómodo entre nós, e eu a ver nos olhos dela que me estava a avaliar a sanidade mental e a sua segurança decorrente. Não sabia se me havia de levar a sério. «-Como assim, não estou a perceber.» Eu não estava a gostar de tanta pergunta, não por ela, mas por causa dos risos histéricos e gritinhos irritantes. E sem querer escapou-me, «-Estudo olhos tristes como os teus.» Ela olhou-me como se me tivesse apanhado a mijar na papa cerelac de um qualquer infantário. Pronto, lá se vai a gaja, gritou o meu ego. Da ponta da mesa voltam a gritar brindando: «-Cada panela tem a sua tampa!» O ponto de irritação não me permitia ficar calado, e exclamei : «-Epá, podem falar mais baixo, não incomodando os outros com os gritos e brindes que não deixam ninguém falar e ouvir normalmente?» Quem estava à mesa parou para olhar, porque também eu elevara o tom de voz. Concentrei-me no meu prato à espera que não me respondessem, para eu não começar a disparatar e sair ainda mais irritado da coisa. «-Isto é típico da patriarquia, a oprimir a livre expressão das mulheres.» Pronto, que se foda, pensei eu. Saio do restaurante ou saio deste grupo de investigação. «-Olha lá, tu é que estás a oprimir o direito dos outros com essa vitimização estúpida.» «-Ah agora sou estúpida…» responde a de verde, elevando a voz para ser ouvida em ambas as extremidades da mesa. «-Exprime-te da forma que quiseres, desde que deixes os outros usufruir do mesmo direito, e eu não te chamei estúpida, disse que a vitimização é que era estúpida.» Como me viu dando explicações calmamente, e como o seu grupo de apoio olhava de forma embevecida para ela confrontando a patriarquia, foi crescendo a sua coragem e agressividade. Eu devia ter ficado calado, já sei que estas conversetas estão perdidas à partida. Ela olhava com olhos verdes grandes e tristes para um lado e para o outro, claramente incomodada pela ocasião, que trouxera alguma tensão para a sua imediação geográfica. «-Típico dos opressores ficarem indignados com a liberdade alheia.» Ri-me, porque desisti de responder com a minha indignação. Perderia sempre, numa discussão emocional, onde não interessa a articulação lógica das premissas. «-Mas quais opressores? Alguma vez te oprimi? Quem são os opressores?» «-A patriarquia, os homens que não pensam como nós, os machistas.» «-Eu estou nesse grupo? Que conheces tu de mim para afirmar que eu já te oprimi alguma vez?» «-Acabaste de oprimir, reagindo à nossa espontânea liberdade de celebração.» «-Para ti oprimir, é censurar tudo aquilo que fazes mal? Não estou a perceber onde está a questão de género por dizer para baixarem os festejos de forma a que os outros presentes nesta mesa, possam falar entre si.» «-Não podem ver uma mulher feliz por ser mulher.» «-Camarada, tanto se me dá, se és mulher se és uma girafa. Estás a fazer demasiado ruído, nada tem que ver com o que tens no meio das pernas.» «-Tudo tem que ver com o que temos no meio das pernas.» «-Estás a ser sexista. Demasiada importância dás a isso. Mas que merda de brinde é esse dos tachos e tampas e panelas.» Continuar a insistir na dissociação entre mau comportamento e questões de género, seria improducente pois ela só iria repetir como papagaio que lhe estavam a retirar direitos, para não perder a face. Assim tinha que expor a imbecilidade da ideia de que existe uma pessoa para cada outra pessoa. Pelo menos no actual clima. «-É um brinde a encontrarmos uma pessoa compatível connosco.» Todos os outros à mesa voltaram às suas micro relações, verificando que se desenvolvia uma conversa que não era do seu interesse. «-E como defines tu, ‘compatibilidade’?» perguntei eu. «-É uma pessoa que pensa de forma parecida, partilha gostos, tem algo a ver connosco, esse tipo de coisas. Que não discutamos, que me sabe dar valor e fazer coisas por mim.» «-Ou seja, para ti ‘compatibilidade’ é alguém parecido contigo, com o bónus de satisfação dos teus desejos?» Ela pressentiu a rasteira na pergunta, mas depois de vocalizada alto, não podia alterar a sua definição, e foi obrigada a anuir. «-Sim… mais ou menos.» respondeu esfregando uma mão por cima da outra em posição paralela ao tampo da mesa. «-Esta pergunta é para as 4.» disse eu. «-Se, hipoteticamente, fosse possível casarem e viverem com um vosso clone, feito de propósito para vos agradar e dar serviço continuamente, quanto tempo vocês acham que permaneceriam casadas ou a viver na mesma casa?» Olharam umas para as outras, primeiro achando a pergunta ridícula, até que uma das mais bonitas, que estava naturalmente no topo da hierarquia daquele grupo, pela forma mais calma como agia, disse que «-Provavelmente nem uma semana.» As outras riram-se e começaram a debater entre si ai sabes que sou uma cabra e às vezes sou impossível. A última porção de crepe estava quase a entrar na minha boca, quando uma delas me interpela perguntando «-Porque fizeste essa pergunta?» «-Porque peguei na definição que a vossa colega deu. Ela projectou aquilo que gosta ou pensa que gosta, noutra pessoa, achando que seria feliz com um clone acéfalo, modelado para lhe agradar e fazer a existência mais suportável. No fundo não quer a radical alteridade do outro, mas a confirmação da sua crença.» «-Sim, e o que interessa isso?» perguntou ela, parecendo querer saber o meu fio de pensamento. «-Interessa que não existem pessoas compatíveis umas com as outras, meramente avaliações pessoais que determinam ou não, a quantidade e qualidade de coisas que estamos dispostos a tolerar e aceitar noutros. Por exemplo, no caso dos homens, a gaja pode ser uma cabra ou uma monhofonha, que a maior parte dos gajos não quer saber, desde que seja fisicamente atraente. E as gajas também têm este tipo de critério.» «-Então não acreditas senão no determinismo biológico?» «-Sim, é o mais seguro ponto de início de análise. A antropogénese também se processou acima do pescoço. Os homens são o sexo romântico, mas são convencidos do contrário, para que o carácter pragmático do amor feminino, seja mascarado. O que entendo. Muito bem até. Metade do encanto do selector sexual, a fêmea, está na projecção de uma aura de divindade.» «-Estás a querer dizer que a mulher não é romântica?» «-Estou. Para cada Florbela Espanca existem 20 Bocages.» «-Isso é treta, e tu és um chauvinista.» respondeu a de cabelo verde. «-Uma pergunta para as 4, quantas vezes entregaram cartas de amor ou poemas ao vossos alvos de amor?» Após uma pausa demorada, o silêncio só foi interrompido por um desabafo de uma delas, «-Eu escrevia poemas…», ao que eu perguntei logo, «-E alguma vez os entregaste?» Silêncio. Havia malhar enquanto o ferro estava quente. «-Uma pergunta para a mesa.» disse eu elevando mais a voz «-Quantos nesta mesa escreveram poemas, cartas de amor, e entregaram ao alvo da sua idealização?» Estavam 6 homens na mesa, eu incluído, e 10 mulheres no total. Apenas 5 homens levantaram a mão. A situação explicava-se por si, e não achei necessário dizer mais nada, e foquei-me na mulher à minha frente. E ela pressentindo isso, diz-me «-Por acaso concordo contigo.» E eu não sabia o que lhe responder. Mas respondi: «-Com uma cara bonita como a tua, esses olhos tristes têm de certeza um motivo.» Ficou desconfortável, pois o tema interessava-lhe, mas eu era um completo estranho, de quem não tinha a menor ideia em relação à personalidade. «-Que tem isso a ver?» perguntou a ver se tapava com o pé, o buraco no chão do que eu insinuara, mandando terra para cima. «-Tem a ver que se dizes que concordas que os homens são os românticos, os teus olhos tristes significam a perda de um par de olhos alheio, algures no tempo, ou o sentimento de culpa por alguns corações partidos, porque não os conseguias remendar nas fases em que te apareceram.» Ela olhava para mim, e eu percebi que ela entendera perfeitamente a nota. Mas usou a colocação da vaca picante com molho de soja, para demorar o seu tempo a decidir se respondia. Finalmente, diz, «-Sim, um pouco. Mas é igual para todos, não é?» «-Não sei.», respondi eu. «-Nunca consegui ser assim tão cabrão, que destroçasse tanto o coração de outros. Deve ser o lado bom de não ser visto como prémio.» e ri-me. Sozinho. Ela baixou os olhos. Eu percebi que tinha acertado no diagnóstico. Ela estava dividida entre continuar a conversa, ou atalhar para a cordialidade devida, ante um gajo que considerava estranho e que não conseguia perceber que tipo de engate seria este, pois o gajo à sua frente nenhuma postura de engate tinha, senão fazer perguntas e lançar hipóteses, que traduzem atenção. E atenção é engate. Do lado chegam-me sons ao ouvido: «-Então mas devíamos contentar-nos com qualquer parceiro que nos aparece à frente, não podemos ser nós a escolher quem queremos…no fundo somos meros receptáculos de esperma?» Era uma pergunta, para mim. Não percebi logo, o encadeamento da mesma, em relação ao que eu havia dito. Quando achei encontrar um nexo possível, percebi que tinham continuado a falar entre si, o grupo, e que esta pergunta era uma barreira a que haviam chegado, no seguir da minha argumentação. Nem se preocupou, a de cabelo verde, a inteirar-me do processo de pensamento. «-Que critérios são esses que baseiam a escolha? Meros critérios de gosto que exprimem a preferência pessoal de cada indivíduo, ou uma espécie de hive mind que dita o que é desejável ou não?» «-Um pouco das duas.» respondeu a de cabelo púrpura. «-Não. De todo. Os sexos nem nisso são iguais. A pornografia masculina é demasiado variada, e essa sim, exprime um apetite pela variedade que vai de grávidas a marrecas, gordas, tudo. Basta passar pelo pornhub e ver as categorias. Já as mulheres, de acordo com o livro ‘Dataclysm’ se concentram no desejo dos 20% de homens mais atraentes e bem sucedidos.» As duas de cabelos pintados, automaticamente desabafaram que isso era uma generalização, e que elas não conseguiam arranjar namorado, porque os homens têm medo de mulheres fortes e independentes. E eu respondi «-Não, os homens não querem é lidar com mulheres que confundem azeite com liberdade de expressão.» Demoraram a perceber, mas responderam as duas «- Não conheces nada de nós, como podes fazer esse juízo de valor?» «-Pela forma agressiva como me têm tratado, não me conhecendo de lado nenhum, acham que a forma de tratamento agreste é isenta de consequências. Por exemplo, no mundo dos homens, esse tipo de postura já teria terminado com uma das partes a convidar a outra para uma conversa no estacionamento. Portanto, a cautela é generalizada. O problema em não arranjarem namorado nada tem a ver com o vosso aspecto físico, mas em se tornarem pessoas desagradáveis porque querem transmitir que têm personalidade. Querem ser amadas e bem tratadas como toda a gente, mas para quem vê de fora, escolhe não se envolver, por causa da vossa postura.» Eu estava à espera que o debate azedasse depois desta proposição mais pessoal, mas felizmente elas calaram-se, e eu voltei à carga: «- Em relação à escolha, critérios demasiado elevados são a paixão por um ideal comercial, e uma desumanização do ser humano masculino comum, que se torna invisível se não pertencer ao topo da pirâmide. E depois ainda há a questão sobre o contentar-se com determinada escolha e o «direito» a ter algo de «elite», de topo – cada ‘indivídua’ deseja o melhor de tudo, não se podendo contentar com o resto… e todas pensam assim. E acabam por agir como grupo. Agem em grupo, porque todos achamos ser um especial floco de neve num nevão.» Mas deixaram-me a falar sozinho, ou porque as venci pelo cansaço, ou porque não queriam continuar a trocar golpes, que também acabavam por lhes doer. Senti-me sozinho na mesa, pois já ninguém me dava trela, e eu havia expresso umas respostas além do verniz que a situação exigia. Não pedi sobremesa, e não bebi café. Saímos alternadamente após pagamento ao balcão, e quando estava a meter a chave à porta do carro, uma voz atrás de mim disse : «-Queres ir beber um chá a minha casa?» Voltei-me e vi uns bonitos olhos verdes, mas um pouco menos tristes. |
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