I
Márcia. Presa numa cadeira de centro comercial com um prato de salada espartana e um copo de meio litro de ice tea calórico. Quem me conhece diz que eu gosto de mulheres de olhos tristes. Quem o diz tem razão. Há qualquer coisa no lamento existencial que um olhar triste exprime. Como que se partilhasse comigo a rejeiçao ou despeito por este mundo ou realidade, que não só me parece uma piada de mau gosto, como uma intencional forma de castigo. Os olhos tristes são ao testemunho de quem já se despediu da vida mas ainda não morreu. Paradoxalmente, o abismo que origina o olhar triste pode ser a mais pura expressão da mais profunda rebeldia, como o efeito do mundo que nos quebrou, da rendição incondicional que nos levou a alma. Com leggings vermelhos e uma blusa longa que se estende até ao fémur em cortes oblíquos, Márcia olhava o vazio. Aquele olhar perdido num ponto indeterminado do espaço, como que se tudo entre as retinas e o infinito não fosse senão pó perdido em átomos a flutuar no ar, só visíveis em breves instantes em que reflectem a luz de um Sol quente de Outono que estupra a fresta de uma janela. II Os sapatos de salto alto em couro preto olhavam perpendicularmente um para o outro nas extremidades das pernas cruzadas. Combinavam bem com os leggings vermelhos, deixando ver uma pele bronzeada, mas ligeiramente solta além de um ponto óptimo não muito distante no corpo da mulher de trinta anos. O quadro global da sua aparência deixava perceber que o brio actual era mais afilhado de um pináculo de glória passada, que fruto de um investimento presente. Como aqueles jogadores da bola que a juventude prometia fazer ídolos, e que chegaram a saborear alguma notoriedade, e que passadas décadas continuam altivos mais para honrar a lembrança de sonhos desfeitos que por amor de si no resultado coevo. Eu reconhecia o olhar de Márcia, já o tinha visto em gente que viu o coração demasiadas vezes destruído, e nisto de desgostos, o Kurtz do ‘Apocalypse Now’ é que tinha razão, todos temos um ponto de ruptura. Vi-o em viúvas, em mães de filhos enterrados, em doentes terminais antes do tempo, em gente que fugiu da vida a vida inteira até à reforma, em gente que anulou sonhos de mocidade. O denominador comum talvez seja uma espécie de divórcio com a vida. III Bonita e elegante e com olhos tristes neste lamento, quase que me convidava a uma abordagem que fiz de imediato. «-Olá, chamo-me João.» Olhou-me como raposa de Torga, passando por vinha vindimada. O olhar exprimia algo misturado entre «-Com que linha vai este palhaço tentar coser-me...» e «-Já as ouvi todas, perdes o teu tempo.» O olhar era ostensivamente repelente. Tão ostensivo, que me convidei «-Posso sentar-me?» apontando para uma de três cadeiras vazias. «-Eu estou à espera do meu namorado, que deve estar a chegar.» - a sua voz era cristalina e com boa dicção. «-Certo, assim que chegar eu saio, estou só com curiosidade em algo em relação a ti. Gostava de te fazer uma pergunta.» «-Não me incomode, vou chamar a segurança.» - começando a virar o pescoço em todas as direcções, procurando os zelosos guardadores de espaços comerciais com casacos cor de vinho. Prossegui. «-Eu sou estudante de pessoas, e ali no banco estava a olhar para ti e estava a indagar sobre o porquê do teu olhar triste.» «-Olhar triste, eu? Está a ser desagradável.» - respondeu-me com uma indignação e asco superior à da primeira vez. «-Estava a ver o teu olhar preso no infinito, como se estivesses a recordar com mágoa qualquer coisa que determinou o caminho da tua vida até ao momento presente. Foi algum amor que azedou, oportunidade perdida ou escolha errada com consequências amargas?» «-Não tens nada a ver com isso!» - com indignação ainda maior que as anteriores, mas já com um semi sorriso a acompanhar a diferença de tratamento de você para tu. «-Eu tenho uma teoria de que as pessoas divorciam-se da sua vida como rejeição ao jogo e ao resultado.» Algo parece ter reverberado nela, como que se escutanto a sua voz interior nas palavras de outro. «-Eu não tenho o olhar triste, sou até muito feliz.» - era o que sabia e conseguia dizer. Era o que lhe importava a imagem exterior e esconder ou negar qualquer dissenção com a vida. Negar qualquer observação de outro acerca de si. «-Como te chamas?» «-Márcia.» «-Márcia, eu chamo-me João.» - e estendi-lhe a mão, que apertou e eu fixei um pouco mais do que é normal, o suficiente para ela notar que tinha a mão presa, e quando a retirou não abri a minha o suficiente para ela retirar a dela à vontade, ao retirá-la, passou entre os meus dedos que se arrastaram na sua pele dos dedos. A primeira carícia estava dada. Faltava escalar. «-Se fosses infeliz, dizias-me?» «-Claro que não.» Claro, não se conta a vida a um estranho que nos aborda num centro comercial. Isto está cheio de rebarbados inoportunos e desagradáveis. «-Pois lamento informar-te mas a tua teoria está errada. Sou muito feliz e estava só distraída e com o olhar absorto.» «-A minha teoria apresenta várias razões para esse divórcio. Uma delas é o longo trajecto do autocarro das pilas.» O rubor da sua face era uma mistura de escandalização pela expressão por mim empregue, e curiosidade. «-Desculpa, que é que acabaste de dizer?!» «-O autocarro das pilas é um percurso feito por cada mulher que se envolve com o sexo oposto, e cada paragem tem uma duração correspondente com o tempo da relação e impacto da mesma. A minha teoria diz que ao contrário do homem, que também tem o autocarro da vulva, a mulher sai diminuída deste trajecto.» Deu uma gargalhada sonora quase de desabafo de tensão. «-Sim, a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem, tem de estar em casa e fazer o jantar não é?» - o sarcasmo andava pelo ar. «-Não. Não penso assim. Penso que pela sua forma de amar a mulher sofre mais com a quantidade que o homem, o homem pode colocar a pila em tudo o que mexa, a Natureza fez o sémen barato e abundante. Já a mulher como que se queima a cada relação, chegando ao ponto de ruptura em que não se consegue ligar de forma profunda e satisfatória com um elemento do sexo oposto. Um pouco como que se tendo um número limitado de amores.» «-A mulher ama da mesma forma que o homem. O que estás a dizer é disparate.» «-Nem me estou a referir a isso. Estou-me a referir a um custo emocional e biológico. Emocional é que devido à abundância de pretendentes, cada mulher não se contenta senão com o ‘melhor’ candidato que ficou no passado projectando a sua sombra até aos que virão no futuro. Biológico tem a ver com a oxitocina e a sua produção no hipotálamo, e que ajuda a criar o sentimento de ligação entre homem e mulher. É libertado em maior quantidade durante o orgasmo, e parece que se vai gastando, ou melhor, o efeito vai-se embotando. Portanto quantos mais parceiros, menor a capacidade de ligação e o lamento de já não ser capaz de amar ninguém.» Ficara a olhar para mim. Prossegui. «-O resultado é esse olhar vítreo que te vi, misto de lamentação de amores infelizes e de não conseguir encontrar um depósito do nosso amor, porque já não nos conseguimos afeiçoar a ninguém. A maior parte justifica isso com o número de desilusões amorosas. Mas eu tenho uma teoria de que no amor não existem desilusões, apenas ilusões.» «-Estou a ver que és cheio de teorias. Conta-me mais.» «-São só teorias, tagarelices.» - respondi. O olhar dela alterara-se, e passara a ser receptivo se bem que notoriamente forçado. Estava a gostar da atenção e queria que eu saltasse à corda para ela. Coloquei-lhe a mão no ombro e seguindo com a mão para o pescoço que ao ser tocado se inclinou da direcção da mão, levantando-me de seguida. «-Onde vais?» «-Para o infinito, de onde me estavas a ver.»
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O demónio de Adriana era um oito deitado, uma rodela de infinito tipo roda de hamster com selo de àgua em cada pensamento seu. Mão na dela dada, percebi que a sua doçura acompanhava uma preocupação maior em não me perder do que em ganhar-me. Ou ela pensava demais, ou eu fui um estúpido sem paciência com ela. Apresentou logo uma pressão para que entrasse numa relação com ela. Quando a mulher tem opções não gosta de ser pressionada a compromissos. Quando não tem, lixiviamos a pressão que faz, ah afinal é porque está a ver se tenho real interesse nela e não um capricho passageiro. Eu disse-lhe «-Sabes lá se tenho flatulência incontrolável, ou se algum fétiche com courgettes.» O cheque em branco só para estar numa relação é um arrepio na ilusão de individualidade. Oh sim, já acreditei no amor fusional, no mito da alma gémea e nos pós de perlimpimpim. Agora vejo a coisa piar muito mais fina. Já não uma estrada de seda em uníssono, com os astros juntando as almas na procissão eterna. O mundo surge com outra cor, a camada de tinta da suspeita pinta tudo com todas as cores e nenhuma, nunca sabemos bem o que estamos no fundo a ver. O mundo torna-se complexo como iluminura barroca. O indivíduo tem de fazer um mapa da realidade (acabando invariavelmente esquecendo que o mapa nunca é o território) para não se perder ou mesmo para evitar a dor emocional que em nada difere da física. Perder um braço não difere em dor, de perder-se o nosso amor. Às vezes perdemo-nos nós, que é a pior dor, a dor de um âmago que sofre mas ainda não retornou a si para avaliar os danos. É o ego que se esboroa, é a terrível pergunta, «-Mas porquê a mim?». Por vezes olho a maior para a maior parte das mulheres que se cruzam comigo na rua e tento perceber como pensaria do lugar delas. Cruzando-me diariamente com espécimes mais altos e fortes do género oposto, cuja maior parte conseguiria impor a sua vontade à força se todos para aí tivessem a inclinação. E é quando me bate, se fosse mulher faria igual ou pior. Afinal só se vive uma vez e códigos éticos são coisas de gajos. Um nojo de se deixar arrastar pelo contingente, assume o homem orgulhoso ainda que isso indique abdicar da parte de si que mais o liga ao mundo. Desculpa de mau perdedor, ou o jogo é que é miserável? Ambos. Adriana deixa escorrer as lágrimas pelo rosto, olho suas botinhas cujas biqueiras apontam uma para a outra. O rosto congestionado, as mãos pousadas uma na outra em súplica, e eu a maldizer-me ao mesmo tempo que dizia para fora «-Desculpa, eu sei que de nada adianta, mas não consigo, estou defeituoso neste momento.» Mentalmente chamava-me nomes e jurava a sangue borrifar-me para o gajedo, afinal que merecem os indivíduos por trás dos olhos, sempre a ser desmembrados? Que merda se passou, a pessoa é bonita e bem feita, mas a insegurança ou o trauma ou sei lá o quê. Adriana posso continuar a fingir ao teu lado mas nunca me perdoaria por te fazer perder tempo. E é de facto esse o padrasto delas. Não é meigo para nós, para elas, ui. Perdoei-lhe tudo, as birras, as manipulações, as manhas. Os bluffs, e aberta a porta do mea culpa, ela era inimputável. Dentro dela brotava um caudal de emoções que nunca lhe poderiam não toldar qualquer racionalidade. Lembrei-me da minha mãe e das vezes em que lá em casa os extremos emocionais me identificaram justamente com o feminino, que guardado muito tempo se torna veneno para o cromossoma Y. Nunca conheceu outro homem até ao meu pai, e ainda hoje o ama, se bem leio. Não teve a experiência de noite e quecas na festa da espuma. Eu que sou filho, identifico tentativas de manipulação emocional, sem consciência alguma de que as faz, apenas parando para pensar quando as identifico verbalizando uma análise do seu comportamento. «-Se não metes ar nos pneus, rebentas com a transmissão.» Se o disser num tom mais alto, que interprete como recriminação, reage dizendo que «-Estás sempre a criticar-me, não tenho valor nenhum para ti.» Se o assunto é mais grave, é fácil surgir uma lágrima. Que raio tem um pneumático sem pressão a ver com crítica ou desapreço a alguém? Nada, mas é essa fuga para a frente que não temos nem queremos ter. Não há rigor lógico nenhum no que afirma, a decana senhora. Se e só se, conseguirmos controlar o nosso desejo. As razões das lamúrias estão não no objecto mas no observador. A única forma de acabar com a lamúria é com compreensão profunda, profunda como cordilheira no centro do Atlântico. Entre Adriana que queria gostar dela, e Mónica, que queria que gostasse de mim, resto eu na figura do meu desejo mimado de querer resultados que não dependem de mim. Não gostando de nenhuma? Mónica é a portadora de dentes e garras. Se caisse na teia dela era devorado, liquidificado e pré-digerido a partir de mim próprio. Dissolvido e sugado. Felizmente a única coisa que não engana é o comportamento, e é por isso que testo as pessoas. Deixa-te de merdas, toda a gente se testa. «-João, essa historieta que contas parece-me mais um monte de queixinhas porque recusas aceitar o jogo. São estas as regras, já tens idade para as interiorizares.» «-Tens razão.» - disse eu já com a boca seca que o vinho verde me provoca sempre que bebo mais que um copo. «-Mas diz-me, que fiz eu, para que me ligassem depois de me rejeitarem um ano antes, a fazer sexo com outro, para que eu ouvisse? Ou depois de arranjarem outro me tentassem passar para para uma amiga mais encalhada, como se eu fosse um bem transaccionável? Ou que estivessem a fazer sexo comigo e espreitassem a foto do namorado que eu desconhecia existir, no telemóvel, ou até saltar de cima de mim para atender uma chamada, ao som da banda sonora da «Cidade dos Anjos»? Ou de depois de fazerem sexo comigo, irem à casa de banho tirar uma foto do peito para mandarem a outro, que por acaso me conhecia?» «-João, tens de começar a escolher mulheres de melhor qualidade.» «-Tens toda a razão Mónica.» - toda mesmo. «-Mas a questão mantém-se, que fiz eu, mesmo não me considerando inocente, para passar por este tipo de experiências?» Mas percebi logo que a pergunta que fazia não tinha razão de ser feita. Como se os indivíduos fossem mais que marionetas nas mãos do instinto. Para que serve a razão? Para nos esconder a mão que anima a marioneta. Ao criticar a gaja critico a marioneta. E no entanto, algumas, como Mónica, são conscientes do que fazem. Sabem que determinados comportamentos provocam determinados resultados, e fazem na mesma, porque são escravas do seu ego. Ou é para provarem a si que controlam como querem, os mecanismos de sedução, ou para queimarem o tempo suficiente que as distraia dos demónios interiores por um assunto que facilmente as arranca de si e de terem um eu. Numa escadaria hierárquica erigida para o Inferno acima, na matriz complexa de avaliações. A habilidade de cada uma aferida pelo domínio maior ou menor do instrumento de trabalho, o homem. Seduzindo o sedutor. Provando ser mais esperta que o que parece ser mais esperto. Mano, parece uma concertina. Muitas vezes, as tácticas são tão novas ou personalizadas que apenas uma voz interior nos lembra dissonância. Por exemplo uma vez no Vává em 4 lugares de mesa redonda, coloca-se no lugar de mais difícil acesso, apenas para me pedir que lhe trouxesse o café e um brigadeiro. Apenas para me meter a fazer algo para ela, para investir esforço, para ficar apegado. Mónica precisava de mim precisamente para validar-se a si mesma vendo-me como um desafio. Certa vez na sua cama trouxe um papel e caneta e começou a esboçar os nomes, por ordem de preferência, dos nossos filhos. Aqueles olhinhos vivos e pequenos, olhavam-me analisando cada expressão e trejeito, fazendo-me o perfil. Até eu, achei estranho e incongruente, entrei na brincadeira. Visava dar-me a ilusão de continuidade e significado, já que era visível que no seu olhar não existia esse tipo de vínculo comigo. Em pé no jardim de Moscavide, porque não me viu entregue como queria, agarrou-me nas mãos como Célia pegara na minha cabeça, e disse-me que gostava mesmo de mim, não entendes?! Um dos seus exercícios preferidos era jogar o jogo ‘Trazer dos mortos’. Era assim, levava a conversa até um ponto de ruptura emocional, sempre do seu lado, ia para casa após algumas palavras e acções menos conseguidas, mas nunca passando a linha do que sabia que eu considerava admissível. Depois divertia-se a dar a volta ao texto, com alguma elegância tenho de admitir. Era um fartote para ela. Geralmente girava a argumentação em torno da falha de comunicação ou da degradação da mensagem comunicada. «-Não percebeste que queria estar contigo, e que me convidasses?» Tão proactiva a convencer-me a ir a um bar com o seu círculo de amigos, tão recatada a dizer que queria que a levasse ao cinema. Nessa grande zona de cinzento, que é o território supostamente virgem do sentimento feminino, cabem resmas de continentes. Particularmente era a geração de contrários, se estava distante estando perto, é porque queria mais proximidade, se estava perto estando longe, é porque não queria que eu estivesse longe. Reconhecia que o indivíduo era extremamente inteligente. Via que me sabia avaliar a personalidade e colocar as cunhas de reaproximação nos pontos certos. Sabia quando me levava ao ponto de passagem à reserva e trazia-me dos mortos, ora dizendo que tinha estado num karaoke em alemão e se tinha lembrado de mim por causa de uma música chamada ‘Sein und zeit’. Ora fazendo uso do menos sofisticado retrato erótico usando meias de renda que comprara num catálogo online e que pareciam saídas de uma festa de Disco dos anos 70. Sabia que mostrar um pouco de carne, era o mesmo que aproximar maçarico de manteiga congelada. Eu mantinha comportamento irregular para a confundir. É o que procuram, uma matrix etiqueta para catalogar o gajo. Como descobridor quinhentista, depois do território descoberto, passar à frente. Quanto mais racional o gajo, mais joga o jogo do paradoxo, dizendo algo e agindo de forma contrária. Tinha umas pernas proporcionais aos seus 170 centímetros de altura. Os quadríceps obtinham particular atenção dela no ginásio, para disfarçar a celulite. Tem uns gémeos bem feitos, simétricos e salientes como rosto de demónio descaído em parede de catedral gótica. Era muito morena, de modo que se destacava o branco lindo dos seus olhos, em órbitas redondas como os seios abaixo que olhavam também sempre em frente nunca se permitindo uma réstea de desânimo. A minha mão percorria a sua pele nua, por um dos flancos e uma lasca de pele que teimosamente dividia a vontade entre o abismo e permanecer agarrada a mim, fez-me lembrar as antigas agulhas de gira-discos à medida que a minha mão a arrastava por aquelas planícies de carne. Esperava que o som de tal gramofone soasse à palavra ‘amo-te’, mas o único som que se escutava era da respiração pesada dela, e vindo em surdina da agulha de pele inoportuna a repetição ad nauseam «-Mas porquê a mim?» Nestes momentos de verdadeira lucidez, após orgasmos padrastos, pode uma alma condoer-se com o destino comum no Inferno de todos nós aqui. De um ponto de vista amoral, era onde eu escolhera viver, na ilha de onde se vê o curso anual de furacões nas estações de mulheres que passam pela minha vida. Já que não mudo o jogo, deixa-me entendê-lo e amar o próximo demónio acossado de demónios. Só em desequilíbrio se consegue projectar alguém no judo, aqui é o mesmo princípio. Eleva-se o ego do alvo até ficar em bicos dos pés, inclinando-o até um ponto de não retorno ao equilíbrio prévio, e quando o centro de massa já não pode voltar atrás, retira-se todo o apoio que restava, para acelerar a queda em direcção ao núcleo terrestre, com um duro pavimento pelo meio. O resultado é algo análogo ao colapso nervoso. Mónica na sua saia de cabedal preto, e olhar triste, com um cilício dentro que é a criança que afoga desde que sofreu o primeiro desgosto amoroso. O João estava à sombra desse ignoto escolho. A mulher é o maior predador à face da Terra. Cada mulher é potencialmente o fim do homem que a vislumbra como crente nas margens dos grandes rios. É guerra. É guerra sem quartel, não te esqueças disso. Mas o inimigo não é visível. Convidei as duas para um café. Olharam para mim e disseram, em uníssono, «-Estivemos juntos noutra vida.» 2
2.1 J. havia-me convidado para uma recepção qualquer num hotel do Estoril. Decidi ir, pois a minha parte cobarde não se queria dar mal com um facilitador de psicotrópicos, que mesmo drogando-me contra minha vontade, não tinha feito muita mossa, se calhar eu até estava a ser demasiado rígido. Esclareci isso com ele, que não pedindo desculpa claramente me disse que não havia feito por mal e que não repetiria. No átrio reconheci algumas caras. Encostada ao balcão onde serviam champanhe, olhava-me convidando com os olhos uma abordagem. Disse-lhe «-Olá.» «-Olá.» «-Chamo-me João.» «-Eu sei quem és, sou amiga da Adriana.» A forma como o disse fez-me sentir que era suposto sentir-me culpado de algo, ergo, diminuído, ergo, apologético. Respondi : «-Bom para ti.» Bebi uma taça, peguei noutra e preparava-me para sair dali, quando ela disse: «-Não penses que os teus esquemas de sedução vão resultar em mim. Eu sei bem que estudas isso e gostas de seduzir e magoar mulheres.» «-Quem te disse isso?» «-Não interessa.» «-Mulheres rejeitadas são piores que gajos rejeitados.» - virei-lhe as costas de seguida e ordenei ao cérebro para a apagar do meu mundo. Senti um aperto no braço. Puxava-me para si, para lhe dar atenção. Passou-me pela ideia desatar aos gritos para que me salvassem deste assédio. «-Tu não gostas de mim, eu sei.» «-Nem te conheço.» - Sabia que a minha disponibilidade para lhe virar costas não era algo a que estivesse habituada, mexia-lhe com a auto-imagem e era desse desafio que estava atrás, não de mim, claro. «-Chamo-me Mónica.» Sorri, sem mostrar o branco dos dentes. «-Que coisa é essa que disseste de eu estudar e não sei quê?» «-A Adriana contou-me que odeias as mulheres e que te divertes a seduzi-las e a magoá-las. E que analisas quase como num manual de Geometria Analítica a psicologia delas e usas tácticas de engate infalíveis que leste sei lá onde.» «-Se eu fosse assim tão bom estávamos os dois na cama agora.» «-Eu tenho uma mente forte e não sou fácil.» Eu sei, penso comigo. Por isso falas comigo. Tal e qual como todas as outras antes de ti. Achas que és melhor que toda a gente, mesmo que fique bem dizeres o contrário. Raios, até te insurges quando alguém assume dizendo alto, o mesmo. 2.2 Foi o que decidi fazer. Nesta mesquinhice que tenho de esfregar o atavismo na cara da pseudo-sofisticação. És tão diferente do barro das outras que funcionas da mesmíssima maneira. Atenção constante, manifestação de disponibilidade como se mais nada tivesse na vida que manifestar intenção de estar com ela, elogios e validação, permanência após birrinhas e acessos fingidos de fúria. Imolações em desculpas desnecessárias, e Mónica, a tão diferente das outras, seguindo o mesmíssimo carreiro comportamental. Mensagens trocadas non stop até às tantas da noite, sempre com resposta pronta. Sempre desviando todo e qualquer assunto para confissões implícitas de enamoramento incondicional. Nada faz recuar mais uma mulher que um homem que se jogue a seus pés. Jogada de mestre seria de forma gradual e amenizada, expor a postura e o porquê do seu, mulher, retraimento. Ensinar-lhe sobre machos alfa, war brides, a parede, shit tests, manipulação psicológica e emocional que não se dá conta fazer. E ficar com os meus botões a pensar, ecce donna, tanta cultura e savoir faire de vanguarda e reages como todas as outras que afinal são do mesmo barro?! Se os homens são todos iguais, uns porcos chauvinistas, que se dizer da estrutura que torna, parafraseando Henry Miller, as mulheres em irmãs da cintura para baixo? Eu não queria expor demasiado esta suspeita, para que a pessoa concluísse que a sua individuação é uma ilusão trágica. Isso nunca aconteceria porque bendito ego de Pollyanna não o permitirias. Mas não queria deixar uma assinatura demasiado visível, com o ramo de salsa passado em frente do seu nariz. Havia um método no seu agir, sempre igual a todos os outros, ou melhor outras. Portas-te bem e dou-te acesso ao meu tesouro. A vulva. A qualquer dissensão, a ameaça da retirada. Todas se baseiam nisto. Nos braços de ferro, evocando sentimentalismo agudo para que o alvo fique em suspenso, e depois tratamento de silêncio. Ou facultando mensagens trocadas, uma coisa o que diz, outra o que faz. Ou ataques de vergonha, distorcendo o que o alvo disse, ou ainda ataques de inadequação, tu não entendes… Também em comum a contínua negação de qualquer teoria ou bateria de estudos que explicasse o seu comportamento. Sem vontade de conhecimento pese embora a declaração (que soa bem) que querem entender tudo, negam o trabalho científico e as consequências do mesmo, sobrepondo a sua própria mundividência e dando exemplos da sua vida. Ou, atacando o mensageiro «-É isso que pensas de mim?» - seguindo-se a mensagem latente de que está possível a retirada da vulva da cena. Ao desafio do confronto, medi o seu interesse esmorecer assim que qualquer divergência ia amenizando entre nós. Até quando já só sobravam palavras de carinho, nunca como aí havia tão pouco interesse da parte dela. Tanto despeito que era notória à vista desarmada, a cagança com que me tratava como imbecil. Exercitava em mim os mesmos mecanismos de retalhamento que operara em outros. Fingia ofensas profundas para obter pedidos de desculpas. Socorria-se da enunciação de uma sensibilidade aguda para obtenção de cheque em branco no que concerne ao direito de se indignar pelo que lhe apetecesse. A auscultação das minhas intenções consigo como se alguma vez tivesse estado interessada. A mensagem comportamental irregular, por exemplo andas atrás de mim como atrás das outras, sem qualquer desejo de retirar informação do meu contexto, apenas arrastar-me para o dela, mesmo quando exposto, foi branqueado como factor de carácter. A intenção era clara e foi por mim cumprida, dando-lhe todas as razões para a desclassificação, levando-a a agir como ovelha eléctrica que calcorreia sempre o mesmo previsível caminho. Teve certa vez uma crise de choro no Trindade, à que perguntei o motivo, e era sobre uma ofensa que eu tinha cometido, por não ter ouvido o que dissera. E eu perguntei-lhe se chorara por isso, que faria num funeral. Ameaçou que se ia embora. Como não tinha ainda conseguido desqualificar-me conforme o seu plano – a sua mítica intuição começara a fazer-me o raio X e a procurar motivos para me desqualificar desde o início, agia de forma a provocar indícios e procurava indícios que justificassem esse viés inicial- a sua profecia que se cumpre a si mesma, voltou para trás, engolindo o orgulho e continuar o plano. Queria cumprir exactamente o plano que traçara para justificar a si mesma o acerto das suas avaliações. 2.3 O dia em que nos beijámos pela primeira vez foi muito divertido, para mim. Mónica segue atrás de mim enquanto abro a porta de minha casa. Instala-se no sofá um pouco ébria ainda. O primeiro livro que vê na minha estante, é «Histoire de ma vie» de Casanova. Três volumes em papel Bíblia. «-Ah, eu sabia!» - apontando com o dedo para a caixa com os volumes, e lembrando a conversa anterior sobre sedução e poder. Eu percebi o que queria dizer, e nem tive paciência para dizer que o homem era um filósofo e era disso que tratava a sua autobiografia. A ignorante achava que era um manual de engate, ficasse com a sua ideia, aliás compreensível por causa do nome associado ao significado de sedutor, mais por culpa de Marlowe e Goethe. Descurando-se a Filosofia que sustentava em detrimento dos saltos para a cueca. Tal como se reduz Sade a enrabamentos quando o autor é bem mais profundo. Como reduzir os homens todos a porcos que só pensam em sexo. Trago-lhe uma taça de vinho verde fresco, e sento-me no sofá em frente a ela. Havia sido deixada numa posição ingrata. Um cliché. Trocada por alguém mais novo. Usada, apreciada pelo seu viço primaveril, cuspida fora quando ameaços de Outono se instalavam na sua pele. Ah é o amor. O amor tem as costas largas. Ah mas preferias que continuasse com x, y ou z, já não gostando e só por causa de uma qualquer abstracta noção de lealdade? Viemos cá é para ser felizes. Reentrada no mercado da carne, sem as ferramentas actualizadas para trabalhar, mas não precisa. Fizera do seu aspecto o ponto alto do seu poder sobre os papalvos dos homens. Havia sido sugada e jogada fora, e agora perdera o poder. Neste caso, por muito que lamentasse a sua situação, puxei por ela a ver se me contava as aventuras passadas, mas o indivíduo não tem responsabilidade pelo instinto. Lamento por ti, é só isso. Prefiro uma verdade amarga de frente que uma mentira doce, de lado. E dei comigo a pensar de mim, eu é que sou a verdadeira puta. Prostituo-me pelos braços das mulheres que me aparecem, de forma a ter textos e orgasmos, que me façam pensar ou me façam deixar de pensar. Como que se andasse a braços com um mundo que não entendo e que quero ignorar ou compreender por completo. Não é afinal Susana a pior bipolar, eu sou o bipolar-mor. A entregar-me ao real, concreto e definido por lábios de mulher, para poder compor como escriba as linhas que tentam dar sentido a alguma coisa. Coitadas das minhas mulheres. Sou um imenso cabrão, eu é que as usei, pela carne e para a tinta. Uso cada gaja para me ajudar a compor um mundo virtual que me ajude a entender o mundo «real» em que vivo. Cada gaja usa-me para manter a realidade do seu virtual mundo que lhe permita viver bem consigo própria. Uma codependência manca em que ninguém sai bem na foto. Posso dizer que eu tenho desculpa porque o faço para produzir arte e orgasmos que me distraiam de mim e do abismo que me consome. Mas não tenho. Tal como não me posso queixar de reificação se reifico, ainda que finja como o poeta ser dor a dor que deveras sinto. 2.4 «-Senti-me intimidada por ti ao início. As tuas personagens dizem o mesmo, não é?» - dizia, bebericando o vinho verde gasoso como uma bebedeira de hélio, e encostando-se recatadamente no sofá, vincando o seu espaço, de forma clara. «-Algumas tinham razão, eu sou assustador. Sociopata ou pior.» Mas porque é que as minhas experiências devem morrer enterradas em mim por toda a eternidade no casulo da minha ipseidade enquanto estou vivo? Tu que estás vivo agora e a ler esta merda, não formas imagens na tua nação cortical, imaginando o que raio digo para aqui e as paisagens que parcamente descrevo? Não estamos unidos nisso e não pensas tu ou algo de mim ou do narrado que te faz tomar posição no tecido da tua existência? «-Então não posso estar segura aqui contigo, em tua casa.» «-Sociopata nada. A mulher é o mais perigoso predador à face do planeta. Tem todas as ferramentas e mais algumas para obliterar a mente de um homem. Se e só se, este for controlado pelo seu desejo. Controlando o desejo, poder nenhum tem a deusa sobre mim. Só conseguimos controlar o desejo pela racionalidade. Não é à toa que os estóicos não se calavam com isto. Só a racionalidade permite ver o que está por detrás do véu. Por isso contrapõem a sua mítica «intuição» que é tão real como um unicórnio castrado. Conseguem transformar uma dedução numa ofensa, incapazes de transformar em discurso escorrido o que realmente querem dizer excepto quando já nenhuns planos conseguem fazer para o interlocutor, quando este já em nada lhes interessa. Sempre puxando para o contexto e não para o denotado. Detestam ser apanhadas em contradição lógica e quando acontece, desvalorizam. Apelam ao sentimento como se soubessem transmitir com exactidão a essência do que transmitem, mais seguras do impacto dessa realidade na mente do interlocutor que do mecanismo que as faz agir assim. Experimenta perguntar a alguma a definição de amor, ou se aquilo que ela traduz por te querer, vai além de beijos, abraços, festinhas e caminha pela praia de mão dada.» Ela observa-me e vejo as roldanas a funcionar, se pousa a taça e vai-se embora, se utiliza o que disse para um ataque de vergonha, como vai usar a matéria dada para me ensinar a lição. Lembrei-me de Célia, agarrando-me a caveira com as duas mãos e olhando na direcção das minhas órbitas repetindo que gostava mesmo mesmo de mim. «-Eu não acredito, não. Nunca, no que me dizem. Não porque não me ache amável, mas porque quando me tentam convencer de algo, seja de gostarem de mim ou de que são transparentes, eu ajo como tu agirias se fosses esquimó e alguém te quisesse à viva força vender um frigorífico. Se gostar de alguém é algo que basta por si, a intenção de convencer o outro extravasa o exercício desse gostar. Então, mas se dizes gostar de mim, o teu comportamento mostra algo diferente? Ah, é porque sinto e ajo de forma diferente de ti. Ou então é para carregar no botão de reset do desgraçado que se perde entre a contradição do falado e do agido. As mulheres nem são anjos nem demónios. São os que as deixo ser. Estas cachopas todas ficcionadas, abonecadas por mim, são um diálogo que tenho com o mundo. E gosto das mais doentes, das que fizeram mal, não porque sejam más, mas porque são o melhor cartão de visita para uma superioridade moral que tudo o que tenha vagina parece ostentar de nascença nos dias que correm. E nós homens, participamos nisto. Dada a hipótese, qualquer tipa nos larga se achar que arranja algo melhor. E são esses critérios de avaliação que me interessam, não o largar ou ficar. É o conteúdo, a estrutura interna da sua cabeça, que me interessa. Em 2006 era moralista, as ninas fizeram dóidói. Hoje tenho mais ferramentas para ver ao longe a pedra de Roseta. Por isso ficam apreensivas com o que lhes pergunto, pela forma como pareço desprovido de emoções. Ou de como as uso como elas, para provocar reacções e situações heterodoxas de forma a ver como age o indivíduo e como age comigo. Analiso o meu e o seu comportamento numa dança com lobos aleatória e feliz na minha forma de olhar. O poder delas vem do nevoeiro.» «-Eu não sou assim João.» «-Eu sei Mónica.» Se as acções e razões do seu agir fossem claras e à vista, o homem perderia a fama de porco que só pensa em sexo. Perderia a culpa que o domina por procurar na felicidade da mulher a sua própria definição de género. Aliás, é no afago ou na manipulação do ego masculino que toda a sua sedução começa. Opá João tu tens uma cabeça, ou és inteligente, ou não acredito que disseste isso, ou oh pá és incrível, é tudo a variação do mesmo. Uma festinha no ego, para soltar um conhé de endorfina e condicionar esse sentimento de bem-estar à origem do mesmo, a boca de onde sai o elogio. Pavlov devia ter feito a experiência com homens crédulos, em vez de com cães. Ah mas és amargo. Não, não tenho nenhum motivo para o ser. O amor que dei, e chamo-lhe amor masculino que difere do feminino, foi todo verdadeiro. Sofri quando larguei e fui largado, formei vínculo com todas as pessoas com quem me envolvi. Mesmo quando decidi acabar com quem acabei, passei noites sem dormir a curtir o estalo da mágoa. Admito por fim, a mulher ama, mas ama diferente de mim. Totalmente diferente. E isso não é força, é Darwin. Amor como o do albatroz é raro. A mulher não é forte psicologicamente, nasceu com as ferramentas. Tal como aquele holandês de dois metros e dez, nasceu, sem esforço dele, maior do que eu. Mulher com personalidade não é rara, mas não abunda. Andam por aí escondidas como diamantes, e o traço comum é que se esquecem do facto de serem mulheres, podendo enfim amar como pessoas. A maior parte do gajedo está determinada pelo seu sexo hiperinflacionado. «-Já a Serra me dizia que eu tinha amargura com as fêmeas. Fez-me pensar. Não, não tenho.» Essa é outra, quando a abordo, então está tudo bem contigo, ou nem responde ou parece que me faz um favor ao responder. Ok, medita e vai a retiros budistas, mas algo falha na sua moralidade, ou então sou eu que não compreende tal profundidade ética. «-Quem é a Serra?» - pergunta ela, intrigada. «-Um Natal passado. Onde não houve troca de prendas.» De certa forma Mónica sentia que tinha ganho. Eu tinha investido bem mais latim do que ela, e portanto havia dado a indicação que estava interessado. Sentei-me a seu lado e beijámo-nos. Na cara dela vi que queria dizer tudo o que fosse possível para me fazer ceder. 1
1.1 O Sol brilhava, promissor numa manhã como incontáveis outras em que gerações passadas e futuras olham o dia que começa como uma nova oportunidade de esquecer o quer que seja que atormenta os sonhos de uma vida em ruínas até que se concretize. Vindo de mais um turno de 12 horas que me fode a vida como duas garrafas de vodka tónico bebidas de penálti, com o som do rádio do carro tão alto que nem me ouço pensar, para não adormecer e espetar os cornos numa parede de cimento, bateu-me a ideia amarga como arsénico. Não tenho moralidade nenhuma para falar dos seres humanos fêmeas que eu digo que me fizeram dóidóis. Afinal, depois de reunir os pedaços do meu coração que sobraram de rejeição após rejeição, que posso eu honestamente dizer de todas as ninfas que eu supostamente era suposto ter «amado»? Usei-as sem qualquer pudor ou remorso que não fosse justificado a posteriori pela dor da separação quando se foram. Sim, usei-as. E que rejeição foi essa, se ninguém conhece ninguém e se me escondo por detrás de uma máscara perfeita, como posso ser rejeitado se a única coisa que viram foi o brilho que coloquei no isco que usei para lhes comer a individuação? Como monstro abissal que no escuro finge ser um ponto de luz frágil e em apuros, defraldado defronte da boca medonha de predador. Adriana diz-me «-João, eu não consigo competir com as tuas mulheres. Elas são todas tão bonitas, como poderia eu rivalizar com cada uma…» Mais do que a idiotice do que dizia, foi a expressão de que todas, eram sem excepção, bonitas que mais me prendeu a atenção. «-Adriana, mas tu por algum momento achas que o aspecto físico é o que me atrai em alguém?» «-Do pouco que conheço de ti, sim, tu ligas bué ao corpo.» Percebi que queria que a convencesse que era bonita. «-Adriana vai bugiar.» «-Hã?» «-Não estás à espera que te sopre arco-íris pelo rabo. Tu és extremamente bonita, por não me querer envolver contigo não significa um juízo de valor sobre a tua atractividade.» Mas eu sabia que nada do que eu pudesse dizer mataria o demónio de Adriana. Pelo contrário, eu era só mais uma acha numa fogueira que visa fazer esquecer o frio. Mas não aquecendo. Ela sabia apodicticamente que por detrás do meu discurso polido, a lei do mundo é a da força e não sendo ela para si mesma, bonita o suficiente, o que eu dizia só lhe soava a caridade por mais complexo que fosse o quer que seja que eu tentasse explicar. E também uma forma de arrumar bem o assunto. Há quem queira, já que este não quer. Qual pressentimento em relação a mim qual quê, balelas, não me achas bonita. É mais fácil lidar com o assunto, até alijar a ‘culpa’ genética. Começa a procurar em mim, traços negativos para me desqualificar. Afinal só me sacrificando pode ela lixiviar o seu petit ego e poder viver com a rejeição. Este gajo não é grande espingarda, por x, y ou z, e por isso é que não me soube valorizar. Mas até na rejeição opera a ninfa esse fantástico rotor de racionalização da realidade, em que como máquina de fazer chouriços, entra realidade por um lado e sai realidade confortável e protectora de ego pelo outro. O passo seguinte é negar que se tem um feitio de merda ao qual não se pode escapar, que a boca cheira a tabaco e que as noites consecutivas de vodka e sono irregular levam o seu preço na pele e nas feições da cara. Que nem a fuga maníaca do Sol pode competir com o efeito envelhecedor da bebida e do tabaco. Que a dosagem de pila, sempre adiada como próxima dose de validação tem algum efeito no tecido emocional das reacções e trejeitos, que a jactância e o orgulho com que faz avaliações, o imutável menir de conceitos e lugares comuns com que compõe a sua casa psíquica e ideias feitas de como avalia outrem, são mais fruto da sua insegurança e placebo para um mundo que não entende ou quer entender – sempre em devir- que alguma capacidade mágica de digestão do real. Por isso é impossível mudar de ideias ou sequer discutir Metafísica com a maior parte das mulheres. Primeiro acalentam em segredo não assumido (porque lhes daria cabo da auto-imagem lisonjeadora que gostam de ter de si como o género empático e justo) que se acham mais inteligentes que os homens – afinal se os manipulam facilmente, não podem ser muito inteligentes- e segundo porque não gostam desse confronto que lhes possa baralhar os mapas da realidade, conseguidos através de campanhas de georreferenciação através desse GPS místico e mítico. Veja-se a maioria de fêmeas que tem espanta-espíritos nas varandas, e velas e cristais e merdas do género, as que recorrem a videntes, bruxas e quejandos. Dedicam-se a tudo o que é ‘espiritual’ porque vivem bem na fantasia, longe deste mundo, mas só em certas zonas do mesmo onde o GPS parece funcionar. Quando abordam um tipo, fazem-lhe o raio X, anotando a forma como o gajo tem as costas, como é a sua postura, qual a sua profissão como ata os atacadores, a cor das meias e a combinação do cinto com a bracelete do relógio. Reparam nos pormenores, dizem. Mas qualquer organização sistemática da informação as arrepia. Não informação académica ou processual, contabilística ou estatística. Aí não, mas nas concepções do mundo. São máquinas de compilação de informação. São péssimas em criatividade para organizar essa informação. Não é possível sacar uma teoria de conjunto sobre o mundo, à maior parte das mulheres. Acham que fazer tal é viciar uma realidade inapreensível, e que, portanto, nem vale o esforço. Algo que é apanágio do pensamento mágico. Adriana sabia bem o que pretendia de mim, um troféu, um meio para algo. Melhor ainda seria se eu lhe desse um pretexto para me desqualificar. Se lhe cuspisse para cima, chamasse de puta, ou fingisse ser ciumento. Ou se eu próprio armasse a minha desqualificação, dando-lhe atenção sem regatear, a qualquer hora, se acedesse em todo o tipo de disponibilidade não sexual em que ela fosse testando os limites da minha personalidade, se eu corresse atrás de cada teste que fizesse com amuos, birras, afastamentos, aproximações inexplicadas. Se eu pedisse desculpa sempre que levando uma discussão para o nível emocional, o foco fosse sobre o que eu pecador a tinha feito sentir e não sobre a objectividade do pecado. Mas não, com ela escolhi usar a camisola do adulto, do atormentado em silêncio. «-João, eu gostava que me metesses num texto, gostava que escrevesses sobre mim.» Não posso vacilar, não sei se é honesto este desejo dela, ou não. Comovo-me, mas engulo esta merda sem dar indícios. Claro, penso, o indivíduo a lutar contra o esquecimento do tempo. Mas lembro-me que daqui a uns anos o servidor onde está alojada esta merda vai de cu, e eu morro, e o ‘sempre’ é o que é em relação aos antigos faraós do Egipto, um conjunto de pirâmides em ruínas, de onde já só as vestes mortuárias perduram. Mas pode ser ela a afagar-me o ego, para eu baixar defesas. Já o vi tantas vezes, apelando instrumentalmente ao que escrevo, para provocar um xeque na minha credulidade. Se eu mostrasse insistência e facilidade em criar um vínculo, uma relação oficializada de mão dada na rua, traria a ideia de que o que eu queria era a certeza de algo seguro, acima da pessoa em si. E ela a mim, o meu namorado isto, o meu namorado aquilo, vou ter com o meu namorado, ah o meu namorado para as amigas, numa sinfonia de certeza de que alguém existe que é uma bengala na vida. Não faz andar mas cria a ilusão de não se estar caída. E o sentimento rejuvenescedor de ter ponto de fuga. Eu ligando e falando maioritariamente de tudo o que me fascina no momento, as inovações de interpretação psicológica de determinado livro sobre os efeitos do trauma, ou sobre outra teoria filosófica sobre como o mundo funciona. Especialmente se a pessoa é tão terra-a-terra que o assunto a enfada. Não era o caso de Adriana, a quem qualquer destas formas de afastamento por falta de habilidade social, só seria interpretado como estreitamento de vínculo e caminho para a familiaridade. E eu não queria, não lhe queria queimar tempo, criar ilusões ou desfazer-lhe o ego. Eu era o problema, não ela. Eu era um, na lista longa de amantes a cuja rejeição ela associara o mesmo móbil, aquilo que ela achava de si, e não o verdadeiro motivo da bifurcação de língua. E eu sabia, a cada passo de mãos dadas que nunca demos, que em lados opostos da balança, ela não hesitaria em caminhar com galochas pela seda dos meus sonhos. Que dada a oportunidade cada alma que se quer livrar de nós não tem forma de o fazer senão partindo tudo. Mesmo quando a pessoa que se quer ver livre de nós, tenta sair do quarto em bicos de pés para não nos acordar do sonho, mas não consegue evitar para quem dorme de olho aberto que está a fazer um esforço para não fazer barulho. Trocadas as posições Adriana trucidaria com um lamento breve, o quer que fosse que eu me permitisse sentir por ela, se dada a possibilidade pudesse fazer um negócio melhor. Justificando-se depois, que não dava, ou que o próximo tem algo que surgiu sem se esperar, ou que ah, as coisas não estavam a dar. Todos tentamos ser decentes até à urgência do momento. Que pode vir com o outro transformar a sua presença em algo repugnante, ou aparecer outro (a) na peça de teatro, ou pura incapacidade de amar determinada pessoa. Não era só querer ser ético. Era saber que não tinha porta aberta para ela. Adriana, linda como poucas, embora diferente como muitas. Não era a verruga na face, nem os dentes caninos demasiado aguçados que lhe davam um ar de predador. Não eram as ancas que aos 30 se viam acompanhadas de volume outrora desconhecido, e que lhe encurtavam a visão de umas pernas compridas. Nem as tatuagens sob o úmero que aos 20 lhe conferiam um aspecto indomável e que aos 30 flutuavam sob a derme como ilha de plástico sob o Índico. E, no entanto, havia algo nela que não me suscitava desejo, nem mesmo pela novidade, nem mesmo vendo a beleza que nela achava. Alguém me dissera que acreditava que a beleza salvaria o mundo. É fácil ver o belo num cachorrinho ou gatinho, ou no novo, no só acessível aos olhos pedantes de alguns. Difícil é ver o belo numa ratazana de esgoto cinzenta e molhada, numa cobra, no velho, decrépito e arqueológico, naquilo que está à vista de todos. E, no entanto, não sei se de quem gostei, amei, e se de quem gostei, gostei pela beleza sob o olhar do observador? E interessa? Nada. 1.2 Conheci-a numa vivenda. O dono da vivenda vira-me instalar um sistema de videovigilância num Ex bar de putas no Cais do Sodré que eu conhecera nos meus tempos de embarcadiço. Vira-me rejeitar um grupo de irlandesas e americanas que ébrias às quatro da tarde achavam graça ao meu esforço para perfurar uma parede onde fixaria uma câmara. O trabalho estava a correr mal e eu já tinha dito ao dono que não queria dinheiro pelo serviço, estava a fazer um favor a um amigo e que o fazia de graça porque a minha profissão não era aquilo. A filha da puta da broca partira e tinha de encaixar uma bucha de tamanho inferior sem a partir. Já tinha partido três, que eram as que tinha a mais. Uma gaja loura toca-me no ombro. «-Hey. Can you join us for a drink.» Eu agradeci e disse que não que estava working. A tipa insistiu. O berbequim desviou-se quase me apanhando um dedo. Olhei para ela com um ar de se não sais daqui fico fodido. Ela fez uma cara de choque e censura que no seu hipotálamo deveria requerer que eu me arrependesse pela rudeza e lhe pedisse desculpa. Há uma graça divina num homem compenetrado em levar a sua vontade sobre a realidade material que o testa. Eu queria acabar aquela merda. E havia de ficar bem pois já fiz merdas mais complexas e difíceis e não haveria de ser um caralho de um sistema de CCTV que me faria suar, filho da puta. Bem-dito, melhor feito, faltavam 2 câmaras, aquelas apontadas para a registadora, em pladur e já não em betão armado. A furar um dos buracos, a conduta onde se apoiaria desfaz-se, ao que solto um «-Foda-se.» bem audível. Dizer asneiras é uma boa forma de expurgar emoções negativas. E eu quero que se foda, longe vai o tempo em que me ralava com o que pensam de mim. Todos morremos sozinhos, assim que interiorizares isso é fácil relativizares o resto. Felizmente dentro da caixa vinha um espelho de plástico que permitiria disfarças o buraco no velho pladur. Estava absorto em aplicá-lo, quando outra mão me toca no ombro. Outra gaja, foda-se. Lembrei-me de um sonho que tive quando tinha uns 26, 27anos. Sempre sedento de sexo, sonhara com uma tipa loura e com um vestido preto com bolinhas brancas que nunca me largava como se castigo de Zeus e Olimpo restante, que onde quer que eu fosse recebia as minhas fodas e no final me perguntava: «-Então e mais?» O meu período de refracção na altura era de menos de meia hora, e agora vai numa hora. Portanto já na altura era assustador. Mas lembro pensar no sonho, amiga se é pila que queres vieste ao local certo. E penetrava-a vez após vez e de todas as vezes ela se recompunha e perguntava, numa perpendicular a mim, «-E mais. Não há mais? fode-me cabrão.» Lembro-me que no decurso do sonho, me fartei dela e a entendi como castigo divino. De pensar que gaja é esta e que quer ela de mim, se não tem nada para fazer. «-Hi, we were thinking you might want to join us, we will buy you beer. » Isto saído da boca de uma gaja das mais bonitas que vi até hoje, ruiva, pele branca, do país com mais ruivas, ou Irlanda ou Escócia. Vestido em viscose, amarelo com um casaco de cabedal mesmo como eu gosto. Olhos azuis claros, as outras olhavam da mesa numa espécie de competição intragrupal onde a anterior jazia cabisbaixa. «-Look, I’m working, maybe when I’m finish here, I join you all, ok? » Ela acenou que sim. Com a cabeça e desiludida. Foda-se Lisboa já não é nossa pensei eu. Lembro-me de pensar que com a entrada na C.E.E. ia ser o paraíso, eu que gosto de louras iria ter louras a morar em todo o lado, que viriam para Portugal por causa do tempo e porque somos os melhores. Agora que me são indiferentes as louras, não posso dar um passo sem as ver. Rodando o pulso no sentido dos ponteiros do relógio apertei o último parafuso. Foda-se. Agora é configurar e bazar. Eram 18 da tarde. O dono ou gerente já me oferecera 4 garrafas de água, e vinha agora com uma cerveja em caneca que traguei de imediato por causa de estar a escorrer suor. Não tinha almoçado ainda e aquela merda bateu. Fui para o canto isolado programar o filho da puta do Network Vídeo Recorder. Instalei a app no smartphone do gerente e expliquei-lhe onde podia na app store instalar o programa no telefone do outro gerente de forma a controlarem ambos remotamente as câmaras para verem o que se passava nas caixas registadoras, afinal o estuário de toda a actividade. Uma delas estava focada demasiado à frente. Fui para baixo, para onde ela estava, para a ajustar para o local onde devia filmar non stop. Entre ela e mim estava um gajo para aí com dois metros e dez. Era mais alto que a porta por onde entrara. Toquei-lhe no ombro e pedi-lhe para me dar um jeitinho. Olhou de soslaio por cima do ombro e tratou-me com a mesma jactância que eu tratara a boazona ninfa de Saint Patrick. Quando não como, fico agressivo. Já não tinha paciência no corpo. Meti-me à frente dele que falava com amigos ou conhecidos ou o caralho e pedi no meu melhor inglês de Shakespeare, «-Hey, sorry can you please move for a moment so that i can adjust the CCTV system im working on, thanks.». O cabrão fez-me o raio X e congruente com as dezenas de copos de imperial no balcão em frente a ele e a 3 ou 4 comparsas, não se fazendo rogado lança um punho fechado na direcção da minha cara. O que me tocou não foi um punho mas uma locomotiva em forma de mão humana de grandes proporções. Só me lembro de uma dor na nuca, de olhar o tecto, do silêncio no bar, e da minha língua a aferir danos a ver se nenhum dente havia abandonado a nave. Havia sentido um número impreciso de saliências ósseas que formam a mão humana fechada, nas minhas gengivas. Tinha todos se bem que ao empurrar um molar, o gajo abanava e doía. Vá lá, teve a delicadeza de me acertar na lateral do rosto não me partindo nenhum dente. Fechei os olhos e pensei, ou saio daqui na horizontal ou vou preso, que se foda, há muito que me cansei de fugir. O chão provara que não sou feito de papel. Levantei-me, encaixei o maxilar como nos filmes, e olhei o gigante da feira popular nos olhos enquanto os amigos deles ainda não haviam terminado as gargalhadas em honra da audácia do amigo. Eu disse, «-Thats gonna cost you. » Ele olhou-me com o mesmo desprezo que a Ana Santos me olhou quando a abordei para saber porque me deixara especado na paragem de autocarro. Ele achava-se de casta superior à minha. A diferença física assim o determinara. Sentado no banco alto estava com a cabeça à mesma altura que a minha, comigo em pé. Eram 18 e 30 e o ‘portas’ só chegava às 19. Ninguém me defenderia, ninguém me seguraria. Foi com facilidade que o meu pé se levantou, eu levara os meus calções azuis, largos, oferecidos pela minha ex, que me comprava sempre roupa largos números acima, Deus a abençoe. O koshi do pé tocou-lhe em cheio no queixo que acelerou em direcção oposta do occipital prenunciando um período de trevas para a sua consciência. Ao cair no chão, senti o mesmo tremer. Um dos amigos, com cara agressiva, avançara na minha direcção, encontrando a meio caminho a parte lateral do meu crânio que terminando nas fontes, lhe atacara o dito queixo, acertando-lhe no nariz que, entretanto, se tornara numa fonte de sangue jorrando. Agarrado ao rosto caíra estatelado no chão, e senti uma dor forte na nuca, um dos outros amigos partira nela um copo de imperial, ideia estúpida pois agora era ele que tinha a mão toda ensanguentada e gritava como se tivesse perdido alguma virgindade sem vaselina. Agarrei-o no queixo, e na nuca, e desferi a minha testa em direcção à dele, desfazendo-lhe parte do nariz, não sem antes completar o serviço, com um afundanço do resto de cara que lhe sobrara, em cima dos copos amontoados no balcão, deixando-o cair de seguida em direcção ao centro da Terra. Eu estava coberto de sangue e 3 falantes de neerlandês jaziam no chão. Eu ainda estava zonzo, como se ébrio. De dor e de adrenalina. O bar em silêncio. Numa mesa, as tipas de que te falei. Aproximei-me da de vestido placebo de seda amarela e disse-lhe: «-I want to fuck you right now.» Não faço a mínima ideia porque é que disse isto. Julgo que o bater com a cabeça no chão avariou alguma coisa dentro de mim. A cara delas ante tanta violência, o susto perante o quão fácil se pode tornar a morte num país civilizado mesmo sob o verniz, fez com que se pirassem todas rapidamente, mesmo a boazona de amarelo, com gémeos mesmo como eu gosto e parecendo saída de anúncio de chocolate da Guylian dos anos 90. Sentei-me num banco, com a palma da mão direita na nuca se como para segurar algo que quisesse sair da minha massa encefálica. Outra mão no meu ombro. «-Hey amigo, gostei como resolveste essa.» O armário bípede levantara-se do chão, pagara contra a vontade da brasileira na caixa, e fora-se embora com os amigos. Olhei para o dono da mão que me tocara no ombro. Era estrangeiro também, percebia-se pelo sotaque à Bobby Robson com que falava a língua do grande Camões. Eu respondi, com dor, e com fome, «-Fuck off motherfucker.». «-Leave me alone.» Foda-se caralho para os turistas. O gajo olhou-me com uma espécie de soberba do género de quem já vira muitas caldeiradas do género. Mas eu estava compenetrado na dor que sentia ainda na nuca. O gajo retira-se para a mesa de onde saíra. No canto. Inobservável, numa ponta em que para se lhe chegar tínhamos de ouvir a sola dos nossos sapatos, fazer barulho por causa do chão peganhento que mediava a distância, mercê de cervejas incontáveis entornadas no local por gerações esquecidas. Uma sensação de ser observado apodera-se de mim, e olho na direcção da porta da rua. A musa de amarelo olhava-me indecisa, do género, devia ter virado costas, mas algo telúrico a fez voltar costas em direcção ao tipo que metera outros três largando sangue no pavimento. Aquele vermelho fizera-la ficar molhada, algo na visão a excitara ao mesmo tempo que repudiara a violência. Algo básico, uma atracção pelo ‘vencedor’, uma paixão pela coisa-em-si que se manifestava através do indivíduo eu. Olhava para mim imóvel à espera de algo, nem sei bem o quê. Algo se apoderou de mim também. Levantei-me na direcção dela e ao chegar ao pé dela, enfiei a minha língua na sua boca e com um braço pela zona das suas costelas flutuantes a trouxe até mim. Com a mão livre levantei-lhe o vestido pela zona da vulva até ter acesso às cuecas que eram de gola alta, e antiquadas como só as irlandesas sabem ter, e num movimento de mão como o dos cavaleiros que antigamente mostravam não ter armas ocultas nas palmas, dou comigo a tocar com o dedo médio a dedilhar como guitarra o seu clitóris. A pessoa estava encharcada beyond belief. Agarrei-a pela nuca à entrada do bar e puxei-lhe a cabeça para o meu ombro, sentindo-lhe a respiração ofegante na minha clavícula, sob uma fina t-shirt verde que tenho. Por trás dela eu via o bar todo, talvez devesse ter ali uma câmara. No canto obscuro e invisível o gajo que te falei. No resto, umas 10 pessoas olhando para mim e para que merda estava eu a fazer às 18 da tarde com uma estrangeira. A dor na nuca e o sentimento de que quero é que se fodam, encontraram a meio caminha alguém nos meus braços cuja respiração se alterara e cuja contracção me apertara contra si. A irlandesa tinha-se vindo. Beijou-me com carinho e ouvi palmas lá de dentro, do canto escuro. Um dos gestores ou donos, chegara e eu disse que o meu trabalho estava pronto. Disse-me para sentar e que bebesse o que quisesse, era por conta da casa. Sentei-me apoiando a testa no meu antebraço, não podia encostar a nuca a lado nenhum. «-Mate, i want you to come to a party.» O meu vodka tónico estava ao alcance da mão do caralhídeo que se sentara à minha frente. «-Mate, can you please leave me alone?» - disse eu já com uma voz quase suplicante. Não era a dor que me deixava mais apreensivo, mas um proceder que não reconhecia como meu. Já não me bastava que a gaja que eu queria estivesse a chegar, que a época do mergulho estivesse longe para mim, ou que eu ainda andasse abraços com a descoberta do meu dom para o mundo que ainda vinha um caralho sabe-se lá de onde tentar invadir este meu espaço de solitude. «-Desculpa amigo, today tu vens comigo.» Olhei para o cabrão à minha frente. Não tinha cara de punhetas recém desembarcado de um paquete de merda. Este gajo estava cá há alguns anos, depois vim a saber por malta do bar que era um dos 3 maiores, ‘facilitadores’ de castanha de Lisboa. Mas não daquela que é assada e larga aroma por Lisboa. De Essex, parece. Adepto do Arsenal. «-Look mate, i dont like drug dealers and im leaving.» Um negro maior ainda que o holandês que ficara no chão uma hora antes, ocupou o espaço da porta de saída. Ao sinal do sobreolho do gajo que estava à minha frente. Foda-se, pensava eu, onde me vim meter, que caralho, para desenrascar um favor. «-Hey no need to be nasty you fucker.»- disse o gajo. Não sei se o medo se o estar nervoso, disse «-Motherfucker i dont like you, you make Money with others misery, leave alone and call your dog so big I don’t know what animal shits so big.» Não sei que caralho estava a dizer. Sei que o gajo desatou a rir-se e disse ao outro na porta o que eu dissera. Eu pensei, foda-se estou fodido, tive sorte com o holandês, este mata-me. O gajo da porta senta-se à minha frente e estende-me a mão. Apertei-a, sempre com a esquerda livre para bloquear o que viesse à mânfio. 1.3 Nada veio. Eram dez noite e ainda estávamos a ver quem bebia mais cerveja e quem conseguia manter mais coerência de discurso. Eu. A cerveja fizera-me pensar estar mais sóbrio que os outros dois. Um sentimento sinistro de que era tudo fachada para levarem a sua avante, eu ir com eles. Estavam a ganhar-me, num processo bem oleado e eficaz. O que me irritava por saberem mais de como eu funcionava que eu próprio. É isso que acontece quando sabemos que somos manipulados, a nossa individuação desfaz-se como cinzas ao vento. «-Mate im giving a party and you will come.» O bacano da porta coloca sobre mim a sua mão com forte aperto de falanges, portanto não era uma escolha o meu luxo. Fingindo beber o resto da sua cerveja, percebi que era a bem, que se foda. Disse: «-Bora.» Bebi o que faltava do meu copo de imperial e levantei-me. O gajo levanta-se, abraça-se a mim e empurra-me pela porta de saída. Podia ter alguma réstia de prudência, que se lixe, estou sozinho mesmo. Entrei no raio do Range Rover de 2018, e não sei quanto tempo estive lá dentro. Não sei se o gajo me levou para a Graça se para Sintra. Sei que dentro do carro eu só dizia «-Foda-se sinto-me o Hank Moody!» e ele e uma gaja que lá ia também fingiam perceber o que eu dizia. A gaja chamava-se Adriana, soube mais tarde. A tontura da cerveja borbulhava pelas minhas palavras e para o Céu que sob mim sorria pelo tecto de abrir do carro albiónico. O portão em ferro forjado fez parar o 4x4 da viatura tocando ambiente sonoro dos Theather of Tragedy, gosto que tínhamos em comum. «-Hey John, you hungry?» «-Yes, but i dont eat meat.» Quando, 15 minutos depois, saí do carro, um gajo saído sabe-se lá de onde, me aparece com uma travessa cheia de mexilhão meia casca da Nova Zelândia fresco, eu não conseguia acreditar. Não me lembro se falei em bivalves, se adivinharam. De certeza que devo ter falado. Comi umas 12 peças antes de pedir uma cerveja. Um som a rave party vinha das traseiras, «-John this is your party.» Decidi fingir que acreditava. Chegados à piscina, foda-se, nunca vira tanta gaja boa junta. O quê, o fisicamente belo não é critério nas tuas escolhas? Conta-me histórias. Assim que me sentei num banco, esperando que o meu cérebro voltasse à estabilidade normal, uma morenaça de 20 e tal anos abraça-me e enfia a sua língua na minha boca como que se procurando a resposta ao dilema da vida e da minha intimidade. Há 20 anos que não como gajas de 20 anos. Penso. Eu é que me descolhôo. Olho sua cara enquanto me beija e de olhos fechados parece entregue a usufruir o que sou. Agarrando-a pela nuca puxo-a cada vez mais para mim sem resistências da sua parte. És demasiado pesado, sério. Sisudo. Dou comigo a pensar porque penso nisto. Percebo o complexo dentro da minha consciência, da permissão que não me dou, do merecimento que não me autorizo. Como que se juventude de um corpo menos replicado ao nível das mitocôndrias fosse um qualquer prémio para sapiens silverback. À minha volta toda uma plêiade de diferentes movimentações com J. como denominador comum. J. é o nome que dou ao dealer. Tão amável comigo que não me sinto confortável a chamar-lhe dealer. Apesar de me ter drogado para se rir à minha conta. Qsa foda. A sua língua procura o que de mais mim sou eu. Sem me desqualificar, sem me reduzir à condição de curiosidade de circo. Lembrei-me de chamar pelo anfitrião mas nem sabia, nem quero saber o nome do gajo. Chamo-lhe J., já que K. já foi usado. Sei que ela, paga ou não, fez-me relembrar o sabor da paixão. O sabor além da minha musa futura que provaria minha boca e diria para os seus deuses, «-Fuck, this is da shit.» A boca jovem, a saliva escorreita e saborosa, as mucosas intrabucais esticadas, os dentes sem tártaro. A expiração cheirava a novo, e a pele parecia casaco de cabedal que nuca sai de moda. Promessa de eternidade por entre murmúrios de entrega. 1.4 Mas não, as minhas viúvas alfa, estavam refém das suas escolhas, e eu sou teimoso e orgulhoso demais para aceder a ser o prémio de aproximação e não a sorte grande. Tinham à sua frente, ou a escolha de um diabo que a carregasse ou de um anjo que a mandasse ao chão como na farsa de Inês Pereira. Qsa foda a escolha é delas. A miúda de 20 anos chupava-me o falo com demasiada intervenção dos dentes. Disse-lho, ficou exaltada. Chamei-a pelo nome, e disse-lhe que neste mundo de merda, quando alguém nos corrige, nem sempre nos quer dominar, provavelmente quer-nos informar do que podemos fazer melhor já que outros só nos usaram para aliviar a carga. Assim era com meu ‘amor’, ninguém lhe dissera amor usas demasiado os dentes. 35 Primaveras e ninguém se dignara explicar. Mas a minha amada não queria saber, ou tal servia de tónico nas pilas passadas ou ninguém perdera tempo a expor. Estive para lho dizer. Mas gosta de se pensar como temperamental. Mas não, é frustrada com o rumo da sua vida. E qualquer coisa que lhe mexa com a zona de conforto das suas crenças adogmatizadas, é algo visto como virulento. Cabia-me dançar com o rabo para trás em direcção à parede, puxar-lhe suavemente a cabeça para cima para lhe dar um beijo, e aguentar a dor como um homem, só para lhe proteger o ego, e alguns cabelos brancos que eu ganharia porque a temperamentalismos fáceis respondo com um sair de cena sem mais delongas. Amor, assim magoas um pouco, tudo bom, mas menos dentes. Se ninguém lho dissera, que caralho haviam sido as experiências desta pessoa? Ok, és boa para eu esporrar, mas nada mais mereces além disso. Lembro de certa vez ter dito a uma das minhas Primaveras passadas, qualquer coisa sobre ser um depósito de esperma. É algo tão triste, do sítio de onde venho. Tal como eu ser bom apenas para andar na ponta de um braço. Eis um exemplo. Foda-se ninguém a avisara com medo de lhe romper o amor próprio. Eu incluído. A quantidade de pila naquela boca e ninguém se dera ao trabalho, por pena ou negligência a dizer-lhe que foda-se não é assim que se faz um broche. Quer a minha ex, quer o meu ‘amor’ se eu lhe contasse, iriam rir-se de mim. Chupar pilas não é uma actividade vital à existência ou meritória para o indivíduo agente. Mas há algo de trágico quando após anos de prática e experiência em actividades lúbricas, não saberes que os incisivos casam mal com glandes tumefactas. Ah não sejas maricas, um bocadinho de dor não dói nada. Eu acho que no fundo elas sabem. Esta de quem te falo, acha que tem de esgrimir a cada respiração, que tem um feitio forte, tem personalidade. Talvez para esquecer ou mitigar a suspeita de que poucos a aturam além do sexo, que nada é de especial e ainda assim gosto dela, veja-se bem, eu um homem porco como todos os outros que só pensa em sexo. Tanto quer mostrar que é uma mulher de carácter como aquelas que admira em filmes e tem em póster pelas paredes da casa onde vive sozinha com namorados imaginários, que não consegue ver que é apenas mau carácter. Fechada sobre si e pouco elástica em relação aos outros que não consegue respeitar e às parcelas de mundo que desconsidera, por não lhe confirmarem a estética. Luta pela sua pegada moral no mundo, mais para se ver com bons olhos que pelas consequências dos seus actos. Tudo o que seja causa social a faz envergar o seu fato de trabalho burguês, dando assim alguma dignidade a uma vida que aparece cada vez com menos brilho ante o fascínio que provocava nos mancebos e que mascarava de forma inebriante, até há uns anos atrás. Faz voluntariado onde quer que ele apareça para tirar selfies com os pobres e desfavorecidos numa virtue signallingconstrangedora. Tão moral mas usando outros para viver o seu papel. Tão ciosa por reciclagem, mas não dispensando o seu tabaco diário, fumando árvores e libertando alcatrão para os pulmões e monóxido de carbono para o ar de todos. Recheia o Instagram de fotos nas viagens à Índia ou a templos budistas na Indochina, ou a fazer pára-quedismo numa preocupação constante de registar o momento. Com gente famosa no meio que escolheu como palco, pelas noites da capital, num mostrar ao mundo que é sofisticada e não uma dondoca que nada sabe sobre estar viva, como todos os restantes. Pronta a lixiviar o distante, o exótico, o preto, o muçulmano e todos os que sofrem às mãos dos homens brancos, e a odiar o próximo, o filho da puta, o cabrão, o homem branco, culpa de todos os males do mundo, como se fosse genética e exclusiva a filha de putice, no homem, branco. Fez turismo sexual nos trópicos, mas chamou-lhe descoberta do seu corpo, fala das anteriores aventuras sexuais como se de uma viagem, mas tenta envergonhar-me pelo papel lastimoso que dou às minhas personagens, retirando-lhes peso ontológico. E continua, abençoado ego, a achar-se melhor e mais esperta que eu, afinal, homem branco não sabe nadar yo. Tendências feministas como forma de justificar a certa desilusão com o curso da sua vida, mercê das escolhas que tomou e pelas quais só em parte é imputável. Sonhara ser femme fatale de boulevard bem torneada em tudo, físico, educação, profissão, mas vê-se agora reconduzida ao papel de dona de casa, não que haja mal algum nisso, excepto para uma feminista. Coitadas, presas na sua narrativa acerca do mundo, que se fodam. Ainda olham para mim como se fosse um inválido a quem deram o dom da sua vulva. Que basta ter a vulva dourada que o tudo o resto é dádiva para o crente. Que se vão foder. Não, eu é que vos dei o dom da minha presença. E ao pensar assim desconfiei ter ingerido algo além da cerveja. Mas não, no gemido comum de 30 almas em torno de uma piscina num sítio ignoto para mim, eu apenas transmito o tom geral. O mundo que se foda, eu sou o dom. E não é que sou? Se ela se acha assim, serei eu menos? Num mundo que quer que eu me foda, eu quero que o mundo se foda. Mas sei que o mundo nem está aí, na sua rotação diária. Ou seja, o mundo quer é que eu me foda. Esporro para aqui loas de auto bajulação dizendo que as ninas é que fizeram mal ao cuspir-me fora como esperma sem validade genética. Mas não as posso culpar de nada. Preso nestes pensamentos um alarme vem debaixo e diz-me que soltei mais uma carga de espermatozóides, ou nas cuecas da feira vendidas por ciganos e compradas a chineses ou na boca de uma cachopa perdida algures no existir e que tem de entregar amanhã um paper sobre a alienação na sociedade moderna para uma cadeira de Sociologia no ISCTE. Assim que me venho, e antes de poder beijar na boca, a cachopa salta do sofá como que se tivesse cumprido a tarefa acordada. Eu sinto-me usado e a minha individuação desmorona como baralho de cartas. Afinal, nada coloquei em suspenso de alguém que me viu como tarefa. Afinal não tinha sido paga, achara-me graça e achava-se independente sexualmente para comer quem lhe apetecesse. A sua auto-imagem assim o exigia, sentir-se na crista da onda do Zeitgeist, ainda que fosse, como no ‘2º Sexo’ de Beauvoir, um decalque, ou projecção do sexo masculino. Esta ‘liberdade’ sexual. Quantas, quantas não agiram assim, com a curiosidade de ver até que ponto me diferenciava dos coros batidos por outros? E eu é que sou o homem porco que só pensa em alijar as gónadas, e penso no significado que o acto sexual tem além do mero toque de mucosas. Bem, mas a minha pila também é o radar com que ausculto os outros e determino sofisticação alheia pela capacidade de jogar o jogo. Tá certo, não posso julgar. Quantas não pinam os badboys nos 20 e agarram-se aos providers aos 30? Ainda nem tinha puxado para cima ainda as calças, e já o bacano de horas antes me dava caldos na cabeça testando a minha paciência. «-Hey mate lets go you lover. I have someone I want you to meet.» E eu com um pedaço de vómito a implorar pelo canto da minha boca para se ver liberto, «-Fuck you motherfucker.». «-I want to karaoke.» Toda a gente em torno da piscina se calou. Em menos de 10 minutos tinha à minha frente um microfone e um ecrã de 40 polegadas. O bacano assistia a tudo divertido num canto escuro, inobservável. Cantei «Join me in death» como que se por exacerbar o carácter do amor, o meu amor soubesse e me validasse por entrega a tal dissolução de quem sou. Mas o play automático do youtube meteu-me no «Wicked Game» dos mesmo HIM, e eu me lembrei que isto não é uma corrida justa, é um ver se te avias. Assim, procurei nas redondezas a gaja mais boa, mais heterodoxa em relação à norma. Encontrei Adriana, com tatuagens, mini saia de cabedal, e pose de que venha quem vier já sei de tudo. Nem lhe perguntei o nome, enterrei minha boca na sua boca como bezerro desmamado à força de açougue e prendendo-lhe a nuca no meu punho cerrado perguntei-lhe : »-Quem te vai comer toda?» E ela responde perguntando «-Tu?» Puxei-lhe a saia de cabedal para cima e agarrei-a pelas nádegas, e ela respondeu olhando-me nos lábios e implorando pelo beijo que se aproximava. Os meus incisivos cerravam como os velhos frustrados da vida decididos a resgatar em minutos a dignidade de uma vida inteira e penetrei-a à vista de todos em torno da piscina que ululavam como se num cabrão de culto satânico, ao que eu gritei caídos não sou satânico, sou agnóstico filhos da puta, abafando-se a minha voz, pela acção de Adriana que me chupava a língua como dama inesgotável que soçobra em ritual. Ah boa queres luta. Soltei-me numa luta de pittbulls pelo amor, e só parei quando a deusa apareceu a meus olhos como humana prestes a colapso que a sua condição de fumadora convidava. Colocando-a de pé perguntei-lhe, sabes a quantas lambi como se fossem minhas? Poucas. Levantando-a, virei-a ao contrário e com a vulva no mesmo nível da minha boca, toquei harmónica. Não ligues, isto é a cerveja e a droga a falar, eu não sou assim, nem me reconheço. Dizia eu a um hipotético observador divino que me visse naquela situação. À minha volta os sorrisos passaram de aceitação a jocosidade, e virando-me para J. perguntei «-Hey mate, did you put something in my drink?» Ele respondeu «-I wouldn’t be much of a drug dealer if I didn’t, now would i ?!» Até ali apenas havia fumado charros. Não sei que merda me meteram na bebida, e estava verdadeiramente aterrorizado com o eu que emergiu debaixo do verniz. Quando abri os olhos, era dia, e ela ofegava, a minha pequena Adriana. Respirava de boca aberta e eu não sabia por onde me esvair, prenhe de cerveja e de colhões vazios. Estás bem, durmo. Ao meu lado, n garrafas de cerveja gourmet cuja marca só um traficante de psicotrópicos conhece. A ressaca dizia-me adeus ao longe e eu ao longe tresandava a cerveja gourmet. E tive de ir mictar. Ao sair, uma panamiana que eu não havia visto antes e que trocara umas palavras comigo agora, agarra-me no fio que uso ao pescoço, e tocando no pendente em forma de âncora aponta para a tatuagem em forma de âncora que tem no ombro, e convida-me para ao futon dela. Eu indiquei na direcção da outra com quem estava. «-Busy, sorry, next time, kiss. » Olhou em frente apagando-me do seu mundo sem qualquer insistência. Queres queres, não queres nem existes. Que capacidade. Dei por mim a pensar se não é isto que transmito, se alguma aderência a valores não é desaquação ontológica, má leitura do mundo, casmurrice minha confundida com imbecilidade pelo observador demasiado convicto da sua mundividência. Eu é que sou o homem branco, porco e amoral, e, no entanto, não ‘aproveito’ uma oportunidade de sexo fácil por um estúpido e deslocado sentimento de deslealdade. Chegado ao pé de Adriana, cheio de confiança pelas abordagens e pelas gargalhadas do anfitrião, disse, Adriana vou-te beijar essa boca toda. Mas espera, tenho de vomitar primeiro. Vomitei para cima do andar de baixo da vivenda encaixada em colina. Como Susana na Covilhã, que vomita na banheira para que ninguém se perceba da sua fraqueza a beber com homens que têm mais massa muscular que ela ( o quê, perder a feijões logo com…homens?...), logo mais capacidade de assimilar a bebida de Baco, eu fingia aguentar. Mas como não tenho medo da minha vulnerabilidade. Antes de se ir embora, acordei. Fui mijar, de novo. Eram 3 da manhã. Como vais? Tenho o carro em Entrecampos. Não consigo guiar agora. Fica comigo até vir a aurora. Está bem. I
Observo as glaciações, esta mais recente após Würm, esperando por períodos de degelo que abalem qualquer decisão tomada por força de determinação aleatória que não me seja favorável. Sei disso e por isso não te chateio tanto. Que leves a vida com a autodeterminação que lhe está inerente. Sabia que o muro esperado não iria ser este, e sabia também que qualquer coisa análoga iria acontecer. Foste para a terra da revolução e antecipaste uma revolução por ti própria, claro que mantendo uma cordialidade que te protegesse, e a mim também. Curioso pores-me à distância para protegeres ambos. Por um lado fico curioso pela capacidade de resistência de algo que não foi decidido por ti ou por mim, e por outro lado apreensivo pela capacidade da tua determinação em conseguir com a tua distância e silêncio congelar o Sol. A disposições de expressão sentimentais minhas, que não exigem resposta, o laconismo de um emoji, ou um desviar de assunto, como que se quisesses enterrar um assunto sob as camadas de terra da tua vontade. Ou condicionar-me a um nível de convivência determinado pela tua decisão. Eu vejo. Eu vejo-te. Todos os dias. A toda a hora. Fecho os olhos e estás lá. Não tenho como não te ver. II Imagino um futuro próximo em que te vou cobrar o porquê de tanta resistência. Não pode, claro que não, ser apenas um fortíssimo instinto de sobrevivência. A não ser que seja da alma. É isso. Estás a lutar pela tua alma e não só pelo teu estilo de vida e investimento emocional. Não posso ser eu. Por onde quer que olhe não me soa bem. Mas posso ser eu. Ser um rasgo tal na tua existência, que tens medo de perder o que tanto tempo te deu a ilusão de conquistar, tu mesma. Como se a caravela de Bartolomeu, após dobrar o cabo das Tormentas, não tivesse acesso a outros mares por navegar e às riquezas de outro mundo. Para lá do cabo estava a riqueza que procuravas. Soa a determinação a alguns, à coisa mais adulta. Quantos pecados se cometeram pela determinação? Por fuga ao suposto caos, por medo de sair do cais. Não te quero fazer mudar de ideias. Não se convence ninguém a gostar de nós. Quando muito, pedir-te que não me mates em ti. Se em ti nada há de mim, diz-me e desapareço em conjunto com a vergonha da minha presunção. Imagino um futuro próximo em que a minha vontade contrariada de ter-te toda e ter-te já se alivia dizendo «-O tempo que nos fizemos perder, nunca mais.». Nunca nenhuma crença alheia me causou tanta revolta com a tua, de que não tenho lugar para o lugar que eu quero na tua vida. E bem lembro as histórias dos que queriam à viva força da sua vontade que a tua recíproca fosse. Mas não quero que a tua vontade seja como eu quero, quero que à minha seja permitido ser como quer pela tua vontade. Se algo de mim te infectou a higiene interna, deixa crescer a colónia de micróbios e vogar livres os protozoários. Penso que é isso que andas a tentar silenciar. Colocas-te de quarentena para ver se o mal passa ou o arrancas pela raíz. Como se amputado de ti o melhor para a minha saúde fosse ficar privado de ti, ou pior, se me sentisse tratado como doente por ti. Nenhum de nós pode dar o exemplo ao outro. Apenas paciência a cada um de si. III Esse eu que matas dentro de ti. Se existe, e eu sei que sim, também sou eu. Se o matas é a mim que matas também. Eu sou incapaz de te matar, mesmo que isso me mate a mim. Por isso te escrevo. Desde que te conheci. I A manhã desponta como um presságio de vómito e ele olha para as mãos caídas para o chão, lassas e indolentes como que em sintonia com a ressaca imperatriz. Haviam dançado a noite toda numa coreografia horizontal de cuspo, suor, esperma e sangue, e desta guerra fratricida apenas se ouviram os disparos de gemidos, queixumes e segredos contados para dentro, sob um colchão encharcado em fluidos corporais. Só com alguns vodkas tónicos no bucho foi ele capaz de copular com Ana Santos. Ana foi nos tempos de escola, aqueles em que a testosterona nos faz cair na embriaguez telúrica das forças que agem em nós, uma paixonite fulminante mal resolvida. Ele circulava calmo e em paz, encharcado no suor de ter jogado basquetebol a tarde inteira, quando uma voz o chama. - «Olá.» ‘Olá.’ – foi o que saiu da boca dele. Cabelos negros encaracolados faziam a moldura de uma cara sagaz e exótica cujos dois olhos apontavam para ele com um misto de divertimento e curiosidade. Nariz redondinho e arrebitado na ponta, lábios salientes e carnudos acentuavam o carácter melanóide da ninfeta branca como cal que a ele dirigira a saudação. - «Queres ir ao cinema?» -«Chamo-me João.» -«Eu sei como te chamas, tenho-te observado.» Ela andava sempre acompanhada por duas amigas colegas, e compunham um dos trios mais populares de cachopas da Secundária. Sempre colocadas estrategicamente à entrada do refeitório, em intervalos onde se queimavam os tempos mortos sem aulas, numa espécie de passerelle juvenil misturada com arena de gladiadores, onde a mocidade esgrimia inteligência emocional e técnicas de socialização. Um microcosmos de sociedade, tão complexo como outro mundo qualquer, com as suas leis e regras, com as suas excepções. Com os seus anti-heróis. Ele era um desses. Baixo na hierarquia, o pai não lhe dava nem os meios nem a oportunidade para socializar, ir ao café, a casa de amigos, passara uns tempos na passerelle até perceber que não só não queria subir a escada, como rejeitava a existência da mesma, regateando com a realidade, como se a mesma desse um cu em relação à sua subjectividade e ideia de como o mundo deveria ser. Borrifou-se para aquilo, virou costas, e preferia passar o tempo ao Sol ou à chuva, jogando, transpirando, ganhando, perdendo, caindo, por vezes até baldando-se à aula para terminar um jogo em que decidira ganhar custasse o que custasse. Quando respeitava a sirene que chamava a população escolar para a pequena boca que passa por porta das salas de aula, entrava na mesma encharcado, e em aulas de 90 minutos só a cerca de 20 do fim tinha o corpo arrefecido o suficiente para deixar de esvair moléculas compostas de hidrogénio e oxigénio pêlos poros dilatados de uma pele que dissipava calor. Para depois da sirene voltar ao mesmo ritual. Fluxos e refluxos de uma maré composta de sprints para um lado do campo e para o outro, em velocidade vertiginosa que mesmo a malta do futebol achava ridícula pelo esforço cardiovascular. E duravam horas e horas e no fim um sentimento de paz com o mundo, análogo ao que viria a sentir anos mais tarde na exaustão das cópulas sucessivas. Sem energia dentro do corpo, aparece o Nirvana da humildade. Após tácticas e demonstrações de capacidade técnica, tal como no amor, com mitologias e façanhas próprias, tal como no amor, o basquete de rua é uma perfeita metáfora. Não gostava da racionalidade do basquete de pavilhão, frio, assertivo e colectivista. Tremendamente eficaz. Não, para ele era o de rua, aquele em que pretos e brancos demonstravam a finesse e o estilo próprio, em que os primeiros pareciam preferir a elegância e o exercício de estilo, as fitas, e os segundos a eficácia e as tácticas mecanizadas e os triplos, num bailado de galão quente raramente segregado ou segregacionista. No campo, éramos irmãos pelo tempo em que jogávamos nas mesmas equipas. Conhecíamo-nos uns aos outros, o estilo, a jogada preferida, as limitações. Ele, adorava penetrações. Para o cesto. Mais tarde trocaria a preferência por penetrações para outro tipo de objectivo, primeiro vulvas e depois almas, escusado será dizer. Adorava acelerar de tal forma que quando dava os dois passos e estendia o braço para cima, tentando tocar com os dedos no aro metálico, tinha de acelerar a subida de forma a que não fosse bloqueado, o que é a humilhação suprema no basquete de rua, pior que perder. Ser abafado significa que a nossa intenção e técnica, e inteligência foram negadas. Negadas pela observação e acção de outro. Ele, como os outros, era baixo para o jogo. Mas não se ralava, sabia qual a sua impulsão e calculava bem onde tinha de começar a subir perpendicularmente em relação aos latagões que invariavelmente apareciam na escola ou no ringue perto de casa, para desafiar os autóctones. Quando subia e vinha o abafo pelo correio, passava a bola a outro incapacitando no ar o incauto que seguia no despeito voador pela gravidade fora, no seu encalço. Ele não era particularmente fascinado pelas fintas, de corpo, pelo teatro que ludibria o outro. Era pela penetração, rápida, incisiva, só com o cesto em vista. O objectivo, claro, cristalino, único, apenas ele e a sua vontade de o atingir, de depositar a bola na vulva de boca virada para o céu. Tivessem 2 ou 3 metros ele não queria saber, queria era pontuar, fazer a equipa atingir o objectivo, acutilante, inexorável. Findo o jogo, raramente os outros se conformavam e havia sempre lugar a desforras, e quando o resultado se repetia, reorganizavam equipas para dar mais luta. Dentro do jogo, outro jogo, ser o melhor da equipa. Menos passes falhados, menos cestos perdidos. No caso dele, menos penetrações falhadas. Epá fazes sempre a mesma, pareces um coelhinho da selva. Ok, faço, só com a esquerda, ou cesto de costas, ou meto-a no cesto à frente da tua cara. Invariavelmente não chegavam a tempo, pois não subindo por aí além por causa de ossos largos e pesados contribuírem para peso estrutural, subia rápido, e o outro invariavelmente sabia que ao subir quando lá chegasse com a mão já a bola havia entrado no cesto. Pelo que a imagem que se repetia era a de uma resignação quando dado o espaço suficiente ele fazia magia em dois passos. Se cometiam o erro de marcar homem a homem, deslocava-se levando o defensor a colidir com colega de equipa, criando o desequilíbrio. Ou ficava solto e marcava ou marcado fazia marcar. Perdeu, muito, muitas vezes, se calhar mais do que ganhou. Talvez não. Foi abafado, ganhou jogos com cestos de meio campo e nos últimos segundos. Dias houve em que não ganhou um único jogo. Torceu todas as articulações do corpo. Apanhou boladas nos testículos, andou a coxear pela vila, perdeu unhas, ficou com os dedos abasalados nas articulações entre falanges. Certa vez não morreu por sorte, afundando um copo de Coca-cola numa tabela que tinha os parafusos podres e cedeu quando ele se pendurou no aro para impressionar umas cachopas que passavam de soslaio. Embatendo ruidosamente no chão, a tempo ele conseguiu fitar o pesado rectângulo da guilhotina, e o aro da forca californiana. A única fita que precisou salvou-lhe a vida. De resto era a mesma liturgia de encaixar o corpo nos espaços que os outros descuravam, sempre com o objectivo em mente. Em alguns dias, o tornozelo inchado como papaia demasiado madura, provocava-lhe mais dor que o admissível e não jogava. Noutros, o calor era tal que não compensava a correria para as casas de banho para beber água pela torneira. Noutros o campo estava ocupado por efemérides da pequena comunidade. Num desses dias foi ao refeitório quando Ana o chamou. -«Ok.» -«Boa! João espero-te 5ª feira na paragem de autocarro e vamos ao Areeiro ao Alfa e decidimos lá qual o filme a ver!» Vira-lhe as costas e parte em direcção às amigas que encostadas na parede se riam, como que se numa piada privada que ele só interpretou, valha-lhe o abençoado ego, como uma catarse emotiva após possivelmente ter sido muito falado como amor secreto, afinal a cachopa sabia quem ele era, possivelmente o observara a penetrar para o cesto e com o seu porte e destreza atlética, se apaixonara passando o resto do tempo a falar dele. Fazia sentido. Fazendo o que tinha a fazer, beber um Sumol, sai ainda meio abananado, do refeitório, em direcção ao campo. Ia celebrar o ser apreciado por fêmeas, com uma jogatana bem regada a fluídos corporais com aroma a condizer. Pelo caminho as nuvens brancas no firmamento azul profundo cantavam em coro «-Vês, vês, o mundo está de olho em ti, validando-te com a fêmea popular que te fará rei no jogo a que viraste costas!». Finalmente uma fêmea, onde posso resgatar uma história marital infeliz dos meus progenitores, fazendo tudo bem para todo o sempre. Ah, e sexo. Mais imaginado em possibilidade que possível de imaginar. A confiança na justeza do mundo era tal, que parecia profética. Alguém o valida, alguém de casta económica superior o valida. Alguém que via a MTV e sabia o que era sofisticação e usava roupa de marca. Vês mundo, o amor vence tudo e esbate as fronteiras entre indivíduos. Olha, em duas horas apaixonara-se. Já só via o rosto dela, os cones mamários e o rabo sob as calças da Levis. Confiante fazia cestos de olhos fechados e até de costas, com os outros a morder a conformação por este ser um daqueles dias em que tudo sai bem a certo jogador e que contra o destino não há resistência. Na 5ª feira está religiosamente sentado aguardando o autocarro laranja e branco da Rodoviária Nacional. Passa um, dois, três… Espera meia hora, depois uma hora, depois uma hora e meia. Passa Vasco, seu amigo, que lhe pergunta que faz ali. Explica. Sabedor de algo que ele ignorava, Vasco coloca-lhe a mão no ombro dizendo que ela já não vem, que era melhor subirem a rampa que levava para mais perto de casa, uma vez que moravam relativamente perto. Aparentemente, Vasco parecia já ter passado pelo mesmo. Chegou a casa e a única coisa que lhe passava pela ideia assumia a forma de uma pergunta, porquê? Não tinha aulas na 6ª por ser feriado, na 2ª dirigiu-se ao refeitório, lá estavam as 3. Assim que dobrou a esquina, gargalhadas ecoaram pelo corredor. Ao dirigir-se, sem entender nada, a Ana, ela levanta-se rapidamente e foge para dentro do refeitório, rindo-se audivelmente, como se perseguida por um jogral. Ele fica especado, e quando fogem, não corre atrás. Excepto no basquete. Para onde voltou. Porquê, perguntava-se, sem interacções anteriores, porquê a ele? A pergunta adensou-se quando duas semanas depois a viu, num vértice do pavilhão escolar rectangular, com a boca que ele sonhara beijar, na boca de um gajo que ele nunca vira antes. Um gajo menos enconado com a vida, mais citadino e com patine na ganga de qualidade da vida. Como aqueles jogadores que só de vermos mexer ou driblar a bola, sabemos que jogam pouco ou à pouco tempo, ele se comparava com o ignoto rival, certo de que nisto que as cachopas gostam, este afundaria na sua cara, sem tirar os pés do chão. A técnica ou a inteligência social, a que ele virara costas, apareciam assim triunfantes ante amante vencido que outrora nos rejeitou. -«Vês, não consegues fugir ao jogo.» - diziam as nuvens cinzentas no céu. Tão depressa como surgira a paixão desaparecera. Paixões validacionais são assim, instrumentais como o objecto que ele se sentira, mascarando com sentimento o demónio interior do sentimento de inadequação. II 27 anos passaram desde que a Ana Santos decidira rir-se com as amigas, à conta de um anónimo qualquer, pertencente a um mundo de castas por elas claramente apreendido. O toque de sonar submarino ecoa pelo quarto, a onde ele regressara após um treino solitário no campo de basquete do parque urbano, às 2 da manhã. Um convite para reunião de alunos da escola secundária, sob a forma de repasto, à moda das merdas que se vêem nos filmes americanos e que sustentam redes como o Facebook. Que se lixe esta merda, pensa ele. Como que em nota de rodapé, uma declaração de interesse em assistir ao evento, de Ana Santos. A foto de perfil era claramente antiga e melosa para uma moçoila de 4 décadas. O seu rancor transmutado em falha de carácter fê-lo procurar indícios de curvas descendentes na vida dela, como que se após tanto tempo, não tivesse esquecido o ultraje. Como que se o mal do outro aliviasse o seu, ou fosse até o seu bem. Duas vozes ecoavam na sua cabeça provocando curto-circuito numa análise que queria racional. Borrifa-te para isso que é uma infantilidade, e vê, analisa a pessoa que te magoou desnecessariamente para ao menos entenderes o porquê e extirpares o cilício de uma vez por todas. Claro que se tiver uma vida infeliz, embora não traga satisfação, traz honrarias ao demónio em mim. Ou penseis que sois feitos apenas de luz e Deus? Fui. No pavilhão gimnodesportivo, 4 filas compostas por mesas rigorosamente alinhadas como se formatura militar, opunham outras 8 colunas de comensais que provocavam ruído constante ensurdecedor a um observador de fora. No meio, a quantidade vocabular de lembranças e emoções agarradas a essas lembranças, projectadas pelo ar, era tal que permitiriam a um profeta levitar e caminhar sobre elas. Calhou, como piada cósmica, ficar a 3 lugares de distância de uma tal Ana Santos. De frente para ela. Reconheci malta do basquete, da associação de estudantes, da declamação poética em alemão, de tudo aquilo em que me envolvi naquela escola. Mas as pessoas mais interessantes, a meus olhos, não haviam comparecido na maior parte. Os underdogs, os deprezados pêlos alpinistas sociais e pelo status quo em igual medida, não apareceram. Eu, estava no meio, nem completamente ostracizado, nem minimamente integrado nas redes de sofisticação social onde o lugar de cada um é reafirmado endogamicamente numa espécie de peer review. Anos passados, e a fantochada já não tem a mesma sombra de misticismo. Como revermos prédios ou artefactos que nos parecem maiores na memória que ao vivo. As personagens que outrora com assertividade e integração pareciam feitas de barro diferente, aparecem agora como folhas secas que teimam em não cair da árvore e continuam a dizer adeus ao vazio conforme dita o vento que as abana. Os cachopos populares e os seus risos amarelecidos por anos de café, continuam a espalhar o mesmo charme saloio de enquadramento, de adequação, de total aceitação ontológica a um mundo que não querem sequer ver como problemático porque lhes arrancaria essa assertividade que como método infalível no passado, continuam a exercer como equipa ganhadora para o futuro, sem mais delongas cogitativas sobre o assunto. Os chinos, os polos de marca, os Stan Smith branco imaculados, os relógios de catálogo de marca de roupa interior, as sugestões de bons restaurantes onde comer, e de bons planos de fim-de-semana onde sempre se deixa escapar um ou outro pormenor acerca do estilo de vida. E os sorrisos, confiantes e omnipresentes, mas nos olhos contrastando já um gérmen de sabedoria fatal sobre a existência, borra-lhes a pintura como cagadela de mosca em toalha de mesa branca. Alguns, os mais sabidos sabem disfarçar, fazendo passar esta mágoa por detrás dos olhos, como um placebo de experiência de vida, como se a vida se repetisse e desse em ritmos de onde pudéssemos extrair lições anulando a diferença em cada experiência repetida, e evidenciando as semelhanças que só existem na nossa cabeça. Os olhares fatalistas, e a exalação lenta do fumo do cigarro como que aguardando a maturação por mais uns momentos, de um qualquer pensamento profundo, ou dito de oráculo, fazem do silêncio involuntário da boca cheia de fumo, o dador de uma profundidade charmosa, mesmo quando o assunto é a forma como estacionam a stationwagon na bomba de gasolina quando vão pagar o combustível, ou como exigiram ao mediador de seguros que incluísse a quebra parcial de vidros, como extra não pago. Ele não sabe se estas pálidas personagens o são, por contraposição com uma memória que os elevou, ou se por uma real indigência existencial, só outrora mascarada com a certeza e graça da juventude. Agora o sofisticado era ele, certo, em absoluto de que este tipo de cogitação era exclusivo dele, e que caso toda a gente pensasse analogamente e fingisse apenas estar noutro registo, isto não é o mundo, mas o Inferno. As camisas bem engomadas, lisas e rosas, arregaçadas pelas mangas, para dar ar de respeitabilidade laboral e enquadramento com a vida contextual deste purgatório metafísico, as outrora ninfetas revelando amores fáceis por amizades femininas decanas de outrora, com riso fácil para fingir felicidade de uma vida bem vivida. Ao terceiro copo de sangria bateu-lhe, repetimos a mesma peça até ao último suspiro. O sucesso ou insucesso inicial têm um preço. Não deve cuspir na mão que me deu o gume mas não a pega. Ao pousar o copo na mesa, bate-lhe uma mão no ombro. «-Passas-me o jarro de sangria?» Era Ana. Olhando para a zona onde estava sentada, viu um jarro ainda com fruta amarelecida e liquido no seu interior. Era claro que o reconhecera e viera ter com ele para falar. Será que tantos anos a fizeram envergonhar-se do odioso crime de ser humana? Da inadmissível falta para com ele só punível com esquartejamento lançado aos pontos cardeais, no mínimo. Enchido o copo, disse obrigado e voltou para o seu lugar. Havia inadvertidamente iniciado nele uma ideia de vingança, por causa de uma variável que ele não calculara, a sangria no jarro perto dela estaria demasiado doce ou amarga ou com borra, e a do jarro dele ainda suava gotículas de condensação na pele do vidro. Ele só viu uma qualquer velhaquice da parte dela, e meteu em curso uma velhaquice resposta. Levantado-se e analisando-a à distância, formaria o plano. E que plano seria esse que faria a reposição de uma injustiça marcante para a história do Cosmos? Comer a gaja e largá-la, humilhada por ter sido preterida e usada, usando o sexo como arma de arremesso contra um moribundo em coma vegetativo. Havia nela uma alegria esforçada, além do normal naquelas bandas, e a sua beleza pueril esvanecera-se o suficiente para se perceber, quem a não conhecesse antes, que era como a estátua de Ozzymandias, uma honra a glórias passadas. «-Olá.» - diz-lhe ele. «-Olá» - responde ela com um olhar de estranheza forçada e com intuito de provocar inadequação, especialmente se acompanhado com esgar facial para uma cúmplice que confirma e conforta a segurança da interveniente num mundo mútuo, tal como quando eram adolescentes, vincando a força mental do seu mundo de regras e leis, sob a dos outros através da lei do mais forte, a do número. E no caso das cachopas apetecíveis, por pretendentes que dizem tudo o que Penélope quer ouvir. Mas isto apenas funcionava no tempo em que ele não via isto como insegurança e frivolidade por parte dela. Este pensamento reforça-lhe a confiança, e insiste. «-Foste ali tirar-me a sangria, agora deves-me uma dança.» Ela responde «-Dança? Bebeste demais rapaz, estás a ouvir alguma música?» A forma como ela reagiria dir-lhe ia, como agir, de acordo com o firmware mental da criatura, a capacidade de encaixe e acima de tudo o sentido de humor, que se vê sempre que um estranho age de forma heterodoxa connosco, mas ainda assim, dentro de certos limites saudáveis de respeito e dignidade pelo outro. «-Eu não disse que era uma dança vertical.» Ela agora tinha a moralidade do lado dela, podia fazer uma barracada, escusada quando alguém é só socialmente inadequado. Há uma fina linha de crime e castigo entre o enxovalho que se pode dar a um inadequado e a um boçal brejeiro, e ele jogava com isso. A uma inspiração de espanto por boca escancarada, ela exclama para a sua cúmplice de longa data «-Ana, tu ouviste o que ele me disse, chama aí alguém, os seguranças, este porco.» Sim a outra também se chama Ana. Sem migalha de qualquer dívida com ele, ele percebe que se não lhe dá o benefício da dúvida, é porque ela não se lembra dele, o que é mau para o seu ego mas bom para o seu plano, paradoxalmente. A outra começa a chamar os latagões do costume, aqueles que as validavam numa rede de codependência e uns três levantaram-se e caminharam na direcção dele. «-Tola, não te lembras de mim?» - diz ele, com um sorriso aberto e fingindo franqueza e exclamação no tom de voz. «-Chegámos a curtir no canto do pavilhão, eu depois mudei de área e fui para Saúde?!» - as roldanas mnemónicas dela começaram ingloriamente a trabalhar, embora o anzol, canto do pavilhão a prendesse numa obscura memória que dava alguma validade á possibilidade de o conhecer, mas não reconhecer. «-Nããão…» «-Eh pah, não me digas, Ana Santos, moras no 3º andar naquele prédio ao pé da farmácia, tinhas só calças Levis, e esta também se chama Ana.» Ambas começaram a reconhecer informação que roçava algum ponto G da memória. «-E quando andávamos, durante pouco tempo, tu dizias que gostavas de tipos directos. E eu agora na brincadeira estava certo que me reconhecias.» «-Não, não te reconheço, mas pera, acho que me lembro de termos tido uma curte…xii já foi há tanto tempo.» A cara dela não estava convencida mas ostentava aquela cedência de quem não quer insistir em algo que não tem a certeza, e se ele dizia ter curtido com ela, por certo era alguém sociável e pertencente ao grupo de codependentes, portanto alguém a quem não era prudente, hostilizar e correr o risco de ser marginalizada por maior influência social desse de quem não se lembra. Mas a pré-selecção impede que o tipo não seja in ou popular, portanto e à partida, não havia risco, mesmo que tivesse de fingir uma rememoração. Três latagões abordam-no, «-Então, que se passa.», olhando para a boca, dela, de onde saiu o apelo. «-Ele diz que andámos e me conhece, mas está difícil lembrar-me.» Um deles olhando-o de forma ameaçadora, tenta capitalizar no espancamento de outrem para agradar à fêmea. E quem sabe obter a sorte da vagina dourada. Quem sabe. Quem sabe se os mesmos esquemas de adolescência não funcionam aqui. «-E disse-me que me queria, epá tu sabes.» - resume ela. «-Dude, isso não é educado.» «-Vais ter de sair, a bem ou a mal, e parece-me que prefiro que saias a mal.» Completamente inamovível ele diz assim «-Caros, ou se afastam, ou a única coisa que vão ingerir mais hoje, terá de ser por via intravenosa. E vem do cavalo a quem um dia a vossa mãe chamou ‘amor’.» Um silêncio caiu entre os 6. Ele parecia adoptar a táctica da ratazana ante predador que a supera, atacar primeiro. Mas a calma como disse o que disse, e como se afastou do centro geométrico formado pelo triunvirato de salvadores da honra, e como olhou o mais dominante dos 3 nos olhos, provocou uma perda de reacção en masse. O silêncio foi quebrado pelo do meio, nem o dominante nem o frustrado, o silencioso. «-Migas, continuas um maluco pá.» «-Migas? Estás a confundir-me com alguém pá.» «-Tou nada, chegámos a jogar à bola pá, no campo do Sanjoanense.» «-Não, amigo, eu jogava era basquete.» «-Sim, isso foi depois, mas lembro-me de jogar à bola contigo. Jogaste a avançado num jogo contra o Bairro da Knorr e marcaste uma data de golos. Ganhámos por causa de ti.» Agora era ele que ficava em suspenso por causa da sua memória, ou da incapacidade de a controlar por completo. Parece que esse jogo era mítico e que os outros tinham ouvido falar do seu desempenho, que ele tinha a certeza quase absoluta de ser errado, não fosse o pormenor de dizerem que jogava a avançado, pois era uma das duas posições que gostava de fazer a jogar à bola. Calou-se. O mais agressivo e frustrado jurava a pés juntos que não era ele. A Ana vendo que toda a agressividade se diluíra e que o desconhecido brejeiro podia ser alguém no seu esquema de coisas, afirma que se lembra dele e que afinal, era tudo verdade e ele sempre fora assim, ‘maluco’. «-Ganda maluco pá, que tens feito?» «-Tenho perseguido e pinado gajas que me rejeitaram na adolescência, como forma de vingança pelas frivolidades que me presentearam quando eram novas e as selectoras.» Silêncio de novo. A estupidez e honestidade com que receberam as palavras, criou a tensão que se aliviou em gargalhadas. «-Migas, és mesmo tu!» E ele, «-Mas quem é esse Migas? O meu nome é João. João Figueiredo, tem um mangalho que mete medo.» Novo coro de gargalhadas, mais pela tensão que pelo humor fácil. Ainda que em rima. Afinal, não era um impostor desbocado. A fêmea havia reconhecido o mesmo a quem beijara no vértice do pavilhão. Afastaram-se não sem que o frustrado, o olhasse de soslaio e de forma desprezível, ao que ele nem se dignou mexer o pescoço para reconhecer. Ficou a saber que ela estava divorciada, e a expressão nos olhos e a disponibilidade de atenção com ele, que não queria ficar solteira muito tempo fosse porque motivo fosse. Já tinha idade para ter filhos adultos, mas a leitura que fez dela fê-lo suspeitar que não. Andou no carrossel de pila nos tempos de faculdade, que permite hiperbolizar a capacidade de escolha, raios até aos 36 a mulher só não fode se estiver sepultada. Ou se não quiser. Lá terá escolhido um bom projecto, quando começou a competir com a sua imagem de 20 anos. Aos 36 ainda a gravidade não é madrasta e a replicação não cedeu à perda de informação mitocondrial. As carnes estão firmes, pouco esforço é preciso para manter a figura e o rosto ainda destoa como bela flor germinada no meio do alcatrão. As roupas elegantes caem bem no corpo assim maduro e capaz, e o colagénio deixa a pele bem agarrada ao aparelho muscular, sem sobras pouco económicas. Qualquer trapinho cai bem. A sua confiança decuplica a cada olhar de aprovação masculino, e a donzela comprova a profecia autocumprida de que se tornou obra de arte, e é nessa mentalidade de abundância que existe, a de que é um bem eterno e raro, a quem nunca faltarão admiradores, pois que o mundo lhe deve. Quem não lhe confirma a fantasia é só porque a não consegue comer. Os americanos chamam-lhe a parede. Uma forma do tempo dizer à gente, desculpa lá mas eu acabo-me para ti. A parede parece ser mais dura para elas, especialmente se o único motivo pelo qual recebem atenção é a beleza do corpo. Bem-aventuradas as sortudas na fortuna genética. A rotação de homens em peregrinação que passam pela sua vida, são num primeiro momento uma bênção, mas no fim como em tudo na sorte da mulher, uma maldição. Se a teoria das noivas de guerra tem algum nexo, quantas mais ligações amorosas na mulher, mais difícil é progressivamente, a mulher prender-se emocionalmente de forma profunda com qualquer homem. Isso permitiria que as mulheres esquecessem facilmente o amante anterior caso o mesmo morresse nas guerras de tribos opostas por recursos. Acaba-se a beleza mais rápido, envelhecendo a pele duas vezes mais rapidamente que a dos homens, como também se lhe gasta o amor mais rápido. Quando decide assentar com o amor, vai estragada com as sombras dos machos marcantes, numa altura em que a beleza física não lhe traz a atenção e selectividade de outrora. Instala-se a amargura, porque o jogo tão doce revela-se sem as paredes de algodão cor-de-rosa, afinal apenas me davam atenção pelo meu aspecto, mas sou um ser humano, pode dizer quer a mulher bonita quer o underdog da C+S. E as feias também. São as regras do mercado da carne, mas pelo menos as aceitáveis ainda vão tendo ameaços de amor. A adoração que provocam nos tipos que as idolatrizam, passam por osmose o fascínio de quem cede o biscoito. Tratadas como estrelas tratam os pretendentes como fãs. Está certo, a mulher é a selectora. Ele conduz o teatro de operações até ao quarto de pensão mais reles de que se lembro. Ambos com gin a bombear nas veias com algum sangue à mistura, sentem o rodopio do globo celeste e caem num lunar abraço em cima do colchão. A cara dela, outrora rechonchuda e redonda onde a carne mostrava personalidade sobre o osso, exprime a firme vontade óssea do crânio. Não a pode encher com donuts, porque a partir de certa idade a gordura não vai para onde se quer. A parede abdominal revelava curva acentuada e vestígios de cesariana são ainda descobertos numa arqueologia do seu ventre, feita por algum estudioso de culturas antigas intrigado pela civilização que erigiu um belo monumento agora em ruínas. A excessiva magreza agravada pela perda de massa muscular revela a dama como esqueleto por detrás de belo papel de embrulho, e quanto da sua ilusão foi poderosa e sarcástica para ele. Os pés dela revelam um retrocesso como que numa qualquer ida glaciação, a pele lassa e os nervos e tendões visíveis, assumido gradualmente a morfologia dos pés de velho. Secos, colapsados sobre si, com os vales dos dedos bem visíveis. O preenchimento do corpo que parecia brotar de dentro, implode, restando à pele acompanhar o fluxo e refluxo. A pele ficou baça, com sinais que ganham patine, e a área do cotovelo pende para o solo, triste e cabisbaixa. O rabo declina em grau de convexidade, passando a servir apenas de fina almofada entre o sacro e a dureza. As mamas parecem agora dois sacos de pasteleiro despojadas do seu conteúdo, com apenas alguns lípidos mantendo-as erguidas. Na cara, as dificuldades e os sofrimentos por outros, bem como a desilusão por sonhos perdidos, trilharam vales. Ele não se acanhava pela análise meramente física da pessoa que lhe mexia na gaita, tentando puxar as calças para baixo. Mas uma mágoa tal por causa da injustiça do mundo, ao qual o indivíduo resiste e determina como o percebes resiste ao mar, fazem-no soltar um lamento de tristeza. Sim, a vida é celebração, mas nos outros vejo a minha morte. Parou, beijou-a na testa. Beijou-lhe a mão e foi-se embora. Ao sair, ela boquiaberta, pergunta, «-Que estás a fazer?» «-O mesmo que tu me fizeste, nada.» Parou. Pensou. Disse, «-Vê-se mesmo que não conheces o Migas.» Ela sorriu. Ele despiu-se. Deitou-se com ela e acordou ressacado.
Havíamos combinado em frente da estação do metropolitano das Picoas. Olá tudo bem e seguimos de mão dada. A dona da pensão tratou-a amistosamente e pelo primeiro nome, o que me deixou perplexo o suficiente para me atrasar uns segundos ao sacar do cartão multibanco. Ela segura-me calmamente no antebraço e com uma gravidade de senador romano abana a cabeça dizendo que era por conta dela e nem havia espaço a regatear. O saco de ombro dela, negro, trazia meias de renda e uma garrafa de espumante que sobrevivera da última passagem de ano. Como só se bebe naquela altura, e o resto do ano não se lhe toca, ela achou por bem trazer para o efeito da festividade. Uma cópula. Claro que na sua mente lixiviadora de mulher nunca é uma mera cópula. É sempre algum acontecimento mágico alinhado pelas estrelas e cometas, pelo menos para consumo externo. É que ela quer-me convencer, que é algo com significado. Quer-me desequilibrar, acentuando o carácter místico do tirar as cuecas por contraposição à forma rude como o vejo, simples, sem rodeio. E quando desequilibrado vejo de facto o significado, é quando ela age de forma rude, sem rodeio, e directa ao que quer e lhe interessa. Bate-me quando desaperto o meu cinto. Somos românticos incuráveis fingindo que somos pragmáticos, e elas pragmáticas incuráveis fingindo que são românticas. Aquela merda que eu sentia nas aulas de português analisando a lírica de Camões era o quê? -«João, que achas?» Olhei para ela e reparei que tinha colocado as meias de renda que eu mencionara ao de leve nas paredes de texto trocados por sms. Podia ser levado a pensar que aquilo era para mim. Mas o estar queimado ou a desconfiança, que se tornou uma segunda natureza disseram-me que era apenas mais uma peça da charada que ela montava para se convencer a si mesma. Vês, quando uma mulher coloca determinada quantidade de esforço numa acção ou decisão tomada, como que por milagre toda a consequência das suas acções é irrelevante pois o sacrifício ou esforço em determinado período salvificam tudo o resto, que se justificará a posteriori. Este esforço todo era para poder depois, lá para a frente, poder justificar a si mesma o quer que seja que estava delineado e decidido desde o início. Eu mirava-lhe os quadríceps bem torneados se como numa metalurgia parida no Céu. Os pés bem feitos em que os dedos simétricos e ordenados por tamanho num crescendo nunca ultrapassando o maior que se segue. Os tornozelos nem demasiado finos e abruptos nem demasiado matacões a toda a largura do calcanhar. Os gémeos, visíveis, nem mirrados nem prensados em curto espaço a partir dos joelhos como murro com martelo da mão em mesa protestante. Imaginei o sémen do pai e os óvulos da mãe, a gestação deste ser e as feições de quando era criança de colo. Imaginei os sofrimentos e os choros solitários no confronto com o mundo, no caminho do seu crescimento enquanto pessoa. O silêncio desconfortável fez-me lembrar que ela embelezara o corpo, eu teria que fazer o meu papel. Voltei a colocar as lentes do tarado sexual, ou melhor, do rebarbado com alguma classe pois cita Hesíodo para não parecer muito javardolas. Ela olhava-me com alguma surpresa, por certo contrastando a minha reacção com a de outros em experiências anteriores. Surpresa por me pressentir assim, desapegado e divorciado do meu próprio tempo presente. Sossegou apenas quando o inquilino voltou à minha alma e lhe agarrando o rabo, a puxei para mim, penetrando-a constantemente num beijo prolongado, a boca com a minha língua que usava em dupla função de missionária e animal de carga que traz a saliva de território inimigo para análise laboratorial e fruição. Afinal eu era homem, na sua ideia, facilmente previsível com o estalar de dedos de um corpo seminu. É bom morar em território confortável e reconhecido. As minhas mãos misturavam a força necessária com que lhe arrastava a derme em festas ao longo do corpo, numa verdadeira celebração eucaristíaca ao deus da carne. Há qualquer coisa de gutural que me funde a consciência, quando agarro as carnes de uma gaja que me dá alguma tesão. Mas a puta da divagação voltou no momento mais incómodo, quando lhe lambendo ao de leve o lóbulo da orelha, me lembrei da ideia anterior, porque se dera ela ao trabalho de se embelezar e corresponder a uma fantasia por mim comunicada se o seu desejo quase inexistente por mim dava o sinal oposto daquele que ela pretendia passar. Não me perguntou qual o autor de ficção científica que mais gosto, porque gosto de música perturbadora, como Brahms e merdas, ou por todos aqueles pormenores que supostamente me diferenciam ainda que superficialmente de todos os restantes portadores de pila que ela podia ter escolhido em meu detrimento. Não é congruente, não é lógico e por isso os meus radares internos soam, ou seja, eis a condição humana, mais uma hipótese que tens para a estudar usando a tua líbido como cenoura defronte da tua boca. Senti uma alteração na energia, e verifiquei que estava há demasiado tempo com a língua dentro da orelha dela, que já devia ter o tímpano afogado em saliva minha. Não consigo perder-me ao mesmo tempo em pensamentos e em chavascanço. Aliás, sou viciado em luxúria precisamente porque é o melhor que há a cessar o macaco interior que tagarela nunca se cala filho da puta cabrão que me rouba constantemente o momento presente. Limpei-lhe a orelha com a mão, diluindo o cuspe pela minha palma. Agarrando-a pela nuca e inclinando-a para a cama, para lhe dar um beijo que selasse o momento em que duas almas se uniriam pelo corpo acessório, ela adivinha as minhas intenções e opera outro desequilíbrio obedecendo ao seu plano. O champanhe. Champanhe nada, espumante barato, mas só a atenção dela, não merecia que eu fizesse algum reparo. Ao beber pela taça vi nos seus olhos que reconhecia um mau planeamento da peça que estávamos a representar, ela toda aprontada para deslumbrar numa matiné porno, eu com apenas as calças e o tronco nu, sentado sobre a minha perna dobrada numa ponta da cama, com um à vontade que lhe pareceria a ela como o de alguém sempre expectante das cenas que se vão imediatamente desenrolar, sempre numa óptica de observador. Isso acentuou a sua necessidade de alguma forma cobrir os seus seios com um cruzar de braços ou com um abraço frontal a si mesma terminando a palma da mão algures sob a omoplata, com o cotovelo cobrindo as maminhas que olhavam órfãs para mim, que me arriscava a repetir a minha precocemente ejaculada primeira vez, mais analítico que presente no momento, de novo o cabrão do macaco primordial tagarela que é incapaz de suster o fluxo de pensamentos que emergem à consciência. -«Sabes João, tu assustas-me.» -Porquê? - perguntei eu. -«Não sei.» Oh caralho. As vezes que já ouvi isto. Sei perfeitamente porquê. Porque pressentes que eu estou constantemente a analisar para além da peça que representamos. Tu sabes, reconheces-me no olhar. Sabes que não me entrego, porque no fundo não consigo fingir além de mim, preso na nossa encenação que não trato como outra coisa. Não lhes consigo dar as mãos e partir para uma fantasia de mundo com paredes de algodão fofinho cor-de-rosa, porque sei que assim que embarco nessa ficção é quando olho para a mão que me levando para ali, de repente desaparece e fico sozinho, num mundo cuja rápida entropia leva a que o algodão amareleça e caia de velho, falso, cosmético, revelando o cru cimento que jaz por detrás da carne da ilusão prévia. É isto que as assusta. Que coloque cera nos ouvidos como Ulisses disse aos camaradas, ou que me amarre a um mastro qualquer. As duas coisas ao mesmo tempo não, embato com os cornos nos rochedos e sou devorado pelas sereias. Ou não ouço e mergulho no que dizem, ou amarro-me no único ponto seguro para as poder ouvir. Não há escolha e tenho cataratas de texto a falar disso mesmo. Ela explica-me o que a levou a ceder-me o favor da sua intimidade. Que foi uma camisa que usei que lhe lembrou o avô querido, e uma expressão que usei em conjunção com a camisa, que foi um pedaço de texto que as fez pensar 4 horas, ou que foi uma outra desculpa qualquer que arranjam para mascarar com algodão o cimento de uma escolha feita abaixo do limiar consciente. Amarrado à minha análise, finjo acreditar e faço-lhe festas perdido na perna branca que estende até mim para me tocar. Sei bem que tem namorado, embora ao início me tenha dito que não tinha, mas depois voltaram a falar, e isso coincidiu com um período em que me dava menos trela e atenção portanto deduzo que tenha sido um período de pazes conjugais, seguido de novo período conturbado, cujo extremo descambara no nosso frente a frente nus. Não me meto com pessoas comprometidas ou casadas, sabendo. Epá, não é apenas por imperativos morais. Havendo tanta gaja para aí disponível, sinto-me reduzido neste tipo de cambalachos. Mas também não me chego atrás quando sinto que há algo de especial entre ambos, eu e ela. Desculpo-me imaginando uma situação em que sou confrontado pelo tipo traído. Tens razão, fui incorrecto contigo, e acredita, se pudesse evitar, evitava. Não consideres pessoal, pois não te conheço ou quero conhecer. Mas isso não desculpa a minha responsabilidade. Se te faz sentir melhor, tens direito a dares o teu melhor, um sopapo, sem resposta minha. Um. Vejo-me a erguer os braços e a dar-me à percussão adivinhada. Como se uma órbita inchada ou um dente cuspido pagassem a traição. O cabrãozeco do meu ego vem logo em meu auxílio, dizendo, pá, estes gajos não têm vergonha, metem-se com as tuas, tu metes-te com as deles, olha a x,y ou z, que deu trela ao tipo elegante no trabalho e te largou sem apelo nem agravo, em direcção à Terra Prometida lá pelo sol poente. Vê lá se o gajo se preocupou contigo. É guerra, diz-me o ego. Guerra de quem se alivia com o corpo de outro ou de quem anda à procura de alijar genes à geração que se segue. Eu não queria jogar essa guerra, mas sou fraco. Não, espera, mete muito fraco, nisso. Sem que me dê conta ela está em cima de mim, lambendo-me a maçã de Adão, e entrei nela que está encharcada, e a cama abana por todos os lados. As mamas dela batem-me no queixo sempre que se inclina para ir tocar no telemóvel deduzo que seja para ver as horas. Vai ver as horas três vezes seguidas, o que faz soar as sirenes internas. Por momentos aproveito a teta que me bate no queixo e finjo que a lambendo, viro o pescoço, espreito pelo canto do olho e vejo que o que ela vê no ecrã do telemóvel é a foto dela sentada no colo do namorado, a ele abraçada e feliz. Que caralho, penso, que pensar disto? Uma intuição clara e incisiva, estou a ser usado para uma vingança. Lembrei-me de Susana que traía quem quer que fosse que iniciasse ‘relação’ com ela para que o remorso de ter feito tal, a domasse com culpa, e assim sentir-se devedora sem sujeição a uma monogamia minimamente medíocre. Ela subindo e descendo em mim, abana a cama, e eu olho os quadros nas paredes, absorto de mim, reparando na textura das paredes de cimento, e ela acelerando diz-me que está quase a terminar mais um capítulo dos buracos onde, literalmente, me meto. Vem, vocaliza, abraça-se a mim. Sinto-me decrescer dentro dela. Faço-lhe festas nas costas, beijo-a, ela sente-se contente porque a charada corre como planeara. Marcou golo, chegou ao destino. Será muito mais afável com o namorado, sentirá remorsos e pena, porque não merecendo o que lhe acaba de fazer, é o tónico que ela precisa para se motivar a salvar a relação. Eu sou só mais um elemento que nunca consegue ver como passível de sofrer, afinal sou um sedutor e sei qual é o jogo, e sou alguém com traços de sociopata na forma desapaixonada como analiso o que me rodeia. Começo a sentir nela uma vontade de sair dali, só não concretizada por causa do discurso anterior sobre a camisa do avô, que de tão óbvio e incongruente, me levaria a desconfiar e é fulcral para a charada dela que a minha crença se mantenha inalterada, para lhe poder dar biscoitos de auto-estima no futuro, e para não pensar mal de si mesma correndo o risco de eu revelar a charada, e dizer que ela é má pessoa. Aproveito a tensão que refiro, e disse-lhe que agora é a minha vez. Ela finge espanto por uma virilidade em acção, e de facto dou-lhe uma foda sem sabor, onde o falo hirto trabalha independentemente da minha cabeça e mãos, que vogam pelo seu cabelo e pele não como um amante deseja outro, mas como uma espécie de observador alienígena com abismos de mágoa e compreensão no coração afaga outro ser perdido na sua condição humana. Fica contente por reconhecer-me território já desbravado, afinal vou atrás do meu orgasmo, e não lhe topo a charada nem ela a minha. Uso-a para aprofundar os meus oceanos de mágoa e lamento e ela para se vingar de um namorado que ainda não conseguiu reduzir a menos que nada. Ainda. Posso vir-me dentro dela. Susana achava que era prova de que eu era especial para ela, a muito poucos dava essa honra. Mas não quero. Inundo-lhe o umbigo com o creme pérola, enquanto ela me olha como observadora alienígena fascinada fleumaticamente com a minha condição humana. Eu é que me lembro sempre de procurar as toalhitas, e limpar. Elas pensam sempre que sou fofo, quando o que não quero é rebolar no meu esperma e ficar peganhento quando ele seca. É que preciso, depois de vir-me de lhes dar miminhos, a calma da endorfina só bate aí uns 2 ou 3 minutos depois do clímax. Nesse tempo dou-lhes beijinhos e digo coisas doces como sereia que convida para escolhos, num hábito que começou faz anos, como forma de me mostrar meigo e melhor que os outros, tornando-se depois uma segunda natureza na minha liturgia da cueca. Havia um elã dela para mim. Mas parado, nos bastidores daqueles olhos, por uma decisão racional em não deixar o sentimento progredir além do por ela permitido. Seus olhos queixavam-se a mim de que ela sacava de todos os pretextos do livro, para me desqualificar e não permitir assim que eu lhe penetrasse no coração e me instalasse como inquilino único nessa nossa casa, vivendo no meio de discos de música clássica, contos não publicados e espalhados em papeis espalhados, e restos de comida das sobras de fazermos amor por dias a fio. Ela é médica. Eu escrevo umas coisas, investigo outras, e ando na vida com um espanto não compatível com determinada realidade objectiva que decido criticar. O seu namorado mete mochila às costas e viaja a sítios assépticos publicando as fotos artísticas no Instagram, como quase toda a gente faz hoje em dia vivendo vidas em redes de codependência de atenção e validação. Como que se a vida ‘louca’ ou dinâmica fosse a única passível de ser vivida. Uma barba demasiado bem composta e o emprego técnico, com camisas engomadas e calças de sarja ou chinos e sapatilhas de pele em bronze de solário, revelam a sofisticação ou a tal zona de conhecido que deixa a maioria mais à vontade. O acesso à cueca da paciente médica, não surge por cor dos meus lindos olhos. Sou teimoso e no final da tour de force fui a hipótese que sobrou. Estava lá, estava disponível, passo por inteligente, o que é sempre um extra para uma gaja que quer provar a si mesma que é mais inteligente enganando um gajo que sabe mais que ela. A arrogância da sua profissão, não evidente, claro, que isso não é cool, foi sendo por mim aliviada, afinal conheço os nomes de alguns órgãos e tendões e nervos. Conheço alguns procedimentos e mais, sou deveras interessado neste tipo de coisas, o que granjeia algum respeito pela minha curiosidade. Já a tinha visto em perfil do Tinder, mas não podia revelar alguma vez que sabia que andava à procura de alguma coisa, as gajas ofendem-se com isto. Conhecia-a numa formação que fiz. Senti haver ali algum feedback de interesse dela, mas felizmente, sinto isso em quase todo e qualquer rabo de saia que olha para mim. Mas soube logo que eu não era gajo para ela, muito menos para apresentar aos pais. Um gajo instrumental sim, final não. Só podia adoptar a táctica do condor, vogar lá no alto e mergulhar nela numa altura de fraqueza. Não é ser águia, veni vidi, vice, que é o que eu prefiro, mas falta-me o que se destaca no radar desta moça. E soube-o quando desabafou incautamente, sobre a marca e modelo da stationwagon do instrutor da formação em que nos conhecemos. Ora eu sou gajo e não ligo muito à marca de sapatilhas ou do relógio do outro, mas a cachopa avalia o potencial alheio pêlos objectos que cada um exprime a sua individualidade industrial ao mundo. Em vez de me retrair o meu orgulho tornou-a desafio. Para cabra materialista, cabrão idealista orgulhoso. O difícil foi vencer o preconceito, a decisão prévia de me ter rejeitado do lote de potenciais escolhas. O meu trabalho seria superior ao do trolha que reboca uma parede. Paciência e engolir orgulho de escuteiro, passo a passo. Focar no objectivo melhorando o processo. Pelo meio ia desabafando. Das coisas que o namorado lhe fazia, muitas das quais me faziam ver nele um gajo inteligente e com experiência em lidar com mulheres que exigem muita manutenção. Das crises que ela provocava na relação de molde a culpá-lo e fazer admitir culpa tal que modificasse o seu comportamento. Tens de pensar o que vais fazer ou se achas bem o que fizeste. O tipo, imagino, devia partir a cabeça procurando o fio de Ariadne da culpa que sentia sem remetente da mesma. Algumas vezes dizia-me que me mandava sms com ele ao lado ao que eu achava estranho que uma mulher «minha» fizesse, pelo menos sem consequência que só podia ser eu sair de cena e acabar-se a brincadeira do braço de ferro. Percebi naquilo que dizia e fazia, que estava a fazer trabalho de sapa, moldando, torneando o gajo como que num torno metalúrgico parido no Inferno, de forma a que ele se tornasse no projecto que ela idealizara, e que achava que lhe dava a segurança que precisava aos 35 anos. Muitas vezes eu nem sabia o que pensar do gajo, se teria compaixão pelo tipo, se ele é que controlava a situação. Numa das várias vezes em que me deu boleia com o carro dele, disse-lhe que adorava metafísica. Olhou para mim como se eu fosse um crente das espiritualidades de cordel que por aí pululam. Eu percebia que ela não precisava de extrair recursos dele. Mas também percebia que a sua ascensão social lhe criara o gosto por maiores peixes no lago. Médica chefe ou especialista de qualquer coisa exige tipo condizente com o estatuto. Ah é programador, ou engenheiro de qualquer coisa. Não tem impacto. Metafísico muito menos. Se ele bancasse as contas em casa, seria muito mais fácil de entender. Assim, ou ela era muito solicitada no meio sofisticado dos tratadores do corpo, onde até a nossa conhecida Célia se sentira elevar para o 4º ou 5º Céu, cuspindo de alto para mim em toda a linha excepto como potencial dador de biscoitos, ou o dinamismo hipergâmico estava mais uma vez em acção. Desamarrei-me do mastro calculante e ajudei-a a vestir-se. Separámo-nos onde nos encontrámos e prometemos manter contacto. O contacto dela tornou-se mais esparso, já o esperava, a vingança cumprida, eu seria só uma comodidade a manter perto o utilmente suficiente, mas longe o confortavelmente exigível. Em banho-maria, portanto. Sabia que ia passar uns tempos, melhor ou pior disfarçados por ela, com menos atenção. Investiria numa retoma, com o camarada do outro lado. Os seus períodos de atenção comigo iriam variar de acordo com os graus de harmonia com o tipo. Em caso extremo talvez me desse a benesse de ter acesso à cueca, usando a terminologia que eu lhe dera para usar comigo, como notas de banco manchadas para serem reconhecidas. Confirmando o meu discurso com as expressões que eu utilizo, nas alturas em que me quer usar ou manter por perto de novo, prova esta médica o seu materialismo pouco metafísico, continuando a achar que eu sou terreno por si conhecido, ficando já longe o susto inicial que lhe provocara. Não me posso queixar da escolha que fiz e pela qual o orgulho me faz pagar, continuamente. Não é provar que sou mais esperto, nem sei que isso significa. É perceber o puzzle, por vezes repetido, da forma como ela, a mulher, vai combinar os mesmos elementos da charada para conseguir o que quer e propõe. Pelo caminho sei que não posso tomar isto a peito. Como observador alienígena sei que nenhuma é minha, é apenas a minha vez. A mulher que trabalha todo o dia com corpos desfeitos, dá-me o vislumbre de como se faz uma alma.
A Rose apanha-me mesmo mesmo, saído do confortável pesadelo em meados de 2018.
Brasileira naturalizada, dei com ela numa casa de fados perto do museu do fado. Disse-me que era divorciada, depois em vias de o ser. Extremamente bonita de cara, trabalhava ali perto, fazia-me a avaliação a ver se queria foder comigo. Claro que queria, eu era mais agradável que a demografia a que estava habituada. Ocê vai ter a minha casa?Claro que vou, miaguarda disse eu. Vais levar um fodão como os grumetes de Cabral deram às índias. Não levou. Não fui quando me pediu. Fui dois dias depois, às 6 da manhã bati-lhe à porta, vindo da noite em Lisboa. Não queria que deixasse o carro em frente a porta do prédio. O ex podia ver. E eu, mas foda-se não me disseste que estavas divorciada? Ah mas luto por custódia, convém que não se saiba que já ando com outro. Fazia sentido. Eram 6 quando entrei pela porta. Directo para a cama, dormi duas horas. Quando acordei estive até às 18 a fazer o mesmo, lambendo-lhe as mamas e fodendo-a. Gastei uns 9 preservativos, vim-me uma vez. Áí qui délicia, dizia ela enquanto lhe chupava os 36 no peito. Passava para a boca e batia com a pélvis na dela até me faltarem as forças. Levou um ensaio de pila que a inutilizou durante uns 3 ou 4 dias, assim mo disse. Quando desmarcou um encontro por desculpa que não podia estar comigo, nem me apeteceu dizer que Rose, não preciso de sexo para estar contigo, já o fiz antes. É que perdi toda a paciência. E assim segue o mundo, com boa parte das mulheres convencidas de que percebem algo da órbita terrestre. A Serra, a Serra…
A Serra é turca. Conhecemo-nos por meio de uma aplicação de redes sociais. É escultora conceptual para os lados de Istambul. De algum gabarito por aquelas partes. Descende dos judeus fugidos daqui dos tempos de D. Manuel. Andava à procura de alguém que lhe mostrasse o país além da merda de lengalenga dos guias turísticos. Eu disse-lhe e é verdade, mostro-te esta merda como poucos a viram. Habituámo-nos a comunicar todos os dias, vídeo-chamadas e merdas do género. Nas primeiras 6 ou 7 vezes em que falámos com imagem à mistura fez birra e fez-me rever a minha abordagem demasiado directa. Fez-me relembrar que nem todos são como eu. Que o Coffe and Baggel não é para engates na Turquia e que as minhas alusões constantes a sexo a incomodavam. Ok Serra, reconheço-te razão, mas não no que sustentas. Disse-lhe. Analisei os fundilhos das minhas calças, da minha personalidade a partir dos olhos de um outro, e posso reconhecer-te razão quando dizes que a relação que alguém tem com os contactos de derme, cuspo e esperma, difere do seu próximo. Não te queria ferir a sensibilidade assim. Após a minha contrição continuei exactamente como antes. O que importava é que eu havia reconhecido que ela não era uma qualquer, era séria. E disse-lhe mais, Serra, tens razão sem querer. Já conheci demasiadas tolinhas que pelos meus modos meigos e gentis, me tomam como assexuado amigo, aquele que qualquer gaja gosta de ter sabendo-o em tensão para a foder ao mesmo tempo que sabe que só se aniquilar por completo em abjecta submissão, e se a apanhar em total desespero, pode algum dia aspirar à cueca dourada. E há muitos assim, que por uma migalha esperam algum dia comer todo o pão. A minha brejeirice serve dois fins Serra, disse-lhe em inglês macarrónico. Demasiada intelectualidade aborrece-me e por isso tenho de meter uma cona ou uma pila, para aumentar a endorfina de uma monotonia sem sentido, que caralho somos primatas com dois olhos, que sabemos nós do mundo. E o outro fim é para que nunca me possam confundir com um punhetas que dá atenção a uma tipa apenas para optar pela amizade travestida até ao ponto em que ela reconhece que ele é tão querido e fofo e amigo, que é bom que seja namorado. Isso nunca acontece, nem quero eu entregar o meu falo assim em território inimigo e sem apoio ou reforços. Antes passar por porco ou rebarbado que por um anódino que se trai a si mesmo sob um pretexto de esquema para sacar a gaja. A gaja que se foda, não sou uma força a regatear. Já o fiz e odiei-me mais que as gajas que me viram fazê-lo. Olá Serra, desculpa lá a minha insegurança, mas já pensaste na minha pila hoje? Quê?Falar em pila ofende-te? Mas olha para cada pessoa na rua, saiu de uma pila. O sexo e o chavascanço são a mais omnipresente força telúrica, observável. Não me digas que a tua conceptualidade via esculturas nunca te levou a esta viela. Quando fodermos, faço a depilação antes para não ter de suar para cima de ti, e podermos estar horas nisso. Explica-me a tua exposição ‘Sleepwalkers’. A sua descrição parecia ‘Hegel para crianças’, como se eu fosse incapaz de lhe apreender os intuitos. Andamos como sonâmbulos na vida, e se isto é um sono qualquer, um sonho de algures onde estamos mesmo acordados. E eu perguntava, de onde, de outra dimensão, de outra vida, de outro eu, e o que fazer desta onde o palpável se move pelo espaço a uma velocidade constante, e onde tudo o que nos engana é ainda assim existente? Olhava-me como transeunte por jardim zoológico olha para a aldeia dos macacos. A sua indagação parara no ponto em que suscitaria a pergunta perturbadora inicial, não aprofundara. E se, bastava. As consequências das merdas que propunha não lhe interessavam. Vens cá a PT? Boa, apalpo-te o rabo e mostro-te por onde saíram os teus antepassados quando daqui foram expulsos. Apesar das merdas de gaja, era alguém com quem se podia conversar de forma satisfatória, sobre vários temas. E o único pedantismo era com a sua arte, não com o resto. O que eu entendia bem. Não leu um caralho do que eu escrevo, e por mim na boa. Eu é que tenho o mau gosto, explica lá essa merda que fazes, que queres dizer com isso. Entretanto conheci Flávia e ocupou-me todo o tempo de antena mental. Já lhe respondia no messenger a altas horas depois de saber que dormia. Já só havia espaço para a minha Flávia. Entrara como cria de cuco no ninho do meu coração e expulsara todas as outras. Não fui esperar Serra ao aeroporto, e foi já a 2 ou 3 dias de ela voltar para a Turquia que a fui encontrar a Cascais, para com ela tomar café. Fodeu-me a cabeça com razão por causa de não a ter ido encontrar mais cedo com a desculpa que o carro tinha uma cena com a chuva. Num vagão da linha imitando bar, tentou dar-me as mãos para cimentar um elo que a minha Flávia obliterara por força de existir. Que um novo mundo com tudo pago por mim aguardava nas costas de Ílion, Anatólia. Foda-se, um sonho arqueológico ria-se para mim à minha frente. A minha integridade debatia-se com o não magoar aquela alma. Sim, fazia-la na boa, alta, bonita, muito inteligente e sofisticada. Dizia-me, Ióão, i am in a point in my life where i dont know if i devote myself completely to my art or to building a family. E eu, que queres que te diga, caralho. Não só teríamos de morar juntos a ver se te aturava, como tu com 40 anos mostras toda a bagagem que tens com a pouca experiência que não devias ter. Fui deixá-la no hotel onde estava com a mãe e o padrasto. Para a não deixar ir com sensação de que nada havia progredido, dei-lhe um beijo na boca, mais constrangida que padre pederasta num infantário em dia de festa. Os lábios pareciam tetraplégicos dançando tango nos Alunos de Apolo. Afaguei-lhe a cara mais por lhe reconhecer a condição humana que por carinho inerente. Eu havia-lhe agradado. O mesmo script de sempre, de aspecto rulo. O respeito que cativo, talvez… Seus amigos sefarditas haviam-lhe dito que Portugal iria estar in, nos próximos anos. Eu ria-me, esta merda não muda, dizia-lhe, olhava-me séria. Contei-lhe a história desta merda a partir da luta de classes. Bocejou. Que se foda. Serra, também escrevo. E ela, que se foda. Ok, uareva. Fui ter com ela no último dia. Encontrámo-nos no Martinho da Arcada. A meio da tarde, onde lhe explicava por onde tinham entrado as águas do terremoto, agarra-me nas mãos e diz-me, desesperada, para não perder esta hipótese que a vida me dava, com tudo pago. Aquilo na cabeça dela fazia sentido. Na minha asco. Não a levei a mal. Nem quando insistiu para que a levasse para um motel para a foder. Percebi que queria dar-me uma amostra, sabendo que após a mistura dérmica, se cria um vínculo fodido de dissolver. Gajas do caralho, mas eu já sabia da poda. Não há foda para ninguém, meti-a num táxi, beijo grande e até um dia destes. Em direcção a Santa Apolónia, ia pensando, foda-se as gajas que entram e saem da minha vida. Caso claro de alguém que o meu instinto disse vade retrum. Em surdina, a ideia de que, apesar da ligação emocional, havia deixado Serra, com forma de lidar com uma química que lhe era desfavorável. Que faz Flávia, assim que pode, vai falar com Serra, para a tirar, como cuco, do ninho. O esforço que eu havia feito para me monopolizar como inadequado originário da rejeição, sucumbe sob a capa, de que os homens são todos iguais, este tinha mais uma e andou com conversas da treta. Obrigado. Menos de um mês depois, ambas já tinham outros mancebos no cardápio do seu restaurante. A Marília era uma das raparigas mais bonitas da Escola Secundária de São João da Talha nos idos anos de 1993-94. São João da Talha encaixa-se entre os dois maiores cursos de água que rodeiam Lisboa, o Trancão e o Tejo. Mais Lisboa por afinidade que saloia por convenção, é um dormitório de gente que gasta o existir em torno da capital. Marília era alta, bonita, integrada e apreciada pela sua personalidade. Falei algumas vezes com ela. Certo dia num intervalo em que jogava à bola com outros, veio falar comigo. Oi, como estás. Sondou-me aferindo a minha sofisticação. Conhecia-a de vista. Tinha até um fraquinho visual por ela, pois era muito bonita. O que lhe chamara a atenção em mim, os meus chanatos com sola de corda de cânhamo, a que eu achara graça numa feira qualquer, e que destoavam das sapatilhas de marca do status quo coevo. Destoando dos restantes, chamei-lhe a atenção e foi ver se o artefacto que usava nos pés era coincidência ou se eu era alguém de vanguarda. Fiquei tão enconado por uma das raparigas mais bonitas da escola estar a falar comigo que não me lembrando do que disse então, sei que não disse coisa com coisa. Foi agradável porque ela assim o entendeu. Não mais me prestou atenção até a nossa escolaridade secundária terminar naquele recinto. Eu conhecia-lhe o caminho. Entrámos para a Universidade ao mesmo tempo, talvez eu um ano mais tarde, por causa do serviço militar. Cruzávamo-nos nos mesmos autocarros atulhados de gente que se espremia para fora dos subúrbios. Comecei a vê-la sair em Sacavém, com tipos mais velhos e da pesada, leia-se, ganga rota e cabedal gasto. Os machos alfa que lhe satisfaziam os desejos de sofisticação e validação genética. Com a passagem das estações os amantes variavam para cada vez mais marginal em relação à norma. A epidemia de narcotização da minha geração chegou ao pináculo naquela altura. Percebi que estava infectada quando num mesmo autocarro nocturno em que eu regressava das aulas a que ela era estranha, magra, castanha, com o cabelo como pálida comparação à sua glória passada, reclamou com o motorista por não parar exactamente no local assinalado. Mas não era ela, pelo menos ali, estava noutro algures. As estações passaram e o meu curso era de 5 anos. Marília na minha memória deitara-se num tépido leito tapado com o véu branco transparente da deslembrança. Arranjei um biscate a fazer vigilância aos Sábados e Domingos, e num certo dia, ao voltar do serviço, vejo na estrada Nacional 10, que anos antes percorrera de bicicleta ou a pé em romaria para comprar jogos em disquete para o Commodore Amiga, um vulto arrastando-se ao longe, logo de manhã, pela berma da estrada vazia. Andrajoso era alguém se prostituindo. Como a carrinha era alta, tive de olhar bem nos olhos daquela alma que ali comunicava a sua disponibilidade com o polegar apontado ao céu. Quando nossos olhares colidiram, ambos nos reconhecemos. Eu não queria acreditar que Marília tinha chegado a tal ponto, tanto talento e beleza desperdiçada à conta de escolhas menos boas. Surpresa automática foi o que se transmitiu ao meu semblante. Ela quando me reconheceu baixou de imediato os olhos ao chão, numa cumplicidade trágica em que ambos desejávamos que as coisas tivessem corrido de forma diferente. Sem dentes, castanha, com a pele seca e enrugada, como se algum demónio no centro geométrico do seu corpo a puxasse além do limite da elasticidade, custava acreditar que ela havia sido uma das mulheres mais bonitas que eu vira até então. Irreal associar os lábios rosa, bonitos e compondo um rosto de querubim seiscentista, ao agora árido terreiro que se encaixava nas pilas encardidas de camionistas movidos pela luxúria. Apaixonamo-nos pelo abismo. Como bom amante acaba por nos puxar para ele. Como velho combatente operador de peça de artilharia que não se assusta com foguetes de feira, Marília nunca poderia ter o mesmo respeito por um gajo pacato como eu, após ter provado o sal da Terra, que foram os badboys a quem não resistiu amar. Não era eu amável, não é isso que me motiva a lembrança. Era e sou um conas, que raramente faz a cama depois de acordar. Não sou nenhum santo, mas sempre resisti à sofisticação e sempre resisti ao espírito de manada. Na altura em que a via com os metaleiros que já fumavam brocas, e depois para os bazofs que já caldavam, sentia alguma inveja e lamento, por ser demasiado certinho, ou suspeito, cobarde de não ser um bucaneiro que me vendesse a mim e a outros à liberdade. Não apontei para Marília com gutural grito primata culpando-a das suas escolhas. Pássaro tão belo não poderia alguma vez ser engaiolado ou anulado por mim. Eu não quereria viver com isso. Melhor que com a minha cobardia. E no entanto lamentava a desventura de Marília, como se fosse a minha. Não soube mais dela. Nunca mais a vi. Espero que ainda esteja viva e bem. Foi a primeira vez, e a mais impressionante, que vi uma viúva Alfa. É um conceito complexo e interessante. No caso de Marília, um assombro pelo abismo, inquestionável. Como bem de consumo o homem, o badboy é o topo de gama. O que consegue motivar qualquer um para a vida, aquele que tem carisma ou personalidade que o faz parecer aos olhos dos outros uma epifania constante. Eu sempre tive a crença de não ser assim, apreciado, quanto mais suficiente. Sempre achei que os outros seriam mais divertidos e interessantes que um cinzentão como eu. Não sou santo, e também gosto de malucas. Mas só até ao ponto em que a minha desde sempre curta paciência ainda o permite. Mas isso sou eu agora. Marília então era movida pelo amor e pelo sentir que o que fazia era a pedrada no charco. Perdendo-se em todos os pequenos dramas que dão sabor à sucessão dos segundos, a vida intensificada pela liturgia de obter e consumir a próxima dose. Para os coloridos, a vida é uma onda hertziana, intermitente e arritmada. Para os pacatos, cinzentos e cobardes, um eterno traço horizontal, como se replicassem a morte eterna. A viúva Alfa é toda a mulher cujo pico emocional já foi ocupado por outro. Esse pico emocional, ou o critério de escolha do ocupante, nada tem que ver contigo. Umas vibram com chouriçadas cinematográficas, outras fazem turismo sexual até ao Dubai ou Uzbequistão, outras com os badboys dos concertos, cada uma tem o eldorado da sua mistificação. De certo que só os pacatos procriam com pacatas, e que quando as não pacatas se decidem pelo pacato, ele vai ser sempre a aproximação e nunca a sorte grande. Não são só os meios que separam as pessoas. Eu por exemplo, não tenho meios e nunca me faltou ou faltará sobre que escrever aqui. Ah João, vens para aqui falar das gajas, que deselegante, comes e contas. Nada disso. Nunca falei de outra coisa senão da condição humana. Dividida entre homem e mulher. E destas forças que agem em nós sem que as identifiquemos sequer, valha-nos a ciência. De como as minhas amantes, os meus amores, se enganam a si mesmas sem o saber, porque o seu ego lhes tolda a visão. Como eu me toldo a mim mesmo com a certeza das observações que faço. De como nos avaliamos e desclassificamos uns aos outros, com os relógios internos paridos da nossa subjectividade e do Mundo. Mas eu preciso de entender, por muito que a verdade custe. Preciso. Não pode ser arbitrário. Tem de haver uma estrutura. Acredito que sou tão pacato como excêntrico. Tento ser consequente com os meus pensamentos e argumentos. Elas dizem-me, nem tudo são razões ou racionais. Isso é fácil de dizer para quem consegue ter duas ideias contraditórias ao mesmo tempo na cabeça. Eu só tenho a lógica. Só a lógica me permite um vislumbre de compreensão do que não sendo lógico, se deixa ainda assim adivinhar. É claro que os alfas são a encarnação moderna dos machos dominantes da savana e que as viúvas alfa são aquelas cuja biologia as força a perseguir os genes dos machos mais bem adaptados ao meio. Há excepções, claro que há, milhões delas, mas esta é a regra. Marília pagou bem caro por essa força telúrica e pelo fascínio do abismo. Sei agora que era o meu orgulho e insegurança a alimentar o meu ressabiamento. Que me interessa ser o gajo mais marcante na vida de uma gaja? Sou eu por acaso carenciado de validação por intermediário? E onde coloco o meu ego investido no deslumbre pelas minhas capacidades dialécticas? A crença que do conflito nascem os puros relacionamentos? Não posso criticar Marília, sou como ela, à procura do mesmo, de genuinidade do concreto além do pacato. Somos todos filhos de bucaneiros que não respeitam filhos burocratas. Terá sido condicionamento, terá sido o parto com determinado temperamento insuflado na minha boca ao mesmo tempo que a parteira me esbofeteava o rabo? Marília vendeu-se à liberdade. À que lhe apareceu. Insondável é o coração da mulher e ainda bem. Bendito ego que a proteges. Marília espero que ainda estejas connosco, e bem. |
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Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
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