O desgosto de amor é um sentimento
Que destroça o coração Afasta-nos do prometido mundo paradisíaco Ao som lento do lamento Da falência do músculo cardíaco Dor difícil de explicar A mais profunda tristeza A vida perde sentido Parece acabar Numa profunda aspereza Com o espírito para sempre partido É um ciclo arrancado numa paragem brusca Afogado em questões que nunca serão respondidas O desgosto de amor é um sentimento Que destroça o coração Afasta-nos da promessa ida do fulgor orgíaco Escorraçados da nossa casa num doutro músculo cardíaco O desgosto de amor é uma antecipação da morte Pelo fim de uma promessa não cumprida Onde o desejo entre ambos era outrora forte, A nossa falta deixa de ser sentida. Não há retorno desta árida terra Não há paliativo para este abandono No caixão do morto amor se encerra O nosso incondicional sorriso, ansiando pelo dono.
0 Comments
Yazoo 'Dont go' 1982 Devo ser realmente um tanso. Sempre imbuído da ideia esperançosa de que pelo menos pensam tanto em mim, como eu nelas, mas sempre, ao mesmo tempo, com a certeza de que penso mais nelas, que elas em mim. A ideia de que são incapazes de amar como eu, mitiga o desnível. Desculpa-las. Mas não aplaca o lamento. Aí uns 20 cadernos pretos pautados, de folha de 60 gramas, e 80 folhas, e apenas em 3 ou 4 encontrei alguma referência a mim. Não estou a ser justo, não os li todos, afinal são mais de 1600 páginas de notas diárias desde que começou a escrever o seu ‘diário’ aconselhada por mim. Apenas procurei as datas que lembro terem sido importantes para mim, e verdade seja dita, ela escreveu sobre mim. Há algum alívio em mim. Parecido com aquele alívio que vem do facto de alguém, uma puta qualquer, que cortou contacto connosco e que foi má connosco, e nos liga a dizer que gostava de ter reagido melhor connosco. Não é bem um pedido de desculpa, mas pelo menos alivia a interiorização que sempre acabamos de fazer, em que por algum motivo merecemos o comportamento de merda que determinado indivíduo teve connosco. As lágrimas acorrem-me aos olhos, e bebo uma cerveja de enfiada. A chorar não consigo deixar de pensar e depois dizer em voz alta ‘-Ironia do caralho ó puta, tantas vezes me partiste o coração, que morreste de doença cardíaca súbita!’ Sossego por instantes, por vergonha de lhe ter chamado puta. Depois de morta. Aconselhei-a, há anos, a escrever, para desenvolver alguma introspecção em si mesma. Tanso como sou, interpretei as suas ansiedades constantes, a sua sofrível capacidade para ser feliz, como a um dedo de distância da capacidade de se perdoar pelo quer que seja que a martirizava lá dentro de si. Hoje sei que era um conflito interior de asco por mim, sem motivo que encontrasse aparente, essa ansiedade. Mais um exemplo em que a minha suposta boa índole me cegava à constatação que a ilusão passara, se esgotara nos seus olhos. E será que era boa índole minha, ou ingenuidade e manha tentando trocar uma boa impressão por disponibilidade horizontal? Um contracto implícito que eu celebrava unilateralmente? Irritavam-lhe os meus modos, a minha falta de vontade de fazer o quer que fosse, que não fosse estar com ela. Perdeu-me, em surdina, o respeito por isso. Sentia que eu a amava, demais. Perdia o sal que sempre dá algum sabor à comida, por fazer da minha vida, estar ao pé dela, beijá-la, trocar ideias espatafúrdicas sobre as pessoas e as coisas. Passado o cortejamento, já não tinha paciência para falar de metafísica, para ser o camaleão que reflectia os meus interesses para me cativar. Finda a necessidade de cativar, é quando a verdadeira pessoa se revela. Olhava de cima para mim, como se eu fosse um pobre paciente de hospício, cego à sua própria doença e incapaz de viver no mundo verdadeiro, precisamente por não conseguir identificar os sintomas dessa ‘doença’. Toma-se então o doido, como um tipo teimoso e defeituoso, perdido a meio caminho no limbo do mundo que deveria ser e o mundo que deveras é. A crença dela na minha inadequação, era tão forte, que por vezes chegava eu mesmo a acreditar momentaneamente, e não sei se ainda hoje não albergo algum complexo parido a partir daí. Quando me largou, não por um, mas por todos os homens do mundo que não eu, eu só conseguia aplacar a raiva que sentia pensando que ela não era aquilo que mostravam as minhas lentes de amor quixotesco, mas afinal uma taberneira no sentido de ser apenas uma aparência, aparência de ter vida interior, e aparência de ter uma verdadeira personalidade por detrás dos actos. Mas não, caralho. Um mero autómato biológico, convencido do seu acesso privilegiado ao Olimpo, que pode ser o morro de um qualquer descampado ranhoso. Uma palonça de vistas curtas, convencida de que a miopia é o horizonte. Mas depois voltava a mim dessa raiva, e dizia a mim próprio, que ela era afinal um ser humano como eu, e que temos todos o direito de amar, e deixar de gostar, e de querer algo melhor, embora eu não veja ainda hoje, algo melhor além de mim, e não é por me andar a comparar com outros. Se calhar porque os meus critérios judicativos, são de molde a valorizar o que considero ser eu mesmo. Afinal, avaliamos tudo com os olhos da nossa interioridade, incluindo…a nossa interioridade. Sentia, pois, para não me sentir louco, a necessidade de partilhar e ouvir a opinião de outros. ‘-Não pá, não estás maluco, essa gaja é que não vale nada.’ Invariavelmente, a todos os que contei, recebia de volta uma história análoga. Que significa afinal uma gaja não valer nada? Epá, como já me cansei de repetir, não é o facto de ir embora. É a forma como o faz. A estética que envolve o acto é a verdadeira medida, quer do que a gaja pensa acerca do mundo, das pessoas, quer do que pensa especificamente de nós. Posso ficar preso no pensamento que me diz claramente, que todos temos falhas de carácter, e elas têm uma maior capacidade para destroçar a nossa flora emocional. Literalmente, partir-nos o coração. Despedaçá-lo em mil pedaços, com dor a condizer, e um sentimento profundo de desespero por uma agressão que não entendemos. Sim, todos temos falhas de carácter, mas não somos todos iguais, nas formas como reagimos à nossa insuficiência humana. Uns encaram a merda que fazem, e tentam não repetir. Outros, pulverizam spray de sanitário com aromas de alfazema química, sobre a merda que fazem, chamando-lhe ouro. Por outro lado, espero sempre uma transcendência ‘delas’, em serem humanas comigo, mas talvez o ser humano não seja o ser correcto. E as coisas são o que são. E nem eu sou um anjinho. Muito do que me acontece, é responsabilidade minha, desde logo a escolha da gaja. A expressão ‘não valer nada’, soa-me tão mal agora, com ela morta. Se calhar porque lhe estou a beber as cervejas que tinha no frigorífico. A janela virada a poente, os cortinados dançando com a pouca brisa que entra sem convite, numa sala com um sofá esgravatado pelas unhas dos gatos, que ela deve ter desistido de reparar, ou proteger. Por todo o lado estão arranhadores, mas debalde, os filhos da puta afiam as unhas onde sabem que não devem. A poltrona onde estou sentado, combina com o sofá, e escrevo estas mesmas linhas, com as folhas de papel apoiadas nos diários dela. Encharcando-me em cerveja, para os poder ler. Cobarde, me sinto. Precisar de coragem líquida, para reviver os pensamentos de alguém que amei tanto. Mas já sei como é, e vou buscar mais ao frigorífico, notando que na estante da sala, tem um minibar, com bebidas brancas de todas as raças. Era uma diferença entre nós, eu preferi sempre as fermentadas, e ela as destiladas. Adorava shots e cocktails, raios a partam. Depois de uma bebedeira, ia religiosamente umas semanas para o ginásio, com sentimento de culpa por causa das olheiras e do dano à pele. Dava gosto ver-lhe aquela energia e esperança, nos momentos em que se dedicava a uma vida saudável. Ri-me, com um solavanco de cabeça para trás, e uma voz qualquer em mim me lembrou que a morte não limpa, ou não deve limpar os crimes. O pedófilo é pedófilo mesmo depois de enterrado. A morte pode é, para alguns, trazer a desculpa de que somos marionetas com a mão de algum titereiro enfiada pela nossa peida acima. Mitigando a responsabilidade individual. Salta-me para o colo, o gato que quando entrei, estava mais amedrontado. Tinha ficado a observar-me, debaixo da mesa de jantar. Conseguia ver os olhos dele apontados a mim, avaliando-me, medindo-me o perfil. Vira-me fazer festas nos outros, atravessar uma perna por cima do braço da poltrona, e acender o candeeiro de pé, lendo e esgravatando e soluçando como velhota senil, ao ler as frases escritas. A tal brisa mexia as cortinas, e a pouca luz que entrava na divisão, dava-lhe um ambiente lúgubre. Estávamos naquela estranha altura dos dias, em que algo parece mudar, por momentos se ouve um profundo silêncio, até que o mundo dos homens volte a produzir ruído de fundo. Como se o tempo assinalasse a chegada de mais uma noite, da mesma maneira que um antigo projeccionista mudava a bobina cinematográfica. O filho da puta ruivo olhava-me atento e esfregava os cornos na minha mão livre, a pedir-me festas. Eu já tinha enchido as tijelas com comida, e este cabrão queria o menu completo, mas acedi, fiz-lhe as festinhas que queria, e o gajo olhava-me atentamente. Parecia querer-me dizer algo. Como não se chegava à frente, fui eu que, retornando a abrir uma lata vermelha de Sagres (que, entretanto, fora buscar mais 6) iniciei as hostilidades, falando para o gato da mesma maneira que um bêbado assíduo fala para o barman, sobre tudo e sobre a sua vida. ‘-Vês? Como se a vida fosse ela mesma, uma condenação e expiação, que apenas conhece alívio após o último fôlego. Não, esta puta, desapareceu-me, completa e intencionalmente, da vida. Para ir para os braços de outro. Eu nem lhe merecia o esforço incómodo de uma justificação. De uma palavra, de uma explicação que me bloqueasse o auto martírio de efabular infernalmente, que mal havia eu feito, primeiro, para o abandono, segundo, para o silêncio criminoso, o tratamento díspar em relação a mim, como se tivesse feito algo de tão odioso, que não merecia qualquer tipo de consideração ulterior. Mas eu só chegava à conclusão, que a minha culpa havia sido apenas, amá-la demais. O que é um erro meu. Ou melhor, uma análise falaciosa acerca da natureza das pessoas, e das condições dos seus relacionamentos, seguida de um comportamento congruente. Eu mesmo esmagado sob o peso da minha idealidade. Mas seria? Eu sempre desconfio das justificações que arranjo, onde passo por muito bonzinho. Tenho de estar à coca com o cabrão do ego, que engana em cada passo do caminho. Será que aquilo a que chamo ‘idealidade’ não é senão uma mentalidade de carência, que faz mimar a gaja de modo a que não se vá embora? Sim, que nós gajos temos esta lógica de merceeiro, onde achamos que por fazermos y de agradável para elas, elas retribuem com x.’ Olhei para o gato quando disse ‘gajos’, pensando que o desgraçado, estava possivelmente castrado. Era gajo, mas não devia perceber do que estava eu a falar. Prossegui. ‘Afinal confirma-se, o problema era meu. Eu é que achava que sermos dignos uns para os outros, estava no contracto. Digno porquê? Então caralho, não achas que mereço pelo menos uma explicação? Foda-se, umas palavras finais? Estás com medo de perder resolução, que ver minha cara te fará mudar de ideias em relação à decisão tomada? Ou apenas não queres ver a dor que me provocas? Não te queres sentir mal contigo mesma, e ficar a pensar mal de ti? É mais fácil fingir que não existo, ou alguma vez existi.’ Falando para o gato, acompanhava as palavras, com um gesticular de acordo, e com expressões faciais condizentes. Eu estava a falar para ela, não para o gato. ‘Estas putas circulam por aí, como se o mundo não fosse uma caixa pequena, onde eventualmente nos voltaremos a ver. Ou que nãos nos voltaremos a encontrar, no Céu ou no Inferno, ou nas escadas do Esquecimento. A sua cruel cobardia é uma saída fácil, que escolhem sempre que podem, convencidas completamente da impunidade dessa escolha. Vai lá puta, eu não te faço mal, nem corro atrás de ti para pedinchar explicações. Foge e finge que não existo, para poderes viver melhor contigo mesma. É que eu sei que pagas o preço. O karma é fodido e a vingança não pertence ao ofendido. O mundo vinga-se delas, por viverem às escondidas. Através da sua consciência. Elas sabem, em maior ou menor grau, que são umas putas. Quando não estão a fingir, ou quando sofrem na pele algo semelhante, constatam que afinal, o ofendido talvez fosse humano, e capaz de sentir dor. Dor decorrente, da forma como nos tratam. Que foram putas com este ou com aquele. E que continuam sem o poder respeitar. Logo, sem o poder amar. A mulher só ama a força, e só respeita quem é capaz de não a respeitar. No fundo, no fundo, elas sabem. É preciso alguma crise existencial, algum rasgão no tecido convencional da vida onde estão habituadas a viver. Por mais que fujam das explicações desconfortáveis, do confronto com as consequências das suas acções na casa emocional de outro, a sua auto-imagem fica manchada e rói-lhes a consciência, eventualmente. Para poderem viver consigo próprias, depois, constroem, como aranhas e teias, uma narrativa mitomaníaca onde o quer que seja que correu mal e seja importante, nunca mas nunca seja responsabilidade sua. Arde o outro para ‘ela’ se poder aquecer na noite fria. Não há como escapar. A filha da puta é assombrada pela sua própria filha de putice, por mais explicações criativas que formule para os seus actos. Estava sempre a celebrar contractos encobertos comigo. Dava-me um beijo e dizia que me amava, e olhava para mim, esperando que da minha boca saíssem palavras equivalentes. Dava para receber, dizia para ouvir. Ressentia-se se por acaso os contractos que só ela estabelecia, não fossem celebrados por ambas as partes, incluindo a parte…eu, que os desconhecia, na existência e nos termos. Excepto um, quando disse que queria estar comigo até ser velha e morrer de artrose. Foi ela que me pediu namoro e eu aceitei. Aceitei a existência e aquela formulação de termos. Gozei, e disse, aceito essas condições e dei-lhe a mão para que me a apertasse selando contratualmente o ‘amor’ que também sentia por ela. Contracto assinado. Não demoraria muito a ser assassinado. Mas como toda a gente, gostamos de ter o empréstimo bancário, mas detestamos a obrigação de o pagar. Como todas as mulheres, reservava o direito de mudar de opinião, quando lhe conviesse, por exemplo, para renegociação do spread, ou aquisição de casa nova para os seus beijos. Aí a palavra dada ia para as malvas, e só interessava a vida à frente. Uma vez confrontei-a, meio a gozar, que sou cabrão quando me chega a mostarda ao nariz: ‘-Mas tinhas dito que era para sempre e que não mudarias de ideias…estavas assim tão desesperada, ou és naturalmente aldrabona?’ Faltava a mais provável hipótese, a de acreditar piamente que seria para sempre e que não mudaria de ideias. Mas não lho podia dizer, pois usaria isso para sair limpa da cena de filme. Imputaria culpas ao ‘amor’ essa coisa indefinida e apenas útil enquanto indefinível, e de quanto ele muda e nos faz mudar. Tudo o que evite a responsabilidade pessoal. Sem saber o que responder, optava sempre pelo mais automático e eficaz, uma cara de enojada para passar o ónus da imbecilidade culpada, para mim, por vezes auxiliando com um acentuar de ataque de vergonha tóxica, com a frase: ‘-Não entendes, pois não?’… como se eu fosse de uma natureza inferior, marginal em relação aos mecanismos do mundo que todos conhecem, menos eu, o incapaz de perceber. A intenção era calar-me, e eu já havia sido muitas vezes calado assim, pelo que lhe respondia em medida: ‘-Sim, não entendo como é que és tão estúpida comigo, sem me saberes explicar porquê.’ Dava-se ao trabalho, nos períodos em que andava com outros que não lhe interessavam muito, de se meter comigo, primeiro por sms, depois pelas redes sociais. Sempre com frases curtas e enigmáticas, que visavam lembrar-me que ela existia, estava indisponível, mas…estava por ali algures, quem sabe se pronta a transformar a indisponibilidade em disponibilidade, naquela forma de ser muito lacónica de toda a mulher que não te quer comer, mas não nega a validação que vem de lhe confirmares o teu desejo. Quando andava com os que realmente lhe interessavam, ou com uns em que o fascínio inicial não havia esmorecido, nada dizia…nem nada respondia, para reduzir ao máximo a probabilidade percentual de alguma coisa correr mal. É assim que se vê quanto outro nos quer, pelas vezes que está disposto a colocar a cabeça no cepo, por nós. Por vezes ligava. ‘-Então, já acabaste a merda do curso? Lol’ Esta era fácil, tinha a licenciatura pendurada pela cadeira de Lógica, e sabia que perguntando, a questão tinha massa crítica o suficiente para me fazer responder, além de que era ambígua o suficiente, para eu sentir a provocação ou ficar a pensar que era de facto preocupação e que ela realmente se lembrava dos pormenores da minha vida. Ou ‘-Estás melhor?’ Ao que eu perguntava indignado e sem entender, ‘-Melhor de quê?’ Ao que me respondia com o mais sepulcral silêncio, para me deixar a pensar, pois ela sabia que eu penso demais nas coisas. Mas porque não me responde? Que quer ela dizer com o ‘estar melhor’? Partia a cachimónia sobre os seus motivos, até que num dia percebi, como que por epifania, que a intenção era meramente foder-me o juízo. O que levava a outra questão. Porque sair do seu caminho, para me foder o juízo? Porque ligava a foder com outro, para que eu a ouvisse? Onde e porquê, esse trabalho todo de exprimir o seu desprezo por mim, e que eu soubesse perfeitamente o quanto me desprezava? Eu via isto como ódio, que é a transmutação do amor, quando o amor não tem pernas para andar nem pulmões para subsistir. Transforma-se em ódio para poder sobreviver, energia nervosa e emocional, lutando para continuar a existir na alma de alguém. Ou então não. Se calhar, pelo caminho, ganhara-me, inadvertidamente, um asco tal, que me odiava. Algo do género, estar ressentida por quase ter caído na esparrela e ter-se ficado por mim. Mas isso não justifica o ódio. A não ser que o ódio seja uma forma de se vingar na vida, fodendo a sanidade mental de alguém inocente o suficiente para não ter cometido nenhum crime mortal, forte o suficiente para não se matar, e introspectivo o suficiente para garantir à operadora da vingança, a certeza de que a sua memória permanecia viva na minha. A resposta mais fácil, é a de que há pessoas que não prestam, não valem nada. À medida que o veneno gasoso me descia pela goela, uma clareza de pensamento gritou o seu canto de cisne. Então, mas se ela me largara por outros, num infindável passar de liana em liana, tal significa que não sou o único abandonado, ou rejeitado. Também o, ou os, gajos por quem me abandonou foram largados, pelo menos em determinado grau, pois há sempre um ou outro, que ‘elas’ querem mesmo manter…mas lá está, se calhar são os que ‘elas’ não conseguem manter, que querem mesmo, mesmo, manter. Havia uma consequência desta ideia. Não ocorreria um momento de lucidez, potencial e ilusório, onde aquela que me rejeitou, bateria com a palma da mão na testa, e diria ‘-Foda-se, que erro cometi deixando o João.’ Não só a minha individualidade estaria diluída no meio de affaires e portadores de pila do seu historial, como eu seria reduzido a um ponto de passagem, e nunca um destino. Além disso, a haver algum lamento da fêmea fatal, no ocaso da sua vida, nunca seria personalizado em relação a mim, ou a outro. Seria sempre em relação ou a uma situação coeva que lhe lembraria ser menos feliz, ou a um conjunto de atributos ou requisitos na SUA vida, que não lograra obter e manter. E apenas temporariamente, apenas quando ocorre a tal ruptura o tecido convencional da via, ou uma situação-limite. Por isso tinha de supor duas coisas, que as mulheres não são capazes de amar, idealmente, como os homens, e o único apreço que podem por estes sentir, não emana do carácter específico, individual, do sujeito do outro lado, mas de um conjunto de atributos a que não conseguem resistir e sempre com carácter de utilidade para ‘elas’. De repente, senti-me um completo idiota, quer por lembrar com saudade e estima toda a magarefe com quem tive intimidade, quer por supor que a forma de amar, isto é, a forma de adesão emocional ao objecto de amor, é igual no homem e na mulher. Aliás pior, de ser um idiota romântico, que nada mais é que um coelho que acredita numa fantasia, entrando na toca de uma raposa com um galheteiro e frasco de picante em cada uma das patas. Não há, portanto, ligadura e tintura de iodo, para o ego obliterado pela rejeição. Nem nenhuma justificação senão a nossa própria estrutura psicológica, que sobrevaloriza a importância que atribuímos, às gajas. Posso dizer que se uma gaja não tiver vulva, o meu interesse esmorece quase a zero, e é verdade. Há um carácter de utilidade na apreciação do feminino enquanto veículo para a minha satisfação, fruindo o corpo de outro que me sacia o desejo. E embora eu saiba que as gajas apreciam tanto, ou quase tanto, o corpo masculino, como os homens apreciam o feminino, não conheço muitas que cortem a orelha ou escrevam 22 volumes de Filosofia densa, para oferecer à tipa que lhes deu para trás, como Van Gogh ou Kierkegaard. Assim de repente, só me lembro da Florbela Espanca, e pouco mais. A mulher não idealiza o amor, mas ama a idealização que o homem faz do amor. Detesta ser idealizada, pois isso limita-la, com uma exigência de divindade, mas gosta de colher o fruto opaco da divinização para fins de engrandecimento próprio. Bajulação sem responsabilidade, portanto. É o que eu digo, vamos para um tiroteio com fisgas. Não, lamento dizer-te, mas o egozinho masculino, dos conas que acham que o amor vale por si mesmo, não tem remédio. Cada gaja que nos passa pelas mãos, é mais uma chaga aberta que nem no momento da morte, desaparece. Vamos com ‘Elas’ na ideia e na lembrança, para o Nada, para o Esquecimento, para a Morte, e nem sei se não é mesmo a lembrança da sua ausência, que faz com que nossas almas sejam imortais. Recusando-se a morrer para pensar no quanto ainda amamos a gaja que deixando de nos amar, nos esqueceu mais rápido que uma curta viagem de liana, por uma selva fictícia. Tal como não há uma mão que desce do Céu para nos confortar, não há nenhum momento futuro que redima a ofensa mortal no nosso ego, quando somos estupidamente descartados por uma gaja de quem gostámos. O inconformismo vem desse mesmo contraste que tem origem na nossa predisposição para um amor idealizado. Mais até do que da constatação de que os critérios de selecção sexual delas, são muito afastados do que seja o mundo real, especialmente se o gajo portador de tal predisposição não for particularmente bonito, articulado ou diligente do ponto de vista material. Não é o ressentimento por não ser escolhido, ou por ser rejeitado, que mais amargura o portador de falo, médio. O ressentimento vem do contraste entre uma visão idealizada do amor, que não consegue deixar de ter, e a angústia de saber que bem pode esperar visão análoga do amor, por parte da mulher, que nunca a vai obter. O homem médio, vive por isso no dilema, de almejar o companheirismo e o receptáculo do seu amor, com a certeza não só de que esse receptáculo não sabe apreciar o depósito, como é incapaz de retribuir da mesma forma. Por isso nos sentimos tão vazios após algumas fodas. Porque o nosso amor cai no chão tal como o esperma interrompido. Por isso, por vezes, nos sentimos tão sós, com a boca dela colada à nossa. Epá, isto não é para vilificar o gajedo. É para dizer, parafraseando muito mal, Kant, que o ‘amor’ nos coloca questões às quais não podemos responder, mutatis mutandis, o ‘amor’ é no homem, um impulso cuja natureza torna impossível a reciprocidade. Tenta explicar isto a uma cachopa. Vai olhar para ti, e passada a surpresa inicial, vai fazer um cálculo do gasto energético baseado na decisão que já tomou, se te vai comer ou não. Se decide que vales o esforço, vai tentar seguir o raciocínio, para te impressionar. Mas, amiúde, o que acontece, é que de te desqualifica, isto é, elabora uma narrativa pejada de características, traços, adjectivos que justificam a tua rejeição na sua consciência. A decisão é sempre tomada a priori. As narrativas ulteriores apenas servem para justificar a decisão tomada. Isto é pouco romântico, concordas? Livra-te sequer de insinuar, que as cachopas não amam idealmente. Bem podes citar milhares de obras literárias desde a invenção da escrita. Nada de mal se pode dizer acerca da deusa. A deusa apenas permite adoração. O adorador, esse fica com a memória venenosa de todas as deusas que adorou. E assim desde o início dos tempos. Mas a deusa, também está refém dos seus critérios, a deusa não pode amar para baixo. Nem ao mesmo nível. Porque o amor só medra onde há respeito, e portanto, só respeita o que tem brilho, que voa... por isso, mais próximo do Sol...em cima. Cada tipa, por mais matrafona que seja, é o instrumento cruel e capitalista da selecção natural, operando a escolha, de quem insemina o seu útero ou não. De certa forma, a civilização pode ser entendida como a gestão dos meios de produção…humana. Onde as feministas hoje escolhem ver uma opressão, e toda a lei e costume são opressivos, outros optam por ver um esforço de alijar o peso capitalista da decisão sexual, a vulva cedida ao mais alto, ‘melhor’ licitador. Foi mais ou menos assim, no início da civilização ocidental, Roma, onde cada legionário podia no fim da carreira, ter acesso a um pedaço de terra, e com ela, uma potencial portadora de útero, onde ele legaria os seus genes à geração seguinte. Sim, a mulher também carrega uma roda de Inferno dentro de si. Ela, a deusa, a dificuldade em permanecer, ele, o adorador, o crente, dificuldade em não se lançar. Uma dança demoníaca, onde a única mão que vicia o jogo, é a coacção externa. A mulher nunca se contenta com o prémio de consolação. A mais marreca, não consegue não exigir do Universo, o melhor homem que acha que consegue obter a partir da sua auto-avaliação, sempre inflacionada, a não ser que seja profundamente traumatizada. E tal como nunca se contenta, raramente consegue fingir o seu desdém pelo gajo que considera abaixo de si, ou a quem botou a mão por falta de outras opções. Nada mais existe no amor, além destas pulsões demoníacas, e as acções individuais que delas recorrem. Gajos estranhos como eu, é que olham para isto a partir do ponto de vista abstracto da dignidade na relação entre dois indivíduos. Talvez porque controlo mal, ou não controlo, a minha pulsão. Quando bebíamos, tínhamos discussões até adormecer de cansaço, meramente teóricas e sem que ela deixasse que se tornassem pessoais, eram meramente braços-de-ferro. Tivemos uma sobre a ideia de que os homens são sabujos com mulheres que consideram atraentes. E eu dizia-lhe ‘-E as mulheres não fazem o mesmo?’ ‘-Olha, os homens tratam-nos como se fôssemos transparentes, fingem que nos ouvem, que nos querem integralmente, mas o comportamento muda assim, que nos apanham na cama.’ Um lapso de língua que eu não perdia para a enconar: ‘-A sério? Conheces assim tantos? Tens de começar a escolher melhor…’ Por toda a nossa história, para poder usar a ilusão de que havia um destino na nossa relação, ela encolhia-se sobre si, por ter deixado escapar o elefante no quarto, a forma como lidara comigo e a consequência das suas aventuras pela terra da Pila Nova. Desviava a conversa, dizendo: ‘-Somos tratadas de acordo com o nosso aspecto físico…’ ‘-E nós também!’ respondia eu. ‘-Há dois anos atrás desprezaste-me por completo, apenas por eu estar barrigudo.’ Eu sacara da carta que me tira da prisão no monopólio. Por ela me ter largado uns 4 anos antes, demorei dois anos a recuperar, através de batata frita, sandes de fiambre e muita cerveja. Passava os dias da minha vida que encurta, a anestesiar-me, a recuperar o corpo, para me voltar a anestesiar. Quando estava quase a esquecer a existência dela, e outras coisas, ela volta a aparecer no meu caminho, vamos tomar café e desliga o telefone. Ao ver-me faz cara de nojo, e subitamente fica com uma vibe de querer sair dali. Aquilo só me deixou pior, como que se gravando as minhas unhas desfeitas pela saída pétrea a pique do Inferno, já no final uma mão demoníaca me voltasse a arrastar para baixo, para a lava dissolvente da pena por mim mesmo. Fiquei exangue de qualquer vontade de estar vivo, de costas ardendo no asfalto como barata tonta amassada por gato que a usou para treino…apenas sabendo que está viva por ainda abanar as patas, à espera de um óbito que demora dias a vir. Ómondiêu, que melodrama este, pensa algum leitor mais expedito. Quem sabe o que é uma relação yo-yo, aquela relação que nunca bem que acaba e nunca acaba bem, sabe do que falo. Nem todos têm a coragem ou a disciplina de cortes a limpo e definitivos. Especialmente conas emocionais como eu. Claro que ela ia negar. ‘-Tu dizes cada coisa…Claro que não foi por isso, foi por estar confusa e carente naquela altura, e precisava de ver-te e estar contigo.’ ‘-Foi por isso que estiveste meia hora e foste-te embora?’ ‘-Meia hora?’ ‘-Sim, eu contei o tempo. É mais sincero admitires, eu entendo os motivos.’ O gato deixara de ronronar, mas ainda me escutava com muita atenção. Sam Kinison 1987 Levanto-me para ir mijar, e caio no chão. Fico a chorar com a cara encostada ao verniz do soalho de madeira, pinho, parece-me… ou faia. Não sei porque choro, nem porque dou tanta importância a estes assuntos. De um ponto de vista, eles para nada importam. Esconderão algo mais que a minha suposta surpresa para com as relações entre as pessoas? Será que é uma forma de vender a mim mesmo a ideia de que sou bonzinho e não partilho o mesmo jogo que todos os outros parecem partilhar? Não sei. Levanto-me e abro por completo a porta da casa-de-banho. O fedor que vem lá de dentro é insuportável. As caixas de areia dos gatos estão lá, e o chão e o poliban estão cobertos de merda. Pobres bichos e pobre eu, que demoro quase uma hora a limpar tudo e a lavar com lixívia, aflito para verter águas. Assim que mudo a areia, um atrás do outro, vêm cagar para dentro dos cubículos, roçando-se nas minhas pernas, como que agradecendo o serviço prestado. Se não estivesse bêbedo, não o teria feito. Não sei quantos dias permaneci em casa dela. Ia enchendo caixas de cartão que entregava nas ONG da caridade, mais próximas. Sei que ao mexer na secretária dela, encontrei um envelope com dinheiro, que me alimentou de pizza ao domicílio e cerveja, até acabar. Num dia ou noutro, dava-me vontade de a enterrar de vez, e ia enchendo as caixas. Metendo os moveis nos caixotes do lixo, depois de os desmontar ou partir. Cansado demais para os carregar em peso, ou ébrio demais para não os levar pelo elevador. Cada dia que passava, a casa, como a memória dela em mim, ia-se esvaziando, até que fica apenas a certeza de que ela existiu e aquele baquezinho no coração, quando a ideia vem à consciência. Perco a certeza de quantas vezes acabámos e reatámos. Mas lembro-me que finalmente a ilusão dela em mim começou a esmorecer e comecei a vê-la por quem realmente era. E o fim da ilusão ocorreu no casamento do tal amigo em comum que nos apresentara. Ela foi de amarelo e as cortinas do recinto estival escolhido para celebrar a coisa, eram quase da mesma cor. O que eu gozava com ela, mas quando vem o fotógrafo, ela foi apanhada a olhar para baixo. Voltei a gozar com ela, lembrando que ficava sempre com cara estranha em qualquer fotografia. Aliás como eu. Foi essa a primeira grande private joke entre nós. Sempre que um de nós era fotografado, começávamos a rir como parvos, pois já sabíamos que nunca ficávamos bem em qualquer foto. Ela não se riu e disse que queria falar comigo. Fomos para o vasto relvado, e à sombra de um carvalho gigantesco, ela começou a desbobinar a razão para a sua postura. Que havia engravidado e havia tirado a criança fora, que não se achava preparada para ser mãe. Que se sentia presa na nossa relação e que achava que tinha de ter um tempo para pensar, e reflectir na sua vida. Eu deixei de ouvir quando disse que tinha engravidado e abortado. Perguntei se sendo meu, se eu não tinha uma palavra a dizer no assunto. Respondeu que não, o corpo era dela e ela fazia o que entendesse, que não se queria prender ainda. Connosco veio ter um casal conhecido a brindar e com conversa de ocasião. Eu perguntei: ‘-Tu estás-me a dizer, que eu, o pai, o dador de metade do código genético, nada tenho a opinar ou que saber, apenas porque o útero é teu?’ ‘-Que egoísta, mas não me surpreende. Em vez de me apoiares e abraçares, estás a fazer uma cena apenas porque te estou a contar agora?’ O casal retira de imediato ao ouvir o teor da nossa conversa. ‘-Além de infanticida, és a pior pessoa que eu conheço.’ Virei as costas, fui falar com o casal recentemente empossado, e disse que por motivos de força maior, me tinha de ir embora. Vários dias estive sem saber o que pensar. Ela devia ter algum momento de clareza, pois ligou-me umas cinco vezes, e eu nenhuma atendi. Decidi que não era o princípio do fim, mas o fim. No ano do senhor de 2015. Ao remexer a sua secretária, encontrei numa gaveta, um dvd, com um filme de hard porn. Com ela e mais três tipos, gravado algures para os lados de Paio Pires, segundo dizia na capa do dito dvd. Devia ser este tipo de descoberta, que a impedia de querer ‘assentar’ fosse com quem fosse. Ponderei se via ou não. Decidi ver, e o que vi, foi a mesma pessoa que eu conhecia, numa figura de meter dó, na minha opinião. Ela perseguia o coelho, toca abaixo, presa das consequências lógicas das suas decisões. A tipa no ecrã do computador Apple, não estava feliz, inundada de pila frenética. Não. Estava atrás de uma concretização de algo que havia idealizado, algo sacado de uma bucket list, tal como escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Era notório que estava a desempenhar uma tarefa e não a celebrar a abundância de falo. Ou seriam os meus olhos? Procurei e não encontrei mais nenhum filme. Portanto, ou se fartou, ou não foi convidada para representar horizontalmente, de novo. Desmontei a secretária, foi para o lixo, fiquei com o material informático, e os objectos mais íntimos coloquei no recuperador de calor, que acendi de seguida. A casa ficou vazia, e apenas fiquei com a fotografia tirada no tal casamento, e a esperança que tenha encontrado paz, onde quer que esteja. I Recebi a notícia da morte dela, quando estava a acabar o meu turno de trabalho. Um amigo em comum liga-me a avisar. Não tinha família nenhuma e eu era a pessoa mais próxima dela, viva. Morrera subitamente apesar de nem 42 anos ter feito ainda. Faria em Outubro. Esse amigo em comum estava de férias e queria que alguém acompanhasse o caixão, que ele não podia vir, pois só tinha avião para a semana por vir. Tretas. Desatei a chorar no velório, por a ver vestida com o rosto da morte, logo ela que era tão vaidosa. Nenhuma das suas melhores amigas veio da Bulgária, onde tinha feito carreira em investigação molecular. O padre veio ter comigo, e disse-me que eu era o único que cumpria os requisitos de tratar de tudo o que é acessório na morte de alguém. «-Eu?! Mas eu não a vejo há anos.» «-Olhe à sua volta.» Olhei, duas ou 3 velhotas que são habituais nestas coisas, deduzo. Falam umas com as outras, fazendo cara de enterro claro, mas parecem apreciar a companhia umas das outras, mais do que algum sofrimento por ambos os caixões em exposição, separados por um átrio ao meio, e por uma mesa com dois livros onde a malta rabisca as últimas palavras para um defunto que nunca as irá ler, na ilusão de que essas palavras perdurarão até ao Juízo Final. E de facto sou o único na capela. No lado dela. As velhotas fazem parte do mobiliário. Sentem-se bem no serviço publico que acham que fazem. Consolam os outros, com um ar de autoridade e habituação à dolorosa experiência da perda. Dão consolo precisamente por causa de uma dor que fingem, mas que não sentem. Esse fingimento reconforta, sentem-se humanas, que se sacrificam em prol de quem realmente sente o abismo da morte do ente querido. Todos ganham com este pequeno fingimento. O padre coloca-me umas chaves na mão. Fico a perceber porque o cabrão foi tão amável quando cheguei e porque se fartou de me perguntar sobre como a havia conhecido. Estava a fazer-me o raio x. Por ter deixado cair que fôramos namorados, uma hora antes quando me viu a chorar junto ao caixão, ele deduziu que eu era o melhor para não lhe dar o trabalho que queimaria o seu fim-de-semana. «-Trate como entender, ninguém o recriminará de nada.» Que caralho quer ele dizer com isto? Vira-me as costas e vai à vida dele. Fico sem palavras aí uma boa meia hora. Quando caio mais ou menos em mim, olho em redor, e sinto que estou a ver a cena mais triste da minha vida. Morre uma pessoa, uma gaja, e no seu funeral nem familiares afastados, ou amigos, ou sequer conhecidos a quem dizia os bons dias quando ia comprar o pão para o pequeno-almoço? Já para não falar dos gajos que lhe chafurdaram o corpo todo, e que pelo menos um seria decente o suficiente para perceber que nada de pessoal está envolvido, quando a morte chega, e que portanto, um último adeus é da ordem. Que merda pode ser mais triste que uma vida e mundo que à saída, ninguém lamenta a nossa retirada? Foda-se. Morrer na cabeleireira? Mas quem é que alguma vez morreu subitamente enquanto o cabelo é ornado e arranjado? Deus me perdoe, veio logo arranjada para o caixão. Provavelmente com a roupa com que se estatelou finalmente no chão. Sim, que não deve ter passado pela autópsia. Não sei, e nem sei porque estou a pensar nisto. Se calhar porque estou sozinho, e não existe mais ninguém que me ponha ao corrente destes pormenores. No dia seguinte, é o funeral. Estou à espera que esteja mais gente, mas logo de manhã, a minha surpresa, sou o único na sala vazia. Eu e ela. Aproveito para me levantar, e entre as lágrimas consigo acertar com um beijo na sua testa fria. O seu cabelo preto contrastava com a imitação de seda que cobre a madeira do caixão. Ainda era uma mulher atraente. Quando nos conhecemos, fazia parar o trânsito. Agora ainda provocaria umas buzinadelas se fosse viva. É a maquilhagem exagerada no seu rosto que revela umas rugas e olhos enrugados. Uma expressão gasta, apesar da pacífica visage da morte. Ninguém me observa e afasto-lhes as pálpebras e coloco a minha cara em frente à dela. ‘-Ó puta, eu não me esqueço do que me fizeste.’ De lá apenas vinha uma reflexão dos meus lábios mexendo, os olhos dela eram inexpressivos, sem alma, sem personalidade por trás, que não uma longa viagem na terra da putrefacção. Reflectiam seus olhos, de forma baça e mortiça, qualquer imagem colocada defronte. Sem trejeitos do rosto emanados de cogitação e apreço ou asco. O cadáver era ainda ela, embora dela mais nada restasse senão o invólucro hirto e frio. Que se foda é melhor que nada. Sou eu que digo que os amores não morrem e o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. Como odeio eu esta puta. Como a amo, portanto. Vim ao seu funeral, apesar de tudo, porque tenho a convicção estúpida de que a morte é a última lixívia, lava tudo. Quer dizer, impõe-se por si. Nada há a fazer depois de um de dois morrer. É o fim do jogo, que até pode ter sido de simulação da morte, cada um, ou apenas um fingindo que o outro não existe, não lhe ligando, não querendo saber dele, não lhe cuscando o perfil nas redes sociais. O ghosting é uma forma odiosa de fingir que o outro morreu. Tapá-lo com o cobertor do esquecimento, negando-lhe existência na memória a golpes de martelo. Quando morre uma puta que amei, vou ao seu funeral, lamentar que tenha assim ocorrido. Não quero que morram, quero que vivam e sejam felizes. Apenas que não esqueçam, porque se não esquecerem, eu sei que algures na sua vida feliz, eu assumo um contraste maior, sempre que a minha memória emergir nos seus olhos baços e mortiços. Como augúrio de uma vida que não se concretizou, mesmo asfixiada a minha memória sob um ódio ou ressentimento, que é o que sentem, pois invariavelmente sentem de mim o que qualquer viajante sente de uma armadilha profunda oculta no chão onde esteve quase a cair. Não, o corpo dela aqui prostrado, ainda é ela, o que sobra, o jogo ainda não acabou totalmente, e se estou aqui sozinho, é porque Deus me está a testar em algo, porque senão o capítulo teatral e os adereços seriam diferentes. Pensei em escolher entre alguma dignidade pessoal, ou deixá-la a ir para a terra com esperma meu na sua boca. Se optar pela minha dignidade, sei que aumento o fosso da sua inveja por mim, o que impossibilita a sua capacidade de viver consigo mesma, sabendo que é uma megera, pobre desculpa para desperdício de oxigénio. Mesmo morta, imagino-a algures a zelar sobre o seu corpo. Nem que seja presente na minha mente. Opto pela vingança. Arrasto uma cadeira do átrio, estão todas vazias, porque o outro funeral é daqui a umas 5 horas, e nem os familiares directos do outro, idoso, vieram velar matutinamente. Apoio um pé na cadeira de assento fofo, outro a meio caixão, sem sujar a imitação de seda branca, e a mão esquerda à parede rugosa de reboco imperfeito, enquanto com a mão direita desaperto a braguilha e inicio a masturbação de olhos fechados, pensando nela e nos tempos que passámos juntos. Arrependo-me e penso noutra, porque quero traí-la mesmo neste momento de morte. Abri-lhe a boca à força, mas sem violência desnecessária, roubando algum papel higiénico do mísero WC que ladeia a capela bipolar, e dobrado a meio, compactado, serve para impedir que a boca cerre os dentes. Consigo acertar entre os bonitos lábios vermelhos, naturais, e ao contrário das outras vezes, ela não me continuou a lamber a pila depois de aliviado. Nunca saberei se para me prender em sedução, se por realmente gostar de mim. A ejaculação soube a nada, que é o que sabe toda e qualquer vingança. Desço e sinto-me envergonhado e ressinto-me dela, por me fazer odiar tanto. Faço uma reflexão breve sobre o que fiz, e digo para mim que o prognóstico é claro, estou louco. Mas quero lá saber, a vingança está feita, vai com parte de mim do meu ADN, até à eternidade. Levanto-me e digo para o cadáver ‘-Estás a ver vaca de merda?! Levas comigo em vida e levas comigo na morte…e agora não podes fugir.’ Noto alguma humidade no canto do lábio, que limpo com a sua gola da camisa com que a vestiram. Entra o padre e vê-me compondo o corpo, pelo que diz ‘-Está na hora.’ Olha para as minhas gotas de suor na testa, e para uma sujidade ao de leve na imitação de seda amarrotada, espreitando de seguida a cadeira com a marca de um pé, contornada a pó de gravilha prévia. Dá ordem para que o caixão seja levado, e aperta-me a mão, e vejo na cara dele que se arrepende do automatismo. Nem umas palavras merece, colocam-na logo, cova abaixo. Seco as lágrimas por terem fechado o caixão de vez, por este desfecho e por a morte não me levar a mim, e ter de viver com todas estas memórias. Espetam terra para cima dela, e a toda a velocidade, porque a sirene de uma fábrica próxima apita para a hora de almoço. Não consigo deixar de chorar tendo em conta isto que é a condição humana. A da vida desta pessoa e da sua responsabilidade pessoal na mesma. Que significa toda esta merda, quando de um momento para o outro podemos estar mortos, sem cumprir o potencial que tínhamos, e descartados anonimamente, ou nosso corpo usado para fins de necrofilia ou vingança de um louco qualquer que não conseguiu deixar de gostar de nós. O dia passa e o coveiro vem dizer que o cemitério vai fechar o portão. Olho para cima e vejo que é quase noite e eu não me apercebera. Sacudo as mãos da terra que estava agarrando com força, e sinto-me cansado, com olhos inchados e sigo para a morada dela, rabiscada num papel que o padre me deu, antes de se ir embora para celebrar o segundo enterro. II Quando a conheci, eu ainda tinha toda a minha idealidade. Passava horas a correr pelas ruas à noite, chovesse ou soprasse frio, sempre numa azáfama de cada vez fazer pelo menos mais um quilómetro. Levava o walkman e acelerava nas músicas heavy, e abrandava nas músicas mais brandas. Gostava de músicas com eco, e o futuro piscava-me o olho, com uma parceira prometida que viria matar a solidão e trazer luz à existência, concretizando a querida crença de que existe uma alma gémea para toda a gente,algures. Não concebia muito que as mulheres fossem capazes de crueldade, e que o seu apreço pelo meu corpo tonificado era porque me apreciavam pela pessoa que eu era. Isso dava-me uma confiança estranha, sozinho e em situações sociais, em que era notório que algumas achavam estranho eu ter esta confiança, apesar de a minha roupa ser claramente oriunda de uma qualquer feira, e os meus modos pouco gourmet, me anunciarem dos subúrbios. O ser demasiado carinhoso anunciava-me como carente, o ser facilmente aplacável com um beijo, manipulável. Depois de gostarmos da pessoa, ela pode fazer tudo connosco, porque só a vemos de acordo com essas lentes da nossa adesão emocional que estabelece uma ditadura com poucos suspiros de oposição. Conhecemo-nos num bar ali em Santa Iria de Azóia, que hoje é uma farmácia. Eu estava a jogar bilhar e ela passando atabalhoadamente no corredor para os lavabos, dá uma cuzada no meu taco, fazendo-me falhar a agressão. Digo foda-se e olho para trás. Olhamos um para o outro de alto a baixo, e injuriamo-nos mutuamente. Ela achava que eu tinha feito de propósito, para me meter com ela. Viro-lhe de imediato as costas, assim que percebo que é daquelas palhaças que facilmente me podem meter à porrada com outro gajo qualquer que venha defender a sua honra, ou propor pila em troco de insultador espancado aos pés de nossa senhoria. ‘-Não me vires as costas, estou a falar contigo.’ – diz ela. Viro-me para ela, encaro-a, olho para as suas calças de ganga rasgada pelo joelho, sapatos pretos de salto alto envernizados com esporra divina, sem meias, e mostrando um pouco de delicioso tornozelo. Um cinto com fivela gigante e com a ponta solta enrolada de forma propositadamente atabalhoada como se usava na altura. Blusa branca com soutien preto em forma de apara mamas desportivo, dava-lhe um aspecto dinâmico. Olhos castanhos com sombreado preto como o cabelo, davam-lhe um olhar profundo. O rosto meticulosamente esculpido a mármore branco sob lábios escarlates que só apetecia beijar ou foder. ‘-Eu viro o que eu quiser e bem entender. Vê se tens mais cuidado onde metes o cu quando andas.’ Pela minha expressão de zangado, percebeu que eu não tinha feito de propósito, e ao ver-me olhar em redor dela, mais preocupado com algum cavaleiro branco que viesse tirar de esforço, tentou apaziguar a situação gozando com as minhas botas de pára-quedista: ‘-Belas botas…Vais para a guerra?’. Disse-o com um riso malandro que me desarmou e deixou até inseguro durante umas horas, por causa de gostar de usar botas militares. Foi algures por Fevereiro, e ainda fazia frio e alguma chuva, pelo que ou era para me descolhoar, ou era tansa lá à sua maneira. O que me parecia delicioso, uma tansa como eu, tão, mas tão bonita e bem feita. Voltámos a deitarmo-nos no anonimato um em relação ao outro, e no exame das provas específicas de acesso, encontramo-nos numa escola fina de Lisboa, onde era feito o exame de Filosofia e o de Biologia. Eu perdera um ano, porque, entretanto, tinha ido voluntário para a tropa. Ela tinha ficado um ano a fazer melhoria, para depois ter mais acesso a Medicina, mas acabou por entrar para Biologia, onde fez investigação até morrer. O meu exame foi à tarde, e o dela de manhã. Cruzámo-nos quando eu subia a escadaria da escola e ela a descia. Ambos parámos ao mesmo tempo, e ficámos sem saber como reagir. Ela tomou a iniciativa estendendo-me a mão. Riu-se, e disse ‘-Tu por aqui?’ Demorei uns 2 incómodos minutos a responder, totalmente desarmado. ‘-Vim…vim….vim fazer um exame…’ ‘-Duh, eu sei, também acabei agora o meu.’ ‘-Correu bem?’ – perguntei eu. ‘-Vamos a ver.’ Trocámos números, e vi-a afastando-se com aquele riso enigmático tão sedutor e tão dela, que parecia que era visado exclusivamente a nós, e que prometia algo, se as cartas fossem bem jogadas. Uma espécie de segurança de saber algo acerca do mundo. Eventualmente encontrámo-nos já em pleno período escolar e o primeiro beijo foi à sombra de uma árvore na Faculdade de Ciências. Apesar de tudo, o tempo que passei com ela, revelava com mais intensidade um pressentimento de frustração do seu lado, como que se à espera de algo melhor. Como se eu mesmo fosse um átrio onde se espera por convite para faustosas salas interiores. A minha insegurança, fazia-me tentar cada vez mais agradar-lhe, e no processo aumentar a taxa de asco dela por mim. Como que se aquele que se esforça apenas confirma não acreditar ser por si só, suficiente, para o quer que seja. Tivemos os nossos dois ou três momentos, de onde me lembro mais o dia que passámos no Chiado, e a comermos um croissant na soleira da Sá da Costa, onde eu tinha ido comprar um livro. Todo o dia correra bem, e ela estava realmente feliz por estar comigo, o futuro prometia longevidade à nossa simbiose e a esperança emanava dos nossos jovens corpos. Mas até num naufrágio, há momentos de beleza se o náufrago se afundar de olhos abertos vendo o bailado de aço em direcção ao abismo ao ritmo do metal retorcendo-se e chiando sob o seu próprio peso. De um momento para o outro deixou de me responder às mensagens de texto, de atender o telemóvel, de abrir a porta de sua casa quando lhe tocava à campainha horas a fio. Até o criminoso tem direito a saber o seu crime. Eu não. Havia sido julgado e condenado sem possibilidade de apelo. Como sou orgulhoso, disse para comigo, ‘-Eu quero é que ela se foda.’ Com toda a força que uma mágoa profunda exige. E assim foi, acompanhava a sua vida ao de longe, quase todos os meses andava com um tipo novo, passava por mim pela estação de Metro da Cidade Universitária, e certo dia ficámos frente a frente em ambos os cais. O primeiro olhar dela foi de um profundo lamento, mas pareceu-me que depois se lembrou de uma qualquer decisão ou jura que tomara, e voltou com aquele riso promissor e enigmático, fatal no que concerne a obter validação por pretendentes que nunca passarão disso. Fingimos ambos desviar o olhar e cada um seguiu o seu caminho. Voltei a vê-la umas vezes, em festas que ajudei a organizar na Faculdade de Letras, e a sua confiança estava no topo da sua vida, desejada, tudo lhe corria bem, os homens mais vistosos e promissores perseguiam-na, dando-lhe a ideia de felicidade e liberdade de escolha onde o mundo é a nossa ostra, nós a pérola bem lá no meio. Ser desejada por gajos garbosos, elevava-lhe a auto-estima, a auto-imagem, e o valor social percebido. Eu era útil para se lembrar de onde começara, de onde partira, o quanto evoluíra. Por vezes eu recebia chamadas telefónicas no número de casa, onde passara tantas horas a falar com ela, a ouvir-lhe as inseguranças, a ser o tampão emocional para os seus caprichos, convencido de que era essa a função idealizada do ‘namorado’. Nessas chamadas extemporâneas, alguém, um casal, fodia no outro lado da linha. Uns gemidos de mulher, trespassada por uma pila de alguém. Eu sabia que era ela, ainda hoje me lembro do timbre e do tom dos seus gemidos. Por um lado havia qualquer coisa de reconfortante, ela afinal lembrar-se de mim, tendo em conta a forma abrupta como acabara. Por outro, havia algo de extremamente doentio e cruel, no acto de propositadamente, fodendo com outro, ligar para um 3º … Foi numa dessas chamadas que senti a mais profunda vergonha por ter gostado tanto de alguém, que jurei nunca mais dizer essas palavras, monopolizando os meus afectos na foda e nos beijos e carícias que dou. Se apenas o que tinha feito a esta gaja, era ter gostado dela e ter sido quem sou, talvez ou devesse mudar, ou deixar de gostar. Torna-se o não amor, uma forma de sobrevivência. Uma protecção, que visa evitar a dor, fechando-nos num armário de aço, revestido de corticite e isolado ao som. Meti a chave à porta e o cheiro de comida podre, saiu pela primeira fresta. Uns pontos brilhantes pelo escuro do espaço, parados e assustados. Tinha 3 gatos, que contei assim que acendi a luz. Um, demasiado aterrorizado, os outros dois, em desespero vieram roçar-se nas minhas pernas, cheios de fome e sede. Descobri a comida deles num armário cuja superfície era gordurosa, dei-lhes água, abri todas as janelas, e fui à garagem onde tinha deixado o carro, buscar caixas de cartão que comprara a caminho, no Ikea. Pobres bichos. O cheiro da comida podre vinha do lava-loiças cheio de pratos empilhados, onde ela não havia raspado completamente os restos de pizza e posta de pescada congelada. Que caralho vou fazer eu aos gatos? Já tenho um, 4 gatos é muita fruta. Serei um carcereiro, sempre em tensão para perceber quando pode um deles fugir para a rua? A casa era boa e estava arranjada. Já o recheio revelava uma vida interior dela, a braços com algum demónio, talvez o mesmo que a fizera afastar-se de mim. No caixote do lixo estavam várias garrafas de vinho, vazias. Abri o frigorífico, tinha várias latas de cerveja fresca, talvez para aliciar algum amante mais arisco. Imagino-a a sofrer em frente ao espelho engolindo a raiva ressentida, por levar a peito a rejeição ou a menor aceitação, o cheque em branco, que tinha há uns 20 anos. Incapaz de perceber, acho, que quer então quer agora, a sedução e a rejeição nada terão a ver com ela, mas com a forma como as coisas são. Somos invólucros à procura de neurotransmissores que nos permitam viver com a ideia que fazemos de nós mesmos. Tiro três e sento-me no sofá, depois de ter encontrado os diários dela. É meia-noite quando consigo encontrar um em que fala de mim. A segunda vez que me envolvi com ela, ela começou a ditar condições, que exigia que eu a tratasse de certa forma. A maneira como um homem trata uma mulher, é o que ela precisa para se sentir bem consigo mesma. Quando me exigia um código de conduta que não havia exigido a outros, o que ela me pedia no fundo, era que eu desempenhasse o papel de reflexo amistoso e submisso. Abdicando de ser eu, para me sacrificar a salvar a sua auto-imagem. Se eu assim o fizesse, ela poderia viver mais uns tempos a pensar de si mesma, o mesmo que um qualquer monarca pensa da reverência com que os súbditos o tratam. Que tipo de homem sobra, depois de pessoas a quem amou profundamente e além de todos os defeitos, o abandonam com as velas completamente desfraldadas com o vento da ideia de que é isto a vida, encontrar e desencontrar, e que a união afectiva entre um homem e quem ele ama, é uma ocorrência contextual? Um homem gasto, descrente, vazio e ressentido. Mesmo aquelas que largamos, e que não pudemos senão largar, por deixarmos de nos sentir em casa. Como o ácido da aranha vomitado para dentro do corpo da mosca presa na teia, o abandono, a rejeição, corroem a alma de um homem, que encontre algum sentido na profunda adesão emocional no corpo e alma de outrem. Ou pensas que é só foda? Pensas que não vives a vida de quem amas, querendo que melhore e que a pessoa seja feliz? Tornas-te pessoalmente investido em contribuir para a felicidade da outra pessoa, que em determinada altura, seguirá o seu caminho, deixando-te a ti, com o filho nos braços, de um amor que nunca se extinguirá comos os altos fornos siderúrgicos, do amor que lhe tens. Podes abanicar o calor com o guardanapo mole do esquecimento. Mas em brasa sempre estará a memória de quem contigo fez sentido. Aconteceu, de novo, por acaso. Nos Restauradores, onde convergimos no mesmo dia, para renovar o Cartão de Cidadão. Fiz questão de a seduzir, sem ter ainda maturidade para perceber, que ela precisava mais de uma muleta, de um bocado de argamassa para erguer a sua casa em ruínas, que eu de a fazer apaixonar por mim, para me vingar provincianamente, do que achara que ela me fizera. ‘-João, sabes lá…’ – exclamava com pesar, fumando o cigarro pós copulatório, relembrando as fodas passadas. Os corpos idos, as ilusões desfeitas. É no ocaso, na promessa de penumbra, onde por instantes, todo um silêncio cai, que começamos a perceber melhor o lugar onde moramos. Eu puxava por ela, mas ela não se abria, fosse por pudor, fosse por ter alguma vontade em se comprometer comigo, fosse para não admitir as rejeições, as mentiras e as discussões que lhe haviam enviado à cara os seus defeitos de carácter. Restava-me imaginar, e tinha agora aquilo a que nunca tivera acesso. As memórias dela. Algumas vezes leu-me os textos e censurava-me, mais por raiva de eu não conseguir corresponder às suas fantasias, que por ataque tóxico. Ah mas és um traumatizado que ficou fixo em alguma gaja. Um gajo inválido que não consegue manter mulher, porque o valor de um homem consiste na sua capacidade de convencer ou encantar outro, tal como um encantador de serpentes e a sua hábil flauta. Não, não, não. Sou alguém que pensa o mundo e as pessoas, e tenta perceber porque é que este ou aquele, esta ou aquela, foram imbecis comigo. Tem de haver uma razão compreensível para o acto de sermos filhos da puta uns para os outros. Se é mais de um, há que ver o que há em mim. Se uma natureza plácida, se um sinal na testa que avisa os outros, que podem ser imbecis comigo. Isso é de fraco, o que os fortes fazem é não dar importância e seguir em frente. Não deixar que a ofensa permaneça tempo suficiente na consciência, que dê importância ao que nos ofendeu. Não, tenho de perceber porque é que as coisas são como são. O nosso momento alto foi mesmo uma discussão onde lhe peguei ternamente na cabeça, olhei nos olhos e perguntei para mim: ‘-Que pressupostos prodigiosos são esses, que elaboram os critérios a partir dos quais estas putas se acham melhores do que eu?’ De uma forma absolutamente científica. Ela reagiu mal, exclamando que putas eram essas e se eu a achava uma puta. Eu respondi ‘-Depende do que achares o que é uma puta. Se for alguém que vende a alma a qualquer preço para evitar o abismo de envelhecer e do tédio existencial, és a maior puta de todas.’ ‘-Tu estás é ainda ressabiado por te ter largado antes. Isto é tudo por causa disso. Pois larguei-te porque tens a pila pequena, e fodi outros enquanto andava contigo.’ Os olhos dela brilhavam ao dizer estas palavras. Eu prometi-lhe que iria andar em cima da sua campa. Na altura isto nunca seria interpretado como ameaça de vida. Vou-me vingar quando morreres. Disse-lhe. Chamou-me palhaço e antes que me mandasse embora de casa, comecei eu a sair. Prometi-me não mais levar a sério nenhuma delas. Nenhuma é capaz de introspecção e de pensar além do umbigo. De distanciamento do seu ego. São autómatos, autómatos. Dizia para mim. Autómatos feitos para serem estúpidos para quem não conseguem amar. Doravante iria proibir-me de as ver como humanos. Passavam-me a ferro como rolo compressor, sempre que as tratava fraterna e humanamente. Prometi proteger-me, desumanizando-me. E dançar em cima da campa de quem limpou as botas em mim. ‘-Amo-te João.’ Olho para ela em silêncio, observando a sua cara expectante de uma reacção minha. Ela procurava sinais de aceitação no meu rosto, que a confortassem, que a retirassem do incómodo estado de não saber em que ramo está o pé pousado. E que raio significa isso? ‘-O que queres tu dizer com isso?’ – perguntei eu. Ficou ainda mais incomodada, porque simplesmente não sabia como me responder. Eu, velhaco, rodei o punhal inquisitivo dentro da ferida incauta. ‘-Que significa dizer a alguém, que se ama esse alguém? Porventura trocarias a tua vida pela minha? Se houvesse um último pacote de açúcar no supermercado, e a tua família dependesse dele para sobreviver, eras capaz de mo dar?’ Ficou parva olhando para mim, nunca lhe haviam feito aquela pergunta. ‘-O que é essa merda que dizemos uns aos outros, de que os amamos, como se fosse mais do que uma tradução de desejo, de passar tempo com o outro, por o outro ter algum valor ou utilidade para nós? Por acaso amamos alguém em quem não tenhamos interesse? O que é então isso do amor, senão mascarar o esvaziamento ritualizado de gónadas, e o preenchimento mascarado de egos? Que significa essa merda, de querer o outro que nos aparece superficialmente, e que permanece uma incógnita mesmo ao fim de 10 anos de convivência em comum?’ Silêncio. Responde ‘-Pensas demais nas coisas.’ Sempre a tentar-me fazer sentir mal, culpado, inadequado, por ser quem sou e como sou. Prossigo. ‘-Que significa essa merda, de que amamos algo no outro, que nunca logramos conhecer? Que amamos então no outro? Uma ficção? Amas o meu mau hálito, o meu dente cariado, o meu pipo de cerveja, o meu olho mais fechado que o outro, que ronque durante a noite, que me peide quando vou à casa-de-banho? Que caralho quer dizer esse ‘amo-te’? Garantes que vais ficar comigo para todo o sempre, ou apenas até que esse amor acabe? Se acaba, o que é isso do ‘amor’? Um estado emocional, uma declaração de intenções, um excesso de tesão momentânea?’ A sua cara de indignação era mais pela inutilização da utilidade de me ter dito que me amava, que realmente uma adesão indagativa à minha proposta de pensamento. Percebi que era instrumental, era para me convencer de algo, para me modificar ou provocar o comportamento. Estava fodida, porque o fogo-de-artifício em forma de manha, era inactivado por mim. O que lhe exigia mais trabalho, inventando outra forma de chegar ao mesmo objectivo. Enquanto ela falava, eu ia avaliando, sobre quanto tempo demoraria a desistir de mim, na era do desapego fácil, onde tudo o que é difícil é visto como uma perda de tempo de vida, que a vida é demasiado curta. Fazia-me lembrar a Célia, que há uns 10 anos atrás me agarrou na cabeça e disse :’ -Amo-te, mesmo. Muito. João. Muito.’ É do mesmo género de pessoa. Vive num compromisso ontológico pouco analisado por si, como aquelas gajas que têm carteiras, sapatos e smartphones cor-de-rosa ignorando o carácter convencionado na escolha desse pigmento. Agarradas a símbolos e lugares-comuns com que olham para as coisas, o mundo, os outros, e a si mesmas. Geralmente, esta malta tem punhais com punhos rosados e corações estilizados gravados a encarnado. Ou revólveres com smileys em alto relevo preto, e unicórnios infantis com traços neoténicos. Para quando matam os outros, por arma branca ou pirobalística, não terem acesso à canalhice do acto, mais estilizado que pesado a frio. O que interessa são os bons sentimentos, o parecer bem, a estética do assassinato. Há o aparente, reverso da medalha. Tentam convencer que são honestas, frontais e brutas, ‘à gajo’. Que revela bem o que pensam do sexo oposto, e do expectável no campo ético. O tigre não te tenta convencer das suas riscas ou do seu grau de ‘ser tigre’. O tigre é. Já a víbora do Gabão, tem uma cabeça em forma de folha seca, e tenta convencer-te de que o sítio de onde saem as presas venenosas, é o que não é, uma inofensiva folha. Entretanto, quando te apercebes, o veneno foi inoculado, e dás de novo por ti, a morrer, com dúvidas sobre ti mesmo, e o grau de justiça e sopesamento nas tuas acções. Um dos piores tipos de veneno, é esse mesmo ‘-Amo-te.’. Quem ama, ama e cala-se porque não tem de dizer nada. O amor basta-lhe, tem a experiência e vive a mesma na plenitude hedonista de sentir o toque de Deus. À manipuladora não, sente que tudo vale na guerra e no amor. No conforto da grande urbe, no conforto da falta de consequências para as suas acções, gosta de pensar que tudo vale no amor, incluindo o uso abusivo da palavra ‘amor’ para convencer o outro a baixar defesas e anular reservas. Pousa na folha, vá, é só uma mordida, e podes ir morrer longe, que eu te encontrarei, paralisado algures. A Célia, como esta, também fazia love bombing. Tudo o que eu fazia, era fantástico, bonito, genial. Fazia questão de mo dizer. Queria que eu soubesse pela sua boca, que associasse a mesma aos esguichos de dopamina no meu cérebro, e ficasse dependente do seu elogio. Drogadito da sua aprovação, presa neurologicamente condicionada, que tem de fazer habilidades para se sentir bem na sua própria pele. Isto dura apenas enquanto fazemos algum sentido no tal mundo dos pompons cor-de-rosa e perfumes adocicados. É teatro, é ficção. E o pior que lhes posso fazer, que não faço, é explicar que é quase impossível para uma mulher amar com os graus de entrega e devoção de um homem. Porque o amor masculino é idealizado, e o feminino é pragmático. Ah caralho, o que estrebucham com esta ideia, antipática para com a fantasia de unicórnios, acerca da sua natureza evolutiva. És um traumatizado, és alguém que odeia o feminino, e outras tretas do género. Ao que as calo, perguntando, se quando me esquecerem, quantas vezes se lembrarão de mim, com carinho e saudade. Uma ou outra mais parva devolve a pergunta, ao que eu respondo, ‘-Eu nunca te vou esquecer até que morra.’. E depois perguntamos à gaja, mas olha lá, amavas-me tanto, que agora já nem me ligas para saber se estou vivo, afinal o amor ou acabou rápido ou nunca existiu. E ela responde dizendo que era tão intenso, mas que nós, sim, nós ou eu, é que o anulei com as minhas acções exemplificadas em desculpas esfarrapadas que ela arranja em forma de ficção fantasiosa, para justificar a volatilidade, a frivolidade e a estupidez com que age(m). Que é porque não lhe dou a atenção de que precisa, que uso cuecas com buracos das traças, que ronco durante o sono ou limpo a pila ao cortinado de cetim. Desculpas esfarrapadas a servir de razão para a decisão de afastamento tomada a priori. O que faz voltar a questão...o que é o amor, se para o matar, coisinhas de merda como é tudo o que não seja um reverberar das essências das duas pessoas...contribuem para que se extinga? Ou nunca foi amor...pelo menos como entendo que o seja, ou o amor do pipl quotidiano é um amor fast food, insipiente, inodoro, indigente, tépido como vómito nocturno...ou seja, não é amor, mas um impostor que se instalou no seu lugar, para conveniência da plateia. Por isso te digo, muito cuidado com o putedo que fala tão ligeiramente sobre o amor. É tinta de choco, é engodo, é isco. Podemos dividir o mundo em dois tipos de pessoas, as que servem o amor, e as que se servem do amor. As putas do tinder e afins, servem-se dele, para obter a oxitocina. O amor verdadeiro é algo de abissal. Sério e sisudo. Por isso só algumas almas amam a sério. E nesse amor eu acredito. Não no amor de borboleta que nem dura um Verão. E o que mais há são borboletas a dizer a outros que os amam. O sem compromisso tentando comprometer outro. Num seco jogo de equações e cálculos egoístas, travestidos de algo propagandeado como nobre, o nebuloso conceito de ‘amor’. Não, há qualquer coisa de infernal na natureza do vínculo que une e não pode deixar de unir , duas pessoas. Suplanta a individualidade de ambos, sem que lhe possam resistir. Ambos os elementos sabem que deixam de ser donos de si mesmos, e que é continuamente exposta uma jugular emocional aos dentes de outrem. Se a dor psicológica da perda de quem amamos equivale à perda de um braço ou uma perna, é compreensível porque é que quem realmente ama, tem muito cuidado e reservas em relação ao papel de arroz que pisa. É que o mundo está cheio de filhos e filhas da puta peritos em desmembramento. Que se condicionam a si mesmos a não 'amar' a partir de um determinado limite. Controlam o quão longe vão dentro da piscina. Que querem os neurotransmissores aprazíveis, o boost de confiança e amor próprio, mas não querem o lado lunar e perturbador quer da alteridade, quer da diluição da própria individualidade. E chama-se esta malta a si mesma, de 'adultos', quando parecem escolher e tirar à mão, a melhor e mais doce perna de frango, do tacho comunitário. Esta malta é cobarde, e sim, são os verdadeiros habitantes do Inferno. Tu estás só de passagem, como turista masoquista. No jogo do amor hodierno, ganha quem menos se arrebata, e é por isso que é irónico ver malta no tinder e no bumble a dizer que procuram o 'amor'. O amor é um acto de fé na existência do demónio. E por isso só grandes almas são capazes de amar. E pela razão inversa, as que te disseram que te amavam, e agora nem se lembram do teu nome, são menos que pessoas, senão pedaços de paisagem onde prendeste mais demoradamente a tua atenção, nesta tua passagem pelo Inferno. Não, meu caro par de olhos, que por aqui passas, nem toda a gente serve para esta ideia de amor. Literal e em dois sentidos, ou porque têm medo do papão da perda de controlo, ou porque têm medo de andar iludidos e iludidas e perder tempo. Vês, todos nós sabemos que existe esse abismo amoroso implacável e incontrolável. Sabemos que existe pelo menos um indivíduo nesta orbe, que nos afecta profundamente mais que os demais. Que as probabilidades de o encontrar aumentam, à medida que mais o procuramos. O problema, é que todos os indivíduos que nos atraem, participam em maior ou menor grau, nessa perturbação da normalidade. E o tempo passa rápido, pelo que é um risco desperdiçá-lo procurando uma ficção. Os nossos maridos, mulheres, namorados e namoradas, não passam de prémios de consolação ou placebos, dessa ficção que a custo, ocultamos. Até nosso corpo ficar gasto e já não importar para nada. Portanto a escolha, raramente o é. E temos de agir, com a ideia, de que o 'mundo' é feito de encontros e desencontros, e não da fuga ao fim da nossa individuação. Isto para quem tem carácter e coragem. Os cobardes, optam pelo amor fast food. São as pessoas que passam por nós, como se fôssemos pedaços de paisagem do seu próprio Inferno. Compreende-se porque não ligam. Sabem que a maior parte dos gajos interpreta um telefonema como um convite para sexo, e portanto, ligar é alimentar esperanças. Isto é verdade, mas também é uma desculpa que dão a si mesmas, para justificar a capacidade de se tornarem indiferentes ( e até hostis) a quem anteriormente ‘amaram’. E evitam como podem, todas as chapadas de realidade que sejam incongruentes com o que querem acreditar acerca da sua própria natureza. No meu caso, tive que aprender a viver com isso, sem que me revolvesse nas entranhas. Ceder para vencer, e não guardar rancor dentro de mim. E afinal, rancor de que? As relações entre pessoas diferentes são algo de muito complexo, excepto para os parvos. O amor, como bypass da razão, é uma armadilha para os parvos, tinta de choco que visa ocultar a fuga, de quem não percebemos que nos preda. Não é justo, mas lá está, nada o é. É como apostar a dinheiro, quem ganha um sprint nadando entre o Barreiro e Sacavém. Sendo que um dos dois participantes, nós, não tem pernas nem braços, mas por ter pulmões, acha ter hipóteses. ‘-Tu estás mas é traumatizado!’ Pronto, lá vem a mesma carta de sempre. O gaslighting, o convencimento. A análise fria e racional, contra algo anuído por todos, só pode ser desqualificado sob uma capa de viés emocional. Gajas que são cemitérios de pila passada, não tiveram sorte ao amor. Parece que é uma questão de sorte ou azar e não de saber ler e escolher. Sem qualquer tipo de responsabilidade assumida nos próprios erros ou falhas de carácter. Gajos que andem com meia dúzia e optem por não calar as suas observações menos positivas das experiências emocionais, são traumatizados. A mais ampla definição de ‘mulher’ talvez seja a de ‘ente a quem o mundo acontece, se for algo negativo, algo que faz acontecer o mundo, se for algo positivo’. Digo-te, mantém-te calado. A ela digo ‘-Não acredito nisso do amor, se te aparecer alguém que te PAREÇA melhor, fazes o descarte e o upgrade num instante. Afinal o tempo urge e só vivemos uma vez. Se corre mal, foi azar ao amor…ou melhor, os homens são todos de má qualidade…’ E ao dizer isto apercebi-me no esgotado em que me tinha tornado. Gasto, cínico, com incapacidade de fé numa certeza ida, de que existe lugar a algo muito bonito com as gajas do meu tempo. A eterna tautologia que não interiorizo, a verdade não é bonita, e nem sempre te liberta. Mas é a verdade. E Deus não te dá o que queres, mas o que precisas. E o que precisas é de verdade. Como posso eu atrair para a minha vida, pessoas saudáveis, quando eu próprio estou partido? A comunhão de naturezas magoadas, traz malta ainda pior do que eu. Se calhar pelo mesmo motivo que ela, o medo ilusório, de morrer só. Se vamos estar à espera da pessoa certa, podemos morrer sem a encontrar. E lá existem pessoas certas? Não. Até porque o primata interno trata de obliterar essas mariquices de pompom cor-de-rosa. Ao sair de casa dela, numa descida cuja calçada está tão gasta que faz os sapatos derrapar, sou interpelado pelo maluco da zona. São 6 da manhã e o gajo já anda acordado a captar atenção aos transeuntes. Digo-lhe bom dia. ‘-Sabes quem é a tua queridinha? Não sabes não…’ Fico surpreso por ele saber o que ando por ali a fazer, e até incomodado por se meter em algo que considero dizer-me respeito, exclusivamente. Mas o gajo continua sem que eu lhe pergunte o quer que seja: ‘-Há uns anos atrás teve um namorado que a deixou, e que ela queria mesmo, mesmo manter. Pois deixa-me que te diga, é má e orgulhosa. Mexe em rezas e bruxarias e no oculto. Pois bem, consta que fez uma bruxaria tal ao dito rapaz, que ele nunca mais foi o mesmo. Passava os dias aqui sentado na soleira da minha porta a olhar para a porta do prédio dela, e quando ela saía ele rastejava atrás pedindo para voltarem a andar. Ela com um ar de satisfação, seguia, ignorando-o e orgulhosa pela sujeição dele. O Inferno dele durou tanto, e após muitas humilhações, disparou um revólver ali ao pé daquele marco de correio.’ Olhei para a soleira da porta para onde o gajo apontara. De facto era um bom sítio para observar o prédio defronte, com apenas uma tira de alcatrão lisboeta, sem marca de divisão da via, como manda Salomão. Noutro contexto eu não levaria a sério este gajo. Mas eu sabia que a avó dela era brasileira e dada ao sobrenatural, onde recebia dinheiro para fazer o que lá para baixo, chamam de ‘amarração amorosa’. Enquanto o gajo derretia cigarro atrás de cigarro do maço amarelo de ‘Português Suave’, eu meio em choque cogitava sobre o estômago que tem de se ter, para apelar ao ‘sobrenatural’ para castigar anti naturalmente, alguém por quem não se tem real interesse. Detesto esta cultura do tinder e do bumble, onde as pessoas criam personagens de si mesmas, em várias camadas, de acordo com o evoluir das relações. Fingindo idiossincrasias que sirvam de adereço na persona geral, para prender o outro fascinado o tempo necessário para perceber se o querem largar primeiro, ou atingir algum objectivo próprio. Por detrás da personagem, vemos a pessoa verdadeira, a espaços, afundada ou esquecida por detrás do teflon sem sabor, sem carácter de uma personagem televisiva com risos falsos, emoções ocas, e espasmos ressentidos, que a espaços, captamos, se estivermos com atenção. Ficamos com pena, por essa pessoa ter sido de tal forma consumida pela sua dor, que o que resta é só já o invólucro de quem foi…algures no tempo. Certas vezes quando conduzo para casa, perto do local onde recentemente o Papa veio dar uns conselhos à malta, dou comigo a pensar se estarei louco. Analiso da forma mais objectiva que julgo conseguir, as minhas acções, os meus juízos, se decorrem de algum viés pessoal que me impede de ser justo com ‘elas’. Não sei porque é importante para mim ser ‘justo’ com ‘elas. Não existe justiça na natureza, e nem sequer existem ‘elas’, apenas um ‘ela’ de cada vez e à vez. Talvez porque a minha vingança sobre o pouco mundo que me dói, é entendê-lo, entendê-las. Algo que lhes é vedado, porque não têm introspecção, e não têm introspecção porque não têm humildade. E porque não têm humildade, acham-se superiores a mim, porque não valorizo na vida, o que ‘elas’ realmente valorizam. Detesto esta cultura do tinder e do bumble. Rodo gajas a torto e a direito, mas são quase todas destroços humanos, ruínas emocionais que teimam subsistir num pós-guerra qualquer. Sou uma espécie de turista masoquista, que em vez de visitar paisagens bonitas, se entretém a visitar os escombros dos outros, que testemunham remotamente as pessoas que já foram, algures no tempo. Especialmente algumas gajas da minha idade, que mais querem um namorado ou consolo, do que me querem a mim, o indivíduo que sou. Não, fingem querer-me, fingindo interesse, mas com uma ideia clara do quanto trabalho estão dispostas a ter, para me ‘conhecer’, e para ‘manter’. Ao mínimo sinal do que interpretam como ‘desinteresse’, saltam fora da piscina, afinal, ‘cá fora’ é todo um mar que se oferece. Mesmo que entre amigas, porque parece bem, se queixem de que ninguém se esforça, para fazer as coisas ‘resultar’. Anda tudo de barriga, ilusoriamente, cheia. Digo para mim que é compreensível, pois toda a natureza é um contínuo cálculo de gastos energéticos. Mas o meu solipcismo rebela-se com a reificação de mim mesmo às mãos destas traumatizadas de guerra. E concordo, estou realmente louco, procurando no rescaldo de uma batalha, um corpo vivo que viva em tempos de paz. Claro que não, são traumatizadas, e eu mesmo me traumatizo, seja pensando nos dóidóis passados, seja analisando os cadáveres adiados que me convidam para a sua cama. Detesto as gajas do tinder e do bumble, na sua postura de atendimento ao público, olhando para mim como mais um utente ou cliente. Incapazes de me tomar em alto relevo, sob uma multidão anónima de gajos que as comeram e cagaram. E ‘elas’ a eles. Chamam a isso ‘ser adultos’. Reais caralhos me fodam, se o vejo assim. E por isso concordo, estou louco. Desesperadas, fingindo algo para as amigas, algo de desapegado que denota controlo, para poderem ser consideradas válidas, como se a batuta da humanidade hoje em dia fosse pouco mais que uma miragem ou placebo de códigos éticos passados. Tentam afogar o demónio interno com a distracção em forma de mim, seja em sessões de foda em que gradualmente deixo de acreditar, seja no cuidado com que não mergulham de cabeça, para garantirem que saem da piscina secas e quando quiserem. Fingem que mergulham, ah sim, fingem. Mas é só fingimento, é só para que eu mergulhe, para o meio, e elas poderem sair assim que entendem, agarradas ao parapeito aquoso. E depois metem os pés pelas mãos. Completamente inconscientes, voluntariamente ou não, ao dano e impacto das suas acções no outro, se por acaso aparece um ou mais que um, novo pretendente amoroso. Não sabem lidar bem com o excesso anómalo de oferta, e tornam-se arrogantes, de barriga cheia, parecidas com um qualquer indigente que se acha subitamente, com uns trocos no bolso. O amigo que nos apresentara, liga-me a perguntar o que se passara. E eu digo, epá sei lá, estas gajas andam todas maradas da cabeça. Mas depois arrependo-me porque passo a ideia de que sou fácil de assoar, e sem qualquer responsabilidade no cartório. Olha, digo, sou eu que já não tenho paciência para certas merdas, e joguinhos da treta que dizem não jogar. Por algum motivo insistem em subvalorizar-me se não correspondo ao que querem de mim, como se eu fosse algo análogo a uma televisão comandada por um comando…que se avariado, se substitui por um outro comando universal. Não sei se ele percebeu o exemplo atabalhoado que dei, mas sei que anuiu, pois ele bem sabe o quilate do gajedo que por aí anda. Epá, não são todas más, de todo. Nem somos ‘nós’, todos, fáceis de aturar. Mas o gajedo que tem vindo na minha direcção está mais afastado da realidade, que nádegas de gajo homossexual num qualquer fuckfest, com viagra à borla. Não me saía da ideia, o caso do suicida. Liguei extemporaneamente para ela, hostil, sem perceber o meu interesse no caso. Ligou-me um mês depois. Tentando censurar-me por não lhe ligar nenhuma, por ter cessado comunicação, tinta de choco para escapar ao facto e lapso de língua, que aparecera outro na jogada, e que se lançara a ele, e a ela, convencida de que teria de dar menos ao pedal para garantir a certeza e a segurança de o manter. Pois, mas o gajo sabia fingir melhor que eu, e depois de se fartar, cortou a limpo, bloqueando-a e não lhe atendendo chamadas. Voltou pois, a ter-me no horizonte, com a falsa crença de que eu desconhecia quer o que lhe passava atrás dos olhos, quer da forma como agia com os outros. Deixei-a terminar a recriminação, pois ela estava à espera que eu devolvesse as idiotices que fizera, para ceder e pedir desculpa e assim branquear a historieta que achava que eu não sabia. Destesto esta cultura do bumble e do tinder, dá vagina traumatizada mas tudo o resto, é falso, ensaiado, oco e frívolo. A mesma canção repetida vezes sem conta sem algo a diferir senão a interpretação e os arranjos. Monótona e dificultando qualquer ameaço de fé. Mas eu só lhe disse, ‘-Quem joga jogos idiotas, ganha prémios imbecis.’ E desliguei o telefone. Tinha o cabelo à Beatriz Costa, ou à Betty Boop. Raio que a valha. Esfregava-se em mim cada vez mais ofegante e ritmada perseguindo o orgasmo, montada em mim como se eu fosse um vibrador locomovido a fantasias amorosas. Magrinha e sem mamas, fazia dietas malucas convencida que a cara cadavérica adiava a completa perda de juventude. Eu só tentava manter tesão por uma questão de orgulho pessoal, até que se viesse e eu cumprisse o que lhe prometera por whatsapp. Por motivo que fosse só fui arrastado por uma memória de quase 20 anos, com a Cristina a pedir: ‘-Amorzinho, faz aquilo do lápis.’ Aquilo do lápis era usar um lápis da Noris bem afiado e percorrer a ponta preta ao de leve pela sua pele exposta ao ar nocturno de uma noite de Verão. Lembro-me de ter a certeza de que aquilo era o paraíso, vendo seu corpo nu, sabia que íamos durar para sempre. Mas porque raio de motivo me lembrava eu, agora, disto? Talvez por andar como passageiro alienado na minha vida, e o contraste remontar ao tempo em que acreditava no significado de estar com alguém. Ela veio-se e deitou-se para o lado a fumar o cigarro da praxe. Detesto a maior parte das gajas do tinder. São as guardiãs da nossa individualidade. Tratam-nos como só mais uma sequência de números, uma equação meio batida que não varia muito senão em pormenores frívolos. Com a segurança estúpida de que a um toque de dedo, outro portador de pila se esfregará nelas até que se venham e maldigam todos os homens futuros, porque nunca lograram manter um dos passados. São pacientes até encontrarem um que não faça difícil a tarefa de se auto iludirem fingindo que se apaixonam por via do lubrificante da utilidade da presa ou cúmplice. O olhar delas arde nas minhas costas, se vou mijar à casa-de-banho, nos trejeitos que faço quando respondo às suas perguntas formatadas e repetidas, gajo após gajo, nas ficções que criam sobre as coisas o mundo e os homens. Confiam mais na sua suposta ‘intuição’ que não passa de lugares-comuns regados com análise inconsciente de linguagem verbal. Há umas que são diferentes, sendo iguais. Têm o amor próprio tão em baixo que usam na licitação o esforço de me convencerem que são um bom partido, são fiéis além de dúvida, sabem lavar a roupa e cozinhar. Não é a mim que querem, mas um namorado que afugente o abismo da morte e da existência, e eu por acaso até sou jeitoso para o papel. A única coisa que têm para dar é a fidelidade, na esperança de que alguém concorde com o contracto e assine a escritura. Depois é uma questão de tempo até que esculpam o bloco de pedra da individualidade do outro, para conseguirem o ornamento que idealizaram na sua fantasia. Geralmente é através de sexo, usando o desejo do outro como pé-de-cabra que abre a jaula da dependência. Quando não nos observam, como se fôssemos filmes já vistos, desempenham aquela peça, fingida à náusea, gasta, batida, sem qualquer arremesso de quem são realmente por dentro, porque no fundo, somos para elas apenas um número. Tal como assassinos profissionais que se forçam a olhar cada morte como meramente trabalho, sem ligações emocionais que os desequilibrem. E assim nos matam a individualidade, sem querer, fazendo-nos sentir que somos tão vazios quanto elas. Somos sempre um item a prazo, até que algo mais brilhante apareça, algo que as entretenha e iluda para longe do abismo da sua individualidade e mortalidade. São as gajas teflon, ou tofu, adaptam-se a tudo, sabem a nada, mesmo quando confundem feitio intragável com ter personalidade. Para se ter personalidade, é preciso estar-se vivo, e a maior parte destas gajas está morta. Se apanhamos muitas gajas destas, de seguida, acabamos por ceder e acabar por acreditar ou que são todas assim, ou que de facto não somos mais do que aquilo para que nos usam. Ou que não merecemos melhor. A verdadeira constatação de que somos a média das cinco pessoas por quem nos apaixonámos, e se são todas imbecis, então o problema não são elas. A Betty Boop por exemplo. Olha para mim de dentro daquela caveira, e pensa que não lhe adivinho o olhar de desprezo mascarado com um sorriso amarelo, que visa esconder o seu despeito. Completa o ramo com frases que soam tão a falso como os amanheceres lilases, ‘-Ai João, és tão tolo!...’ – como se fosse eu acreditar que uma palermice minha a impressionasse o suficiente para alguma exclamação emocional. Há 20 anos, quando eu fazia carícias a uma colega de faculdade com a ponta de um lápis, era ela namorada de um jogador da bola, promessa do Sporting, que assinou contracto na altura. Nos Verões iam para destinos turísticos, de jacto privado e faziam amor em praias tailandesas. Ela era super solícita, afinal, era fácil acreditar no amor por ele, um belo peixe conseguido com a cana da sua beleza. Um prémio para pendurar na parede que mostrava às outras mulheres. A vida parecia sorrir-lhe e prometer-lhe sentido até à velhice. Ele acreditou até uma proposta melhor aparecer. Os jantares com luzes de velas e cascas vazias de caracóis regados com fogo grego, ardendo em ocasos nocturnos ante paisagens de tirar o fôlego, foram sendo cada vez menos, e ela sentiu que o peixe escorregava entre os dedos para outra ribeira. Até que ele a trocou por outra, que ia assistir aos treinos. Acabou por lesionar-se e teve de viver com a perda de um futuro promissor. Ela nunca recuperou, emagreceu, e para sempre ficou manchada com as papilas gustativas sob um estilo de vida que dificilmente outro lhe propiciaria. Sentia que a vida lhe lançara um osso, o melhor de todos, e que ela não soubera aproveitar. Condenara-se a si mesma a viver com a memória dele, vingando-se na sua ideia, impedindo-o de sair da sua memória como saíra da sua vida. Um cobarde, um vazio, um teflon. Entregara-se a um corrupio de homens em série, sentindo em cada foda um nojo de vingança por ele, ou pela memória deles os dois. Ao foder, sentia que se vingava, lembrando-se dele. Foi-se gastando até ao ponto de não retorno, onde não queria admitir que os seus fulminantes que disparam a corrida para a paixão verdadeira, haviam acabado. Mas não podia largar a ideia de que era possível voltar a apaixonar-se. A sério. A morte ainda parecia vir longe, e desistir é só outro tipo de derrota. De modos que, o passado era uma coluna de Hércules imensa, onde cada novo homem que lhe entrasse na vida, era um anónimo plebeu que ardia à sombra da memória dos heróis dela. Pior, os que lhe pareciam ser feitos de humano, descartados em segredo por detrás dos seus olhos, e a estes exigia que a cortejassem, que a tratassem de determinada maneira. Era, no seu discurso, a rosa no deserto, o prémio de vida que há que merecer. Depois descaía-se involuntariamente com histórias de casos passados em que temos de fazer uma cara séria para não pensar no que relata como acções passadas, este farrapo humano. E na diferença, de tratamento humano, polido ou cordial, de valorização, entre os que considera merecerem o esforço, ou os que são meramente mais um degrau em direcção a um Céu que tresanda a enxofre. Olho para o espelho e percebo que sou aprazível aos olhos. Há muito que não me olhava ao espelho. Deduzo que pensei no episódio do lápis e das carícias dérmicas, por necessitar como de pão para a boca, de alguma relação em que acredite, e não me faça sentir vazio como os tomates depois de usados. De modo que estas gajas me descartam quando percebem que já não sou capaz de acreditar. Que já não se podem alimentar da energia que invisto na ilusão em que querem acreditar, para não morrerem à fome. Sei que consigo ser capaz de emoção, e que estou vivo, nem que seja pelos textos que vou escrevendo, e pelo angst que vou sentindo. Já as mulheres teflon, absorvem energia como um buraco negro, na esperança de voltarem a brilhar. Emanar luz, ou qualquer coisa análoga. |
Viúvas:Arquivos:
Junho 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|