A invernia estende-se aos lençóis com os pés que teimam em aquecer esfregando-se pelas minhas pernas, originando um sentimento de repulsa que dentro da alma sinto por saber que não é um frio que corresponda a alguém com partilha de essência comigo, ou então, é alguém que não permiti qualificar-se além dos meus critérios.
Aperta-se contra mim, com caracóis louros tapando o rosto, e eu feito parvo olho para a rua a partir da janela do 5º andar, vendo as gotas de chuva em suicídio assistido pelo vento que uiva, uivo que parece mais uma ameaça de um colectivo de tempos passados. Talvez para se justificar a si mesma, agradecia-me a insistência por ter persistido atrás dela. Que se não fosse o meu jeito heterodoxo que anteriormente a chocara e criticara, não me teria prestado atenção e assim perdido a possibilidade de alguns momentos felizes até o gongo final da morte. Achava-se superior a mim, trabalhava na Bolsa. Enrolara a minha gravata preta em torno da testa, para prender o cabelo e fazer-se de engraçada. Facilitaria a felação com que me impressionaria. O contraste do seu cabelo no meu torso bronzeado lembrou-me o contraste entre a minha camisa branca sob a gravata preta no dia anterior quando me convidaram para palestrar numa sala nobre qualquer, na mercearia de capitais, sob a narração da passagem do tempo. O estímulo da sua boca na minha carne faz-se sentir o suficiente para que fique duro, mas tenho o espírito não sei onde, nem quero saber. Sei que me lembrei de quando era criança e ouvia os outros falar de sexo, e me achava o mais especial ser do Universo em relação directa e preferencial com este. Sentia uma espécie de náusea por assuntos tão carnais e o encosto de genitais com áreas escuras de pêlos mal disfarçados e porções de pele com rugosidades e colorações diferentes e esquisitas. Tudo me parecia um arrepio da pureza de querubim que julgava jazer como morto esquecido em mim. Puxo-a para mim, com lágrimas de alegria no rosto por saber que cada momento do um por cento de tempo da nossa vida que passamos a copular, estar a ser preenchido naquele momento preciso. Ela é uma daquelas mulheres que faz parar o trânsito. Classe cultura e corpo. Os 3 c’s. Habituada a vendedores de barcos, sócios de escritórios e magnatas imobiliários, achou graça que a tivesse envergonhado na sua pergunta sobre que interessava pensar no tempo, se havia que vivê-lo, o melhor possível. Eu respondi que me devia fazer a mesma pergunta quando não tivesse muito mais tempo para viver, o melhor possível. A assistência do anfiteatro riu-se, mais pela minha expressão, entoação e rapidez de resposta que pelo conteúdo da mesma. Corou. Ficou picada. Abordou-me no final, pedi para não me dizer mais nada senão ao jantar e virei-lhe as costas. Esperava que a entretivesse. A minha recusa e aparente falta de vontade de estar ali sequer, agudizou-lhe a atenção, fazendo questão de confirmar a sua confiança abalada, olhando o meu fato preto casamenteiro, o meu fio dourado a meio peito, os sapatos gastos na ponta, sentia-se chocada pelo contraste entre eu e outros melhores que eu, que a adoravam. O terceiro copo de vinho revelou-a, além da persona que ensaiava para o público. Aberta assim para mim, como as fotos de mulheres que eu via na adolescência nas minhas tardes de masturbação, redentoras da anterior impressão de repulsa infantil. Pernas abertas, sorriso de convite, disponibilidade total aguardando por mim, sem qualquer homem no fotograma. A analogia do livro aberto para que eu o leia, e a primeira carícia que de mim partiu em direcção ao seu rosto, fê-la estremecer. Beber chá em casa dela foi o convite, fomos no seu BMW. De forma simplista tinha os móveis arrumados e revelava que pouco tempo passava em casa. Quando queria homem, raramente o trazia para o lar, e se o fizesse desrespeitava-lo no dia a seguir, descartando-o pela audácia miserabilista de nem ter feito o convite de a levar para casa dele. O encosto da sua boca soube a romãs de Inverno. Desejou entreter-me por planos futuros a dois. Eu respondi-lhe que não, não ia esperar que urdisse motivos para me desqualificar, para se convencer a si mesma que não gostava de mim, estou farto dessa merda. Comecei a vestir-me, perguntou-me espantada, onde ia. Fazer o que fazia antes de me conheceres, estudar o tempo e a relatividade da nossa passagem por ele. Beijei-a na testa, sorri-lhe e saí.
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Ele era um daqueles gajos que deambulava sobre a sua própria merda afogado em negrume lisboeta.
Perdia longas noites calcorreando junto ao rio a ver se metia em ordem as ideias. Analisava tudo o que podia sobre a sua vida para evitar vivê-la. Era como o rather not de um poema que lera algures. Epá, viver é chato, não quero. A vida cospe-me na cara exigindo-me que me entregue a ela, eu retribuo o favor e entretanto a ampulheta não cessa. Sou um daqueles que guardo os cabelos dela dentro dos livros, para quando emergir em tempos futuros olhar para eles e certificar-me que ou a vida me nomeou como Escolhido, ou para me rir dos meus traços de carácter que me tornam único. Sentado no animatógrafo do Rossio a búlgara que dança para mim olhando recorrentemente para a slot das moedas, consegue criar a ilusão de uma ligação especial comigo no meio dos onanistas que em mesa oval escudada por alumínio a olham trepidando pelo vidro que nos separa. O tempo parece claustrofóbico e o ar rarefeito. Por onde quer que olhe vejo turistas e ouço línguas diferentes. Lisboa tornou-se um folheto turístico. Asséptico entre os picos de cerveja e cocaína. Permanece o esqueleto, os monumentos erguidos por gente já morta. Eu como os estrangeiros apenas vivemos nos escombros. A porta do WC, como Caronte pergunta-me «-Yo jovem, que vais fazer ali dentro?» «-Pôr pó no nariz.» «-Deixa-te disso e circula.» «-Não tenho o dom de usar drogas para ser criativo?» «-Circula jovem, não te meto duas moedas nos olhos, mas meto ambos com a cor púrpura.» A querer chegar a algum Rubicão, tenho de o fazer da forma mais difícil, sóbrio. A minha estrada de Damasco lembra-me a verdadeira razão da minha aflição, sentir-me fita-cola daquelas que se agarram à pele se não temos cuidado, e com dificuldade se arrancam, não sem antes trazer parte de mim atrás. E então bate-me, os textos do Viúva Profissional não lamentam os amores insuficientes, mas os pedaços de mim que as minhas amadas levaram. Que espécie de depuração é esta? Será que no fim do arco-íris estarei eu mais próximo do original que saiu do útero de minha mãe? E elas, onde me guardam, no coração ou num caixote do Esquecimento? E agora, que farei à lembrança dos lábios escarlates de que guardo as lembranças. Terão outros sempre Paris. Eu tenho Lisboa e os cabelos dela dentro de um livro. I 1994. A viagem de Primavera ao Parque Nacional Peneda-Gerês já prefigurava as viagens de finalistas. Naquela idade sentíamos ser uma questão de vida ou de morte ir a estes acontecimentos, sine qua non. Como que se os deixando passar, deixaríamos passar uma parte memorável da nossa vida que nunca retornaria sob o peso de um arrependimento eterno. Sei lá quantos anos de escola, sem muito esforço da minha parte, confesso. Sempre abaixo do radar. Sempre a esconder-me de mim próprio. Mas já estava farto de livros. Precisava de descanso, pensava eu, mal sabendo que iria passar mais do dobro do tempo que já levava de vida, agarrado a papeis escritos. Sei lá quantas horas de viagem em autocarro, uma excursão em grande, um fim-de-semana completo, com alojamento em pousada, uns 6 ou 7 professores. À francesa. Sei lá quantos autocarros em fila pela A1 fora em direcção ao topo desta esfera planetária achatada nos pólos. O Sol espreitando omnipresente pelas janelas dos autocarros com ar forçado e logo à saída de Lisboa, a cerveja começa a trocar de recipientes, do alumínio para corpos de carbono que reagem obliterando inibições. Os mais populares não se misturam com a ralé nas traseiras, optando por manter alguma diferenciação para com quem não sabe estar. Para variar fiquei no meio. Chegamos à pousada já de tarde, numa mistura de turmas, cujos elementos se conheciam de vista mas não de proximidade. Cachopas que me amaciavam os olhos à distância estavam agora em frente a mim, forçadas a lidar de perto. Eram tão estranhas para mim como eu para elas, e portanto a deferência era igual, o que do lado masculino leva sempre a confundir com elegância de modos, o que na altura se designava de ‘porreira’. Descarregadas as mochilas nas camas e armários, era altura do jantar, espalhado pelo terreno da Pousada. Um dos professores, o António, aparece perto de uma fogueira sob as estrelas, e alguns alunos se congregam em torno dele, um dos quais um cujo nome não me lembro, que era dos mais populares da escola, pelo à vontade com que estava na vida. Sentei-me por perto, interessado pelo que se falava. Olhávamos as estrelas e falávamos de uma vida que projectávamos sob o mistério do futuro. Que lição se levará da vida, antes de a vivermos? Serei um velho porreiro, serei alguém queimado pela passagem dos anos e dos desgostos? Onde estarei quando tiver a idade dos meus cotas? A conversa descamba para o filosófico. O professor António, hoje professor da Faculdade de Motricidade Humana, lidera habilmente como pivot, a conversa. Intervindo o mínimo. Na encosta onde estávamos dava para ver a piscina, desaconselhável pelo frio que só a fogueira mitigava. O assunto ia no sentido da vida e nas luzes que no firmamento prometiam mundos novos. «-Pá sabes que a luz que estamos a ver é o Passado?» A luz de estrelas que podem já nem existir, tal como as memórias de quem amámos e que morreu e se desfez no solo do enterro. «-Ya a malta vive sem dar por isso e tipo…» Eu atalho e faço uso do Sócrates platónico que lera no ano anterior no Faial, e que me havia provocado enorme impressão «-Platão diz que vida não pensada não merece ser vivida.» O fulano com sweatshirt de cornucópias azuis e cabelo comprido dois dedos abaixo do ombro, lixiviado louro à surfista norte-americano prossegue «-A malta vive sem dar por isso, gastam a vida a trabalhar.» O tipo parecia querer dizer que a malta a partir de certa idade deixa de saber (ou merecer) viver porque se acomoda ou porque o amealhar dos anos se torna uma doença degenerativa. Mais ressabiado por ninguém ter ligado ao meu comentário, que pelo conteúdo do mesmo, ruminei no que foi dito. Os meus pais eram derrotados pela vida? Não. Perseguiam determinados, aquele projecto de longo fôlego do qual eu era parte central. Tal como o do surfista sem prancha. Também os pais dele sacrificavam a individualidade criando as condições para a propagação genética ser bem-sucedida e feliz. Não me digas que isto do ser sucedido não tem nada que ver com a complexidade conceptual, e apenas com o controlo da percepção dos outros acerca de nós? Quê, para comer gajas, não é preciso ler Dumas? Foda-se. Como posso ser tão tapado? Este gajo é mais baixo, mais feio e tem os dentes encavalitados e saca o punani todo. Eu tenho conversas profundas e cenas. O gajo olha para mim e diz «-Pensar o quê, a vida tem é de ser sentida, entregarmo-nos aos sentidos, sermos selvagens e indómitos.» Mais pela atenção recebida que pelo que disse, dei por mim a pensar que o gajo era porreiro, apenas não respondia quando os outros queriam, respondia quando ele queria. Analiso posteriormente esta tomada de posição e percebo que a minha mudança de percepção se prende com validação externa, uma falha de carácter, que surge do meu sentimento de inadequação. Já não era só ao nível dos métodos e lógica, mas da validação que precisava. O que é uma pescadinha de rabo na boca. Mas espera lá, a vida ser sentida, born to be wild e mais quê? Então mas isso era o que os nossos pais pensavam, os tais que ele dizia que tinham sido vencidos pela vida. Na nossa idade, todas as gerações devem sentir o mesmo. O corpo jovem sente-se revolucionário. Mas que coisa é esta de entregar-se a um sentir pelo sentir, selvagem em relação a quê se somos nós e as nossas condicionantes, condenados a viver com outros…a merda não fazia sentido. Por onde quer que eu olhasse aquilo não tinha sustentação lógica nenhuma. Alto. Queres ver que o gajo é sofisticado na roupa, e o resto ficou em casa. Ao expor esta ideia ninguém à volta da fogueira pegou nela. Ouviram-me, mas continuaram a partir do que ele dissera, o que soa extraordinariamente bem, mas não fazia sentido para mim, algum. Cristalinamente verifiquei que todos os ídolos deviam ter pés de barro. Se este tinha, os outros não seriam diferentes. A popularidade na C+S é um exercício do deus da aparência. Contraposto mais uma ou duas vezes por mim, persistia nas frivolidades que ia dizendo, confirmando esta minha ideia, de que afinal a minha inadequação até nem era uma coisa má. Fui-me fechando à conversa, levantei o cú dorido do tronco com caruncho onde estava sentado e fui para a camarata a pensar na cena. Afinal, é a imagem, o controlo da imagem que têm de nós que determina o valor da mensagem. Mas espera aí, eu valorizo o conteúdo, mas é uma coisa minha. Há quem não se queira perder em punhetas de letras, ou punhetras. O contraste não me desiludiu. Na camarata Bellini e os outros estavam a fumar charros e a beber whisky. Passam-mo para a mão. Olho, e era feito em Sacavém. Foda-se, Sacavém não tem destilarias que eu conheça, só se for junto ao velho cais. O líquido a escorrer pelo esófago fez-me lembrar o que poderia sentir um cano entupido que engula líquido corrosivo para ser desentupido. Chupo a beata com vitaminas, e não demora muito até despertar um alter ego cambaleante, que só pela ponta dos dedos comunicava comigo escondido não sem onde sob a influência psicotrópica. Sem dar por isso bebi meia garrafa de néctar sacavenense, e misturei umas cervejas. Ficando próximo do ponto da náusea, tive de sair cambaleando pela noite. O ar frio primaveril salvou-me de um coma alcoólico. Uma luz no escuro trouxe alguma ordem ao desarranjo da ebriedade que andava ao repelão desequilibrado pelas pedras no caminho húmido. A outra parte do recinto tinha ainda a malta em animada conversa, e pessoas que reconhecia. Num desses grupos, onde entrei, estava dois professores de Educação Física. Não sei como a conversa descambou para o mar, e naufrágios. O esforço que fazia para não enrolar a língua e para não parecer embriagado, dissolve-se completamente com a palavra ‘naufrágio’. Andava fascinado com a história do Titanic e fiz questão de expor tudo o que lera sobre o assunto. No grupo estavam duas miúdas, uma das quais me via regularmente no campo de basquete, e a quem até impressionara com a minha impulsão vertical agarrando o aro do cesto e quase me estatelando no regresso ao solo. Não sei quanto tempo falei, mas sei que partilhei o número de balsas salva-vida que estavam a bordo, as que faltavam, o sistema de construção do casco, a técnica de rebitagem, a velocidade e as condições de navegação, o diâmetro dos cilindros da máquina principal, os navios próximos na altura do choque e até, como bónus, da maldição dos navios gémeos Olympic e Britannic. Pelo périplo narrativo lembro das caras dos intervenientes, dos adultos compreensivos com o tema que claramente me fascinava, da apreensão das cachopas, obviamente por mim interpretada como êxtase perante a minha magnificência, o silêncio aparecia como uma vontade de ouvir mais, pelo que dei comigo a ter a certeza de que ia conseguir o punani, indubitavelmente, a ter a certeza de que não percebia nada do jogo, quando dou por mim a falar sozinho, logo na parte mais interessante, os danos estruturais no navio ao afundar-se no abismo. Epá mas ela parecia tão interessada. Isso sim, deprimiu-me, fui para o beliche dormir, a pensar que desperdiçara o crédito ganho com as proezas atléticas. Afinal caíam por terra as expectativas de ter um namoro como se via nos videoclips da MTV, com gente exótica no meio de exótica gente, celebrando luxuriantemente no centro de atenções o encosto dos corpos jovens e magros em simulações de cópulas insinuadas, combinando sucesso social com sexual. Que injustas, as mulheres, não apreciando engenharia naval. Realmente, nãos as entendo. A minha boca de manhã parecia mais virulenta que a boca de um Dragão de Komodo. Aliás se mordesse alguém mataria a pessoa com ressaquite. Um demónio dentro da minha cabeça parecia chafurdar na mioleira com dentadas pungentes. Ao colocar os pés no chão frio senti que ainda tinha a cabeça à volta. Perdera mais neurónios nesta brincadeira que assistindo a 10 repetições de todos os episódios da mais estúpida telenovela. II Logo de manhã partimos para os lagos, laguinhos e lagoetas escavados na rocha. A água estava para lá de fria mas nunca nenhuma massa de água me deixou de entusiasmar. O Mário abre as hostilidades tirando os calções e saltando nu. O Bellini a seguir. Eu prossegui, procurando uma maior e mais profunda concavidade onde mergulhar. Na maior da zona, estava a maior parte do contingente. A minha professora de Biologia do 8º ano, que já me conhecia, os mesmos professores de Educação Física da noite anterior, umas cachopas aqui e uns cachopos acolá. Ninguém na água. Ah estava fria diziam. Temperaturas baixas não me condicionavam. O tempo que demorei a entrar foi mais por vergonha de ter um colete de pêlos farfalhudos e não por mariquice a entrar na água fria de montanha. Envergonhado por ter sentido vergonha, deixo a roupa na margem, e perto da professora de Biologia, pergunto se ela, de biquíni, não vai à água. «-Não, também não devias entrar João, está muito fria.» responde-me, com um acanhamento que se perdia num olhar rapidamente baixado após passar pelo meu corpo, onde por certo reconheceu traços adultos num aluno seu. A água fria veio limpar a minha alma e a minha pele do veneno da noite anterior. A água estava mesmo fria mas movimentos mais bruscos depressa me deram a sensação de estar como peixe, na água. Estive umas duas horas a percorrer o caminho entre o fundo e a superfície. Entre as margens e o meio. Alguns entraram na água, deram umas braçadas e saíram. Sentia-me só comigo, apesar de acompanhado, ao mesmo tempo. A flutuar. A olhar o céu e o Sol que me beijava a cara. Quando saí da água estive uma hora a tremer sem conseguir parar. Mais tarde descobri que se chamava hipotermia. As minhas nádegas pareciam castanholas em boda de ciganos. Não conseguia falar mas a custo lá fui aquecendo. Entretanto chega a tarde e a noite. Fui sozinho para o bar no meio do Parque, decidido a nunca mais tocar em álcool e a ouvir um pouco de música. Longe do rebuliço e do acne, nos vários ajuntamentos prévios, ali no meio do bar no meio da serra, sentei-me com a Coca-cola e fiquei a observar os nós da madeira que fazia de parede. O tempo passado a olhar o que me rodeava ao mesmo tempo que deixava as expressões externas guiar as internas, fez o tempo passar e o copo ficar vazio. Vou ao balcão alongado, e sento-me num banco alto. Espero que me atendam para uma nova dose de açúcar e água. Ao meu lado senta-se um vulto. O vulto trata-me pelo meu nome, chamando-me. Era a professora de Geografia. Não era a minha, mas conhecia-me da Escola. Era uma das mais activas e estava sempre a organizar coisas. Era uma das mais, senão a mais bonita mulher de trinta anos da escola. Toda vestida de ganga, com calças coladas a umas pernas bem torneadas e religiosamente proporcionais, cabelo preto com as pontas fulvas, uma camisa preta aberta dois botões com alguns fios prateados pendurados no pescoço de mulher, rosto meigo e ao mesmo tempo experiente, como se reflectisse algumas décadas neste calhau orbitando o Sol, sapatos de salto alto pretos de verniz, mãos brancas e cuidadas mas não exageradamente ornamentadas. A diferença nas nossas carnes era observável por mim, os poros da sua eram mais largos, mas ainda uma pele esticada, como a minha. Desde o momento em que percebi que se sentou ao meu lado, até ao momento em que me fui embora, foi constantemente abordada por locais, que de todos os lados a olhavam, como lobos para ovelha. E ela sabia. A conversa começou com ela a querer saber da minha opinião sobre a excursão. Que estava a gostar. Era bom o contacto com a natureza. A sua forma de falar, e de mostrar interesse, nada tinha de erótico ou de frívolo. Era uma pessoa com quem me sentia íntegro. Sem dar por isso estávamos a falar sobre o sentido da vida. A trocar ideias, como quem joga um desporto de raquetes, e no intervalo onde o silêncio se costuma instalar quando não sabemos o que dizer a seguir, ela diz-me que sou uma pessoa muito adulta e interessante. Isto vindo de um adulto significava muito para mim. Um dos tipos que a abordara duas vezes, chegando-se ao pé dela, insistindo que bebesse um copo com ele, ou se lhe podia pagar um copo, aborda-a uma terceira vez. Ela, educada, sorrindo, responde, «-Obrigada, podes. Mas estou aqui a falar com esta pessoa e vou beber com ela se não te importas.» O homem ficou preso entre a afirmativa, de que sim, podia pagar, e a negativa, de que estava a falar comigo. Vinda a bebida e num intervalo da conversa comigo, vira-se para o anfitrião das bebidas e conversa com ele, vejo-o afastar-se calmamente e sem sinais de rejeição. Ela sabia tratar as pessoas com respeito, e frontalmente. Não era o elogio que me prendia. Mas sim uma presença em que a compreensão e a vontade de compreensão, a humildade para troca de opiniões em pé de igualdade, não tinham condicionantes. Que personalidade a dela. Que mulherão. Fui pelo caminho de regresso para o beliche esperar pelo dia seguinte, com a alma aquecida por ter tido a troca humana com alguém cuja grandeza da sua personalidade, fez também emergir a minha. Sem pensar em desastres marítimos. No dia seguinte partimos para Lisboa. I Decide-se um homem, pela manhã acordar consigo e voltar a sorrir ao mundo. Tomar na mão, como se apanha frágil água de fonte milagrosa, com as mãos como metades de cálice de monge copista, a verdadeira dimensão do seu desejo e pedir à pomba da pressão de resultado, que voe para longe ou pelo menos não paire como condor sobre o seu cadáver. Pensa assim encontrar o mundo que deixou para trás, quando se espojava na erva fresca do Estio, e olhava o céu com verdadeira luxúria por estar vivo, em vez do fingimento adiado que lhe ocupa o espírito até à morte, escravizando para obter algo, resultados, o beijo de uma mulher que não se voltará a ver, uns lugares na fila de trânsito, um desconto de cêntimos. Não te disseram que se estás entretido na vida não estás vivo? Não te disseram que se não olhares com a mais profunda suspeita para tudo o que não é o teu pensamento, não estás sã? Trato com cuidado o meu desejo e afago a minha necessidade de resultado, que abana o rabo para mim e pede que a leve a mijar à rua, puxando-me para longe, fingindo total concentração em outras pequenas tarefas mijadas em postes, e tento concentrar-me em vez dela, no processo. Assim posso verdadeiramente amar a mulher, não a levando como sempre só a soube levar, a peito. Mas isto é tão irrisório e estranho, pela suspeita com que olho, que o acaso de um indivíduo nascer com esta ou aquela gónada é só um acidente reencarnativo. Rebolar-me como porco em chiqueiro pelas manobras na penumbra que aparecem programadas na identidade do que me atrai, a deusa. Em vez de um ressabiado porque as belas mulheres que amei optaram por não me continuar a validar, e com toda a razão, não cumpri a minha parte do acordo, deram-me sexo, não lhes dei o que queriam, só amor. Mas não um amor que consigam fruir, apenas aquele que me colocaria entre elas e um predador mortal. Eu entendo-as, o tempo passa sem parar, como um rio egrégio pelas gerações de homens que nele se banham e pescam e purificam os mortos. Eu é que sou a peça defeituosa, a pedra na engrenagem a limalha no globo ocular. Evito a minha vida e chamo-lhe contemplar a eternidade. Nem os deuses suportaram isso. O orgulho e a arrogância, mataram outros mais capazes que eu, até que ponto não são essas as cicatrizes que penso que me compõem o rosto? II Sorvendo caril no arroz do melhor restaurante de comida indiana em Lisboa, no Poço do Borratém, olho para a voz que me chama, esperando ver na origem do sinal acústico, uma boca pertença de alguém. Catarina. Isto vai ser interessante. Engasgo-me com o arroz e desato a tossir até ficar com o rosto congestionado e os olhos a chorar. «-Não é caso para isso João.» «-Catarina, estás bem?Que contas?» «-Sei que não queres falar comigo, por isso serei breve.» «-Claro que quero falar contigo, senta-te.» «-Não posso, estou aqui com alguém, e estamos a almoçar.» «-Continuas a encher o teu blog e a tirar notas…» «-Não, deixei-me disso, desde ti, do nosso episódio, que tenho pensado muito no que fazia. Não era nada de mal, mas deixou de ser congruente comigo. E sei que não queres falar comigo porque não me atendeste nenhuma chamada, nem email algum me respondeste, e as mensagens no Whatsapp não foram lidas, deduzo que me bloqueaste.» «-Catarina fui um bocado parvo contigo, e não tenho o direito de te censurar se faço o mesmo e pior. E olha o que me custou, vês estes cabelos brancos?» «-Não, tu tinhas razão. De alguma forma esta recolecção que fazemos, eu fazia, soa melhor a ti do que a mim. Reli vezes sem conta os teus textos e só aparentemente são pedaços de ressabiamento. O que parece ressabiamento e falar mal das tuas mulheres, não é senão um prolongado lamento pelo amor que sentiste e que acabou contra tua vontade. Isso e a estranheza do real como o apreendes. Eu não, eu tinha o caminho muito mais facilitado. Eu reificava os homens para escrever sobre isso, tu escreves sobre as tuas mulheres para as relembrares, trazeres de novo à memória como tição cuja incandescência não se deixa esmorecer.» A minha Catarina. A dar-me nós no pensamento e a fazer-me engolir em seco, desde que a conheço. «-Vou continuar o almoço.» - disse-me olhando para os meus sapatos. «-Gostei de te ver.» - disse olhando-lhe para os olhos. Esgueirou-se para uma mesa onde um tipo bem parecido a aguardava um pouco incomodado pela demora. E a fazer-me a mesma avaliação que eu a ele, qual de nós seria melhor. Terminei o arroz de caril com baratas do mar, paguei ao balcão enquanto bebia o mais intragável café queimado. Uma mão toca-me no ombro. Volto-me devagar, era ela. «-Deixa-me pagar-te um Brandy.» «-Epá ó Catarina volta para o teu rapaz, não quero confusões.» «-Despedi-me dele, não vale a pena continuar com a charada, eu estava só a fingir e ocupar tempo.» «-E achas que dizer-me isso me faz ver-te como honesta? Isso não se faz, no mínimo o gajo tinha vontade de meter parte dele dentro de ti. E já agora, porque me contas isso?» «-Porque acho que estou apaixonada por ti. Rastejaria sobre arame farpado com a minha nua barriga como lesma em lâmina afiada, só para passar tempo contigo.» «-Porra Catarina. Eu nunca me vou envolver contigo.» «-Olha este gajo, estavas a almoçar com ele, despachas o tipo para te vires meter comigo só porque não me tiveste. É o teu ego a dar-te pontapés no rabo para andares para a frente, não é a possibilidade de me teres.» O facto de eu ter dito que era uma questão de lealdade, da forma como se trata o outro, fez um brilho surgir-lhe nos olhos. Para a sua intenção, há sempre mais que uma porta para convencer o outro, eu, de que sou diferente e nunca me trataria como tratou o gajo no restaurante de chamuças. Já não era algo, (a seus olhos), relativo ao meu nojo pela sua personalidade, o que, (a seus olhos), provava a minha disponibilidade para um envolvimento, apenas com algumas reservas. Enumerar o quer que seja a uma mulher em missão, é inútil, se não se basear no binómio sim/não. Há os idiotas como eu, que enunciam esta necessidade de regime ético, mas são recebidos com a brutal trituradora que é a racionalização feminina. O que reteve do que eu disse foi a mensagem implícita que havia caminho até mim, não a exposição de como tratara o fulano que descartara como lenço de papel usado. «-Dá-me uma oportunidade, por favor, uma.» «-Não te bastou o que se passou da vez que estive em tua casa?» «-Eu estava parva e desconfiada de ti. Quando te provei a boca e senti o teu peso contrapor meu corpo, tudo mudou. Senti-me protegida e exultante.» «-Mesmo que fosse verdade, não confio em ti, lamento.» Ao arrumar o cartão multibanco na carteira e a carteira no bolso, sinto um agarrão no ombro direito e sou agredido com um murro circular que me acerta de raspão no olho esquerdo, ainda assim com o selo de inchaço que na hora sabemos que já vem a caminho. Ela começa aos gritos a dizer ao outro para parar, o que está ele a fazer. Recomponho-me, tapando o olho com a minha mão do mesmo lado e afasto-me dele, olhando-o pelo olho ainda operacional, ao mesmo tempo que anoto mentalmente tudo o que me pode servir de arma, as cadeiras, os pratos, copos, facas, garfos… Ele exclama para ela, «-Foi por isto que me trocaste? Não sabes que eu te amo?!» Deixo a corcunda que me fazia aferir estragos ao sensível globo ocular, entendo a origem do ataque e olho para ele. Pergunto-lhe: «-Oh amigo, a que propósito foi essa agressão? Por acaso eu te fiz algum mal?» Como um homem razoável, nos dias que correm, é visto como fraco, ele achou que podia continuar a agressão, de alguma forma impressionando quem o repudiara, e que é uma questão de impressionar para ganhar. Avançando para mim, teve o azar de eu ter ao alcance do pé uma cadeira, que prontamente faço deslizar pelo chão com uma percussão do meu calcanhar, estatelando-se a cadeira no seu joelho direito, causando-lhe desequilíbrio e ele acabando no chão. Ajoelho-me no espaço entre as suas omoplatas, e ele não se consegue levantar, e ao pousar as mãos no chão para ter apoio agarro-lhe o cabelo trazendo a nuca em direcção aos meus joelhos. Vendo-se conquistado de forma que não estava à espera, ganhou respeito à manietação e caiu em si. Perguntei-lhe, «-Estás mais calmo?» «-Sim.» «-Vou-te deixar levantar, espero que estejas calmo senão vais-te magoar a sério.» Ao levantar-se, estava calmo. Compôs o fato e a gravata, era advogado e ia ter julgamento à tarde. Ficámos os dois a olhar um para o outro, e estranhamente Catarina foi mais expectante da cena, que activamente procurando acabá-la. Perguntei ao tipo: «-Isso é assim, agrides alguém, por causa de uma gaja e sem saberes o que se estava a passar?» A minha evolução espiritual última, é de velho. Mais que considerar a agressão uma ofensa pessoal, olho para o agressor como mais um degrau na compreensão do que é esta merda de estar vivo e viver aqui. Já não me chateia o oponente que me quer anular, mas o caminho que fez até essa vontade e conclusão. Isto desarma todos aqueles que em modo fight or flight levantam os punhos para pelejar comigo, o inimigo. E de repente do inimigo com 180 centímetros e 85 quilogramas, sai uma questão. E depois outra. E depois uma provocação. E depois um insulto espirituoso. Compreendo um gajo atropelado pela sua emoção. Odeio com paixão aquele que não se importa de cometer uma traição de género para obter uma cona, uma cona molhada por causa da agressão intraespecífica. Se respondem ao que pergunto, são razoáveis, logo, levados momentaneamente pela emoção. Há aquele que é levado pela sua emoção. Age condicionado por uma lógica difusa ditada por emoções, cuja lógica se autojustifica pela emoção. Faz cara de mau para os que na rua lhe miram a mulher de miniminisaia, como se fossem os culpados de querer almejar com a língua o que só civilmente está acessível aos olhos. Sabe que lhe desagrada, e basta-lhe essa razão suficiente. O que é levado pela lógica…bem esse…não se importa de reificar o outro para continuar no transe de adoração pela gaja. Não tem qualquer pudor em partir uma garrafa na cara de outro para tirar partido da violência que o valida perante a companheira. Violenta outro para justificar a continuação da sua falta de carácter. A decisão é prévia. É pensada. Ele sabe que há um efeito que pretende. E que o pode obter assim. Que se lixe o outro. Se não respondem e persistem em anular-me para impressionar a gaja, ficam estatelados no chão e com previsões de 6 meses de fisioterapia futura. Sei bem que qualquer dia sou eu. A ficar estatelado no chão, mas te garanto que não espanco um gajo só para impressionar uma gaja. Este não me parecia um desses, e por isso lhe dei um tempo para se explicar. «-Ela é minha namorada, namoramos há dois meses, e eu gosto dela.» «-Dude, compreendo isso, mas olha que se calhar ela não gosta de ti como gostas dela, disposto a agredir-me, a meteres-te entre ela e o tigre dentes-de-sabre e merdas assim.» «-Parem de falar como se eu não estivesse aqui, eu é que sei de quem gosto.», diz ela com indignação. Uma onda de ódio varre-me e sai através de palavras, «-Cala-te caralho! Enquanto viste dois gajos lutando estiveste calada, agora é que estás com tusa feminista?» O meu olhar tresloucado para ela fez com que nada dissesse. O gajo da lex, também se calou olhando para mim como para primata na Aldeia dos Macacos. Qualquer razão que pudesse ter, esfumara-se por ter perdido a minha calma e compostura. Disse-lhes «-Não pertenço a este quadro, jufas.» Viro costas e mando-me para a rua num mano a mano com a vida. Ela especada, rumina nas escolhas feitas, o cérebro reptiliano em curto ordena contraditoriamente, fica com o advogado que te dá segurança ou persegue o badboy que te dá tusa. Sai porta fora e persegue-me pela rua. «-Catarina mete-te no caralho, porque senão levas tu por tabela. Nem te quero ver.» «-Desculpa João, eu não sabia.» «-Epá mas que raio queres de mim? Porra, larga-me a braguilha.» «-Porque me odeias?» «-Eu não te odeio, apenas não gosto e não confio em ti. «-Mas porquê? Que mal te fiz eu?» «-Tens mau carácter, e não consegues disfarçar.» Uma lágrima corre-lhe pelo olho, mas não de tristeza, de raiva por ter de ouvir e não responder como gostaria, porque a sua vingança era mais importante. Com entrega e paciência de tropa especial, controla-se emocionalmente e diz «-Lamento que penses assim de mim, mas podes fazê-lo, é contigo.» «-E eu preciso de alguma autorização? Estou-me a cagar para a tua autorização.» respondi eu, mesmo agastado. «-Não sei que te fiz para me odiares e quereres ver morta.» «-Eu não te odeio, apenas acho que não tens carácter.» «-Ah, em duas ou três vezes que me viste e já sabes tudo o que sou? Menos de 30 horas comigo e já tens matéria para me subsumir numa meia dúzia de textos no teu blog?» «-Deixa-te de merdas, que moralidade tens tu, logo tu, para me mandar isso à cara, quando tens um blog onde fazes o mesmo, onde descartas um pretendente por uma fantasia, eu, que te rejeitou, sem ligares aos sentimentos do preterido? Logo tu Catarina?» «-É diferente, eu gosto mesmo de ti.» «-Pode ser, mas sabes quantas me disseram o mesmo, apenas para conseguir baixar as minhas defesas emocionais?» «-Já sei, achas que todas as mulheres mentem.» «-Não, o problema é esse, quando o dizem, acreditam no que dizem. Não têm honra senão a de obter o que querem, seja por que meio for. Honra é uma merda masculina. Isso e a pressão de dizer o que se intende e de intender o que se diz. Se um gajo diz que está ali um leão, é bom que esteja ali um leão. Se mente muitas vezes, os outros homens consideram-no inferior e deixam de confiar nele. A mulher afirma que gosta que o homem seja de uma palavra, recto, diga a verdade, mas depois, continentes de cinzento são dela para usufruir.» O meu semblante fez perceber a seus olhos que nenhum ódio se escondia detrás do biombo dos meus olhos. Eu acreditava no que dizia, não era cínico, portanto. Obtuso talvez. Nos dias que correm, um porco chauvinista de certeza. Não havia cinismo no meu achar que não havia cinismo nas carícias psicológicas do belo sexo. «-João, deixa-me compensar-te.» «-Compensar-me de quê, não te levo nada a mal, apenas não quero navegar nas mesmas águas onde te banhas.» - o meu tom literário saiu automaticamente como resposta à expressão dela de querer tanto algo indefinido de mim, mascarando isso com uma vontade mal fingida demais de querer-me a mim. «-Tu odeias-me.» «Pá, cala-te com o dramatismo, não te odeio. Não consegues entender que não te quero sequer por perto? Não te quero mal, apenas não te quero no meu mundo.» Ela ficava quase em choque com este tipo de explicação, sendo alguém extremamente bonito no mundo, e acostumada desde cedo à atenção lisonjeadora dos homens. Não estava claramente habituada a ser rejeitada. Estava habituada a deixar que os homens lhe mudassem o pneu furado do carro. E a saber que apenas o faziam por interesse. E a justificar o seu comportamento, sem preocupação com as consequências do mesmo no outro, com esse ressentimento pêlos tansos que calculando, achavam poder obter a simpatia dela com uma transacção comercial. Se eu for agradável para ela, ela é agradável para mim. Abastardamento lógico que ela detestava. Como todas as outras que anotadas na memória foram, usava a hipérbole para o efeito de desequilíbrio do interlocutor, se ele dizia pinga de água, ela dizia que ele tinha dito oceano, se ele dizia palito intradentário ela dizia sequóia. Para exagerar o fosso da injustiça e ao mesmo tempo vestir a pele da interveniente supra-sensível. Exagerando o que lhe era dito, jogava a carta de puxar a reacção emocional para amenizar a resposta de bom senso ou racionalidade estrita que se seguiria. Como a tentativa anterior de hiperbolização não surtira efeito, Catarina puxa o plano B da manga. Uma lágrima escorre-lhe pelo rosto. Sabendo perfeitamente que a maior parte dos homens não tem defesa contra este truque orquestrado pelo elemento feminino, que todos queremos proteger do tigre-dentes-de-sabre. Eu não tenho qualquer defesa. Assim que vi o brilho do elemento líquido no seu rosto e a expressão implodida de tristeza e desânimo, sabia que ela tinha ganho o quer que seja que queria. Já sabia que se a tentasse confortar iria vender caro o peixe, dizendo deixa-me e não interessa, e não sei quê. Coloquei-me num ângulo obtuso em relação a ela, como que prestes a partir a qualquer reacção que não me agradasse. Perguntei-lhe «-Que queres?» Inspirando o ranho que ameaçava pingar para o chão, responde de seguida «-Quero que vás jantar a minha casa.» A sua entoação carregava as palavras de redenção, de promessa de desanuviamento da tristeza que me fizera ceder, não sem antes manter o indivíduo, ela, em luto pela dor agora experienciada. «-Ok.» respondi e parti dali para fora. Ela tinha o meu número, e a forma pronta como respondeu revelara o que ela queria desde início deste segundo encontro de caminhos. III Três dias depois, um toque com a minha parte preferida da 9ª sinfonia da grande Ludwig, arranca-me de um café cuja cápsula estava presa na máquina respectiva, e que me ocupava uma mão tentando soltar a prisioneira, enquanto que a outra pegava na chávena. Com menos atenção atendi, e percebi logo que devia ter olhado para o visor. Catarina informa que o jantar era no dia seguinte. Disse ok, e enquanto ela falava desliguei-lhe o telefone na cara. O café começou de imediato a saber a queimado. Porque é que cedo sempre que vejo uma mulher chorar… Eu sei porquê. Vi a minha mãe vezes sem conta chorar por causa do meu velho, e sempre me identifiquei com todo o espectro sem esperança da sua tristeza. Um conas como eu, estava toldado com uma sensibilidade que só me granjeara ser repasto para gajas mal formadas. Como chacais leprosos que cheiram a presa decadente e prestes a morrer sem luta, a quilómetros de distância. Isso e o ser traumatizado q.b. trouxe-me a todas as Susanas deste mundo meu, que fizeram dóidói. E sobre as quais, escrevo agora. Curioso, como todas as que me amaram imenso e me fizeram bem, quase nenhum texto provocam nestas paragens. Será que a gaja de qualidade é só aquela que tinha elevado nível de interesse em mim? Acho que sim, mas depois do primeiro desmembramento, meti trancas na porta. Se me rejeitam, é porque cheiram sangue na água da minha personalidade, portanto há que a esconder, e a maior parte das gajas que andaram comigo, fora as minha piadas constantes sobre a minha pila, pouco ou nada sabem de mim, que eu lhes quisesse revelar. Acabaram assim por se fartar de algo anódino, pois são as tensões e defeitos nos indivíduos que os ligam e prendem. E eu, apenas havia colocado a mim mesmo como isco, para obter o sexo validacional. Se não existem humanos melhores que outros, se não é possível sequer comparar pessoas, gajas de qualidade são aquelas com elevado grau de interesse em mim, no que sou, mesmo abaixo do verniz. Fora duas ou três, são espécimes raros, na minha experiência. A maior parte reifica-me com tons de paixão, e eu reifico pela droga, endorfina e distracção, numa relação de codependência que quando acaba, acaba comigo fora da órbita do seu respeito. Pior que não ter personalidade, é não ter personalidade para se ter. Sétimo andar. Levo uma garrafa de vinho barato na mão. Estou cansado e quero ir para casa ler ou afundar-me nos planos escrevinhados que nunca concretizarei, mas que me dão a ilusão de estar activo na vida. A casa não é a mesma, da outra vez. Será que tem duas? Vou mas é despachar esta merda, cumpro a minha palavra e tiro esta viúva alfa da minha vida. Casa diferente, mesmo cenário, as paredes invisíveis por detrás de fileiras de livros. Mais espaço, mais papel. Logo da entrada dava para ouvir que havia mais gente, provavelmente na sala de jantar. Mulheres. Ouvia-se bem a cristalinidade das vozes, a dicção, e a emoção entoada por detrás de cada sílaba. Catarina estava preparada e viu a minha apreensão e achou que me sossegava dizendo, «-São umas amigas.» «-Que merda é esta? Pensava que querias um jantar só nós dois.» Agarra-me no braço e com sorrisos tenta arrastar-me para a sala. Arranco o braço da sua mão, deito o dedo à fechadura e abro a porta para sair. Ela em sobressalto agarra-se a mim e volta a evocar a cara de choro, implorando para que eu permanecesse. Eu estúpido a tentar provar a correcção da ideia que sempre havia tido dela, mau carácter, emocional e manipuladora. Mas o facto é, ela levara a sua avante, afinal, eu estava ali. «-Vês, não vales nada Catarina. Nunca me disseste que era um jantar de amigas, que era com mais gente. Para que raio me meteste nesta situação? Eu bem sabia que a tua intenção não era eu como fim, mas eu como meio para algo.» Mas já agora, pensava eu, que estará por detrás disto tudo? «-Ok, vamos lá ver o que se trata.» disse eu. «Pode ser que alguma delas seja boa e eu possa antagonizar, e levar para a cama.» Quando acabo de dizer isto, a expressão na cara dela não era de ciúme ou algo que se parecesse, mas do mais puro nojo e asfixiamento do quer que seja que ela realmente pensava de mim. Ao entrar na sala, cuja mesa central era oval e em torno dela estavam 5 mulheres. Felismina, Célia, Cristiana, Anabela, e uma matulona de cabelo louro que eu não conhecia. Catarina diz, finalmente aliviada por ter cumprido a sua parte até ali, «-Creio que conheces todas, menos a Petra. A Petra é a dona da casa e é activista feminista.» Ao ouvir, e ao ver as cachopas todas, dirijo-me lentamente para a janela que se situava na parede oposta à da entrada. Um silêncio paira na sala com elas a verem o que ia fazer ou como iria reagir. Demoro uns dois minutos a mirar tudo lá fora, e quando me volto para dentro digo «-Estranho…» Catarina, ainda em pé responde automaticamente, «-O que é que é estranho?» «-Sinto-me na Última Ceia, mas não vejo nenhuma estaca lá fora.» 6 gargalhadas secas e falsas violam o silêncio prévio e emergem como premonições de uma tensão acumulada que afoga o convivialismo anterior, afinal o denominador comum naquele espaço era eu, no meio de 6 apóstolos com vulva. IV Felismina era a única com quem tinha andado, que tinha uma relação com outra pessoa. O marido. Por ela mandei às urtigas a minha moral, afinal, haviam-me feito o mesmo. Se não há honra entre homens, quero que se lixe. Mas no fundo de contas não posso censurar porque fiz igual. Chamava-lhe ‘Felizminha’, nas conversas de almofada depois das almofodas que dávamos numa pensão lisboeta, quando o marido taxista universitário estava de serviço. Cheguei a conhecer a cama de ambos também. Ironicamente, nem era feliz nem era minha, ou alguma vez seria. Não que eu não quisesse. Deslocar humanos no espaço dá dinheiro e ele providenciava-lhe um estilo de vida que ela não via possível em mim. Ou como eu me dizia a mim mesmo, não tenho peso crítico para suscitar mudanças, e essa é a minha resposta. Sentado na mesa pedi a Catarina para me passar o saca-rolhas. «-Tens aqui uma garrafa já aberta.» diz-me ela apontando para uma garrafa de tinto gourmet que ia a meio, pois todas haviam bebericado dela anteriormente. «-Não confio em nenhuma de vocês e, portanto, bebo da garrafa que comprei.» Mais um silêncio, com olhares cúmplices entre elas, de desconforto e desprezo por mim. O facto de nenhuma se ter levantado, indicou-me que havia uma intenção latente nesta reunião extemporânea. De todas, a que me parecia mais hostil e cínica, Petra. O que eu dizia ou fazia, a forma como pousava o copo na mesa coberta de toalha branca, era por ela observado pelo canto do olho, com um misto de ódio e desprezo, por certo alimentados pela conversa prévia sobre mim. Devem lhe ter enchido o ego e me apresentado como o odioso alvo a abater, subsumindo-me sob a etiqueta de tudo aquilo que ela odiaria na patriarquia, com alguma verve, que requeria o seu serviço especial. Também elas numa missão codependente assente num propósito de justiça pollyannica em que todas se sentem bem e com a justiça do seu lado. Estes grupos de amigas, são a bem dizer, onde se decidem as coisas do mundo, um grupo de amigas assim, pode tal e qual como organismo alienígena composto, automaticamente convencer uma delas a largar o gajo que tem, sob o objectivo não assumido de captar mais tempo dessa gaja definida, para o grupo. Ou então, avaliando por baixo o futuro em breve ex, arranjar um mais promissor prospecto e viver através da tipa a que se refere o upgrade, essa paixão ou excitação por proxy. «-O que mais me suscita interesse aqui, nem é o motivo, mas a forma como todas se reuniram. Como se processou, quem falou com quem.» «-Que interessa isso…há outras coisas mais importantes.» diz Catarina. «-Catarina, tão silenciosa antes, agora tens as costas quentes e achas que por teres conseguido o que queres que já podes estar à vontade e revelares quem és na realidade. Mas não. Aqui, falas de mim ou para mim atrás de todas as outras e só à frente de Petra, porque nem tu nem ela me conhecem minimamente.» «-Tinhas razão Catarina.» diz Petra, prosseguindo «-O sujeitinho é mesmo arrogante e autoritário.» Dirigindo-se a mim «-Quem és tu para achares que podes dar ordens na minha casa onde és convidado?» «-Antes de mais, não dei ordens, notei um facto, de que quer tu, quer Catarina, sendo as que menos me conhecem, são as que menos devem falar, uma vez que o assunto aqui sou eu.» «-O assunto não és tu, é a tua forma machista de tratar as mulheres.» interrompe-me ela. «-Peço-te para não me interromperes. Por a casa ser tua não te dá o direito de falares nas tuas condições para mim, se eu não as aceitar. E não as aceito. A casa é tua e o direito a sair neste momento dela, é meu. Se bem que se todas as 5, nos tempos que correm, fossem à esquadra dizer que tinha abusado de todas ao mesmo tempo, era possível terem caso em tribunal.» «-Estás a brincar de forma inaceitável com o tema da violação, isso é simplesmente nojento, mas não me admira por tudo o que me contaram de ti.» Olhei para as outras quatro mulheres, Catarina não contava para mim, e estavam por momentos perdidas a olhar para ela como se ela já estivesse em modo de liberdade criativa na argumentação. Percebi, portanto, que a feminista estava a usar a hipérbole para fazer valer a sua argumentação. «-Como estava a dizer antes de me interromperes de novo, sugiro, se queres que me mantenha aqui, que não interrompas quando falo, que eu farei o mesmo contigo. E sugiro também, caso disso sejas capaz por via de boa formação, de te absteres do uso de qualificação da minha pessoa, por meio de adjectivos, sejam eles quais forem, uma vez que um indivíduo não pode ser subsumido numa palavra, especialmente por ti que me vês pela primeira vez na tua vida, e assumir que por algo que achas que eu digo, eu sou o quer que seja que me adjectives, é pouco rigoroso e até estúpido.» Petra, de brancas e rosáceas carnes ficou ruborizada de raiva, mas revelou a inteligência suficiente de sacrificar o seu sentimento de superioridade moral sobre mim, em prol do grupo de mulheres. Sendo eu a vítima sacrificial, havia que respeitar o direito das outras de me darem pauladas. «-Nós começámos a contactar umas com as outras porque encontrámos os emails de cada uma nos comentários do teu blog. Começámos a falar sobre ti, e alguém em brincadeira propôs um jantar contigo, para te apontar o que és como pessoa, uma vez que és tão bom a colocar os outros na fogueira da tua análise, que devias experimentar o teu próprio remédio.» disse triunfantemente, Catarina. «-Catarina, tenho o blog desde 2006, e este repasto coincide após conhecer-te, portanto já sei quem foi a locomotiva do comboio. O que me espanta a esta luz, é o que estão vocês as quatro aqui a fazer, uma vez que sei de facto não ter um peso na vossa vida suficiente para se deslocarem de vossa casa aqui, só por minha causa, ainda que de forma indirecta.» Ao dizer isto percebi que havia respondido à minha pergunta. Elas não estavam aqui por causa de algum agravo meu, mas sim por causa da tal codependência que já te contei, aquela que um grupo de gajas espreme a partir do bode expiatório, ‘espancado’ para catarse dos males da tribo. V As quatro gajas que estavam ali, eram, portanto, ou as únicas com endereço identificável, de correio electrónico, ou as com menos carácter que já me haviam visto nu. «-Eis de novo, cada uma, a instrumentalizar-me, para benefício próprio, para irem para casa a sentirem-se bem consigo mesmas.» «-Lá está a vitimização de novo, cresce João.» disse Felismina. «-Por onde querem começar, damas, enumerando os meus defeitos?» disse eu. «-Não estamos aqui para isso.» diz Cristiana. Continua «-Isto pareceu bom por email, todas a reclamar por causa do que escreveste tipo queixinhas falhado, mas até nem acho que sejas completamente amargurado. Esta vibe de linchamento não foi o que eu pensei vir aqui fazer.» «-Ok, começo eu, já que me conheço melhor.» disse-lhes, enquanto olhava para uma prateleira de livros e agradecia a oportunidade de falar de mim próprio para 5 mulheres e uma feminista. Já sei que vão seguir-se objecções a puxar para o sentimentalismo, e um auto de fé, que é o que todas aqui estão a fazer, a malhar na oferenda sacrificial. Pois bem, sou culpado, é isso que querem, é isso que vos dou, a total renúncia à minha dignidade, entregando a minha humilhação aos pés da deusa. Só para que ela me descarte, vezes cinco, com o despeito da indiferença. Sou culpado de fugir da minha vida e de a afogar com saias. Rejeito desde já que digam que reifico as mulheres. Quatro de vocês não podem negar que sabem que gostei de vocês. Com excepção talvez da Célia, as outras 3 fizeram parte de um plano de qualquer coisa. Está certo que gostar de alguém não justifica o menos bom que se faça, mas nenhuma de vocês tem alguma moralidade para me censurar, pois fez bem pior do que me possa acusar.» Célia directamente visada, começa a rir-se e pergunta, «-Depois do que fizeste, achas que isso é um pedido de desculpas?» «-Não, mas não acho que vos tenha de pedir desculpas nenhumas. Apenas a mim.» «-E porque dizes isso?» responde Célia com uma cara de indignação, claramente à espera de uma submissão completa da minha parte, por certo por causa das minhas descrições do seu carácter e do seu físico. «-Porque não soube zelar por mim próprio, tendo o melhor comportamento que posso ter. Mas também se o tivesse, estaria imunizado à emoção que cada uma de vós me fez sentir.» «-Tu insultas-me, dizes coisas muito feias das minhas pernas e cara, e achas que não me tens de pedir desculpa, está bem, é uma escolha tua.» «-Célia, porque me fodeste em Janeiro de 2018, com um espírito de missão que identifiquei desde a entrega do crepe no restaurante chinês? Porque gritaste de prazer no teu carro, promessas de tempo futuro passado entre nós e no dia a seguir deixaste de responder às minhas mensagens?» A cara dela de súbito perdeu o ar desafiante e uma perturbação instala-se por detrás do olhar, como se as suas intenções descobertas passassem inadvertidamente a ser propriedade de um outro incómodo. Principiou um longo olhar no vazio, na direcção do soalho flutuante. Com seu cabelo a dar pelos ombros, ondulado como monótonas ondas, e madeixas de loiro sobre castanho, a verruga no nariz, pequena mas visível, as mãos pequenas sobre a mesa, e o pulso com um elástico em torno da glade do antebraço. Era quem eu sabia que ia ficar mais alheada do meu discurso. Mas mantendo sempre boa disposição, como é natural nela. Prossegui. «-Achas mesmo que não sei que as propostas de amor futuro não passam de estratagemas para fidelizar o tipo homem, que no acto amoroso está mais vulnerável transmitindo emoção através da pila ou do prazer, com as defesas em baixo, no ponto oposto da tortura que se faz na guerra, quebrando o espírito do prisioneiro? Achas mesmo que eu não percebo que o engodo era dizeres-me que me queres hoje e os amanhãs seguintes? Achas mesmo que a diferença de comportamento sem lógica aparente não é vista pela lógica que tem, que é não ter lógica e por isso ser um ataque directo à maneira de pensar masculina? Achas mesmo que é só teu achar que o homem é um bicho parvo que pensa com a cabeça de baixo, e que mandares fotos nua só para mostrar a carne não revela a tua intenção? Achas, no que me diz respeito, que eu não sei que por te dar atenção e te tratar com consideração, me desqualificas como peixe anzolado de acordo com a estratégia original que tinhas e tens? Achas que não sei que quando negas e dizes que não entendes como posso dizer isto de ti, que vejo maldade em tudo, estás apenas a tapar o sangue da mão que acabou de esfaquear? Que eu não topava que a tua intenção era comer o gajo que te desqualificara para fins de auto-imagem, para te convenceres ah ele cuspiu no prato, mas agora fui eu que o comi e cuspi fora? Diz-me Célia, que moralidade tens tu para estar aqui?» «-Tenho muita pena que penses assim de mim João.» responde ela com cara de enterro fingida. «-Pena têm as galinhas, e se respondesses de forma diferente é que eu me admirava. Tu não sabes que fontes de informação eu tenho acerca de ti, e das vezes que te apanhei a mentir e nada te disse. Das vezes que vi falsidade nos teus olhos quando me tentavas convencer que me adoravas. Isso não se finge.» «-Tu vês maldade em tudo, nada do que te possa dizer adiantará. Tens essa imagem de mim.» «-Não Célia, não tenho imagem nenhuma, foi a imagem que mostraste. Por ser negativa não deixa de ser tão verdadeira, relativamente, como se fosse uma imagem positiva e que soprasse arco-íris no teu rabo.» «-Vocês não me tinham dito que estávamos perante um sociopata, enredado em teorias de conspiração e cálculos estratégicos.» disse jocosamente Petra, mortinha para me provocar uma resposta emocional que me desqualificasse e fizesse perder qualquer razão e compostura que eu tivesse. «-Sociopata nada Petra. Já te pedi para deixares as adjectivações de lado. Se nada tens a acrescentar à conversa senão com argumentação ad homine, faz um favor aos outros e cala-te.» «-Epá mas quem és tu para me mandares calar, machista de merda! Onde já se viu isto, estás muito enganado se achas que vens a minha casa e insultas as pessoas.» diz a bela eslava de lábios pintados de vermelho com o rosto congestionado por causa da minha chamada de atenção. «-Minhas senhoras, vou-me retirar, uma vez que não interrompendo ninguém, me vejo interrompido e insultado após duas vezes ter pedido para que não o fizessem.» digo eu arrastando a cadeira para trás e sendo agarrado no pulso por Catarina. «-Não, peço-te que fiques.» diz ela olhando para Petra com um olhar que pretendia forçar colaboração «-Petra não voltas a fazer isso, e ela também não fez por mal, são temas que têm muito significado para ela, é activista e feminista, tens de entender.» Adio a partida. «-Por serem assuntos que lhe interessam, é que devia zelar mais para a manutenção de um diálogo salutar.» disse eu. Prossegui «-Não é por serem assuntos de interesse que se justificam reacções emocionais ou qualificações do interlocutor. Nos relatos de simpósios patriarcais, de Platão a Kierkegaard, nenhum homem se atropela a falar, sendo ponto importante que cada um fale e exponha razões.» «-É isso que queres no fundo, arrastar a discussão para uma racionalidade onde os homens lógicos, podem dominar a linguagem e a temática.» diz Petra ainda congestionada no rosto e a custo embargando a voz para não gritar. «-Que eu saiba ambos os sexos possuem razão e razoabilidade, digo eu. Que eu saiba, linguagem é o território feminino por excelência, especialmente na articulação de contextos e subtextos. Que eu saiba só um tratamento desligado dos assuntos permite o afastamento que os pode resolver. Nada se ganha na discussão que nos arranca de nós próprios.» Petra calara-se e olhava para a janela para não ter de olhar para mim. Ignorei-a e prossegui. «-Por exemplo, quantas vezes nas sms trocadas contigo Célia, não observava eu os teus fluxos e refluxos de interesse? A tua manipulação emocional das frases lacónicas. Quando não te dava a atenção validatória que querias, ameaçavas com ruptura. ‘Ai é assim, ok.’ – Dizias tu, esperando que eu corresse atrás. Como não o fazia e te desejava felicidades futuras, invertias sem pudor o bluff. ‘-Ai viras assim o texto.’ -como que me perguntando se era este o significado emocional que te dava com o qual te descartava se sugerias o fim da interacção. Depois mandavas à cara tudo o que tinhas feito, como ir ter comigo, iniciar todas as interacções ‘Se não me meto contigo, não te metes comigo.’ – ou seja cobrando até ao ponto em que seria eu a perseguir a dar validação. O que quer aquele que cobra? Obter o investimento emocional que colocou ou quer obter do outro. O que significa que está numa posição neutra, racional e relativamente desligada, de tal forma que está focado no resultado, na estética do mesmo. Por isso Célia, quando me querias convencer que gostavas mesmo mesmo de mim, era notório que o que perseguias era uma reacção minha, alheia a esse conhecimento. Pretendias convencer, e não que eu soubesse. Mas isto só ocorria se eu antes te tivesse passado algum tom de sujeição, de atenção pronta e disponível, de prisão pela possibilidade de dares vulva. Porque se pétreo e inalterável desde o primeiro instante, curto e grosso como se costuma dizer, sem apego ao resultado ou à vulva, nunca me cobrarias o quer que fosse. E é esse tipo de postura, o único que respeitas, embora eu saiba que o negas liminarmente.» «-João, nem sei que te diga, isso é uma boa teoria, nem sei onde. Mas mesmo que fosse verdade, os homens fazem igual.» diz Célia olhando o tecto perdida na elaboração do argumento e coçando o seio esquerdo, ao mesmo tempo que roda o cálice de vinho pela base, brincando com a base e a rugosidade da toalha branca. «-Estás a desvalorizar adjectivando de ‘teoria’. Alguns homens fazem igual sim. Nunca me ouviste ou ouvirás dizer que os homens são melhores que as mulheres. A diferença nessa utilização da emoção de forma a obter um resultado que queremos, é que por ser a selectora sexual, a mulher tem sempre uma mentalidade de abundância. Há sempre um macaco a oferecer cópula, seja ela feia, marreca ou desdentada. A pressão é sempre maior para 80% dos gajos que caem nesta manipulação. Seja porque acreditam na escassez de fêmeas, seja porque acreditam na sua falta de valor intrínseco para serem por elas apreciados. Ora se a natureza hipergâmica da fêmea determina que ela escolha sempre o macho com mais recursos e posição na tribo – o que vai dar ao mesmo - pode colocar-se a hipótese de estudo de que 80% dos homens ficam fora da pool genética. Sobre este ponto de vista, o amor romântico -invenção masculina de guerreiros - conforme nos é passado desde a Idade Média é a maior falácia literária da História. Mas, e como tenho escrito, mesmo assim, o macho humano ama de forma idealista, de modo bem menos oportunista e pragmático que a fêmea humana…num engodo evolucionista que desde sempre criou a tendência para o macho humano se colocar entre a fêmea/cria e o predador que as ameaçava. Assim é o amor, um mecanismo biológico de protecção da parceira (fragilizada na gestação e no pós parto) que nos tempos que correm é usado contra nós, mesmo limpando a quase totalidade de nós da passagem de testemunho genético à próxima geração. No fundo vivemos na era dos cornos, rastejando pelo chão por afecto feminino, pedinchando imortalidade.» De novo o silêncio pairou sobre a mesa como se um anjo passando levasse as palavras com ele. Célia, achando-se mais à vontade por causa da intervenção anterior, diz «-João, não entendes nada. Nós as mulheres somos mais sensíveis e sabemos lá disso que estás a falar. A gente não escolhe de quem gosta. Esse é o teu maior erro de análise.» «-Célia, logo de ti…mas ainda bem que foste tu. Já ouviste falar do hamster da racionalização?» perguntei eu. «-Hã…não…» «- A diferença entre racionalização e escolha racional, é o tempo. A ponderação racional precede a escolha. A racionalização é o discurso racional que sucede a escolha tomada de outra forma que não com recurso à racionalidade. Não é exclusivo de todo, das mulheres, mas nelas o mecanismo actua constantemente. Conheço bastantes tipos que querem o carro x ou y, e com vergonha do desejo, arranjam desculpas para justificar a escolha por comprar o carro ou trocar o que já têm pelo novo objecto de desejo. A maior parte das mulheres que conheço, racionaliza as suas escolhas como se não houvesse amanhã. As únicas vezes em que se pode apreciar alguma sinceridade no sentido em que os homens usam sinceridade, é quando não querem um gajo que as corteja, e dizem-no sem rodeios. Por causa da sua auto-imagem e não propriamente por causa dos sentimentos do outro. Portanto ao que chamas ‘amor’ eu chamo desculpa, ou melhor, racionalização. Não digo que mintas, ou que as pessoas fêmeas mintam. Estamos é a falar de coisas diferentes. Quando andaste com o miúdo de 26 anos, lembras-te do motivo da ruptura, que me contaste?» Incomodada, Célia, franzindo o sobreolho e assumindo um tom mais sombrio decorrente do conhecimento de mais variáveis que as que partilhou comigo, responde «-Lembro.» «-Pois eu lembro-me dos pormenores linguísticos e expressivos, pois sabia que não me ias contar tudo. Enquanto focaste a narrativa na lixiviação da imagem do tipo, eu tentei perceber porque o fazias, e percebi que o fizeste porque tinhas de justificar a tua escolha. A tua escolha por um gajo com metade da tua idade e com curiosidade para conhecer uma mulher mais velha – eu também passei por isso na idade dele – trazia esse resultado inexoravelmente. Preferiste viver a fantasia paliativa para o teu ego, que aceitar o mais que provável desfecho que a tua razão poderia antecipar. Por isso efabulaste a tensão nele que lhe observaste, e todo o floreado temático da diferença de personalidades, etc. No fundo ele comeu-te, deitou-te fora e teve de beber para comunicar a ruptura contigo, a coragem líquida, porque sabia no fundo que te tinha usado por curiosidade e alguma tesão, mas que eras provavelmente um indivíduo além disso e que poderias ficar magoada. O teu hamster protegeu-te.» Olhei para Anabela, «-Tal como o teu. Preferiste embelezar a coisa elaborando a racionalização de um pathos, do ai só conheço homens que não sabem o que querem. Pelo contrário, ele sabia exactamente o que queria, viu uma aberta e jogou as cartas dele. Comeu-te e descartou-te e passou em frente, obliterando esse amor escrito no céu.» Quer Célia quer Anabela começaram a falar uma por cima da outra negando o que eu tinha dito. Que não, que eu não sabia da história toda e estava a fazer o filme errado. Que as coisas são mais complexas e ambas quase como se tivessem ensaiado antes, colocaram semblantes fatalistas para dar solenidade à simplicidade do que eu dissera. «-Por favor, eu posso estar rotundamente enganado, mas sinceramente, não me interessa. Racionalizem o que quiserem. Isso não me diz respeito. O que eu sei é que é mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha, que um homem de 20 ou 30 anos se contentar com uma mulher de 40. Bem sei que gostam de pensar que o amor liga indivíduos e os corpos ou a beleza física é secundária, mas não é a minha opinião. Embora como eu diga, na minha fase de vida, os pormenores significarem menos, é ainda um corpo belo e são que me atrai. Tive aos 20 e 30 mulheres de 40 e 50 e nunca me liguei a elas, como que se de uma voz interior que mo impedisse. A natureza é madrasta para a mulher. A mulher sabe que aos quarenta anos não tem a mesma ascendência sobre os homens que tinha a sua versão dez anos anterior. É observável até no olhar, como que se retirassem os caninos a um predador, e agora já só conseguisse caçar com os molares.» Anabela mexia-se incomodada na cadeira, lançando a mão ao vinho que tragaria a secura do palato. «-Durante anos vi as minhas diversas mulheres, antes de se deitarem ou de ir para a cama a passar cremes na pele, nas pernas, despendendo esforço e cuidado, atenção, num acto que erradamente eu interpretava que fosse para me agradar. Nada disso. Tal como ave que alisa as penas para maximizar a capacidade de voar, todos os momentos hidratando a pele, eram investimentos para os futuros candidatos, maximizando a sua – no fundo – única arma, o aspecto. Sem livros ou teorias complicadas, pura intuição e instinto. Da mesma forma que tu, Célia, sem que to pedisse, me mandavas fotos nua ou em pose. Porque sabias não sabendo que sabias, que era uma forma de me prender ou fidelizar a ti.» VI Fazia anos que não falava com Cristiana. Relembrei a sua doce voz quando falou, num silêncio que aproveitou. Relembrei com carinho os caracolinhos loiros que tanta vez afaguei enquanto dormia. «-Retiras toda a magia e mística ao relacionamento entre duas pessoas e reduzes tudo a psicologia evolutiva. Que ganhas com isso? Porque o fazes.» «-De todas as que aqui estão, és a única que me espanta estar aqui. Tens duas filhas, estás casada, que interesse será o teu aqui, pergunto-me. Podes ir por esse caminho e dizer que o meu discurso é o discurso do falhado amoroso que ganhou pó às mulheres, subsumindo tudo o que escrevo, nessa forma fácil de catalogar. Mas respondo, porque preciso de entender. Só isso. E percebendo, deixar de odiar o jogador para passar a odiar o jogo, porque acredita é odioso. Para mim, como para ti. Tu por exemplo, achavas que o sexo era algo de nojento, enquanto não foste comida e cuspida por um treinador do Holmes Place, não descansaste. E hoje sei porquê. Porque naquela idade querias o gajo musculado da festa da espuma. Andaste uns anos aos caídos e ao baterem as 30 badaladas, procuraste o provider, aquele que teria recursos para te manter a ti e a prole. Sob o nome de ‘amor’ fizeste uma transacção comercial a que te convences todos os dias com racionalização, haver algo do teu marido que te atrai todos os dias. Se ele ficar sem emprego, ou receberes a atenção de um tipo mais atraente fisicamente e com mais meios, não sei, conhecendo-te se o actual não estará em perigo. Isto nada diz de tua personalidade, mas de forças telúricas em ti. Precisamente pelo meu esforço de compreensão posso evitar dizer que todas as mulheres são umas putas. A maior parte dos gajos que eu conheço, que lamentam abertamente o jogo, dizem-no. E boa parte deles é bem-sucedido. Não o digo porque é mentira. A verdade é que como dizia Aristóteles, o destino da mulher é o seu corpo. Tu, Cristiana, sempre que falamos no Messenger ou me ligas, só sabes queixar-te da vida de casada, do que tiveste de abdicar e do martírio que é criar duas crianças. Mas não entras com um tostão em casa, vives às contas do tipo, e bem me lembro das conversas nos jantares contigo e com a tua mãe, como falavam dos homens que não pagavam as contas, uns madraços. E eis tu aqui, que vendeste ou alugaste o teu útero. O gajo faz o papel dele, afinal lá acrescentou mais duas unidades à conta pessoal de propagadores do seu código genético.» «-Epá, desculpem lá mas não estou para ouvir mais este gajo fazer-se de coitadinho e insultar as mulheres, desculpem mas não contem comigo para esta merda. Antes de mais somos iguais, o género é uma construção social. Tens uma personalidade desinteressante. É uma forma mais simples de perceber porque te abandonam. Lida com isso, filho, já tens idade.» - diz a de novo ruborizada Petra. «-Petra, pela primeira vez disseste algo com algum nexo. Bem sei que vais dizer que esses lábios escarlates são algo que pintas porque te gostas de ver assim. E se eu te disser que a vermelhidão dos lábios tem uma conotação sexual nos primatas pois avisa os períodos de ovulação, aos observadores policromáticos? E que como a mulher humana caminha num eixo vertical, perdendo a possibilidade de comunicar disponibilidade erótica, por causa do que acontece à vagina que se esconde pelo facto de andar erecta, comunica sexualmente o seu poder com a vermelhidão dos lábios visíveis? E que o orgasmo feminino, potenciado pelo único órgão exclusivamente orientado para o prazer, o clitóris, é um decalque natural do masculino para dissociar sexo da reprodução e assim potenciar a ligação entre parceiros, pela já conhecida libertação de oxitocina, condicionando um a associar o outro ao prazer? Que a mala de ombro que trazes ou os saltos altos são adaptações de invenções masculinas, à medida do segundo e terceiro sexo implícito em Simone de Beauvoir? O sexo é tão construído socialmente como a idade. Podes dizer que tens 6 anos, mas no fundo não tens. Porquê essa necessidade de fazer tábua rasa, do dimorfismo sexual humano? Não consegues conviver com a diferença? Sim, tenho uma personalidade desinteressante. Que tem isso que ver com noções de moralidade? De manipulação para fins meramente de validação? Achas mesmo que é a rejeição que me move aqui? Nenhuma, com excepção de Felismina, das que estão nesta mesa, me suscitaria qualquer intenção de passar tempo ou retornar ao que já foi.» Felismina riu-se. «-Como se eu quisesse alguma coisa contigo.» disse. Além da omnipresente utilização de maquilhagem escura, vermelho escuro nos lábios, preto no resto do rosto alvo, era a que de todas mais sex appeal tinha, uma daquelas pessoas que é apreendida à distância como ser sexual. E não era a mais bem feita, naquele grupo. De todo. «-Eu não disse que querias, disse que eu queria. Continuas a ter problemas em perceber que a acção do outro é incondicionável pela tua aprovação. Tu és um caso muito interessante. Conheci o teu marido antes de ti, ele era taxista e andava na Autónoma a estudar Ciência Política. Uma vez no táxi, meteu conversa comigo e estivemos até às 3 da manhã a falar em poder imanado e poder emanado. Eras uma das tipas mais sofisticadas da Faculdade de Letras, e sempre te achei interessante. Envolvemo-nos demasiado brevemente um com o outro, e sais de cena por achares que arranjavas melhor. Tipos mais sofisticados, mais excitantes, a espuma dos dias que sentias merecer serem teus. Talvez a Petra tenha razão e eu seja demasiado complacente mesmo. Valorizavas quem conhecia o território nocturno e te conseguia arrastar para novos picos de liberdade. A sofisticação na metrópole como forma de acasalamento com os machos mais eminentes na tribo alargada. Lixiviação de um passado na província através de sexualidade quase irrestrita e sem peso ontológico, assistencialismo de várias situações de miséria humana, comparadas com trechos de literatura para te dar a sensação de unicidade à tua existência. Mesmo que tenhas racionalizado depois, o facto foi este, sempre o mesmo, achar que se arranja melhor. E é isso que me interessa, os critérios. É por isso que dou conversa, para perceber como pensam. Aos 36 achaste que se calhar era melhor sair do casino, do carrossel de pila que ia decaindo em qualidade, passados os anos de glória juvenil. Nada melhor que racionalizar um provider de serviços mínimos de sofisticação que valorizas. Encontrámo-nos na Graça, viste-me entrar para o táxi, onde estaria o teu futuro marido, que começou a cortejar-te logo ali, sem me perguntar qual o vínculo da nossa relação. Se o tivesse feito, eu teria dito, estás à vontade, o respeito dela por mim é tão reduzido, que quando caga para a minha existência, racionaliza uma história bonita para ocultar o facto de ser uma cabra fria, traumatizada e calculista. Para fugir dessa ideia de si mesma, mergulha em cruzadas de justiça social para se sentir moralmente superior ao que realmente é. Mas na altura nada disse, porque apenas estava contente por te ver. E achei providencial teres entrado no mesmo táxi que eu.» Felismina olhou para a sua mão em cima da mesa, lembrando o relatado, esquecendo o que guardava em si acerca do que eu dizia. «-Já eu sabia que eras casada com ele, quando me ligas a dizer que me querias ver numa pastelaria da Baixa, onde trabalhavas. Acedi. Fazia o que fosse preciso para estar contigo. Que não eras feliz no teu casamento. Lembro-me de ter pensado que como humanos não fugimos todos, muito, da árvore comum. As escapadas fora do penico têm um arquétipo, a minha mulher/ marido não me entende, aprecia, o que seja. Revelando insatisfação, abre um plausível de significado justificativo. Começámos a trocar sms regularmente e percebi que a frequência com que me davas atenção, se encaixava quase perfeitamente com o teor, mais ou menos meigo das tuas mensagens, tornando claro que a tua atenção para comigo variava de acordo com o grau de satisfação na relação com o teu marido. Percebi também que a tua atenção variava de acordo com os períodos mortos do teu dia, o que prenunciava eu ser uma distracção para ti. Do conforto da relação garantida, ora me chamavas para matar o tédio, ora para vingar as ofensas na tua vivência com o teu marido. Não muito diferente de Vera que espreitava o telemóvel com a foto do namorado. Não tomes isto como censura. E se algum amargo de boca, é porque gostava mesmo de ti. Por isso o contraste com a tua suposta esperteza comigo. A tentativa de descolhoamento, os períodos de quente ou frio, os ataques de vergonha tóxica, eram-te tão naturais que obviamente te saíam além do limiar consciente. Quanto mais eu exprimia que queria estar contigo, e insistia para tal, mais distante te tornavas, certamente por eu perder o carácter de desafio, e numa balança injusta, o teu marido parecer mais merecedor de consideração, afinal, a primeira opção seria sempre ele, se e só se, dançasse a coreografia que te agradava, para logo de seguida lhe perderes o respeito por não se saber impor e recusar a dança. Tinhas uma casa psicológica interessante, fazias do defeito virtude e traço de carácter. Ao temperamentalismo da tua visão sobre ti, achavas que uma reacção mal-educada era uma definição de personalidade, como se os que têm alguma elevação, não tivessem personalidade. Nos acessos de irritação tão fáceis que pareciam instrumentais, de achaques temperamentais, usavas tudo o que tinhas à mão para ferir o outro, ou para o calar, sem qualquer preocupação com as consequências. A única consequência que te preocupava era que aquele que pagava contas, pudesse chegar a casa connosco na tua cama, ou apanhar-nos numa rua qualquer de Lisboa. Não por causa da dor que lhe causasse, per se, mas por causa dos inconvenientes logísticos para ti e para a tua existência. Tal como te estavas bem a borrifar para a consequência do que dizias nos tais acessos de temperamentalidade, a mim. Como se ia notando num dia que se passasse contigo, eras muito solicitada, mesmo casada, por recolectores de oportunidades sexuais. Não tive coragem de te dizer, não por ti mas por mim, que queria mesmo comer-te durante os amanhãs futuros. E isso só me rebaixou mais a meus olhos. A tua falta de escrúpulos nas ‘discussões’ e que racionalizavas como ‘temperamento’ eram meras tentativas para me tirar do sério e revelar o pior de mim de forma a que te sentisses melhor contigo própria, superior a mim moralmente. Fazias o mesmo ao teu marido, que por certo te colocava mais oferendas aos pés que eu, também e afinal eu era um mero asteróide de passagem e ele um satélite em torno do teu mundo. Não és má. Nem sei se isso se pode dizer de alguém. Mas dentro de ti um buraco negro de dor, angústia, desilusão e desalento não resolvidos com algo, faziam-te ser cruel, ter a necessidade de magoar outros porque a tua própria vida te era dolorosa. Lembro que ao início, a crueldade, a pontaria que tinhas para ir directamente ao meu ego para o tentares rebentar como balão cheio, era recebida com total espanto. Seria teste? Não, testes cruéis, innuendos, boquinhas parvas e sujas e aparentemente inócuas, não são testes. São o desprezo por alguém que nos dando atenção e que nós não respeitando, vamos usar como saco de pancada para a frustração da nossa vida. E eu permanecendo, só porque gostava de ti, passava-te a imagem que talvez eu gostasse e permitisse ser maltratado. Curioso quando não deixava que dissesses ou fizesses o que querias, dizias-me o mesmo, que não estavas para ser maltratada. As sempre veladas ameaças de dares ou não dares atenção ou acesso à vagina, a projecção para um ponto indeterminado no futuro da possibilidade de alguma vez seres só minha ou eu só teu. Quando te lembrava, na vossa cama, e ele no serviço da noite, que isto teria de se resolver de acordo com as tuas palavras, fingias um colapso nervoso, de pressão emocional, para no fim-de-semana a seguir prosseguires a vida social de mão dada na dele. Sob a capa de cogitação prolongada, coleccionavas troféus manipulatórios, com cada suposto afastamento a servir para no retorno, exercitares a tua verve de conseguir captar de novo a minha atenção para a tua órbita. Eu sabia disso e imaginava em minha casa, rindo-me por vezes, do teu ar de satisfação quando após alguma luta fingida eu me dava por vencido e acabava por dizer que gostava de ti – que nunca deixou de acontecer - a tua satisfação em dares nós unindo linhas aparentemente partidas, para poderes continuar a costurar uma peça de roupa que cada vez tinha menos corpo onde assentar. E como nada tinhas a perder se me perdesses, a não ser um pálido plano B, o fato do nosso casamento era feito de pedaços têxteis reaproveitados do lixo. Sorria com os teus picos de atenção, a que sempre se sucediam picos de desprezo, e a justificação do desprezo com supostas crises interiores referentes a nós, mas nunca reflectidas numa realidade concreta. Cheguei a acertar relógios com estes teus fluxos e refluxos. A falta de congruência que eu via nisto, era ainda assim, por te ver com demasiada estima. A falta de originalidade da nossa ópera, tão pouco original que eu suponha poder ser instrumental. Fazer como o adúltero que promete à amante que um dia abandonará a mulher, pede a fé num ponto adiado ad aeternum numa linha de futuro possível, ao alcance da ampulheta. Esta é clássica. E durante a nossa vida perguntamos, como pode alguém comer isto durante anos, aceitando ser o sidekick da/na vida de outros. A contínua utilização da emoção para me calar…Felismina temos de ficar juntos, epá cala-te não estou para ser pressionada assim. Já estou à beira do colapso. Sabendo eu o lugar que ocupava, sabia também que se concordasse com a minha remissão, aceitava as regras perdendo-me a mim. Para que tu justificasses na tua cabeça a ideia latente que sempre tiveste de mim, embora com lugar à dúvida. Se não o fizesse era arredado do teu mundo, sujeito a períodos de embriaguez ou ressabiamento com outros, para ter migalhas da tua atenção. Sempre deixei que as lentes do meu amor por ti te dessem o benefício da dúvida, embora as observações não o permitissem, um pouco como um búfalo budista sendo devorado por um grupo de leões, e tu eras a leoa por quem eu estava apaixonado, e eu via-te, ao mesmo tempo chocado com a minha carne, que ingerias sem consideração pela dor provocada, e embevecido pela beleza dos teus lábios ensanguentados e finesse a engolir a refeição. Portanto, Felismina, acho curioso também estares aqui neste banquete sacrificial. Podes racionalizar com cenas de filmes ou operetas obscuras, mas no fundo em nada podes negar que o escrito não reflecte algum ponto de contacto contigo.» Estranhamente ao que eu esperava, Felismina nada disse. Petra por sua vez não perdeu a hipótese de violar novamente o silêncio. Mesmo que respondesse, a resposta de Felismina era previsível também, que eu não entendia, como era possível eu achar x de y, quem eu penso que ela seja, e toda a restante galáxia de afirmações emocionais para desviar a atenção das acções concretas. Tinta de choco, nada mais. «-João, isso são lucubrações loucas da tua cabeça, vês maldade em tudo. Mesmo que quisessem não conseguiam planear o que dizes. Ao dizeres isso provas que tens má índole e por isso se entende que odeies o feminismo.» «-Petra, o mundo age em segredo sem o consciente do indivíduo ter algo a dizer. Controlamos tanto isto como o ritmo cardíaco. No que escrevo, escrevo para me entender e entender os outros. Isto é uma tentativa estúpida minha de revelar o esqueleto por detrás da mão. Mas é para mim. Vocês são convidadas na minha realidade. O meu lamento não é por terem perdido a bênção da minha companhia. No fundo é-me indiferente. O meu lamento decorre da minha fresta na armadura, a capacidade de amar. Se isso for codependência, dói para caraças, digo-te já. Eu não odeio ideias, por isso não odeio o feminismo. O que detesto é o aproveitamento de queixinhas. Se eu não posso queixar-me das mulheres que saindo da minha vida me magoaram por eu gostar delas, colocando nelas o ónus da minha dor, por que raio devem poder as mulheres culpar os homens pelas suas próprias dores? Se feminismo é igualdade, isto é desigual. Como costumo dizer, Petra, continuarias a ser feminista, se tendo um filho, este te chegasse a casa a chorar com um coração partido, por causa de uma imbecil qualquer que lhe brincou com os sentimentos só para captar validação e atenção para si mesma? Só porque nos primeiros 25 anos de vida tem esse poder sobre os homens que são escravos da sua própria líbido? Continuarias a ser feminista vendo as lágrimas do desmembramento nos olhos do teu filho?» Petra não respondeu. VII «-Por fim tu, doce Anabela.» «-Tenho pena de ti.» disse Petra. «-Pena. Não vejo de que possas ter pena. Não me vejo vítima do quer que seja. É o mundo, são as regras. De nada adianta chorar, berrar, fazer birras. O planeta gira em torno do seu eixo e n pessoas morrem e com elas outros mundos desaparecem.» as palavras ditas por mim com um intento dramático, para evidenciar um contraste entre uma evidência racional e uma evidência subjectiva, a saber, de que como indivíduo sou apenas mais um na mole de indivíduos no 3º grão de areia em torno do astro ardente, e na minha incapacidade total em aceitar essa mesma evidência.» Petra, como que se as palavras saídas da minha boca seca de tanto falar, fizessem ricochete afastadas pela ideia que acabara de concluir, continuou a frase anterior. «-Não é isso. É que como homem, não deve ser fácil carregares tanto ódio, tanto tempo dentro de ti. A braços com uma suposta ideia que subsume uma mole de indivíduos em algumas linhas de fundo, constantemente a sofrer e a lembrar, ou como dizes, a tentar entender, um jogo que ou não sabes jogar, ou não foste talhado para jogar. Preso a mulheres no passado, que seguiram com as suas vidas e que ocasionalmente, sem respeito algum por ti, ocasionalmente usando-te para validação ou em vinganças contra outros, ou para furar o tédio. Não consigo odiar-te nem ver-te como inimigo. Quanto muito, como um desgraçadito.» «-Foda-se Petra. Andaste a ler o meu blog.» «-Todos os 80 e tal textos.» Normalmente quando alguém tem muito interesse em mim, ou quer que eu ache que tem muito interesse em mim, diz-me que lê os meus textos. Petra não me parecia alguém que se deixasse levar pelas larachas que escrevo, e muito menos alguém interessado por mim, a leitura portanto só poderia ter a ver com reconhecimento do inimigo. Afastei a cadeira da mesa, dobrei-me sobre o meu estômago e deixei a cabeça a remar livre em torno do que ela dissera. É o afã de escrever ou entender, fruto de algum ressabiamento? De algum ódio por rejeição ou me terem tirado a dose? Será que bastante tempo e visão do mundo na minha vida, eram fruto do ressentimento? De uma experiência pessoal negativa, ou percebida como negativa, que inquina tudo o resto, como peça de roupa escura que debota no meio da branca lavada no mesmo alguidar, tingindo tudo em redor? Continuaria a ser a mesma criança, que não chorava da dor e até a aguentava estoicamente, mas que estava constantemente a reclamar das regras, ou melhor, do não cumprir das regras? A reclamar com quem antes do tiro de partida já tinha arrancado, com o intuito claro e óbvio de ganhar, deixando os papalvos, eu incluído, presos às suas correntes pesadas com princípios éticos? Que raio, de facto, em mim – me motiva a escrever? Expôr os wicked ways? Para quê, para quem? Para alguma cachopa ler e achar que por ser tão esperto mereço a oferenda da cueca? «-Não Petra, estás enganada. Gosto muito de mulheres. Não gosto é da minha fraqueza que elas sempre me espantam por revelar. Quantas mais mulheres conheço, mais formas de morrer conheço, e só perco o jogo se me tornar incapaz de amar. Um pouco como curar a gangrena cortando o membro. Gosto muito de mulheres. Do que me fazem fazer e do que me fazem sentir. Gosto de tudo nelas, em particular os jogos que consciente ou inconscientemente, jogam. Gosto de ver como se vestem, falam, mexem. Gosto de ver como são na intimidade, como arrumam o quarto, a sua roupa, como pagam o bilhete de cinema, como olham o meu braço entre as suas pernas agarrando uma coxa com a mão entre ambas. Gosto de ver como revelam a vida que as anima em todas as dimensões excepto na tristeza consigo próprias. Estás enganada. O amargo não é com elas. É com o custo que tem para mim.» «-Não te é mais fácil admitir que as usas como objectos?» «-Petra, tens algum blog em honra do teu vibrador?» Vejo morte a toda a minha volta.
Um gato ruivo levando no meio dos dentes uma pomba, salta para trás de um muro para em paz retirar a vida a outro ser. Entro na Nacional 10 e vejo ao longo do caminho para onde quer que vá, os restos mortais de não sei quantos animais obliterados pelo destino indo cada um à sua vida, neste caso à sua morte. Olho para o que calço, para os casacos de cabedal que visto, morte. Morte morte morte. E todos fingimos como se não soubéssemos. O verdadeiro acto de rebelião humana é a loucura. É como que um recibo de leitura de uma mensagem qualquer que o Cosmos envia ao indivíduo. Um visto na mente do sujeito que digere a mensagem. Não é possível ver, e de certo ponto de vista não enlouquecer, ou desatar a chorar como fatalista sentimentalista. As vezes que acariciei com a minha pele sensível o chicote da auto-flagelação, por achar que usava as mulheres para fugir das minhas tarefas ou da futilidade da existência. Quanta sabedoria fatal, intempestiva, há no fugir dos horrores de se estar vivo, e entretermo-nos com o que por via do instinto facilmente nos arrasta para dramas mais caseiros e de certa forma suportáveis? Que parte de mim me retira desta amarga realidade, amenizada por tons de esquecimento para que seja possível viver nela? A artificialidade é uma opção de um qualquer eu maior que eu próprio, em mim? Um eu que me observa guia e se diverte com a carrada de más decisões e paixões de alma que ciclicamente me visitam? As riscas de branco esgueiravam-se por debaixo do meu automóvel azul. Ia ter a Peniche ter com Beatriz. O interesse em fodê-la era quase nulo. Mas o ex namorado que a abandonara por rabo mais novo, achava que tinha direitos feudais sob tal território. Eu sei o que é a canalhice do abandono per se por causa de causas irrisórias sob um ponto de vista geral da vida. Porque o gajo é um calão, apesar de escrever 50 ou 60 páginas de texto por dia, mas ah…não traz o bacon para casa. O gajo não vai a lado nenhum, embora ela esteja enterrada na mesma função genérica de secretária técnica numa merda de empresa qualquer. É a profissão mais um lugar onde se esconde da vida, da exigência de descobrir o que a arrebata e por isso deixar-se matar. O gajo é um inadequado social, que não leva roupa nova para casamentos e baptizados, que não vê a necessidade de manter conversas que não passam de catadelas sociais, como os primatas que se catando, mordiscam carrapatos inexistentes só para provar ao catado a sua utilidade social. Então um gajo olha as estrelas e pensa nas variáveis e no que significa estar vivo, e esse é que é o inadequado? Ah, mas trata primeiro do corpo e depois o espírito se segue. Mas o trabalho mata-te o espírito diz ele. Há qualquer coisa de ti que morre no trabalho, especialmente quando é esse mesmo trabalho que te dá a comida. Nem todos podem ser poetas ou soldadores. Mas há qualquer coisa de nobre quando vens cá fora à noite, fumar o teu cigarro, e pensas sobre que raio tudo isto significa, mesmo que estejas preso num compromisso ontológico que não te permite muita manobra. Beatriz queria a minha pila redentora dentro dela, para redimir a rejeição, para vingar-se em parte, pois Miguel, não a larga, procurando acentuar o contraste entre vulvas de forma a sentir-se vivo e másculo. Dava a desculpa a ela de que tantos anos não são fáceis de apagar. E não são. Mas o que ele queria era variar, sorver dois corpos diferentes para não se embotar a novidade que se embota sempre que o sexo é rotineiro e garantido. Ela alimentava a ideia de que havia algo que podia ainda fazer para reverter o abandono, mostrar-se casta leal e compreensiva, na esperança de que o sacrifício moral pesasse mais na balança que um corpo com metade da idade do seu, pelo qual havia sido trocada. Eu seria um paliativo, uma distracção uma promessa de carro que ocuparia o lugar vago na garagem, sem qualquer modificação ou adaptação da casa. «-Tenho muitos amigos, João, se quiser tenho 20 ou 30, já.» Portanto a doação da sua vulva a mim, só poderia ser uma bênção, do meu ponto de vista, argumentava ela. As suas manipulações serôdias fizeram-me lembrar Célia. Daqui a uns 2 ou 3 anos, prevejo uma transmutação na ingenuidade saloia desta matrona. Nesse tempo vai aprender a tirar mais partido dos últimos cartuchos que o seu corpo ainda lhe permite. Então, o que agora parece cockluxe o escritor de jeans rasgados e discurso excêntrico, terá sido desqualificado ao ponto de desaparecer do radar da sua possível trupe de fornicação. Dando-me narigadas na púbis, olho pela janela do hotel e vejo o mar, e pergunto-me a mim mesmo que faço aqui, só para picar um gajo que nem conheço que acha que é dono da gaja que largou por outra? Que baixo desceu a minha vida, e quão bom é que esta miséria me força continuamente a olhar para o que tento não ver. Atrás de gajas para fugir ao horror de se estar vivo, e é pelas gajas que não consigo olhar para outra coisa. Quantos momentos de felicidade? As meias horas de tempo líquído em que afogo o mangalho num buraco molhado com um estranho em torno? Quantos momentos de realização genuína? Deixo-me distrair por este jogo que coloco como emboscada a mim mesmo. Habituada a anos de sexo baunilha, o que sabia de broches reduzia-se a joalharia de preços em conta. Finjo prazer, afago-lhe o cabelo e o ego. Deito-a na cama, beijo-lhe a mão. Penetro-a com o mesmo sabor retirado, que de uma bolacha de água e sal. Vem-se. Abraça-se a mim. Abraço-me a ela. Choro. Assusta-se. Pergunta o que foi. Respondo que sei o que é ter uma ferida cá dentro por causa das decisões injustas de outros. A mim faz-me ver o horror, talvez o reconheça no turbilhão da reencarnação e renasça sei lá, mais compatível com este mundo. Perdemo-nos num abraço seco, mas humano e honesto. Dorme, eu tenho trabalho amanhã. Cubro-a com o cobertor, faço-lhe festas no rosto e no cabelo. Desço as escadas a chorar. Lembro-me do mesmo vazio quando acabava de foder Rute e trazia o preservativo para colocar no contentor da rua e me perguntava se isto era um homem. Chegado à entrada do hotel, a luz reflectida na água por uma Lua enorme fez-me lembrar o Espírito de Deus no primeiro dia da Criação. Talvez esta merda da individuação seja um esquema que ainda não percebi, há que estudar mais, e submeter-me aos juízos de mais pobres de espírito, que querendo o meu bem, me fazem sentir mal por escolhas que não posso não tomar. «-Oh amigo.» Uma voz surge atrás de mim, volto-me e um tipo parado a uma distância de segurança. «-Sou o Miguel. O namorado da Beatriz.» «-Tás bom, como vai isso.» «-Venho aqui dizer-te que ou desapareces de cena, ou vais-te sanguineamente arrepender.» Comecei a rir-me. «-Amigo, nunca estive na cena. Mas já fiz a tua figura de palhaço.» Ele começa a avançar para mim, recuo estendo a mão e aviso «-Dude, fica aí se faz favor.» Não esperava que parasse, mas parou. «-Já estive nessa situação. Mas agora, lava-me a alma esta Lua reflectida na alma.» Virei costas e fui para o carro. Lisboa esperava por mim. Era dia. Pessoas faziam aquilo que chamam vida e que eu chamo morte. Distraem-se com a luz do Sol. I
Não durmo, enjoo a cama Reviro-me revejo-me no asco de estar aqui longe da tua boca há dias que o sono não me chama porque não consigo não pensar estar dentro e abraçado a ti Levarei a morte a ela mesma já agora por um beijo teu que meu prazer penhora distante mas procurando-te vida fora Ando irritado e quezilento até respondo com maus modos e fico agreste pareço menstruado, meu humor oscilando entre cume e sopé descontrolado não consigo rir, discuto a conduzir Porque sem ti estou a Leste sem alegria, lucidez e conseguir dormir. II Dou comigo a sentir que tudo o que quero está nos meus braços quando por eles estás apertada com tua boca e olhos perto de mim Levarei a morte a ela mesma já agora por um beijo teu que meu prazer penhora distante mas procurando-te vida fora Em tanta flexão da minha língua que por ti constantemente chama Temo que tua boca algum dia por mim não chame vejo-me a ser dobrado entre picos de exultação e depressão sedento que tuas pernas soletrem quem ame tanto quanto nós sussurando à distância um não. Em tanta flexão da minha língua por chamar-te Sem saber o que faço Não sabendo se minha natureza é de arame que parte Não sabendo se a minha natureza é de aço que se derrete por amar-te. Levarei a morte a ela mesma já agora por um beijo teu que meu prazer penhora distante mas procurando-te vida fora Não quero e vivo enjoado com a moderação dizem-me que vontade contrariada é coisa de criança que tenho de me aguentar mas quando fizemos amor uma tecla nova do piano tocada foi uma promessa ao novo mundo de força feito bocas coladas cuspe sôfrego e gemidos pela noite sem mais distância que a encostada peito no peito. Levarei a morte a ela mesma já agora por um beijo teu que meu prazer penhora distante mas procurando-te vida fora I
Por onde quer que me perca, posso eu ou tu, encontrar Vénus por todo o lado. Parece que a coisa se divide a meio, com mais indivíduos para o lado delas. A probabilidade de encontrar mulheres que te façam feliz o olhar, é grande neste mundo abundante, seja qual for o nicho por onde te esgueires. O meu era o da pseudo intelectualidade. E digo ‘pseudo’ porque sempre fui muito prático, e o exercício intelectual pela intelectualidade, sempre me pareceu uma masturbação sem fito que não o movimento de mãos. Tem de haver, para mim, algo acima da razão e da cultura, algo que se apreenda por via da razão e se exprima por via da cultura, mas que a elas não se reduza. Então dou por mim a escrever para um blog obscuro qualquer, e a vogar pelas ruas de Lisboa em busca da próxima palestra de escritores famosos, a quem invejo em parte não o talento, porque cada um tem a sua voz, mas as seguidoras que nunca faltam em estruturas hierárquicas de prestígio social. Mas isso é porque sou um preguiçoso de primeira. Ou então a calcorrear museus, recitais, exposições, workshops ou encontros. Tudo o que me dê a ilusão de contribuir para a minha ilustração cultural, tudo o que me leve para longe do Inferno de enfrentar a minha individualidade perene. Chegado a esses eventos, em vez de prestar atenção ao conteúdo da malta que se leva demasiado a sério e que coça a barbicha à intelectual, colocando a palma da mão no queixo e fechando a mão em torno do queixo, acompanhando-o num sentido descendente num gesto análogo ao fôlego do onanismo quando descendo pelo falo, se prepara para nova ascensão, olho para outras distracções. Quando filósofos, poetas e escritores, ou historiadores, geógrafos, ‘cientistas sociais’ falam do mundo e da realidade, ou dos outros, como algo sobre o qual é possível falar como se de um território bem definido pela sua observação, estou eu a olhar os alvos no espaço que me circunda. A fisionomia dos decotes, a receptividade na linguagem corporal – tem ela os braços cruzados ou uma cara de enjoada, está atenta aos cruzamentos de olhares ou vive embrenhada no seu mundo e fecha-se ostensiva mas elegantemente sobre ele – se me agrada, tem as pernas bem feitas, é bonita de cara, que feitio se esconderá por detrás do rosto, se fuma, se fuma sei que brocha bem, se brocha bem gosta de foder, portanto é alguém interessante para me distrair da minha dor. Tento disfarçar bem, meneando a cabeça fingindo concordar com o orador, perder-me defronte de um quadro qualquer que faço com que me hipnotize, não quero ser visto como predador sexual, que sou a tudo o que me agrade acima da idade legal do consentimento, não penses que por motivos morais. Não. Não me interessa o que pensem de mim. Apenas por uma questão de eficácia. Ao contrário do que fazia quando era adolescente, não revelo a minha cara de depravado às moçoilas, na esperança que se excitem com a minha explícita disponibilidade sexual. Elas são, sei agora, bem mais complexas que nós, gostam do jogo tanto como do resultado pouco original da cópula. Eu é que achava que se ficava excitado de imediato com o desejo de mim por parte de outra alma, essa outra alma ficaria em igual estado por me saber excitado carnalmente por ela. Tolo eu. Agora, que deixei as coisas de criança, sei que é até um ar de desapego que molha as pregas do desejo. Um ar de não precisar de luxúria e até estar demasiado feliz sem ela. Como Atlas pansexual, carrego o peso do fingimento, tornando-o arte. Tudo para que funcione. Vinte e um séculos depois de Cristo, trinta e tal depois de algum faraó perdido nas areias, ando eu de novo como caçador recolector, de migalhas do que seja a condição humana, navegando em cabotagem pelos cabos do feminino mapeando a costa, e rezando aos deuses, que nenhum baixio me encalhe ou faça naufragar pelo caminho. II Admito, sou drogado. O dealer é a mulher. A droga está no meu cérebro, oxitocina e endorfina. Os sentimentos inebriantes da paixão da corte e da antecipação do sexo novo, como o vinho novo em pipas para o povo guardar. O cocktail de químicos que me leva a Deus, e me traz ao Inferno com a rejeição e ruptura, em sucessões de altos e baixos que me iludem sobre a passagem anónima do tempo da minha vida, esquecendo o absurdo disto tudo, e a complacência que tem de vir com esse esquecimento. Certo dia, ruminando sobre esta minha dependência, que tornara foco na minha vida, numa palestra de um escritor bem mais novo que eu e bem mais sucedido, que escreve bem, vende melhor e tem o melhor grupo de gajas que o idolatra, pensei se não havia passado ao lado de uma boa carreira literária precisamente por não conseguir escrever sem o meu vício. Em vez do malte do Cardoso Pires, ou da adrenalina do Hemingway, fiz da vulva a cenoura da minha caneta. Claro que a vulva nada tem que ver com isto, já te disse, eu quero é as drogas fechadas na massa encefálica. No grupo de gajas que seguem esse escritor mais novo e sem este vício meu, por certo por via da fartura, e a fartura traz sempre relativização, vi-a. Porra que gosto de gajas que se vestem classicamente, misturando bem o pano, com o corpo. Saia cinzenta com bolas pretas, numa espécie de tecido viscose que lhe assenta como seda por cima de pernas perfeitas, proporcionais e depiladas, com sapatos de salto alto em branco pérola com a abertura na zona da biqueira que parece uma uretra masculina oval espreitando o céu e revelando umas unhas convexas geometricamente perfeitas e com esmalte escarlate. Uma língua viperina nasce no calcanhar dos sapatos, desviando seu abraço em pele de bovino para ambos os lados do pé reunindo-se no peito do mesmo. Entre ela e a sola, destacam-se um tornozelo bonito e uma pele bronzeada com o contraste certo entre o branco adivinhado da planta do pé e o restante bacanal de melanina que se espalha sobre uma carne tonificada muscularmente. Não é um pé desleixado, é um pé que revela a personalidade da portadora. A sua blusa branca, sob um torso proporcional e que sustenta um soutien branco com alças transparentes, que consigo adivinhar porque o calor da sala a fez desapertar mais um botão, as mangas arregaçadas e o cabelo impecavelmente apanhado em rabo de cavalo, e um rosto bonito como poucos fazem-me escolher esta pessoa como a próxima ilusão do meu arsenal. Toma notas num caderno, o que não deixa de me surpreender, afinal está a tirar notas de quê? Pensava que isto é para malta que vem aqui fazer o mesmo que eu, distrair-se, mas que não gosta de arraiais de bairro nem de música pimba. A caneta que usa, prateada e elegantemente esguia, pouco tem a ver com as esferográficas de hipermercado ou as berrantes canetas rosas com a estampa das Spice Girls que boa parte do gajedo nestes eventos usa.Tudo nela transbordava elegância, comedimento e presença de espírito, algo no seu olhar e compostura emanavam vida interior. No final da palestra, quando se reune a malta toda em grupos aleatórios, onde todos fingem não estar a gravitar para os elementos do painel, transitando de grupo em grupo até estarem mais próximos do mais ilustre, em sorrisos fingidos e casualidade fingida, fingem uma aleatoridade que não existe senão como fingimento. Ela, não parecia partilhar essa dinâmica, o que é o que todos querem aparentar, excepto menos aqueles que não estão de facto a fingir. O escritor lançou um livro o ano passado, que li uma página na Bertrand, e tive de o pousar, pois o gajo escreve demasiado bem, e eu não quero quebrar ilusões sobre mim. Está a um canto, fingindo que não precebe o bailado gravitacional à sua volta com as mãos nos bolsos à cowboy que vinha nos maços da Marlboro quando fumar não combinava com fotos abjectas e mensagens à ‘They Live’ do Carpenter. Está a rir-se e a melhor gaja da sala a fingir que está a falar com ele por causa de uma paixão pela escrita, ao invés de uma paixão pela notoriedade do escriba. Aposto que se for falar com ela de desqualifica de forma boçal. O projecto agradou-me como forma de divertir-me a mim mesmo, uma vez que ninguém me aborda para conversar e estou aqui num canto, entregue ao tédio. Aproximo-me dela, toda vestida de preto, mini saia justa e blusa justa, sapatos pretos, cabelo preto e óculos com armassão de massa, grossa mais que lhe assentam impecavelmente. Aproximo-me pelas costas. «-Boa noite.» «-Olá.» - responde ela surpresa, olhando a minha cara para ver se identificava se me conhecia previamente, ou não. «-Gostas do último livro?» «-Gostei muito, acho que é o melhor dele.» «-Que mais te chamou a atenção?» «-Eu gosto de livros que me dão bofetadas. Que me inclinam para um lado e me rasteiram para outro, e que quando acabo de ler, pouso o livro, bebo um copo de vinho e fico dormente a digerir a aleatoridade do real, e o dormente da razão humana ante um mundo extremamente estranho, avesso a apreensão.» - responde, mordendo o lábio inferior, e passando a bola para o meu campo, fartinha de ouvir este tipo de abordagem, na qual eu começara a falar já derrotado, por causa de não ter uma abordagem original. Levar um ananás enfiado nas calças teria sido mais eficaz, para diferenciar dos outros. «-Ainda bem que és daquelas pessoas viciadas em letras, pelas letras, pela masturbação da prosa sem clareza conceptual. Se bem que esse teu arrasto para interpretações marginais da realidade, me obrigue a perguntar-te se acreditas que ou a realidade é complexa, ou a tua tesão pela bofetada não passa de uma paixão pela fantasia que te arrasta para o concreto inesgotável e inapreensível desta realidade que desconheces quase por completo, mas que procuras de forma heterogénea ou alternativa. Um pouco como a malta que sonha com viagens a Paris e Nova Iorque, achando que já domina Freixo-de-espada-à-Cinta, mesmo sem nunca lá ter passado.» Devo ter saído um pouco do registo habitual, não pela interpelação elaborada, mas mais pelo confronto opinativo, raro nos culambistas que a abordavam. Sinal disso foi uma paragem momentânea no olhar dela, de afabilidade social, cordialidade de circunstância, e sem que pudesse evitar olhou-me de cima a baixo, para tentar preencher buracos na sua imberbe teoria acerca de mim. Olhou para as minhas sapatilhas gastas e com sola branca suja e meias de cada cor, escondidas sob umas calças largueironas, de ganga de feira, e que uso por causa da barriga de cerveja que me dilata a cintura. A camisa preta, ratada no colarinho por má qualidade do algodão, e dois botões desapertados prometendo um peito semi depilado, e o blazer cor de mogno, sob um ligeiro arqueamento das costas, e o meu rosto bonito, os meus trejeitos intelectualóides, como perder o olhar num ponto abstracto no espaço concreto, ou o assentar a palma da mão sobre o meu escalpe, como que se auxiliando a cabeça a pensar sobre tudo o que surja na conversa, como que se a cabeça fose uma espécie de biblioteca com todas as leituras que aprofundam os assuntos, e então a mão afaga o crânio enquanto o olhar revela um esforço de arquivista para consultar os corredores longos da memória, articulando novas ideias a partir do cruzamento das antigas, transparecendo para o exterior uma espécie de agastamento ao mesmo tempo que esforço deslumbrado em persistir no que é vedado, o fazer sentido deste mundo tão complexo. «-E tu és…?» Percebi que estava fodido. O argumento tornara-se secundário se eu não revelasse ser alguém na vida que ela respeitava. «-João, prazer.» - desviei o ónus estendendo-lhe a mão como cumprimento, para que me a apertasse. Um sorriso amarelo instala-se na cara dela logo seguido de um presságio de enfado. «-Olha João, tenho de falar ali com umas pessoas, já retomamos a conversa daqui a pouco.» Derrotado, mas confirmando o meu viés de novo, disse que sim com a cabeça e convidei-a a seguir, com um gesto de mão como se a estivesse a deixar passar à minha frente numa fila qualquer. Dirijo-me para o balcão para pedir uma cerveja, e de costas para o mesmo encontra-se a tipa que já de falei com a saia de viscose cinzenta com bolas pretas. Olhava-me com um olhar divertido e analítico, e ao mesmo tempo expectante, também ela parecendo auscultar algo em mim. Ao primeiro gole da imperial, percebo o que estava aferindo, o meu grau de afabilidade porque ela queria dizer-me algo e todos nós aferimos sempre como é o outro e como reagirá à nossa presença e interpelação. «-Deve doer, ser desclassificado assim.» - diz ela com um ligeiro esgar de lábios esboçando um sorriso, numa espécie de explicitação de cumplicidade ou compreensão pelo que testemunhara. «-Meh...»- esbocei eu mais gasto que desiludido, «-Nenhuma gaja é impossível de ser seduzida. É tudo uma questão de tempo e conjugação dos astros. Ou melhor, há duas tácticas principais.» «-Quais?» - diz ela claramente divertida. «- A do caçador e a do recolector. Um vai e busca somente as mulheres que estão realmente interessadas nele, o outro investe numa estratégia de longo prazo, captando a atenção e o baixo interesse delas, mas como computadores funcionando em rede vai fazendo ping, nas várias fases da vida do indivíduo para aferir a sua disponibilidade e mesmo fragilidade. É o verdadeiro abutre, pairando e deixando-se levar pelo ar ascendente, só olhando e abrindo as asas, esperando que algum banquete se torne em imóvel cadáver.» Ela parece interessada e eu continuo. «-Ou seja, eu podia ceder às condições dela e fingir como todos os outros que aceito ser mais um a lamber o seu ego dando-lhe atenção. Posso continuar isso por anos, enviando-lhe de tempos a tempos uma mensagem ou fazendo um telefonema para saber como está. Eventualmente no seu trajecto, precisaria de atenção, ou comiseração, ou precisaria de alguém para falar, e eu começaria a espalhar-me como metástase pela vida dela, e num moroso processo, chegaria a um ponto em que a viciaria em mim. Não como gajo que respeitaria, mas como bengala emocional, como vasilhame para as suas emoções e frustrações que ela sabe sem dúvida que ele não pode gostar dela apesar de fingir que sim. Ninguém pode amar outro se não se ama a si, e jogar o jogo de números do abutre não é amar, é esperar por um dia triste da mulher para meter o pé na porta. Algures o desespero e a solidão tomam conta dela e ela lembra-se que não sendo a primeira escolha, o culambista é ainda assim uma escolha. Ele parece dedicado e contrariamente aos anteriores, continua de volta dela sem alguma vez ter sexo. Alguns abutres dão-se bem, elas passam a amá-los, mas a maior parte contenta-se em ser prémio de consolação. Portanto é um jogo de números e uma questão de estômago e paciência. E tu, como te chamas?» Rindo-se de forma enigmática responde «-Chamo-me Catarina.» Mostrando curiosidade acrescenta «-E porque não jogas esse jogo, dá a ideia que dá alguns resultados.» «-Sou demasiado orgulhoso e codependente, preciso da validação que amor genuíno por parte de outro dá. Curiosamente, é essa carência que impede o outro de nos amar dessa forma. Poucos conhecem o sexo fruto de desejo puro, a maior parte só obtém uma transacção comercial, sexo validacional em que um valida o outro, por n motivos. Andar atrás de uma tipa que só recorra a mim como última escolha é algo que não casa bem com o meu orgulho. No fim, obtive resultado, mas não consigo desligar do processo, há gajos que sim.» Falávamos como dois velhos conhecidos. «-Mas o jogo vale a pena, não é só a fraqueza psicológica que tens, é uma corrida pela transmissão de genes.» - e fiquei a pensar na exactidão disto que ela acabara de dizer. «-Sim, tens razão. Mas o jogo, a dissimulação, são habituais na Natureza, cabe ao indivíduo aceitar ou não. Eu não tenho paciência para tipas que fazem prolongar o sexo, que fazem esperar para ceder a sua intimidade. Não porque seja preguiçoso, que sou, ou porque não entenda a necessidade de preservarem a sua imagem. Mas porque já vi demasiadas fazerem render o peixe a tipos decentes e a oferecê-lo de imediato a tipos que se esquecem do nome delas no dia a seguir. Ficava chocado com isso. Hoje respeito toda e qualquer uma que não imponha a si nunca fornicar no primeiro encontro. Algumas sabem e são instrumentais nisto. Outras continuam a assumir o papel de prémio a conquistar, a ser adorado e bajulado, só porque o seu género é expresso como o belo.» A verborreia fluía sem parar da minha boca. O interesse expresso por ela, aumentava de forma gradual, na minha leitura das suas feições, arrastando-me numa dinâmica de a tentar impressionar com a minha sagacidade e articulação de ideias, como se alguma vez ser um cromo molhasse vulvas. Quanto mais me sentia validado pela expressão de interesse genuíno dela, mais espalhava a minha rede teórica sobre a interpretação do mundo, como que se procurasse uma confissão de assomo dela para comigo. «-Queres que um ser mais fraco fisicamente, se coloque numa situação potencialmente perigosa, só porque os homens não são seguros do seu valor?» Isto soou-me a provocação. «-É igualmente penoso para mim, sei lá eu se for para a cama contigo se não tens um picador de gelo debaixo do colchão.» A minha boçal frontalidade visava soprar o trigo do joio. Com a introdução de uma sugestão sexual na forma de exemplo, verificava a reacção do indivíduo. Se demasiado ofendido, não interessava, pois a cabeça exigiria demasiada manutenção só para ter o corpo. Se levasse na boa, já sabia qual o sino que tocava no meu campanário e portanto não se podia fazer desentendida, apenas negar o avanço. Não negou. Sorriu até e perguntou «-Tens noção de que estás a desconversar?» «-Tenho. » «-E tens noção de que essas mulheres que falas são uma minoria. As mais inseguras tudo farão para manter o tipo e por ele serem respeitadas, já que os homens acreditam que uma tipa fácil é uma tipa que não suscita confiança, logo é apenas boa como situação de recurso, como a escolha que a gaja fragilizada faz pelo abutre que falaste ainda há pouco.» Fiquei parvo e sem palavras. E pasmado, ela não recorria a tons rosa e espiritualidade de circunstância. Falava na minha língua e contrapunha-me com as minhas próprias ideias. «-Estarias totalmente correcta não fosse o facto de as mulheres serem as selectoras, ponto. Até que ponto essa vontade de manter não é ficcional, ou pelo menos até ao melhor prospecto aparecer, e com ambos os pés na dúvida, considerar o upgrade para algo melhor. A vontade de manter uma boa imagem, nada tem que ver com o gajo, uma vez que o alvo masculino é sempre uma sexualidade irrestrita e disponível. A vontade de boa imagem é uma estratégia de sobrevivência social. A mulher precisa mais do grupo que o homem e precisa mostrar que é credora de respeito pelo seu compromisso com o legado de genético de um gajo que a queira. Ao assinalar a sua virtude está a dizer que quem me emprenhar, tem garantia de paternidade já que eu não engano, e toda a malta da tribo pode ver que estou com a continuidade da mesma, portanto protejam-me em conjunto.» «-É provável.» - responde ela. Fosse outra qualquer e diria que eu estava a ser redutor reduzindo tudo a psicologia evolutiva. Foi quando senti que esta era especial. Foi quando perdi o jogo. «-Quero ir comer caldo verde contigo.» «-Achas que por te dar conversa vou aceder a passar tempo contigo? Ainda para mais vi-te ser rejeitado por outra, sem o apreço de outras como posso não duvidar do teu valor?» - disse isto bastante divertida, e algo na minha cabeça desligou, ou melhor ficou em curto. «-Estou a brincar, bora que tenho fome.» Sentados virados para a 24 de Julho, observava-a a comer, delicada e com cuidado em cada gesto, fazendo do acto um ritual e não algo a despachar. Sempre agarrada a um caderno negro, que, sem exagero, de 10 em 10 minutos consultava ou rabiscava, sem perder o fio à meada fosse qual fosse a conversa. O fragmento de porco abraçado por um pão quente asfixiante largava o aroma e vapor para o ar, e a sopa verde com lótus circulares de gordura girando sobre um eixo imaginário provocava ruídos de sopro a todos os que a sopravam para não queimar a língua. O olhar vivo e penetrante dela parecia vir até ao fundo de mim, como se uma comunhão de substâncias existisse entre nós, ou uma diferença tal que ela não podia não olhar. Convencido que por estar a comer comigo, tinha interesse e que o mesmo exigia escalar a interacção, a falar com ela coloquei a minha mão na dela como se de nada se tratasse. Ela faz uma cara de alguém que vê algo absurdo e pergunta «-Achas que escalar é a resposta? Que sinais indicadores te dei eu para achares que podias avançar? Achas que por seres homem é suposto ires sempre em frente mesmo quando não consegues decifrar os sinais cruzados?» E eu, «-Porra, parece que estás dentro da minha cabeça.» Ela, «-Nem imaginas como.» Levanta-se, beija o dedo indicador da mão direita, deposita-o na minha testa e olha-me com um olhar constrangido entre um fingido desejo de entrega e um imperativo de qualquer ordem que o impedia. Combinaçao tão perigosa como eficaz. III Um gajo fica a pensar que é só uma questão de insistência ou esforço para conquistar a fortificação. Que é um equilíbrio de lâmina que a qualquer momento pode pender para qualquer um dos lados. Mas a arte está em dar a ilusão de que pende para o lado que queremos, quase quase em ponto de desequilibrio inevitável. Como no jogo, é a miragem de vitória que vicia. Vejo-a sair pela porta por onde uma brisa nocturna lhe afaga a saia que se junta ao corpo evidenciando as pernas bem torneadas e revelando por fim uma mulher completa. Outros balbuciariam que era areia a mais para a camioneta, para mim era mais uma promessa de deserto...não fossem algumas coisas que me deixaram a pensar. Vês também fico viciado como jogador inveterado, arrogante como sou, por perceber qualquer mecanismo. Também me preparava para ir embora, quando ao meter a mão na mesa vejo um papel do tamanho de um isqueiro, com o número dela. De um momento para o outro a melancolia do dia que se avizinhava cheirava a vitória de napalm. Menos mal, mais um acto para a peça. Seguiram-se dias de troca de epístolas electrónicas onde ela habilmente sabia que botões tocar para me extorquir mais investimento. Quanto mais eu elaborava ideias e frases para exprimir exactamente o que estava a pensar, ela respondia com frases lacónicas ao meu investimento e depois com elaboração mais complexa das frases dela se por acaso eu me fartava e respondia mais espartanamente. Era um hábil jogo de saber manter o peixe na linha, sem que não desse luta mas também não partisse a linha, vencendo-o por exaustão ou colapso nervoso. Mas para isso tinha de haver o velho Sr. Desejo. Lá forcei o segundo encontro desta feita na terra dela, algures na Margem Sul, e lá chegado fomos a um bar num 13ª andar com vista para a Arrábida. «-Que pensas das Letras portuguesas?» abre elas as hostilidades, quase me fazendo engasgar com o ginger ale vitaminado a rum. «-Epá, eu tirando os velhos mortos e o Lobo Antunes e mais um ou outro, não ligo a nada. Leio os livros que me apetece ler, mas continuo na senda da minha voz.» «-Tu és muito assim, desligado, embora não pareças.» Havíamos sido colegas, ela alguns anos depois, na Faculdade de Letras. Ela era de Línguas e Literaturas. Exprimi-lhe a tesão que me dava teoria da literatura, especialmente como forma de violar o espírito de alguém através de rabiscos pretos num papel ou ecrã, e dessa violação sair um orgasmo e um filho. Ou filha. Abrir a cabeça de outro e colocar lá a inquietação. Ela de camisa preta desapertada 3 botões deixando os flancos dos mamilos olhar o mundo cá fora, calções pretos 4 dedos acima do joelho. E o cabrão do caderno preto, onde era regular e ávida a tomar notas. Indaguei sobre isso, o caderno. É um hábito antigo, sabes também escrevo e com pessoas interessantes tiro ideias para mim, que de outra maneira a minha capacidade de lembrança faria perder para sempre. Um gajo fica lisonjeado. Em ponto pequeno era uma mini palestra onde uma gaja boa me validava com o corpo e com a atenção. Levanta-se e caminha na direcção da casa-de-banho. Cabrão que sou, pego-lhe rapidamente no caderno e abro na página que penso que ela tinha como alvo do bico da caneta. Li: «Indíviduo com algum interesse, mas mais próximo de Ícaro de que Ulisses. Tem a mania que é esperto e é o seu maior defeito. Tem textos em www.viuvaprofissional.com com alguma graça mas muito rudimentares e naif. Tem a mania que é sedutor. Pensa denunciar tácticas de manipulação feminina, e ser competente na exposição das mesmas. Há qualquer coisa nele que o coloca ao mesmo nível de ou um deus menor ou de um pobre diabo. Penteado imperceptível, barriga de cerveja onde por certo se distrai de existir, nisso e provavelmente muito sexuado em virtude do calão e vernáculo que utiliza. É um vencido amoroso, falando da tristeza dos amores perdidos, incapaz de seguir em frente e racionalizando porque permanece agarrado ao passado. Parece à procura de uma relação qualquer que o permita suportar a solidão e falta de companheirismo. Portanto pouco certo da sua experiência da realidade. Segue o livro branco de engate, pensando me descartar ao terceiro encontro sem sexo. Não ter cuidado com seus sentimentos, pela sua arrogância e por achar que consegue ou pode esfregar na cara de alguma mulher, as leis biológicas que devem ficar incógnitas para todos. De facto, é para destroçar, vingar o mal que já deve ter feito, vingando-se de amantes com os seus joguinhos psicológicos de justiceiro. Julgo que acredita que remissão é redenção. De fácil manipulação e de paixão ainda mais fácil. O passo seguinte será enunciar uma plêiade de sentimentos únicos que sinto por ele de forma a que o mesmo se entregue em bandeja, e o passo para isso será dado caminhando eróticamente pelo seu ego. Numa palavra, codependente. Vampiro emocional incapaz de produzir vida, parasitando a dos outros, usando a sua líbido como motivador principal.» Ao vê-la regressar, lá ao fundo, fecho rápido o caderno, com folhar perfumadas, não sem antes ler de relance, www.maridoamador.com . Durante alguns minutos não sabia o que dizer. Ela perguntava se queria mais alguma coisa para beber. Quando voltei a mim, já me tinha habituado à ideia de mais uma viúva, onde eu gravitaria ao de leve na sua teia. Esta tinha aspirações literárias e a mesmíssima forma de análise que eu tenho. Estou perdido, pensei. Não, agora é uma questão de teimosia. Levantei-me da mesa, beijei o indicador, e colei-o na testa dela dando com a minha boca um sonoro beijo na atmosfera. Ela espantada a olhar para mim, demorou uns dois minutos a associar. IV Saí porta fora e engolindo o orgulho, disse a mim mesmo, carta fora do baralho. Ignorei as suas mensagens, e os suas chamadas frequentes. Ignorei as manipulações que tentava, tentando-me fazer sentir culpado de a ter usado de a ter gozado. O que lhe estava a custar não era o meu afastamento, mas a não concretização da vendetta a si prometida. Cometi o erro de atender um número que não conhecia. Era ela de outro telefone. Que precisava de ver que tinha ficado perturbada. Não, que sejas feliz, não me voltes a ligar. Ficou mais desesperada e disse que se concordasse nunca mais me importunaria. Ok, onde. Na sua casa. Deves estar maluca. Mas algo me disse que isto daria texto. Acedi. Entrei pela porta para um hall rectangular e paredes forradas de livros. Toda a casa era uma sandes de livros, só que neste caso o conduto estava nas extremidades. E o tijolo cimentado, no meio. Na sala numa pequena mesa, dois copos de vinho. Sentei-me no sofá, e ela perguntou-me se eu queria comer alguma coisa, respondi que não, olhando para volumes de Proust, Gabriel Marcel e muchachos. «-E então que me querias dizer?» «-Ai tão bruto e rispído para mim, que mal te fiz para ficares assim? «-Nenhum, também não te tratei mal, apenas não quero lidar contigo.» «-Posso saber porquê?» -«-Podes. Li o teu blog, és uma recolectora. Não te importas de envolver com alguém para sacar uma história.» -«-Eu estudo pessoas, e gostei de todos com quem me envolvi.» Levantei-me gorando-lhe o plano de me amolecer com tinto, e ela entrou em pânico. Agarrou-se a mim, julgando que os calções justos e a camisa de homem branca, sem soutien por baixo seriam suficientes para me fazer ter calor. Ao fazer mais força para me libertar dela, puxo-a para mim desequilibrando-a, precipitando a boca dela na minha. Perdi-me num beijo profundo, em que cada um abria mais a boca para assimilar o outro como se tratasse de um jogo de assimilação canibal. Rasguei-lhe a camisa de marca expondo dois redondos seios e entornei-lhe vinho para cima que depois me dediquei a lamber, sob camisa e sofá manchados. Ela contorcia-se e eu estive próximo de entrar em transe. Meto-lhe a mão entre as cuecas como cunha em asa delta, e verifiquei que a obra da divindade era boa e húmida, senti-lhe a pulsação, e de repente olhei seus olhos pretos. E disse bem alto «-Estou-te a ver puta. A deusa não manda aqui!» Ela ficou sem reacção e cobre-se. Por certo cheia de medo por pensar que eu era maluco. Beijei o meu indicador, pousei-o no joelho dela, pedi-lhe desculpa e disse «-Não era para ti, era para a deusa.» Fui descendo pelo elevador rindo-me de mim próprio. |
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Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
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