«-Então, vieste aqui esta semana?» Dos lábios vermelhos saiu uma voz alegre que não engana no apreço pela minha presença. «-Sabes que de vez em quando tenho de vir a Cascais para ver o mar e olhar para ti.» Sorriu de novo, e respondeu :«-Acho que te enganas, vieste ver-me a mim, e olhar o mar, pois o mar não se vê, apenas se olha.» Diabos. Tem algum nexo o que diz, ou então é a minha cabeça a trabalhar mais do que o necessário. «-Não, o mar vê-se, porque nada há para ver senão a imensidão eterna e plácida, quebrada a monotonia pelo acalmante movimento da água. Já para ti olho, porque há tudo para ver.» - a coisa até saiu melhor do que eu estava à espera, dado o pouco tempo que é permitido para retorquir nestas coisas da presença de espírito. O impacto nela foi visível, não só tinha passado o teste do flirt que visa fazer um ping à minha destreza social e de mentalidade, como levou a peito o que eu disse, e ruborizou, mordendo até um lábio, que o vermelho vivo do bâton passou da carnuda superfície para um pouco do esmalte alvo dos dentes. Disfarçou, com o trejeito de arranjar o cabelo louro, e olhando para baixo, fez um esforço para se recompor a si mesma, não revelando mais do que desejava. E para variar, desviou a conversa. «-Então, que filósofo trazes hoje para a ermida?», perguntou, aludindo a conversas anteriores que tivemos, sempre que venho para aqui olhar a chanfradura estuarina, e me apetece estar relativamente só, apenas ouvindo o vento e mirando as águas, que entram ou saem, deste longo semicírculo. Invariavelmente venho com alguma ideia que li e que preciso amadurecer, e a regularidade destes meus périplos, forçou uma familiaridade de convivência com a gente que trabalha aqui nesta zona, sejam pescadores, habitantes ou esta promotora imobiliária e turística cujo stand de vidro se destaca junto à cidadela, por onde tenho de passar para aceder ao meu poiso de eleição. «-Nietzsche, e o episódio do colapso.» «-Ainda?, Tens de variar mais as companhias.» - responde-me com um sorriso maroto, que recebe resposta igual, mas não deixo de prosseguir caminho. Sentado, vieram-me as lágrimas aos olhos. Pois lembrei mesmo o episódio em Turim, não estive lá, claro, mas imaginei-o com todos os pormenores ao longo dos anos, e vejo como se lá estivesse estado, Nietzsche colapsando ante um cavalo açoitado até às portas da morte. Como que sentindo ter a exacta ideia da razão desse colapso envolto em lágrimas, não podia eu próprio deixar de chorar perante a ideia de uma falência súbita do sujeito, perante graus insuportáveis de sagacidade. Perguntava-me a mim próprio se a minha revolta e ressentimento vinham da ideia clara da anedota em que estamos metidos, ou se de uma ira gutural por ter no passado acreditado em tanta tanga, que olhando para trás, me envergonha e mostra o quanto perdi por efabulações infantis. Seja, mas tudo faz parte de um caminho e de uma determinada lição que tinhas de aprender, digo-me, para me reconfortar, nem acreditando no que digo. Então mas o que é que lamentas? Não ter comido mais gajas? É essa a medida com que aferes a vida? A desconsideração que sentes ter sido alvo? Mas tu alguma vez podes exigir a outro aquilo que tu não dás a ti próprio? Enquanto moía estas ruminações, a água fluía para fora, para Oeste, fazendo virar os graneleiros fundeados, à espera de entrar em Lisboa se o preço do cereal subir. Uns americanos ruidosos passam por detrás de mim, apreciando a paisagem, pelo mero aspecto estético, desconhecendo que olham para um gigantesco cemitério submarino, de naufrágios coleccionados em séculos de História. Curioso, do outro lado, na Caparica lá ao fundo, foi onde levei a pobre de espírito, e lhe tentei contar esta arqueologia do real, e aparar os seus achaques fingidos, que apenas revelavam os seus tiques de tiranete, dos tempos em que os rebarbados a validavam pelo seu corpo. Contava-me histórias do namorado, em que eu não acreditando em nada, podia reconhecer uma personagem, farto de estar com ela, de a aturar, uma tipa intratável que apenas sabe disfarçar, o profundo ressentimento que tem com a vida, por não ter acabado com o melhor que lhe devia caber, entretida durante anos, a exercer a sua liberdade sexual de homem para homem, entregue à vertigem de uma auto imagem que a forçava sempre ir para mais além, para o gajo mais interessante, mais sofisticado e adequado à sua visão da vida. Tanto nadou para fora do estuário, que se arriscava a morrer sozinha no cemitério, onde jazem milhares de outros. Encontrou o seu Bugio, que lhe paga as contas. Ela finge ter personalidade, lutar por causas, o feminismo, o racismo e outras. Apenas para simular ter a personalidade que não tem. Cata o vento, e tenta manter-se como prémio, para que o parasitado continue a apreciar a ferroada por onde lhe sai o sangue. Mais, ele esforça-se por manter a estocada contínua, gerindo a relação com desaparecimentos súbitos, orgulhando-se de um carácter selvagem que deixou de ter a partir do momento em que o travestiu para manter esta gaja. Duas pessoas, codependentes, fingindo e sendo o que fingem. Pergunto-me por que raio, de uma lucubração elevada, me vem a ideia desta imbecil à consciência. Porque me lembro de ter permitido mais uma vez, que uma traumatizada de guerra execrável, me toldasse a perspectiva. Aliás, ela não fez nada, eu é que tenho este hábito de dourar a mulher com as vestes de deusa, iludindo-me a mim mesmo, porque se as visse como são, não as suportaria. Por outro lado, a mulher passa a detestar-me, por a ver como deusa, não quer nem suporta esse tipo de pressão, além de que olha para nós, e pensa ‘ai sou deusa? Então és crente.» que é uma variação do ‘se a tratas como estrela, ela trata-te como fã». O que vai contra todos os filmes romcom que só são vistos por alguns homens, porque têm um quid de lógica, parece lógico que a mulher te aprecie por seres bom e útil para ela. Mas não é assim que funciona, infelizmente, e lá volto aos açoites do cavalo. O mundo está completamente além, dos caprichos da nossa mente. Está-se, incluso, marimbando para eles. É lidar, como dizem os taberneiros. O ter-me envolvido com esta, tal como mais umas num passado recente, nada teve que ver com a procura de algo autêntico, mas de uma distracção para esta amarga constatação. Uma, convencida de que me topara à distância, ligara-me e me dissera ‘-Estás é ressabiado por eu te ter largado, lida!». Não, por acaso não, se falo do abandono é porque a companhia é a forma como fujo, é que não sei lidar mesmo com esta nova e triste, adulta, ideia do mundo, pessoas e coisas. Que vejo agora, sempre existiu, mas quando somos crianças tudo é alegria cega. Antes fosse, antes fosse sentir-me rejeitado, cuspido fora, por alguém que julgando, me deu parecer desfavorável. Como me podem rejeitar, se tenho de fingir que são pessoas interessantes e de companhia agradável, para poder passar tempo com elas? Como posso ser rejeitado se eu próprio sinto que tenho de lhes dar fodões de caixão à cova, para que não precisem de procurar noutro lado, de modo a eu mesmo me poder continuar a iludir e a não ver o patético da coisa? Foda-se, afinal também finjo, todos fingimos, aparentemente. É fuga à verdade ou capacidade de sedução para a vida? Eu não as odeio, nem quero odiar. Aliás, eu adoro mulheres. Se calhar o problema é esse. Não as adores, que não são deusas. Gosto muito de mulheres, sinto-me bem com quase todas as mulheres menos com as feministas, com essas não posso. Detesto gajas frustradas e controladoras. Sonsas. Tenho mesmo de descontaminar e aprender a domar o monstro que me faz passar por estas figuras, o ego. O cabrão tem boas intenções, visa proteger-me, mas perco-me, gaja a gaja vou-me perdendo. Porra, vou passar uns tempos só dedicado ao espírito, e exercer a minha probidade, autocontrolo e dedicação a uma causa superior. Uma mão no meu ombro faz-me olhar para trás, arrancado ao meu transe como malmequer por mancebo apaixonado. Um vestido de linho branco, esvoaçava ao vento, ela tinha um colar azul ao peito, e o chapéu pérola de linho ou palha, uma faixa de mano azul e branco. As pernas bronzeadas contrastando com o branco da roupa, e um braço segurando o chapéu enquanto o outro se apoiava em mim, para se sentar ao meu lado. Ficámos umas boas duas horas à conversa. Tinha saído do trabalho e estava solta ali por Cascais, e segundo as suas palavras, decidira vir ver se eu já me atirara à água. «-E se tivesse atirado, que farias?» «-Nada, sendo a tua vontade. Apenas lamentaria, não gosto de ver pessoas infelizes.» «-És feliz?» perguntei eu. «-Por acaso agora estou possuída por uma grande calma, desde que me sentei aqui contigo.» «-Talvez seja do cemitério que olhamos.», atalhei eu, para voltar a explicar a alguém como a morte vive debaixo da beleza. Mas analisando-me senti-me envergonhado de novo, tentando impressionar alguém de modo a repetir a mesma lengalenga de sempre. «-Dizes coisas estranhas, mas por alguma razão entendo. Estás a falar aqui da Baía e das desgraças que aqui se passaram, não é?» Ri-me, e esforcei-me para permanecer calado. O Sol esgueirara-se de mansinho, e o vento arrepiava-me todo, tinha-me esquecido do casaco no carro. Ela percebendo, pergunta-me se quero ir beber um gin e eu respondo que sim, se for tónico. A resposta tinha dupla intenção. Olho em volta e era demasiado cedo para jantar, e demasiado tarde para o que fosse. «-Não estou a ver bares, além dos restaurantes.» «-Eu conheço um.» , interrompe-me ela desmontando a postura do topo do muro, e saltando para a calçada, oferece-me a mão para que a siga. Chegados a casa dela, abro a janela da sala, e vejo todo o azul que recebe o abraço da terra como se anfiteatro grego. Que grande vista. Olho de relance os retratos pelas paredes brancas, e ela depois de ter trocado de calçado, vem perto de mim e olha-me fixamente nos olhos, tão perto que sinto o calor da circulação sanguínea do seu pescoço, num torpor que me faz desejar, deitar-me nele.
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Bioma Dirigindo-me à Decathlon de Alcabideche, para comprar dois rolos de espuma para tapar as barras do tejadilho do carro. Estaciono notando que o calor do dia acumulado na viagem, me deu vontade de beber água, ao mesmo tempo que me apetecia regar umas plantas mictando. Sede e aflição, que julguei poder mitigar dentro da loja, que, contudo, tinha fila orientada à porta e controlo de acessos numa fila que envolvia várias pessoas anonimamente escondidas atrás de máscaras. Encomenda paga foi só levantar e nem pensar em esperar para comprar Gatorade ou andar a perguntar pelo mictário. Eram só 40 minutos de volta, aguentava bem, se e somente se, regasse a relva circundante. E assim o fiz, meti os rolos no carro e fui atrás de um arbusto contar automóveis passando na autoestrada contígua. O alívio que me encontrou no caminho para o carro foi interrompido com um som vindo por detrás do arbusto, de onde acabava de vir. Alguém por detrás do mesmo, chorava. Pelo tom do choro parecia-me mulher. Contornando o dito arbusto, vi alguém sentado no chão, com as mãos lançadas à testa, gemendo, perdida em frémitos constantes. Interpelei, perguntando se estava tudo bem, se precisava de alguma coisa. Apenas vi a sua mão, acenando que não e pedindo-me para a deixar só. Disse-lhe que falar ajudava, e que podia falar comigo. Não respondendo, sentei-me ao seu lado e coloquei-lhe a mão no ombro. Ao toque, estremeceu e o choro convulso aprofundou-se. «-Nada é assim tão grave que se resolva com tristeza.» - disse eu, certo de que a convicção com que o dissera, era tão inexistente como a minha crença no conteúdo. Continuava olhando o asfalto e esgrimindo monossílabos de dor, como se o chão fosse o único interlocutor num diálogo entre o que está vivo e o que está morto. Como se a cada resposta do solo, ela tivesse de retorquir com um mais sonoro desabafo de desespero. «-Conta lá o que se passa, talvez eu possa ajudar.» - disse eu, confiando que a utilização da primeira pessoa do singular criasse a confiança para o ser humano à minha frente alijar o fardo, partilhando-o com alguém. O desespero levou-a a falar, com a convicção inconsciente de que poucas dores se curam sendo engolidas. Problemas de namoricos, oh espanto. Apeteceu-me dizer que ia passar, mas nem eu acreditava nisso, nem a ajudaria naquele momento. Lembrei-me de tirar a mão do ombro, o toque havia cumprido a sua função e prolongando a estadia, a mão daria vibes esquisitas, nos tempos que correm não podemos ser amigos das mulheres, estão tão habituadas a receber bajulação, que um acto fraterno e desinteressado rapidamente é interpretado ou usurpado para agradar ao ego. Culpa também dos muitos chico-espertos para quem tudo vale na difícil arena da sedução, para quem a única estratégia é o número, não importando a personalidade de cada um na equação. Que o namorado a largara por uma mais nova, o mundo é assim e que havia feito tudo por ele, e que não conseguia manter nenhum. Não me parecia velha, uns 32 no máximo, e evitei dar os conselhos da treta que há mais marés que marinheiros, e que ele voltará ou irá arrepender-se. Aliás nem ia dizer nada, apenas esperar que ela desabafasse, se recompusesse e abalar para casa para colocar os rolos de espuma no carro. Mas no seu desespero, e do meu silêncio, foi-me perguntando por palavras que aliviassem a mágoa profunda. «-Rita…» - a chapa de identificação no seu peito indicava um nome, ‘Rita Azevedo’. «-Rita, queres açúcar ou natural?» Parou um tempo a olhar para mim, olhando-me nos olhos pela primeira vez, e avaliando qual o meu grau de sanidade, até que percebeu a pergunta. «-Natural.» - respondeu, com um tom de voz que clamava por uma solução que trouxesse luz à dor maior de não saber porque as coisas não corriam bem com ela, no estado de alma em que estava. «-Tu és bonita, a menos que o teu ex seja alguém com opções, dificilmente te largaria.» Reagiu dizendo que as pessoas não se unem apenas por causa de coisas menores como o sexo, mas também por sentimentos. Tretas, respondi eu, dissertando sobre o pansexualismo que tresanda em todo o nosso redor. Disse-lhe que o abandono dele, sendo ela ainda atraente, se deveria mais a um possível ponto de saturação, auxiliado com uma rival que ajudou à separação unilateral. E que às vezes os pontos de saturação, nem são apenas pelo terrível feitio das pessoas, mas pelo pão sem sal que as suas personalidades apresentam. «-Tens hobbies?» «-Ultimamente não, sair com as minhas amigas…» Reparei que tinha um porta-chaves com o símbolo da Enterprise do Startreck, e relatei-lhe, que por vezes, as pessoas, conscientes desta sua falta de vida interior, adoptam tótemes que sinalizam aos outros traços mínimos de individualidade, nem que a mesma se dissolva nos mesmos lugares comuns, onde quase todos à volta recorrem para assinalar o mesmo, e no processo anulando os traços únicos do seu ser, querendo evidenciar os traços únicos do seu ser. Que por exemplo, as tatuagens também visam um controlo da percepção dos outros, na convicção do indivíduo, que a pigmentação pictórica da derme assinala etapas de vida ou traços de carácter, que por si só transferem para a pessoa, um trajecto, um percurso e uma evolução espiritual. Ouvindo isto, ela arregaça uma das mangas da camisa azul da farda de trabalho, e emergem à luz do Sol, dois dados de jogo e uma data, pintados a azul escuro, na face interior do antebraço. «-Alguma data especial?», perguntei eu. «-Foi quando decidi que a minha vida iria ser um sucesso na felicidade.» E precisas de tatuar isso no braço para te lembrares, pensei eu comigo, censurando-me, ao mesmo tempo, por explanar as minhas teorias, a alguém que se encaixa nelas. «-Continua com isso da tatuagem.» - pediu. «-Que queres que te diga, quem vê uma, vê todas. Geralmente em sítios onde não as veja amiúde, e se assim é, porquê gravá-las na pele? Que frivolidade é esta de gravar o corpo, ou que necessidade é esta de cravar significado em simbologias bacocas? Os motivos pouco variam, e na busca de individualidade as pessoas tornam-se iguais umas às outras, não porque se pintam, mas porque procuram o mesmo pelos mesmos meios. Pouca relação tendo consigo próprias, vivem através das avaliações dos olhares alheios, e isto é mais acentuado nas mulheres minimamente bonitas. Mas quase todas, parece-me, tentam controlar a percepção alheia através da imagem, como que se ao ver uma caravela tatuada no antebraço, o potencial parceiro inferisse que a história e vida interior do indivíduo fossem tais que merecem respeito e admiração. Torna-se assim a tatuagem um instrumento de obtenção de respeito e dignidade pelos olhos de outrem, manipulando a sua percepção, mesmo que os motivos sejam risórios, ou nada lógicos. E tal se confirma, quando usam roupa escolhida de modo a mostrar a tatuagem. É uma mensagem passada ao mundo, da forma como querem ser lidas e interpretadas. E os gajos também. Mesmo que tenha tatuagem de caveiras na omoplata e vá para casa comer bolachas de chocolate com leite Mimosa.» Posiciona-se orientando o corpo na minha direcção, o que mostra que está a interessar-se pelo que digo, e o interesse é sempre pelo que nos diz respeito, ergo, os pensamentos que escuta da boca de outro, são reconhecidos como algo já presente ao seu espírito anteriormente. «-Fica sabendo que esta tatuagem diz muito para mim…» «-Sim não duvido. A questão não é o que diz para ti, mas a necessidade de o tornar visível para outros. De dares pistas da tua persona, para que te interpretem de determinada maneira. Como por exemplo, a identificação tribal com qualquer obra de media pop.» Ela olha imediatamente para o seu porta-chaves, percebendo que eu lhe havia feito o raio x, e percebi que a minha conversa iria perder impacto, pois ela, tendo ego investido nestes símbolos, iria defendê-los. «-Os indivíduos, pouco satisfeitos com a sua autonomia ou falta de vida interior, esmagados pelas que observam nos outros, criam estas personagens que irão desempenhar. Ante o vazio, o Nada, compõem as mesmas e batidas representações de modo a obter estima dos outros. Fangirls de Starwars ou Startreck, facilmente entregues a movimentos de multidão, integram essa identificação na imagem que fazem de si. Para consumo interno e externo, pois se a tipa tem gostos ( e o ter depende apenas de querer ter) que são apreciados pelo sexo oposto, está a meio caminho de ser identificada com o arquétipo da ‘gaja porreira’ que qualquer gajo quer, e não aquela tipa sonsa, que em nada se distingue das demais. A gaja porreira, obtém assim, validação própria e protecção contra o abandono, ao mesmo tempo que aumenta a atenciosidade na forma de tratamento dos outros para consigo. E como sabemos que as melhores mentiras que contamos, são aquelas em que acreditamos, então estas personas são convincentes porque acreditam piamente serem quem são, quando na realidade são farsas iguais às restantes.» Temo ter soado amargo. Mas satisfeito pela articulação da minha ideia. E continuo: «-Mas, isto é apenas uma estratégia. A verdadeira evolução vem das vezes em que nos refazemos após as situações-limite por que passamos. E nisto o mundo é mau para a mulher também, pois a abundância de paliativos, de gajos dispostos a voltar a encher o ego delas com narcótica aprovação, impede-as de crescer como seres humanos. Para quê curtir a depressão e avaliar a minha personalidade se aquele ali está disposto a gabar-me o fantástico que sou, apenas porque sabe que é a única forma que tem de me obter e cativar? No fundo os súbditos são tão farsa quanto elas, ambos acreditam não ter valor por si, mas pelo que apresentam. E há muito casais assim, ardendo na fogueira ilusória de uma representação. Não somos nós que afastamos o outro por falhas do que somos. Mas porque cedemos à tentação do conforto de escolher o papel mais consensual para que nos amem.» Sou interrompido pelo olhar de uma cara seca, recomposta, com um trejeito no olhar de me ver como um bom recobro de auto-estima, até aparecer algo melhor. Coloco-lhe a mão no ombro, digo-lhe que espero que tudo lhe corra pelo melhor e que não se preocupe. Sigo para o carro vocalizando baixinho, algum vernáculo, por saber que mais de metade do que disse foi palha jogada ao vento. O sinal de mensagem de whatsapp não parava de me infernizar os tímpanos.
Desde que a conhecera, que me perseguia sem descanso. Os meus amigos e algumas amigas, tentavam convencer-me da nobreza e veracidade dos seus sentimentos. E eu sabia, que sempre que no passado, deixava o meu julgamento de lado, fosse por adoptar perspectivas externas, fosse por me convencer a mim mesmo que era o vínculo emocional e não a tesão que me orientava, ou que cada nova pessoa merece uma nova oportunidade, me dava mal. É mercado da carne, não caridade. É um conjunto de gente que visa captar energia e validação de outros, ou ideias, dinheiro, formas de enganar a solidão, e a minha preferida, forma de me distrair do eterno seco e áspero nada da existência. Por isso me lançava de corpo e alma nos braços de qualquer mulher de modo a desenvolver uma relação, mero placebo de sentido para a vida, mesmo que a gaja, enquanto pessoa fosse decente, o que é raro. Também não sou flor que se cheire, usando assim as pessoas no seu próprio jogo para fingir que esta merda toda faz algum sentido. Mas mais que usar o outro, infernizo-me a mim mesmo, como se uma gaja qualquer bastasse desde que me desse tesão, e quantas não o fazendo, não me forcei a privar intimamente, só para uns segundos de endorfina que me faz sentir bem e tem menos efeitos adversos que um qualquer psicotrópico. A cópula parecia o móbil, mas não, é o sentimento de paixão com a menina que todos os pais gostariam com que os filhos casassem, bonita, bem-comportada e gentil. Nisso até te posso dizer que tive sorte, conheci cachopas de boa índole, apesar de serem cachopas na mesma. Não é culpa delas. Alto lá que tento ser justo e não alijar a minha responsabilidade. Sou totalmente responsável pela minha menorização, ergo, pelo abandono. E o pior nem é descobrir que acreditei teimosamente, nas premissas erradas. Não, o pior é mesmo o perceber que achava ser mais esperto que o que sou. Não é o acreditar no amor Disney, e na existência do amor na mulher que não te consegue respeitar porque tu próprio não te respeitas. É o ressentimento com a minha própria teimosia, em não querer largar o ideal cavalheiresco de amor, porque só um novo amor no final desse arco iris, com essas cores, será paliativo suficiente para uma visão do mundo árida como a própria morte. Minto-me a mim mesmo, para manipular outros, para fingir que não vejo o abismo. Para fugir. João, não vês que ela fica toda contente ao pé de ti, que não perde uma ocasião para vir ter connosco, diz-me um amigo aqui e acolá, quando ela se faz convidada para as jogatanas de jogos de computador dos anos 80 que servem de desculpa para um grupo de velhos amigos se reunir. Os mais submissos levam as mulheres, e noto que as mais controladoras já começaram a espalhar veneno por causa de mim, o único solteiro do grupo. Isolando-os, primeiro, depois com uma frase ou outra, lacónica, vil, sobre mim. Aferindo o grau de aceitação deles, se me respeitando eles lhes respondem com um olhá lá estás a falar do meu amigo, ele não é assim, portanto não falas dele dessa maneira. Torneando com uma ou duas noites de sexo com desejo fingido, de modo a que ele saia com um sorriso nos lábios, e ao pequeno-almoço largando uma alfinetada, «-Esta foi a cerveja que o João trouxe?» com tom censório de molde a censurar ter comprado a mais barata do Lidl, que isso não é significado de verdadeira amizade, poupar qualidade para os amigos. Epá sabes que o gajo anda sempre sem trocos, ora gastando em roupa de neoprene ora reparando os carros velhos. A pouco e pouco, os tipos condenados a trabalhar além das aspirações iniciais que partilhávamos na adolescência, porque senão a gaja marcha, vão interiorizando esta forma de pensar e colocando uma amizade em análise. Vão-se confortando com a ideia de que as amizades passam porque as pessoas mudam, e a fêmea é para sempre. Quando é ela que se vai embora, no final do trabalho de sapa, nem amigos nem o prémio da existência, o útero bonito que lhes dava a eles, a sensação de serem vencedores na vida, afinal haviam conseguido convencer a deusa a permanecer com eles. Os outros, ah os outros, estão condenados a limpar da memória o seu código genético, o darwinismo social assim o determinando, e é tão bom sentirmo-nos vencedores. O único gajo ainda relativamente livre e com capacidade de se entregar à procura desinteressada pelo fundamento da existência, é gradualmente afastado ou relativizado, com a ideia de que o homem adulto apenas o é quando está numa relação em que assume a responsabilidade de merecer o que tem, por via do sacrifício diário. Gradualmente interioriza esta dependência, e passa a entrar na ideologia trocada nas mesas redondas dos jantares em que as peripécias de merda da vida de casado são partilhadas como segredos existenciais por todos que se envolvidos veem em charadas análogas. Até os mais orgulhosos acabam por cair no ritmo de mandar memes ou vídeos com gajos espancados pelas mulheres, pois a mulher está sempre certa e qualquer defeito nela é charme pessoal e não disfunção. Como caranguejos que me puxam para o balde, cedem à manipulação daquela que me bombardeia com amor, termo chique que visa algo velho, o acto de tentar convencer o outro das nossas intenções e sentimentos, por via de uma exposição exagerada dos mesmos, é um acto que visa o convencimento, portanto, manipulação. Visa que o alvo aceda e se convença a si mesmo das boas intenções, baixando a guarda, cedendo por fim. Ganhando a manipulação, que sai no final, vitoriosa, por mais uma porta escancarada. É mentir, mas mulher não mente porque tem bons sentimentos. Talvez até se convença a ela mesma que o que faz é por bons motivos. Num bar à beira do rio, com este calor que se vai desapertando, ela chega de smart e faz questão de me beijar de forma ostensiva, fingindo um elo que os poucos dias de convivência não permitem. Visa condicionar-me jogando com o meu orgulho masculino, certa de que os outros comentarão comigo o caso, associando-a a bons sentimentos de orgulho, e quem sabe, ganhando por essa via, o coração dos espectadores, que gostando de mim, gostarão dela se acharem que ela gosta de mim. Tanto gostar deixa-me à beira da náusea. Não consigo não ver os olhos de primata por detrás de qualquer expressão individual. Fico calado e perdido na sombria ruminação sobre o que realmente fujo afinal, na vida, da vida. Que monstro é esse que desde sempre me faz correr e enganar a mim mesmo? Será que me deixo ir na conversa dos outros primatas que como eu se entretêm para longe do vazio e do absurdo, com o quer que venha à mão? As mulheres dos meus amigos apenas sabiam reincidir no convencer que ela era boa rapariga e que eu devia pensar em algo mais sério. Que o tempo não parando me deixa para trás. No fundo sabendo que, com este jeito de inadequado bucólico, está alguém que rejeita qualquer tipo de submissão e contentamento com o que não seja que realmente quero, excepto na estupidez de me repetir em relações que me distraiam para não ver o papão. O que se torna duplamente perigoso por perigo de contágio para os animais domesticados com quem partilham uma casa. Esta cai em todos os comportamentos que tenho tipificado ao longo dos tempos, love bombing, envia-me fotos dela nua sem que eu o solicite, de forma a poder gabar-lhe o corpo, e assim ela ficar com o biscoito. Como eu não a gabo, vou-me tornando num desafio maior, ao que ela procura mais desesperadamente a minha validação, não porque tenha alguma consideração por mim, mas exactamente pelo contrário, achando-me um parolo, sente que sou o mínimo exigível em que exerce a sua capacidade de gerar desejo. Sei que assim que lhe faculte um elogio, sai do radar sem qualquer tipo de satisfação, satisfeita por saber que ainda seduz, e porque a ideia inicial de mim, um anónimo que por educação responde sempre às mensagens (por ela interpretado como rebarba pura e dura) se vê assim confirmada, confirmando a mítica intuição feminina. Em mais uma sessão de Pacman, na parte da troca final de impressões antes de cada um rumar a casa, a mais cínica do grupo, a Salete, matrona calculista e manipuladora exímia, com aquele jeito a brincar que nada tem de brincadeira, volta-se para mim e exorta-me a assentar arraiais. Recusando-me, apenas com um sorriso e abanar de cabeça, ela insiste, despeitada com a relatividade com que tratei da sua ideia. Que já não tenho idade para os planos infantis de mergulhar em todos os mares do mundo, que me devia dedicar a ter uma carreira na vida, sólida, a assumir responsabilidades. E volta a mencionar a tipa do whatsapp, que parece gostar mesmo de mim, e que se não mostro alguma responsabilidade ela partirá para outro. Rindo-me, digo de novo, que não faz mal. Que vá. Assim, nada tens a oferecer João. Respondo, elas também não. Vive na casa dos pais e só assim tem dinheiro para a cosmética, roupa e bijuteria, para o ginásio. Que exigir que eu dê um passo nesse sentido é hipócrita se não fizer o mesmo. E não o fazem, porque em algum canto do seu espírito avaliam que conseguem arranjar melhor que eu. Além de que sendo bonita, tem o problema de todas as mulheres bonitas, acham sempre que conseguem arranjar melhor. Vão trocando, como se fosse exercício de liberdade, até ficarem apenas com um gato, quando já ninguém digno conseguem atrair. Portanto, sou a última pessoa a ralar-se em captar o outro, quando sei que estamos sempre a prazo. Também elas precisando fugir ao vazio, pela rotação sistemática de amores. Mensagem no whatsapp. Para ir a casa dela, quer passar a noite comigo. Está certo, estou perto e vou. Até porque a longa viagem a casa, vai pela noite fresca. |
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Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
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