I
Sopra-me o vento na cara, e sinto nas narinas o aroma salgado da massa de água informe que se me apresenta.Estou na praia como se estivesse só. Olho o horizonte e tento não me sentir única por causa daquilo que passei ou sofri. Chamo-me jovem mulher, tenho uma vida inteira pela frente, e uma outra vida inteira sobre a qual não deixo de ruminar para trás . Sento-me na areia e faço-a escorrer pelos dedos como ampulheta desejando que o tempo não passasse tão depressa. E que tivesse membranas interdigitais na minha mão. Já que passa, que passe um tempo feliz. Mas não sou pessoa de pensar o que se faz om o tempo que jaz entre o nascimento e a morte. Olho para o meu redor e vejo o que felicita a maioria, concordo e acolho para mim no segredo como aspiração envolvente e destino do porvir. II Sinto o tempo a passar, acho que o relógio é a mais patética e fantástica invenção do Homem, que tem a pretensão de andar com o tempo no pulso. O homem que quero na minha vida pode ser caracterizado pelo relógio que usa no pulso. Não quero relógios de borracha e plástico.Os homens que os usam são imaturos e instáveis e pé descalços. Não quero homens com relógios que tenham braceletes de pele a não ser que seja de crocodilo, e seja um grande e rectangular relógio de marca acompanhado com roupa a rigor. Quero os homens com os grandes brilhantes e poderosos cronógrafos feitos em titânio e aço, caros sumptuosos e ostensivos, orgulhosos. Um desses homens sólidos como os balcões de mármore dos bancos, vaidoso de si, faz um figurão na rua comigo na ponta de seu braço. Estes homens andam de Audi, alargam sem engordar demasiadamente, a estrutura óssea, quando chegam aos quarenta anos. Absortos em criar e defender a família, deixam o idealismo de juventude que se submeteu à defesa do lar. Sou a raínha do Castelo onde ele sempre ganha mais que eu. Esta gama de homens tem no máximo duas ou três amantes ao longo da vida que eu nunca descobrirei, é dos meus filhos que me interesso. Os planos são feitos em conjunto e à noite quando chega e estaciona a stationwagon na garagem da vivenda, entra em casa e de vez em quando abraço-me a ele porque no meio de tantos homens é a ele que chamo meu. III Olho para a sua mão que engrossou desde a nossa festa de casamento, onde ele levou terno e estava tão elegante, demasiado elegante. Juntámos as duas famílias, e realizei a minha fantasia de miúda, olhando de frente para a aliança que lhe estrangulei no dedo, e agora é abafada pela carne gorda dos dedos que incharam;olhando para trás para a pré-corte, corte e namoro, primeiros dois anos de sexo selvagem, e os anos seguintes de planeamento ponderado de vida responsável em conjunto, zangas e reencontros (que bom é fazer as pazes) e não chegámos a passar pela crise dos quatro anos que costuma ser o verdadeiro crivo para todos os casais. Casaremos antes de quatro anos de namoro não teremos problemas porque não falta o dinheiro em casa e não vivemos do crédito, é uma vida boa, melhor que a dos outros casais que ou são rivais ou amigos. Fazemos tudo para não perder o que se construiu. Ele não é mulherengo e eu não olho para outros. Escolhi-o porque é sólido tal como o relógio os sapatos e a massa óssea, de jovem em fim de vida.Escolheu-me porque sou uma boa mulher para andar na ponta do braço dele, apresentar à família e aos amigos, sou atinadinha da cabeça apesar de não ser virgem. O meu pai adora-o e ele cativa quem quer. Joga à bola ao fim de semana com os meus irmãos, e depois no fim do jogo discutem negócios carros e as outras coisas que os homens falam para se sentirem mais próximos uns dos outros. Nunca vi ninguém arrumar tão bem as compras na bagageira do carro, nem ser tão terno sem lhe ver ponta de aflição nos olhos quando me afaga.
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Tens-me sentido sazonalmente dentro de ti, quando me lês em palavras que escrevo a negro, na ponta das quais sempre tive necessidade de encontrar e ter uma mulher. Como raio seminal, ejaculo palavras para que concebam em ti à luz do que é belo, para que saiam os pensamentos que te acompanham quando olhas sozinha o infinito que te faz parar.
Preciso dos teus olhos, preciso que olhes para mim. Preciso que me recebas no mais recôndito do teu âmago, além do palavreado bonito, sob o qual se esconde um desejo mais sinistro de posse da tua alma. Preciso que me deixes brincar à solta no mais lugúbre do teu coração, fazendo dentro de ti o amor como uma criança que brinca sozinha com o mundo fechada no seu quarto. Li na tua pele, meu salgueiro que choras Sal, que nunca nos vamos tocar, ou ver mais, desde a última noite que passámos juntos juntos, eu não quero de outra forma. O verdadeiro abraço que dura além do tempo é o abraço do absurdo. E quão absurdo é querer navegar à deriva no coração de alguém que não se conhece...no teu. Condenados que estamos a ser pouco mais que destroços anónimos, ganha valor este ignoto trocar de olhares onde es por pouco tempo um pouco de mim quando me lês e eu provo um pouco do teu morno mosto quando contigo sonho. Entro como nunca ninguém entrou dentro de ti, com a porta franqueada, salto pelas janela gradeadas, nem sei o que vai na tua cabeça, no escuro não consigo acender a luz, apenas posso adivinhar no negrume as sombras com as quais à noite te deitas murmurando o meu nome:'João.João.João...' De mão na mão dada, na mão que raramente consigo dar acordo com a luz que foi acesa. Espero à tua porta no fresco da manhã que ainda não nasceu encostado à parede molhada da tua casa. Leva-me para mais longe, absorvo por completo o teu mundo, deixo-me encantar com aquilo que não é meu, voando um pouco para mais alto longe e sozinho de todos nós. Não dei por te ires embora. Não quero mudar a minha memória. Não consigo estar sem estar contigo a mim encostada, olho a tua cara enquanto dormes, e eu dormir não quero, não quero que passe este tal tempo em que cheiro cada expiração tua, e olho as curvas do teu rosto, fazendo por imaginar o filme da tua vida, adivinhando como será a tua alma através dos maneirismos que vagueiam na tua cara quando dormes. Não estaremos nunca juntos de olhos dados e mãos abertas, como o negro dos olhos dos amantes. Estendes as tuas asas negras na grandeza do Sol vermelho no Céu preto por trás de ti.Vens então à minha boca dár-me fôlego, só o suficiente para me ouvires sangrar. Olho para a distância que de mim a ti se estende, já só caso com uma sombra tua, vai ter comigo onde a onda beija a areia...eu já não vivo. Eu já não vivo. Não sentes, não te dói, sentires-me dentro de ti? Entro em ti?... O entardecer no quarto foi cinzento alaranjado como costumam ser as tardes quentes de Outono.
Suado e exausto, tenho a perna meio jogada de joelho para fora da cama. Tu estás lançada no lado direito da cama mais próxima da janela aberta por onde olho com cortinados leves voando ao vento na casa deserta. Pouso a mão primeiro nas tuas costas sobre um dos rins, depois na nádega que momentos antes também dançara ao ritmo dos nossos gemidos. Dormitas eu não, olho lá longe melancólico o rupestre quadro que entra pela janela, e toda a melancolia do mundo, como sempre vem à existência no meu pensamento. Olho para a paisagem sem a ver, vejo só o caminho até ti, tudo o que te escrevi, disse, fiz, pensei, nessa via sacra que foi impregnar-me naquilo a que os antigos chamavam de alma. A tua alma. Tudo para chegar a ti que naquele leito naquele momento vais dormitar, de barriga para baixo espalhada pela cama, e eu vou gostar de pensar em ti como estando feliz. Não consigo adormecer.Fico contigo, ao teu lado em vigília. Sei que entrei na tua vida e faço parte dela. Sei que se me for embora vais ficar destroçada, partida, moída, magoada. Sei que gostas de mim, daquilo que em mim vês e que nem eu próprio sei o que é. Acarinhaste-me dentro de ti e lá dentro esse eu meu cresceu. Ficou a fazer parte de ti. Impregnei-te de mim, engravidaste-te de mim e agora vivemos juntos separados um no outro. Neste momento em que escrevo e penso em ti com mais força, sei que cada segundo que o faço, te traz cada vez mais para mim. Olho bem para os teus pormenores. Aumenta a melancolia ao pensar que aquilo que é meu nunca por mim será totalmente apreendido. Nunca sentirei todas as variações do calor do teu corpo esmagado contra mim, nunca provarei todas as variantes do gosto da tua língua ao longo de um dia completo. Por mais vezes que tomemos o corpo um do outro, aquilo que realmente és é-me totalmente inacessível. Tu és minha. A melancolia cresce e com ela a impotência em ter-se aquilo que tanto se quer, e assim condenados estamos a não ser mais que invólucros de nós próprios, oferendas para o outro, no mais bonito papel de embrulho que conseguirmos fabricar. Convencidos de que entregámos o que de mais precioso e secreto somos. Lembras-te? Nesse dia que está a chegar, está para vir, iremos sair. Lembras-te? Nesse dia que está para vir, não vou querer ver o Sol deitar-se num sitío que não vejo, sentindo a lenta agonia do dia que se esvai. Terei de sair de lá, da tua cama, pois com o silêncio da noite vem o desespero do silêncio de um dia passado a fazer amor. E que tal carga de intensidade quero eu, que não aguento o normal desenrolar de um dia. Aproveito para te cobrir a pele de beijos, numa liturgia de carinho automatizada. Na boca no pescoço, nos seios, na pele mais macia no flanco logo acima das tuas ancas, na barriga... Digo-te ao ouvido, 'Veste-te. Vamos sair.' Fascinada comigo e com o início de uma nova relação que promete e que como a água do mar, lava o Sal das lágrimas das relações anteriores. Vês-te no meu carro voando pelo Guincho para a Marginal. Levo-te a uma enseada por poucos conhecida e por pescadores frequentada. Na noite alta nos atrevemos a descer as escadas e onde paramos sentados num degrau. Por já só se ver o braço branco de espuma que se mata teimosamente contra as gigantescas praias de pedra, olho para baixo. Olho para ti abraço-te. Temos o abismo a nossos pés. |
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Outubro 2024
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