Alma sem angústia, isto é, sem a inquietação da incerteza e do abismo, deixou de ter raízes na tensão entre o mundo interno e o mundo externo. Alma não inquieta, alma complacente, é um mero reflexo das nuvens sobre as àguas, ou a reflexão da autoconsciência do demiurgo do Génesis. Só o arbusto ardente que na montanha confessou as 10 leis a Moisés, é sinal de vida, ardendo e consumindo-se sem se perder ou desaparecer. Só neste antagonismo teimoso, na não desistência da afirmação da nossa individualidade, pode o homem ser livre. Assim deve vogar o homem pela vida, não se furtando ao que o consome, às forças racionais e sentimentais que borbulham em si como que em copo de cerveja, para morrer em estéril espuma que não resiste ao ar extra uterino que serve de Céu. Essa merda da paz interior anirvanada é boa para mortos, que a possam saborear por toda a Eternidade. Deve o vivo viver e sentir continuamente essa agonia latente e intermitente, ameaçando despedaçá-lo aos 4 ventos, porque só aguentando o peso montanha acima, pode Sísifo transcender o seu destino pelo mais profundo desprezo. Esse abismo que te falei é a escolha afiada entre querer reflectir a sombra que nos vive no âmago ou entre um viver para fora, como aquela comida que chega morna à nossa porta depois da viagem com o estafeta numa lambreta. Ou elevas a tua consciência à força de pensar nela, ou afunda-la na peça de teatro porque não te podes esquecer que só um chega à meta. Sozinho. E como que em jeito de balanço, desenterrei os meus cadáveres, em afã necrófilo, alguns já esquecidos, com as ossadas cobertas de pó revelando ao Sol a sua presença, e iniciei a contabilidade de perceber quais havia enterrado, quais haviam ficado por sepultar, e que raio de coveiro seria eu. Várias vezes me confundi entre ser o assassino que encomendava seus corpos à cova, ou o coveiro que os desenterrava dando à luz já sem carne ou vida, por escolhas que eram ou minhas ou resultados de equações do nosso mundo dinâmico. Os pretéritos cadáveres não sendo senão as miragens de vida que aconteceu uns anos lá para trás. Nunca foram viventes senão animados como marionetas com fios estendidos a partir da minha imaginação. Foram todos escolhas minhas para evitar olhar para o fundo de mim. Se tivesse olhado para mim, que teria visto? Estariam meus olhos preparados para o olhar honesto e radicalmente verdadeiro que nenhum pai me ensinou a ter para com o meu reflexo, por mais duro que exclamasse o juízo? Essa virilidade não transitou e sempre me fui tratando como meio e não como fim, afogado na mais abjecta sujeição às minhas próprias mãos. Teria a informação que tenho hoje, ou os conceitos mais torneados e meigos para com os meus erros? Não. De todo. Não lhe seja imputada culpa. Mas, pouco ou nada saía da minha cúpula de conforto. E assim se entende afinal que num sombrio sentido, tudo é tagarelice. De que valeram os orgasmos passados, as petiscadas, as bebedeiras, a luxúria da amizade em juras de infinito e da afirmação do ego, se em meia dúzia de patéticos suspiros o planeta gira sobre o seu eixo e tudo adorna no chão como as ruínas de uma qualquer feição facial ozymandiana? Não é preciso ser nenhum génio para adivinhar o ridículo da vida. E nele redescobrir a força motriz da minha infância. Não percebo nada disto. O que mudou foi a força da ilusão de que percebia algo, a reboque da minha crença num sistema, de uma vendetta contra o destino padrasto, de um profundo medo em estar enganado. E redescubro novamente o comprazimento a ser o que sou. Sendo-o. Redescubro o prazer em perceber as escolhas que ocorreram e as consequências dessas escolhas. A perplexidade mostra que a aceitação completa, a derrota de qualquer indignação juvenil que possa restar é condição sine qua non para a emergência de força de individuação de novo, com as novas regras aceites. E essas regras faço-as eu, pagando o preço pelas que não posso mudar, envelhecer, ver morrer e morrer no fim. As pazes com o instante só serão possíveis após bater no tapete depois da submissão inescapável, só evidente após a morte do ego. Aqui surge renovado entendimento de mim. E sob essa nova luz, todos os meus amores assumem novas roupagens. Todas as situações e cogitações ulteriores que serviam de lenha para o remoer contínuo à procura de significado, ganham nova capacidade de combustão a partir dos ossos carbonizados. Nascem flores e cantam pássaros, e Beethoven escuta-se lá ao fundo. Só persistindo a lástima de tanta energia nervosa gasta em tentativas de compreensão. Vencer, perdoar, alijar, tornam-se sinónimos. O passado não serve senão como instrumento. Os meus amores não foram apenas expressão das circunstâncias, senão seres abnegados e generosos que me ajudaram a reencontrar o caminho para mim. Agradeço-vos tanto.
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Junho 2024
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