O Pedro ligou-me eram duas da tarde.
Ele e o Jorge são amigos de longa data, fui ao casamento deles. «-Queremos-te hoje aqui às 20 em ponto. O Jorge vai abrir um vinho especial da nossa garrafeira.» «-Querem que leve algo?» «-Só alguém especial, se quiseres.» «-Não, vou sozinho.» Foram os primeiros a dar-me um banho de realidade sobre o que se passara em Lagos. Foi a primeira vez que notei o enfado profundo nela, por passear comigo numa quente noite de Verão, com o mar nas nossas costas. Ao passarmos por uma banca que vendia chapéus, coloca-me um na cabeça a experimentar, e diz que mo oferece. Epá, eu nunca usei chapéus. Desiludida, restitui o item ao vendedor, cabisbaixa. Fiquei a matutar naquilo. Conhecíamo-nos há 7 anos, e nunca me vira de chapéu, que coisa súbita era esta? Eu sabia o que era. Eu estava-me a tornar tão sem sal para ela, como ela já era para mim. Um chapéu, um traço de personalidade que se distinguisse, além da que já tenho, mas parece embotada por anos de familiaridade. Quem nos diz que a neofilia não é por causa da dinâmica sexual entre os géneros..e nós a pensar que era por sermos curiosos. Se calhar é para não nos enfadarmos uns aos outros. Mas eu queria negar essa possibilidade. De que ela se fartara finalmente de mim. O que o meu orgulho não me deixava ver, Pedro e Jorge esfregavam-me na cara. «-João, começa a pensar que ela já passou por ti.» Eu, desiludido e cabisbaixo naquela noite de Santos Populares, com as mãos a cheirar a sardinha, disse-lhes: «-Foda-se, vocês para paneleiros, parecem perceber muito de mulheres.» Riram-se e gozaram comigo, dizendo que as minhas mãos cheiravam às minhas preferências, o que demorei para aí meia hora a perceber, porque o palheto de Alfama é o melhor neuronicida conhecido pela Humanidade. Como me viram abatido, pela suspeita do que lá vinha, tentaram animar-me desviando-me a atenção para outras merdas que eu fingia interesse para não lhes ser ingrato pelo esforço. E eu só me perguntava, qual é o problema. Tudo nasce e morre. Eu também já queria saltar fora, mas estava afeiçoado a ela. Fartara-me antes do que ela, mas a cada noite que lhe despejava amor, voltava ao ponto zero. E assim foi andando. Eram 20 horas e eu batia-lhes à porta com um Douro forte no braço. À mesa, depois do jantar e do brandy, voltaram a ensaboar-me com a necessidade de arranjar uma ‘parceira’ que dito pela boca do Jorge, me faz sempre rir, por causa do seu sotaque micaelense. Falam sobre as virtudes do amor, e o diabo a sete. Eu rio-me e digo-lhes que para eles parece fácil. «-Então porquê?» «-Porque vocês estão de fora, a forma como um homem ama difere da forma como uma mulher ama, e disso vocês os dois não percebem.» O Pedro acusou o toque e deu-me razão. O Jorge, ficou pensativo.
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Devias fugir de mim.
Se me deixas à solta sem me tratares mal, sem me afastares com a tua frieza, vou crescer como bolor nas paredes húmidas dos teus subterrâneos. Vou impregnar todas as células do teu corpo com o meu fôlego. A minha lembrança é a mensageira que avisa a boa nova dentro de ti, que o dono chama. Vais lutar e resistir a princípio, mas sabes bem que esse corpo e essa alma são minhas. Tens andado a viver tempo emprestado, convencida de que os podes dar a outros. Quero que me tentes anular, silenciar e afastar. Porque sabemos os dois que só volto mais forte, e por isso também sabemos que me afastas porque me queres, apenas tens a tua consciência à frente. Quero-te a perseguir-me para todo o lado mendigando que te coma. Só tendo paz, quando chamo teu nome ao teu ouvido, e te beijo o rosto. Incapaz de olhar para longe dos meus olhos e sempre na aflição de poderes ouvir-me respirar, aquecer-te com o calor do meu corpo. Não, não vais precisar de mim para viver. Vai ser impossível viver sem mim. A exultação de cada dia em que te dou o meu carinho, inundar-te-á como onda gigante de graça divina no templo das tuas têmporas. Não beberás outra água que a da minha boca e eventualmente vais pedir-me para te libertar da extenuante existência que me exige. Cedo apenas para que renasças de novo, montada em mim de forma a que nossas bocas se toquem. A única oração que vais conseguir fazer será o abraço apertado e celebrado de culpa, pela arrogância que tens em achar que alguma vez foi possível apartares-te de mim. A praga está lançada. I «É preciso ter sofrido o suplicio de uma cena análoga para compreender tudo o que essa esconde de dores, para adivinhar os longos e terríveis dramas que provoca.» Balzac, A mulher de trinta anos Ela estava na dúvida em relação à capacidade que tinha para se dar, para acreditar, para ser arrebatada, para olhar com esperança o futuro. Atrás de si a lista de ilusões e desilusões amorosas, simplesmente não lhe permitiam alijar a ansiedade de saber que qualquer amor que surgisse, ou seria algo de extraordinário (de acordo com a checklist pueril), ou seria uma situação de recurso relembrada todos os dias em que olhasse para o prémio de consolação. Olhava-se longamente ao espelho, nua, como um soldado analisa a espingarda, com a diferença que o seu olhar carrega melancolia e as mãos esticam continuamente mechas de cabelo em movimentos precipitados em direcção ao peito por entre as pinças dos seus dedos. Não conseguia não olhar para o seu reflexo, e perceber que não conseguia competir com a imagem que lembrava de si mesma há 20 anos. Entretanto, o mundo e a vida não parando, inundam o mercado da carne com competição mais firme, tonificada, e capaz de entrega. Um sentimento de injustiça e condenação pareciam esgrimir-se na sua mente. Injustiça, passou tão rápido. Condenação porque os que estão dispostos a contentar-se com ela, são os prémios de consolação que não lograram consolar ninguém. O que foram consecutivamente descartados por critérios demasiado lunares. Compensando a sua monotonia neuronal, apenas apreciada no mundo do trabalho, com a sua prostituição invertida, na forma de atrair a parceira não com a sua pessoa, mas com os meios que acumularam tipo formiga laboriosa, em virtude da expressão da sua mundividência: a relação entre os sexos é contratual. Nisto pensava, bem como na suspeita de que os homens têm um profundo desejo, e fraqueza, de serem amados pelo que são. E que passam a vida inteira a comprar vulva a partir do que dão. E que é este o motivo pelo qual alguns criam ressentimento e despeito para com as mulheres como um todo. Doía-lhe ainda o abandono do seu colega de trabalho 10 anos mais novo, as suas promessas de envelhecerem juntos e de mãos dadas, haviam feito que ela começasse a mencionar o nome dele aos pais, primeiro como colega, depois como amigo. No seu sonhar acordada, visualizava o seu triunfo na vida, mostrando aos demais que a sua personalidade e o seu aspecto físico haviam sido reconfirmados em alto valor, pela obtenção de um prémio na figura de um homem mais novo, mais elegante, mais bem vestido. Combinavam encontros por via da localização do whatsapp, partiam no carro dele para sua casa, de onde ele a tinha convencido a aninhar e a descartar o seu anterior amante, com fotografias de lareiras acesas e aconchegantes, de copos de vinho prometedores, de camas vazias à espera de conteúdo. O que começara por uma mensagem de grupo de whatsapp supostamente transviada, tornara-se no paliativo para a monotonia que ela sentia em relação à vida prévia, e ao adereço em forma de homem, que largara. Saiu uma ou outra vez com as amigas dela, mas ele mesmo sabia que ela era apenas um passo no seu caminho, e as promessas que lhe fazia, são permitidas, quer nos manuais da guerra, quer nos manuais do amor. Não lhe quebraria o amor próprio. Provaria a taça de mel, as vezes que quisesse, mas não celebraria qualquer sacramento, afinal era ele o prémio, mais jovem, mais composto, mais bonito, sem maquilhagem. Ela ainda suscitava uma ou outra erecção, mas existem mulheres para comer, e mulheres para desposar. E esta perdera o baile. No acmé, ele sentia que tinha de desfrutar este ponto alto na sua vida, apenas passando pela vida de outra, que já iniciara o longo caminho do ocaso. Mas em breve se fartou, a falta de firmeza na carne dos braços, as crateras de celulite nas pernas, os papos nos olhos e debaixo do queixo quando ela se levantava de manhã, o feitio dócil e sem notoriedade, em breve o lembraram que a missão estava cumprida, e que tinha aproveitado o seu momento, bem como a vantagem de poder dizer lá no trabalho que comera a gaja nova. Havia que procurar conforto na codependência do seu grupo de amigas, que a incentivaram a tomar acção e a mudar de vida como diz o povo. Grupo de amigas também, todas elas em diferentes graus, que davam conselhos sobre assunto que não tinham aprendido. Sim, que isto de levar um homem para a cama não é difícil, mantê-lo lá ao longo dos anos é que é desafiante. Mas quanto mais os amantes sucessivos se desviam do viço dos primeiros, menos esforço genuíno estão elas prontas a fazer. Insistem que têm de ser apreciadas por quem são, quando são incapazes de amar os outros pelo que eles são. A não ser com fabrico próprio de muita falsa moeda. Sentem que não têm de despender aquele esforço extra para agradar ao pretendente não óptimo. Ao pretendente que nos seus olhos não reflecte o valor que julgam, querem, ter, aos olhos dos outros. «-Estou farta de homens que não sabem o que querem.» ia dizendo, para retirar o foco de qualquer responsabilidade nas suas acções, como se o mundo apenas lhe devesse coisas boas. O vexame de ter ouvido vezes sem conta, historietas morais sobre a ideia de que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar, tornaram-na ainda mais introvertida do que já era, guardando as suas palavras e reacções, o mais possível, por uma profunda vergonha de ser quem era. Doía, mas não podia chorar sobre o leite derramado ou engolido. Havia que retornar ao ginásio, descobrir nova roupa e cosméticos que maximizassem o que ainda tinha de valor, para captar a atenção do melhor homem que ainda conseguisse. Sabendo no seu íntimo que uma bóia de náufrago, não é o navio que se afunda, mas ainda assim, permite manter à tona. Tentou fazer introspecção, e a melhor conclusão a que chegou foi que não sabia usufruir plenamente da sua sexualidade, que havia que de alguma forma se libertar de amarras que senti em si. Inscreveu-se em seminários de gurus feministas que lhe ensinavam que tudo o que de mal achava ter, era responsabilidade dos homens, da sociedade, das moscas, da vespa velutina. Pagava para ouvir que não tinha responsabilidade nas consequências das suas escolhas. Lembrou um ex que lhe oferecia livros, e lhe tentou ensinar a fazer introspecção. Não percebeu porque se lembrou dele, mas lembrou, com algum asco à mistura, pois quando um homem tenta explicar algo, da sua boca só parecem sair frases de convencimento para que ela não se liberte dele. Por mais boa vontade e estima que ele tenha tido por ela, que se tenha preocupado, o silogismo é simples e retorna sempre ao mercado da carne e à relação entre deve e haver. As contas de merceeiro que todos fazemos, manipulados pelas nossas colónias de genes que se querem propagar. O reflexo mandava de volta o olhar triste e melancólico da certeza de que o próximo, a existir, iria exigir uma dose maior de fingimento e omissão. Os tempos do idealismo emocional ficaram para trás, o mundo agora é mata-mata, e o homem um parceiro a saber manter, sob pena de se perder a única e última oportunidade que valha a pena. Ou ele tem de ter tão pouca autoestima que o faça participar voluntariamente na farsa a dois, ou, ter uma tal bonomia de carácter, que apenas se rale com a diminuta lista de amantes passados, e a simplicidade dos seus modos. E no entanto, comprará sempre um presente envenenado. II «O casamento tal como se pratica hoje, parece-me ser uma prostituição legal .» Balzac, A mulher de trinta anos Feliz ou infelizmente, o que não faltam são homens em busca de um útero a quem chamar seu. Ou quando o útero passou do prazo, uma vulva intermitente, gerida a pinças, de modo a manter a ilusão de equilíbrio nas relações. Diz a sabedoria popular, que a verdadeira medida de carácter é a forma como tratamos os outros quando não precisamos deles. E que em abundância, poucos são aqueles que conseguem ser justos ou decentes. Há qualquer coisa de análogo entre o pato-bravo que gasta dinheiro em flamingos cor-de-rosa e a mulher que tem mais de um pretendente. Especialmente se um dos pretendentes gostar mesmo dela, sente-se confortável na escolha, e nunca descalça, perante amanhãs cinzentos. O delicioso string along que opera, mantendo o peixe preso pelo beiço, de forma a que nunca solte o anzol, garante sempre uma dose de autoestima a pedido, quando necessita de se sentir bem consigo mesma. Sem éticas profundas, sem complicações desnecessárias de uma vida que se torna simples a partir de mantras simplórios. Sabe perfeitamente que tem de criar a ilusão do carácter especial do seu encontro, o gajo, o verdadeiro romântico em quase todas as relações, tem de acreditar que não existe contrato na sua relação. «-Lembras-te da primeira vez que me deste a mão? Senti um choque eléctrico na glândula pineal e borboletas na barriga.» Enfeitiçara um polícia, profissão com algum prestígio e que ganha acima do ordenado mínimo. Não cita Shakespeare, mas sabe como funciona a lei nos casos práticos da vida. Tem, por isso, mais utilidade numa existência que não passa de materialista. Para quê complicar as coisas? Saber fazer introspecção não me traz pão à boca, nem é bom assunto para falar à mesa, nos happenings sociais. Dedica agora todo o esforço para se prender e moldar ao homem que é a última oportunidade de mostrar ao mundo as consequências das suas escolhas. Escolhe roupa em catálogos online, e passa a dedicar ainda mais tempo à magia da maquilhagem. À noite quando lhe abraça os ombros, para não se mover muito na cama da obrigação copulatória, diverte-se a sentir os movimentos de ascensão que o colchão providencia, e quando começa a ficar seca, pensa em amantes passados que ainda lhe povoam os sonhos. III « Não amamos nossos iguais.» Balzac, A mulher de trinta anos Culpa tudo, todos e o mundo à sua volta, incapaz de olhar para si. Sabe que não pode olhar, pois não só assume a responsabilidade das suas escolhas, como não quer perceber o grau de agência que não tem. Culpa este ou aquele namorado por usarem roupa desadequada, quando ela usa a roupa que pouca individualidade confere. Queixa-se dos artifícios dos homens, apesar de estar coberta de tinta, cremes, e lantejoulas que parecem criar uma divinização ou teatralidade da sua imagem. Queixa-se dos namorados que não queriam trabalhar ou não tinham aspirações, apesar de as suas qualificações não a fazerem mais que empregada fabril com vitaminas, deslocada, e sem encargos fixos que uma vida em comum, acarreta. Pais e tios podem ajudar, e assim a vida é satisfatória, e permite avaliar as vidas alheias, de uma posição de superioridade, mesmo que infundada. As pessoas valorizam diferentes coisas, e é assim que deve ser. Mas não evitamos deixar as nossas larachas e opiniões, mesmo em assuntos que conhecemos pouco. Por exemplo, o porquê das nossas avaliações, e a nossa incapacidade de autoanálise com olhos objectivos. Fugimos todos da verdade e apontamos em acusação, todos aqueles que tentam expor o jogo. Confundimos não falar com aqueles que amámos, com resolução do que ficou para trás, talvez com medo de que nos deitem na cara, que no fundo não somos boas pessoas, mas que mesmo os imbecis precisam de amor. Eu por mim, detestaria deixar essas palavras no mundo, por mais que me apeteça. Para quê afundar mais os cadáveres adiados, que se julgam acima de mim? Não, o mundo está bem assim. Cada um faz a sua cama e refastela-se nela. E é assim que deve ser. A imagem no espelho que lhe devolve o olhar, torna-se cada vez mais uma figura desconhecida, entre a diferença do que era lembrado e uma realidade que se recusa. A incapacidade de avaliar as suas escolhas, não é defeito. É protecção. Do mesmo modo que um assassino dorme consciente apenas porque lhe disseram que nada de mal fez por matar quando era soldado. IV « Uma mulher que há muito tempo perdeu a esperança no futuro ou em si mesma ; uma mulher desocupada que confunde o vazio com o nada .» Balzac, A mulher de trinta anos Inunda-me o telefone com mensagens sobre o quão especial foi um encontro que tivemos. Mesmo que no dia a seguir, o namorado tenha estalado os dedos e ela tenha voltado a correr para Peniche, como cachorro bem treinado. Pressionava-me a dar respostas, que eu estava farto de não dar. Queria ganhar, não a pessoa, que isso vem com o tempo, mas a garantia que eu não puxaria o tapete. Eu disse-lhe «-Tu não me queres a mim, tu queres é um namorado.» Teimosos estes gajos que insistem em ser amados pelo que são, e não pelo que dão. Tal como as feministas gordas querem ser amadas pela banha e pelos charros que fumam. Cada indivíduo quer confirmada por outro, a magnificência que a si próprio não consegue dar. Ela preparara-se bem. Antes sozinha que com um homem que considere inferior a mim. E disse-mo, certa vez no carro, que se calhar ia acabar como a Noémia, uma prima mais velha, que também ficara solteirona, mas tinha uma casa ou ninho, decorado com muitos objectos acumulados ao longo dos anos. Que isto de ter homem não é troféu, e que podemos ser felizes apenas apreciando a vida familiar sem apêndices emocionais externos. Uma espécie de grito de Ipiranga, ou tudo ou a morte. Ou o rei, ou nada, como palavras saídas da boca de uma plebeia. Tanta pragmaticidade e geração após geração, ficam pelo caminho todos os que não se adaptam. Rejeitados por cadáveres adiados. Medrosos. Atávicos. De partir o coração. V «Existem pensamentos a que obedecemos sem conhece-los : estão em nós sem que saibamos.» Balzac, A mulher de trinta anos Repetem à náusea que os homens são comandados pela cabeça de baixo. Enquanto calculam o deve e o haver das suas vidas, sem qualquer arremesso de paixão. Que são guiadas pelo coração, pelas emoções, pelos sentimentos. Mas são implacáveis quando os seus interesses estão em jogo, com amnésia rápida nas ofensas cometidas, na inversa proporção da lembrança das ofensas que sofrem. Não se pode culpar uma marioneta, convencida que é mulher, quando é apenas uma mão invisível que a controla enfiada nos entrefolhos. Devemos portanto ver para lá da maquilhagem, e ter pena dos seres que só aparentemente levam vantagem na ‘vida’. VI «- Senhora, é preciso saber esquecer suas dores ou cavar um túmulo - disse.» Balzac, A mulher de trinta anos Até porque se soubessem a merda que fazem, se dela tivessem consciência, não conseguiriam viver consigo mesmas. Como não conseguem. Ela ainda me disse «olá» a partir do túmulo, e convidou-me a entrar, vamos morrer juntos. Mas amor, morta já tu estás. E eu não me esqueço de como procedeste comigo, apesar de me veres sorrir para ti. Mas João tens de perceber que eu só queria segurança. Sim, amor, eu sei. Eu conheço essa história tão repetida como a do bebé que flutua no Jordão e se torna rei quando adulto. Mas tu só te lembraste da minha existência após terem ocorrido todas as pragas. Diz a sabedoria popular que a verdadeira medida de carácter é a forma como te tratam quando já nenhum interesse têm em ti. Não podemos levar a mal, não terem carácter. I Andei 2 semanas com o coração apertado. O fascínio por ela havia-se pisgado pela nesga da porta. Ficara apenas um imenso carinho. Mas não aquela tesão de chafurdar-lhe todos os poros do corpo. Curioso a malta dizer que o ‘amor’ é o mais importante da vida. Pelo que me toca sou incapaz de amar o que não me dá tesão. Ela era, e é, uma das melhores pessoas que já conheci, mas a falta de brio e autoestima, e sejamos sinceros, de maldade, sopraram a vela do meu desejo. Apenas subsistiu um sentimento atroz de lhe estar a queimar tempo de vida, por a partilhar comigo, que já não a desejava. Percebi já tarde, que o que definhara dentro do peito, fora o amor que lhe tinha, mas ida a tesão, a raiz secara por falta de rega. Para não a magoar, disse-lhe que tínhamos de dar um tempo. Não queria que chorasse à minha frente, nem eu tinha a coragem de lhe dizer que preferia estar sozinho do que com ela. Mentindo a mim, e sobretudo a ela. Curioso, como desprezo isso nos outros quando mo fazem. Foi a única resposta que tive na altura. Se calhar é por isso mesmo. Passado cerca de um ano, surgiram outras pessoas na minha vida, as complicações emocionais (nome pomposo para a responsabilidade moral para com alguém que sabemos gostar de nós) não existiam e faziam-me andar solto e alegre por estar vivo. Da cama de uma para a de outra, no meu carro, nos carros delas, tomar café ou almoçar, eu borboletava por entre as flores que me apareciam ao caminho. Recebo um telefonema no Nokia 7110, era ela. Que se fartara de esperar, tinha pessoas atrás dela, e estava-se a privar de relações, por estar presa a mim. Combinei falar com ela, café na FLUL. Lembro de sentar o cu numa pedra fria, e ouvir o meu ego dizer para a meter no carrossel de mulheres à minha volta, que eu tinha na altura. O filho da puta fazia tábua rasa de todo o meu esforço moral, para proceder correctamente com ela. E como fui acusado de não o fazer. Na altura em que a ruptura se operara em mim, foi quando ela perdeu o pai. Num crematório, no Alto de São João, lembro de a abraçar, com força e sem conseguir acompanhar o seu choro, pois eu fico assim, quando estou em choque. Beijou-me na boca e não tive a coragem de lhe negar o afecto de que estava a precisar naquela situação. O marido da sua melhor amiga chama-me à parte, mais tarde, e chama-me à atenção então afinal se estava a cortar com a miúda, andava a beijá-la dando-lhe esperanças. Como já tínhamos saído do cemitério, e estávamos a sós, disse-lhe :«-Vai para o caralho pá.» Passaram uns meses e ela voltou a ligar-me, e eu chorei ao telefone sem ela saber. Lembrei-me de quando conheci o seu pai, uma jóia de pessoa de quem gostei imediatamente. Era daquelas pessoas que por mais mal a vida lhe lançasse ao caminho, tinha sempre uma palavra amiga e justa para com os outros. E a mãe também. Isso também me pesou, magoar a filha, o pai, a mãe. Foi uma altura fodida, pois várias pessoas à minha volta estavam doentes. O namorado da minha mãe, que finalmente arranjara alguém que a apreciava pelo seu pleno valor, também andava na quimioterapia, no qual eu o forcei a ir, pois os filhos não se tinham apercebido que o pai não estava normal, tremendo das mãos e articulando mal as frases. Foi num instante, e levei-o ao São José, e os médicos disseram que ele já não saía de lá. Fiquei a olhar os cabrões dos vitrais do ex estaminé dos Jesuítas, a engolir em seco e a não conseguir articular uma puta de uma palavra pensada, das minhas várias teorias metafísicas. Ao telefone ela queixava-se que tínhamos de resolver a situação, e que ia começar tudo de novo, mas desta vez ela ia ser mais difícil, custar mais a conquistar, para ser mais valorizada. A ingenuidade comoveu-me ainda mais, e senti que tinha de ser um cabrão para ela, para que passasse do amor ao ódio da minha pessoa, para poder amar outras. E fui. E amou. E pedi-lhe desculpas, mas nunca me respondeu mais. De homem tornara-me lobo, passado o luto pelo rodízio emocional intenso. Pessoas de quem eu gostara, tinham-se ido deste mundo, e após uma fase mais depressiva voltei a chafurdar como porco no cio, em carne feminina. Todas as cores, todas as idades, todos os caminhos na vida. Sou um fornicador eclético. Delimitava os envolvimentos, prometendo amor e compromisso quando só almejava conhecer mais uma boca, um corpo que me mostrassem o terreno incógnito da natureza humana. Eventualmente fartei-me do esvaziamento de significado. E ela apareceu. II Ela adorava o Natal. Vibrava com a expectativa de adivinhar as reacções das pessoas aos presentes que oferecia com tanto tacto e escolha. No chão do meu UMM colocou todos os presentes que tinha para mim. Ainda estava quente de ter ido ter com ela à Margem Sul. Já não me lembro porque é que abrimos presentes no meu carro. Ofereceu-me um relógio de aviador em aço preto que eu andava a namorar fazia tempos, ainda por cima era de fabrico nacional. Um livro de Oscar Wilde e dois de Husserl. Fiquei sem palavras e ela percebeu isso olhando-me o rosto. Extremamente generosa, motivava todos para a vida, e éramos felizes até descobrirmos que também em si, as metástases tivessem continuado a crescer camufladas por entre os órgãos. Dizia que sentia guinadas na cabeça e nas costas, e eu convencia-la de que era o colchão. Lá mudou de colchão, mas nada mudou. Ninguém como eu, para espírito de recusa e negação. Certo dia liga-me do I.P.O. e diz-me que queria que eu escrevesse sobre ela, que queria que eu usasse o relógio para me lembrar sempre dela, e que as máquinas a que estava ligada, pareciam calculadoras, a avaliar o que havia feito na vida. Certo dia, ao jantar, com a sua extraordinária mãe, levantou-se a chorar, porque sentira que era o jantar da despedida. Dissemos que tudo ia correr bem, para não pensar assim. Passado pouco tempo, quando me atrasei no trânsito na Praça de Espanha, cheguei atrasado à visita, e só já encontrei gente a chorar e o meu amor de boca aberta, que beijei também com a minha garganta totalmente embargada. Fiquei com a função de aguardar o carro funerário, olhando pelas janelas para a luz que me esporrava a cara, perguntando se eu estava amaldiçoado, como se ofensa tivesse sido feita a mim. A transmutação para personagem lupina estava cada vez mais difícil, a emancipação férrea, valia cada vez menos a pena, pois a minha alma estava cada vez mais pequena, com o desaparecimento sucessivo dos meus. III Dançava músicas das Pussycat Dolls, muito bem. Afogava demónios com álcool e ganza. Queres fumar? Sabes que não fumo dessa merda. Achava-lhe graça, nos seus jeitos, e no seu achar que por sermos de gerações diferentes, eu era uma antiguidade de museu. Se ao início era eu e ela e o mundo, no espaço de um ano voltei a perder a pica com ela, por causa de continuar a afogar os seus demónios com actividades que lhe davam cabo do corpo e do espírito. Justificava que quem a amasse tinha de amar como era, e não a forçar a ser melhor. Pá eu respeito as tuas decisões, mas fumas como um cavalo, e os charros tiram-te congruência no discurso. É como estar sóbrio a falar com um ébrio. Barafustava e dizia que se eu queria modelos e mulheres perfeitas, que tinha a porta aberta. Eu respondia «- Vai para o caralho pá.» Ligava-me depois, a altas horas da noite, a dizer, tens razão, eu sei que não dizes por mal, nem é para me mudares. Quando a lucidez batia, ela conseguia ser bastante clara nas palavras e actos. Mas o mal estava feito. Não sou capaz de amar que não se ama a si próprio. O afastamento foi gradual, e quando começou a trabalhar aqui no Beato, pediu-me para ir ver a agência de filmes onde ela fazia os cenários. João tu fizeste-me mal, e todas as merdas que tinha feito. Ouvi. Pensei, e pedi-lhe desculpa, afinal, nunca fora a minha intenção. Mas todos somos, em maior ou menor grau, influenciados pelo estado emocional. Olhei seus olhinhos azuis e pedi desculpa por a ter magoado mesmo que inadvertidamente. Dei-lhe um abraço, um beijo na testa e fui-me embora. Ela não desistiu, e mandava-me vídeos dos locais onde trabalhara, com ela em roupas que permitiam ver a melhoria do seu corpo, decorrente da melhoria do seu estilo de vida. Era o anzol. Mas eu já sabia que era o mesmo que ir betumar uma nau no Restelo, que já ia a meio caminho para a Índia. Podia voltar por fim a transformar-me em lobo, mas o cansaço era tal, que era preferível rabiscar memórias e deixar-me ficar humano. Ou arriscar magoar gente decente que não merece. De todo. Acordei e eram 3 da manhã no despertador. Fui à casa de banho lavar a cara, mas acabei por voltar à cama na esperança de adormecer. Fiquei irritado por não conseguir e saí da cama de vez. Lá fora o mundo chamava, e as auroras prometem sempre uma frescura amena consonante com a minha pele esticada. Moí grão de café, e deixei a máquina espremer aquosamente a cafeina para dentro da chávena. Há três anos que decidira ser escritor, desde que me dedicara por inteiro à Filosofia, e aprendera que podia debater qualquer assunto e ganhar qualquer discussão por força da minha postura de sofista, traidor da causa Filosófica. Fascinava-me o poder daquelas linhas pretas, especialmente se reflectiam na mente das cachopas que eu tentava impressionar com a minha verve e intelectualidade. Mas acima de tudo, o sentido possível na recombinação de palavras e tempos verbais, adjectivos a la Fialho de Almeida, ou descrições pormenorizadas a la Luiz Pacheco. O que escrevia visava ir direito à aorta de quem quer que fosse a miúda que me captasse a atenção, ou qualquer uma que me prometesse vulva, a minha droga. O futuro era o lugar da promessa, e sabia bem querer ir para lá o mais depressa possível, persegui-lo com as nossas fantasias, todas possíveis no indefinido correr dos momentos. Fascinava-me o fascínio quer pelas ideias quer pelas mulheres e seus corpos. Seus espíritos assustavam-me, facilmente me dissolvia neles, com contacto suficiente. Posso dizer que passei metade da minha vida a procurar uma relação com alguém que não dependesse da minha (ou dela) intervenção, e apenas fosse, um testemunho da operação de uma causa superior a nós. Que não pode ser meramente biológica, a não ser que os genes reconheçam em corpos alheios outros genes com quem se darão bem recombinados no pós-parto. Posso dizer que passei metade da minha vida a vê-la escolher sempre outros, à boleia do seu livre-arbítrio que sempre me tratou como relativo, embora eu sempre a tenha visto como absoluto. Nunca fui escolha, e já aprendi a aceitar isso. Não há problema. O facto de existir é suficiente. Agora sim, vou lavar o rosto, e tenho o focinho molhado, os olhos amarelos penetrantes e raiados de sangue, as orelhas erectas e negras cobertas de pelo. Um belo lobo negro e luzidio. Sob duas paras vogo pelas ruas e conheço Paula. Escrevo-lhe poemas e sonho com ela na recruta. Troco um pacote de bolachas com recheio de geleia de morango, por um poster de uma tipa que tem uma cara exactamente como a dela, mas está nua à nossa frente, e tem mamas mais pequenas. Eu tinha de a ter comigo, seria a única forma de a guardar, e à sua lembrança, enquanto tinha ido para a Universidade e eu estava numa coberta a aprender a ser marinheiro. O contrato envolvia o pacote de bolachas e a visualização do poster sempre que solicitado. O meu cacifo era portanto o único que estava sempre aberto, e com multidões que perscrutavam regularmente o seu interior a apreciar a sósia da Paula. Fui o namorado mais pobre que a Paula alguma vez teve. Detestava os subúrbios e era obcecada com o que ela chamava de ‘segurança’. Fui ao seu casamento, convidado apenas para fazer número e parecer que ela tinha relações sociais e amigos, para a família do noivo. Eu e antigos colegas, a quem nunca voltou a contactar. Não podia censurá-la, pelas vezes que a usei por intermédio da sua sósia, para me aliviar o desejo. A última vez que nos vimos, mordeu-me no trapézio direito, quase a chegar à omoplata, cravando os dentes até que ajoelhei, mas felizmente era só músculo. Passei um dia mal, dois, três, e eventualmente recuperei, mas fiquei com uma pelada em grande parte do corpo. Depois foi Cristina, que também tinha essa fixação com a ‘segurança’. A história até foi engraçada, mas um completo desperdício, parece-me. Eu estava tão feliz naquele Natal, com trabalhos muito interessantes, para completar, passava os dias entre as bibliotecas, as piscinas e as tabelas de basquetebol. O seu queixo tremendo perguntava-me o que queria eu com ela, e eu respondia, sabes bem, não consigo ser mais claro que isto. Desflorada algures em Cascais, viemos de mão dada para as aulas, e sentíamos que o mundo era nosso e era aquela cumplicidade que sempre desejáramos num ser humano para aliviar mágoas passadas. Certa vez enquanto falava do céu, ela mordeu-me no pescoço, mesmo na jugular, e levou grande parte do meu sangue. Chorei por meses, mesmo que passando de cama em cama com outras. Uma delas Lúcia, que quando achou poder-me substituir com alguém melhor, me lançou nos braços de uma amiga encalhada, como se eu fosse um vibrador que se empresta depois de lavado, claro. Demorei uns dois anos a recuperar e caiu-me quase todo o pelo. Olhava ao espelho e já não tinha ar feroz ou de predador. Parecia mais um hominídeo, ou em vias de o ser. O meu rosto ganhava feições circulares, e os olhos estavam claramente à frente e lado a lado, para ter uma visão estereoscópica. Em cada cicatriz de maxilar na minha carninha, vou perdendo o viço de lobisomem, e tornando-me mais homem, o quer que seja que isso significa. O meu sangue não se repôs. Quem o bebeu não mo devolveu. Mas por um lado é bom, não tenho de dar a volta a sete freguesias para voltar a ser humano. Apenas ir sendo mordido, consumido…em lume brando. E não uivar. As primeiras notícias surgiram na televisão pela manhã. Metade de Lisboa estava a arder, e não haviam ligações com a Margem Sul, e a A1, IC17, estavam por algum motivo, bloqueados. Eu tinha pedido o dia para ficar em casa, e tinha planeado escrever um texto ou ler parte de um livro. Levei a cadela à rua e dei comer à cadela e ao gato, feito de outros animais mortos que eu não conheci, e que faço por esquecer, apenas devido ao meu apego emocional a estes 2 quadrúpedes em particular. Os únicos inocentes na minha casa, eram os dois periquitos que apanhei perdidos na rua, um deles veio-me chamar à minha marquise, e a fêmea veio contra mim fugida de um gato. Havia outro, que trouxe para casa por ter pena de o ver numa gaiola zincada, sem ver a luz do dia ou o ar fresco da noite, metido num canto de uma parede de loja de animais onde fui comprar comida para periquitos. Morreu nas minhas mãos, com o peito inchado depois de ter comido todas as sementes pretas quando mudei a comida. Eu não sabia que os bichos podiam morrer de gula. Ou melhor, sabia, mas tinha-me esquecido. Alheio aos problemas que consumiam, literalmente, o mundo, sentei-me à secretária, liguei a Pioneer dos anos 80, e meti a tocar música dos 90. Desliguei, porque em vez de me inspirar, só me levava para longe do sentimento lúgubre que me dá jeito para escrever. Sobre os colapsos coronários dos meus amores que não me escolheram. Ou abandonaram. Ou usaram. Ou outras merdas do tipo, que são mais importantes do que a fome em África ou os números galopantes do suicídio à escala global. Ao abrir a caneta, a tinta permanente mancha-me os dedos, digo «-Foda-se.» e vou lavar as mãos. Desmonto o aparo, limpo com papel higiénico, volto a montar, e dou-lhe 3 abanões súbitos para fazer fluir a tinta, para onde interessa. Com as folhas de papel branco à frente, pergunto-me a mim, sobre o que vou escrever. O abandono? Já fiz muitas paredes de texto sobre isso. Sobre a traição? Não, não quero perder muito tempo a vitimizar-me pelo comportamento de outros. Sei no fundo que vou falar do mesmo, da dinâmica entre as pessoas, os jogos que jogamos nas nossas cabeças, as contas de merceeiros que fazemos de modo a levar o melhor para nós, desta vida, neste mundo. Passa-me pela ideia escrever sobre a Patrícia. Mas para mim é sagrada. Foi a única que de uma forma ou outra se comportou à altura comigo, mas mais do que ter a ver com a sua personalidade, de ser bem formada, deve ter tido a ver com o facto de ter sido eu, a partir-lhe o coração. Se calhar as pessoas lixam-se umas às outras não só por egoísmo, mas também por causa de se anteciparem à desilusão que inevitavelmente sempre ocorre se vivemos uns com os outros, tempo suficiente para nos conhecermos. Escrever sobre a Patrícia só me iria fazer sentir estar na merda, ser uma merda. Escrever sobre outra, alguém a quem acusar de todos os males do mundo, só me faria sentir igual a uma feminista ressabiada que nenhuma responsabilidade assume de nada, culpando sempre o sexo oposto por tudo o que de mal lhe ocorre. Não, eu sou responsável pelas minhas escolhas, defeitos, e consequências de ambos. Enquanto não sei sobre quem vou falar, começo da minha forma tradicional, com alguma consideração filosófica de pacotilha, generalizando merdas que pertencem ao domínio do particular. Começo por falar na minha obsessão por pessoas que se acham melhores que eu. Pergunto-me de onde vem esta vertigem acerca da necessidade de agradar a quem não consegue retribuir. É a minha natureza de homem, orgulhosa, arrogante e viciada em reparar mecanismos, que me seduz para organismos? Organismos animados pela crença de que o seu valor enquanto seres conscientes, cognoscentes e sociais, suplanta o meu valor, do tipo como um vampiro seria capaz de cheirar o meu coração menstruado por detrás de uma parede de cabeças de alho? O que está por detrás da avaliação feminina acerca dos potenciais parceiros amorosos, é a tal natureza divina, é um olhar penetrante e um acesso privilegiado à realidade? Ou é um conjunto de critérios tornados intuições ao longo de 100 000 anos de evolução? Melhor ainda, se é uma estrutura inconsciente que determina o consciente das cachopas, como é que aqui o ‘je’ nunca percebeu que tinha de perceber o olhar judicativo da fêmea, e aplicá-lo a si, de forma a ser como o choco e lubrificar o seu caminho até à vulva? Ah pois é, é difícil fazer avaliações difíceis sobre nós próprios, perceber que nada há de extraordinário nas avaliações femininas, mas que há muita ‘extraordinariedade’ na puta de teimosia na minha pessoa, que teima de forma tresloucada, acreditar no mito da alma gémea, e por arrasto, que é o mais correcto ser a versão preguiçosa de mim mesmo, uma triste desculpa para não me esforçar o suficiente na luta implacável que é a reprodução. Epá, mas queres ver que as minhas lamúrias não passam de uma tentativa de fugir à minha responsabilidade por ser preguiçoso, ou de algum modo achar ser especial? Queres ver que a recusa em adoptar o método que observo noutros, é uma teimosia minha que visa apenas dar-me a ilusão da superioridade moral, que no fundo não passa de achar-me melhor que os demais? Queres ver que sou woke e feminista ao mesmo tempo? Ou será que sou alguém que eleva demasiado a fasquia do que seja um ser humano e as relações do mesmo com o que o rodeia? Estarei ainda infectado com o fungo do idealismo? Onde está a divisória entre soberba e elevação ética? Oh céus, estes problemas de primeiro mundo. Recebo várias mensagens no whatsapp, e ao ler, não acredito no que leio. Parece que os fogos em Lisboa ocorrem igualmente noutras capitais com aeroporto, e que é um novo vírus que ainda não se conhece a origem mas que provoca ataques súbitos de instintos homicidas, e tendências pirómanas. Os meus amigos e algumas amigas perguntam se estou bem e aconselham ou a fechar-me dentro de portas e não sair à rua, ou a sair de Lx. Respondo a todos, assegurando que estou bem, e volto ao trabalho, que os meus problemas de primeiro mundo são mais importantes que outra pandemia. Recomeço nas folhas em branco, e pergunto-me se não fui de peito feito e livre vontade, colocar-me nas bocas das lobas, e agora queixo-me de ter sido devorado por elas, só me restando os ossos e alguns nervos. Se o meu próprio desejo é aqui o homicida, ou se é a suposta natureza feminina, comum a metade dos indivíduos deste planeta, a responsável pelo dóidói. Mas claro que é o meu desejo. Existem dois tipos de prisão, as facultadas pelo estado, e as facultadas pela minha própria volição. Desejar é estar preso. É estar dependente do outro. É ceder-lhe poder. Os estóicos não comiam bananas com a testa e sabiam o que diziam. Raios, eu próprio escavei eremitérios medievais nos lugares mais isolados deste país, onde a malta se refugiava dos caminhos sinuosos do mundo, e da incapacidade em lidar com o que fosse a natureza feminina. Lembro de estar a alinhar cortes numa dessas escavações, e perguntar-me a mim mesmo de que fugiam aqueles gajos, e de que se queixavam daquela civilização, se o ar era limpo, a comida de melhor qualidade, e as mulheres mais ingénuas, por comparação com o presente. Toca o telefone. Mais um amigo a dizer para eu ver as notícias. A Coreia do Norte atacou a do Sul, o Japão apoiou a Coreia do Sul, a China a do Norte e declarou guerra ao Japão, os Estados unidos enviaram 5 porta-aviões para a zona, a India declarou guerra ao Paquistão e à China por causa de disputas na fronteira, e a Turquia andou a ocupar ilhas gregas. Os especialistas chamam-lhe a III Guerra Mundial, e eu só consigo dizer «-Esta gente está toda maluca. Já não bastava a Ucrânia.» Agradeço o contacto do meu amigo e despeço-me dele, não sabemos quando vão começar a voar bombas radioactivas por cima das nossas cabeças, pelo que cada minuto é precioso, antes da chegada do fim. Olho para o relógio e é quase meio-dia, vou ao Aldi comprar o almoço, vou a guiar e apensar em fazer um bife de atum, carregadinho de mercúrio, acompanhado por um arrozinho de tomate. Chegado à loja, as prateleiras estão quase vazias, consigo apenas trazer um saco de batatas para cozer, tenho uma lata de sardinhas em casa. Parece que as cadeias de distribuição romperam por completo, e parece que milhões afluíram aos supermercados para se prepararem para o Juízo Final. Esta malta, egoístas que não pensam nos outros. O dia está a correr mal, as notícias e o telemóvel são uma distracção, desligo ambos e volto à tarefa mais importante do momento, ruminar como vaca detentora de vários estômagos, as ofensas imperdoáveis que acho ter sofrido. Depois de comer, recomeço a escrever, desta feita sobre o que faz o mundo girar, as paradas nupciais do macaco nu. Que as vemos em todo o lado, as mulheres a aprender o twerk e a dança do varão, os homens nos ginásios e nos stands de automóveis de grande cilindrada, elas contribuindo para a hecatombe ecológica ligada ao vestuário, e eles à hecatombe ecológica ligada à guerra para obter recursos para as tribos alargadas a que chamamos ‘nação’, ou ‘burguesia’. No fundo somos todos formigas, marionetas dos genes, em perpétua parada nupcial, lutando pela obtenção do melhor parceiro possível. E todos a acharmos que somos diferentes. Alguém me liga para o número fixo. Era ela. Não falávamos há anos. Queria ver-me, e combina encontrar-se comigo aqui perto. Visto o casaco e saio de casa, finalmente um evento digno de nota, penso eu subindo a minha rua, apesar do brilho intenso a que se segue um bonito cogumelo em forma de nuvem, que se eleva no Céu até às graças do Criador. «-João, tu só falas de amores infelizes, és algum traumatizado?» Curioso este vírus mental das pessoas, que têm tão entranhado o pensamento de que se um tipo fala de amores infelizes é um falhado frustrado, mas se uma mulher fala de amores infelizes, teve azar cósmico. Estive para lhe perguntar se achava boa ideia ir-se foder. Mas, tínhamos acabado de chegar ao cinema, ela tinha-me convidado, era cortês da minha parte ter mais paciência. «-Olha lá, quando o Malraux ou o Hemingway foram para a guerra para escrever sobre ela, alguém os chamou de traumatizados? Por que raio é que se eu partilhar a minha experiência com o sexo oposto, me invalida o discurso, por uma suposta inquinação emocional ou ressabiamento?» «-Sim, mas eles não escreveram só sobre a guerra, também escreveram sobre a guerra. Tu escreves bem, quer dizer, eu gosto do que acho que tentas fazer com as palavras, e nota-se que és uma pessoa inteligente, mas só falas da dor de corno…Desculpa lá, mas é como eu vejo.» Devia tê-la mandado foder. «-Mariana, primeiro, eu não escrevo sobre dor de corno, escrevo sobre vínculos entre as pessoas a partir da minha experiência. Cada relação tem vestígios de farsa, crueldade e generosidade. Tento perceber os outros e a mim, e passo isso a escrito. Gosto de esmiuçar pormenores que geralmente não são motivo de atenção para muita gente, mas é essa a função do escritor, bom ou mau. Segundo, eu tenho mais uns 3 ou 4 blogues, onde escrevo de outras coisas sem ser a relação entre seres humanos.» «-Certo, mas escreves literariamente? Ou só escreves assim, sobre o amor?» «-Só escrevo assim, sobre o amor. Para mim, amor e literatura estão ligados indissociavelmente. O escritor quer seduzir o leitor. O meu leitor é uma mulher. Miller dizia algures, que os homens só são irmãos da cintura para baixo, da cintura para cima são loucos ou poetas. Eu dou-me bem com gajos, a montar um termoacumulador ou a desmontar uma bomba injectora. Se falar destes assuntos emocionais e psicológicos, a maioria dos gajos tem uma arrogância que nasce com eles, sobre o assunto, boa parte acha que é detentor do segredo do mecanismo. A mulher é o único artefacto que desconhecem como funciona. Seja por lhe projectarem uma igualdade na forma de pensar, seja por lhe conferirem poderes druídicos. O meu leitor é gaja, não porque não queira ser lido por homens, ou não escreva para homens, mas porque simplesmente me interessa mais a mulher. Alguns poucos ouvem-me, trocamos experiências sobre o mesmo assunto, mas no final do dia, é uma língua diferente e intraduzível. A esmagadora maioria de mulheres, as poucas, que aqui vem ler isto, tem mais elasticidade para os solilóquios que vou formando à procura do entendimento. Se bem que, raramente consigo debater algum dos conceitos que escrevo. Sim escrevo por conceitos, que visto com pessoas. Para mim, escrever é tão foder, como foder.» «-Mas tens de utilizar esse vernáculo, repetidamente? Isso é tão pouco polido.» Fiz um último esforço, pois já me estava a passar com os moralismos. «-Se pessoa diz que a sua pátria é a sua língua, e se o vernáculo é o gueto da língua, eu não me privo de o percorrer. Há uns anos atrás o Esteves Cardoso escreveu um excelente livro, que chamou a atenção por causa da palavra ‘fodido’. Foi aclamado de grande escritor. E era. Já eu, uso umas caralhadas, e passo por mal educado. Não me estou a comparar com o MEC, que é uma inspiração para mim. Estou apenas a notar a dualidade de critérios. E claro, sou mais javardão, até porque quero percorrer as fórmulas expressivas, sem me autolimitar por motivos de pensar no que o leitor apreciará. Se o meu leitor é uma mulher, eu escrevo para mim. Dessa forma posso dizer, que o que pretendo, é que a mulher me dê o pito por causa da minha habilidade com a língua.» Comecei-me a rir, por pensar depois no que havia dito antes. Ela também se riu. E perguntou: «-Tens essa merda pensada, ou vais inventando à medida que te perguntam?» «-Vou inventando. Sei lá eu para quem escrevo, ou porquê. Sei que escrevo sobre quem amo, para quem amo.» Finda a última palavra, abate-se um silêncio incómodo, só rasgado pela nossa preocupação em simultâneo de olhar em volta e ver que a fila no cinema onde estávamos, havia entrado para a sala. Quando eu me dirigia apressadamente para o corredor escuro que conduz aos bancos, ela puxa-me a mão, e com uma lágrima presa nos olhos, abana a cabeça a dizer que não e diz-me à maneira dos mimos que se vai embora, ou lá para fora. Saio com ela e lá fora, vejo-a desabar em lágrimas e pedir-me desculpa, mas que perdera a vontade de ver o filme. Obviamente que havia algo mais do que isso, e conduzi-a por uma escada em caracol, que levava a um bar, no topo do cinema, com música ambiente baixa, e uma atmosfera de clandestinidade luxuosa, com poltronas massivas e impecavelmente conservadas de outra era. Trouxe-lhe uma Cuba livre e um vodka tónico para mim. Esteve uns 10 minutos calada, a ver se eu me esquecia do que se passara, ao mesmo tempo que eu notava nela uma vontade qualquer de desabafar. Tinha no olhar uma receptividade não integral, isto é, estava a precisar de um cortejamento non sequitur, onde recebe a emoção da validação, mas onde não tem a disponibilidade emocional para se envolver com outro. «-O que é que ele te fez?» - perguntei eu. Ela olhou para mim, e percebi no seu olhar que sabia ser escusado elaborar balelas para mascarar o assunto. Então lá me contou que tivera uma longa relação, mas que ele conhecera outra mais nova, e que a largara. E ela agora tinha perdido as esperanças de conhecer alguém de jeito, ou sequer de se conseguir dar de forma honesta. Eu disse: «-Só por essa ideia, vejo que és alguém decente. Que sabes que o pavio da capacidade de amar e de alinhar integralmente num novo mundo que é a outra pessoa, não dura para sempre. E que é má política escolher novos amantes a partir de certa idade, a memória torna-se veneno, e nós tornamo-nos cemitérios de raparigas e rapazes. A maior parte da malta quer é preencher o lugar, sem pudor em relação à experiência que vai facultar ao outro.» E ela responde: «-Eu sei o que pensas, eu li as tuas ruminações sobre a oxitocina, e sobre como a literatura tradicional é ingénua nesse assunto em particular.» Ela estava a falar de um trabalho de 100 páginas que lhe entreguei. Ela era, e é, professora universitária num curso de artes da escrita onde me inscrevi, e ela dava a parte da ficção. Como é pouco mais nova do que eu, cedo nasceu ali uma tensão, ou foi só da minha cabeça, e como trabalho final, como faço sempre, apresentei uma parede de texto a contrapor tudo o que ela ensinava nas aulas. No dia da oral, estávamos os dois sozinhos na sala do gabinete, e ela apresenta-me um 12, que recusei. Disse-lhe «-Professora, se me apresenta um 12, vou-lhe dizer que ficou ressabiada comigo, e é pouco profissional. Sabe perfeitamente que mereço mais que um 12.» Ela riu-se, surpreendentemente, e não tentou manter-me à distância com uma pose profissional. «-O 12 é o começo, você está aqui para se elevar acima dele. Não é você que diz que gosta de criar e trabalhar a partir da posição de desvantagem?» Ainda fiquei uns 5 minutos a tentar perceber o que ela dissera. E depois lembrei-me que numa aula tinha mencionado o meu blogue e que ela de certeza o foi ler. Pois a boca que ela mandou está em alguns posts meus. Comecei-me eu a rir. «-Olhe, troco a subida de nota, por um cinema consigo. Há um filme que pretendo ver e quero que me acompanhe. Eu satisfaço-me com o 12.» … «-Eu sinto-me tão mal, tão deslocada, meu Deus, que vergonha.» «-Mas também te sentes aliviada?» Ela acenou que sim. Ofereci-lhe o meu abraço, e ela aceitou. Quando a apertei voltou a chorar, e apertava-me a cada espasmo de dor, de desespero, de desalento agudo. Fiz-lhe festas na cabeça e apeteceu-me chorar com ela, mas não choro facilmente. Ao sentir a sua cabeça perto de minha boca, dei-lhe um beijo na têmpora, que é um reflexo involuntário que tenho, quando começo a ficar sem saber o que fazer com o outro em desespero. O esforço dos espasmos, e o ranho num nariz vermelho, fizeram com que ficasse sem energia, deitei-a ao meu colo, cabeça deitada nas minhas pernas, para que recuperasse o fôlego e o ânimo. Fui levá-la a casa, ela fez-me uma festa na cara e eu disse-lhe: «-Estamos cá uns para os outros.» O dia estava frio, mas o Sol às três da tarde não prometia a noite gélida que se avizinhava. Saído do CNANS e da minha pesquisa, donde só me esporravam naufrágios pelos olhos, encaminhei-me para Santa Apolónia, para ir apanhar o comboio, embora algo em mim me chamasse para a zona por onde entraram as águas do maremoto. A meio caminho dentro da estação, sinto o telefone vibrar na nádega esquerda, onde o havia arrumado dentro do bolso. Macacos me mordam. Era a Mónica. Foda-se. Com uma voz melosa, perguntava por mim, e atalhara logo por causa da demora a atender. «-Estava a decidir se te atendia ou não.» - respondi eu, sabendo perfeitamente que noutras circunstâncias, esta resposta seria suficiente para criar um drama e fornicar o juízo tipo cão de fila que custa a largar a presa já mesmo defunta ou rendida. Ela engoliu, eu percebi pelo esforço a parecer de novo melosa, o que me provou que era a mesma, apesar dos 6 ou 8 anos em que não nos falámos. «-João, gostava de falar contigo, talvez beber um café, estou na Baixa, se pudesses cá dar um pulinho…» O facto de se cagar para a minha existência antes, durante e depois do nosso envolvimento, fez-me estranhar o contacto súbito. Tive de sair para fora da estação, pela lateral, e saí precisamente no sítio onde esta semana um desgraçado estava a passear o cão e decidiu atravessar para o outro lado, saiba-se lá porquê, e foi apanhado por uma carrinha preta que o desfez a ele e ao cão. Alguém gravou, difundiu, e alguém me mandou por whatsapp, sabendo que não vomito facilmente. A lembrança comoveu-me e saí do lugar em marcha acelerada, lamentando um desconhecido que nunca conheci, vi a cara, ou vi passar. Comoveu-me pela morte trágica e porque geralmente, apesar de falar mal da vida e das gajas, adoro ambas, por esta ordem. E portanto, é menos um do lado de cá, que nunca mais se repetirá neste universo e isso para mim é motivo de lamento. Assim que o ruído decresceu, voltei à chamada e disse para ela repetir. «-João, vem ter comigo, preciso de falar contigo.» Perguntei, «-Mas estás grávida, tens cancro ou precisas de boleia?» Ela engoliu de novo do outro lado. Calou-se, e eu arrependi-me, apesar de uma voz me dizer para não ter contemplações com esta puta, que nunca teve alguma consideração por mim. Eu discutia com essa voz, mandada a terreiro pelo meu ego, dizendo que não sou assim, e que a partir do momento em que não sou colaborador com os destratamentos de outros, não tenho de recear o que os outros fazem a partir do que têm dentro das suas cabeças. «-Não, João, só gostava de falar contigo.» Ok, a curiosidade foi mais forte do que eu, e lá fui a reboque dela. «-Não leves a mal, mas encontramo-nos no Martinho?» «-Ok.» O Martinho, foi onde demos o primeiro beijo. Há 20 anos, quando namorámos. A minha memória é interrompida por uma pergunta no telefone que eu achava já ter desligado. «-Estás onde, quanto tempo demoras?» «-Meia hora.» E desliguei. Fiz aquele passeio de que tanto gosto, encostado mesmo à beira dos lancis junto ao rio que é assim visto de cima, verde pardacento, que levam ao Terreiro dito do Paço. Quando me farto de água, olho para as pessoas, e quando me farto de pessoas olho para o casario. Quando me farto do casario, olho para todas as memórias do espaço que percorro, e são tantas que em menos de nada chego ao destino sem dar pelo monótono tempo contado pelas minhas passadas. Antes de virar para Oeste, fiquei algum tempo a olhar o Cais das Colunas e a falar comigo mesmo, se queria ver e interagir de novo com esta pessoa. A curiosidade passara, e a resposta era negativa, mas não ia voltar feito tótó, para trás. Uma ideia mesquinha de a ver despojada do seu encanto físico, especialmente por contraposição à minha hipertrofia decorrente dos desportos aquáticos não dourados, animavam-me a ir ter com ela e lançar-lhe a escada da sedução para depois negar qualquer avanço, fazendo de mim aquele que rejeita, para variar. Fui em direcção da estátua, e já via ao longe a arcada, mas cada passo de aproximação, ainda que me desviando de quem andava para ali de patins em linha, prometia-me reviver a vida que tivera com ela, mas do ponto de vista do homem que sou agora, e que gostava de ter sido então, só que se fosse então o que sou agora, a coisa não tinha batido tanto, e por exemplo, não me teria feito dedicar de forma consistente à escrita, para perceber não só os meandros da rejeição, mas também às pessoas e a mim, por via de uma líbido que se manifesta alfabeticamente e em sessões de foda que só terminam quando tenho a pila em carne viva. Várias vezes fiz este caminho, com a mão enfiada no meio das pernas para poupar a glande esfolada ao atrito da ganga. Sempre amei de forma irrestrita e com uma crença, estúpida, de que apenas para lá da exaustão, podemos, eu e tu, eu e ela, eu e nós, ser transparentes e em paz uns com os outros. Longe vai o tempo em que usava os textos do blogue para seduzir gajas. Seduzir é forma de dizer, para assinalar a minha presença é mais exacto. Parei. Engulo em seco e percebo que no blogue, mais do que falar comigo, digo a elas, todas as coisas que ‘elas’, não me deixam dizer, não querem ouvir, ou conseguem entender. Que o blogue é a minha bóia em pleno Mar-da-Palha, para não me ser retirada a voz, sempre que alguma cachopa decide que ou não me quer na sua vida, ou que não mereço o esforço, essencialmente, porque é incapaz de me amar. Não porque não quer, apenas porque não consegue. É importante esta distinção. A rejeição não vem, na maior parte das vezes, por uma decisão ponderada e consciente, mas sim de uma incapacidade do próprio indivíduo aderir à causa. Não é, portanto, pessoal. Sim, escrevo, para que não me tirem a voz. Para que não me tirem a voz nem cuspam na minha emanação emocional. Todos andamos aqui até que a Senhora da Gadanha nos chame, a conviver uns com os outros, condenados de certa forma e em graus variáveis a conviver com determinado número de outros, como berlindes que chocam entre si dentro de um saco de renda de nylon. O berlinde de uma ponta, pode nunca chocar com o da ponta oposta, mas andam ali no mesmo saco, ao mesmo Tempo. Sempre considerei uma bênção o chocar com guelas, cujo encontro sempre resisti atribuir ao acaso. Se calhar porque me assusta o sem sentido. E não acredito, que nos encontremos aleatoriamente. A probabilidade de chocarmos com alguém é tão grande que o choque é ele mesmo um milagre, mesmo estatisticamente. Mas é uma questão de gosto pessoal. De um lado ou de outro, da predestinação e do acaso, o encontro não deixa de ter sentido, como por exemplo a ideia de uma borboleta pousar no nosso dedo quando o apontamos ao Sol. Este é um dos cilícios que me marca a carne, na minha assumida decisão de me envolver com os outros, sejam amigos, sejam amantes. Algo sobra para lá do mero choque de guelas, a improbabilidade desfeita, é por mim valorizada, nem que seja como testemunho da imponderabilidade da ‘Vida’. Fiquei a fazer tempo, a uns 300 metros da entrada, a ver se ela entrava primeiro. Mas eu conheço-me, mesmo que ela tivesse ganho 200 quilogramas de banha subcutânea, eu ia lá falar com ela. Era o cabrão do ego já a preparar-me para mais um potencial depósito de esperma que me replique os genes. Não sei se o frio vem com pés de lã, se eu estava demasiado absorto nos meus pensamentos, mas quando dei por mim estava gelado, do tipo de ter de esticar vigorosamente os braços para o sangue circular e aquecer a musculatura com açucares que geram calor. Simplesmente não conseguia estar na rua, e entrei, pedi um café e sentei-me lá ao fundo, meio marreco por ter um mostrador à altura da cabeça quando sentado, mas a que me forço pois quero olhar para a entrada. Olho para o meu relógio mecânico e percebo que decorreram 45 minutos desde a chamada. Esta puta não deve estar desesperada, pois se chega atrasada…o que só me deixou curioso de novo, o quererá esta gaja. Estava ansioso para ser surpreendido. Se me dissesse para irmos foder, surpreender-me-ia menos do que dizer que ia abrir uma roulotte de bifanas em Meca, e ela era gaja para isso. Conhecemo-nos ainda estava eu na tropa, e certo dia indo para o Alfeite às 7 da manhã pela Rua do Ouro, (atrasado tinha de apanhar o cacilheiro), sou abordado por uma loira platinada, Mónica Galvão, que estava naquele momento a vender uma colecção da História do Fado, que caso eu quisesse, podia experimentar audição, e ver a colecção completa disponível por suaves prestações. O meu remédio nestas situações era dizer, ó amiga, saí recentemente da recruta, e o meu ordenado como militar iniciante é o salário mínimo. Isso chegava para que me largassem da mão. Mas a minha pila levou a melhor de mim, naquela vez. Às sete da manhã de uma fresca manhã de Primavera, estava a Mónica a ver se ganhava a comissão dela, com um vestido branco imaculado com decote até ao esterno e costas ao léu. Ela sabia do efeito que provocava, mas era instrumental para enganar uns papalvos que são incapazes de negar uma mulher artificialmente simpática e acolhedora. Eu para ela era apenas mais um desse lote. Tinha um corpo como eu gosto, feminino, mas tonificado, era jogadora de futsal e tinha umas pernas perfeitas, e mamas a condizer. De cara, por causa do seu cabelo, ninguém diria que era portuguesa. Usava rabo-de-cavalo como eu gosto, quase encostado à moleirinha, e impecavelmente apanhado. O penteado e as pernas davam-lhe um ar menos frágil, e sendo quase da minha altura, não tinha medo de estar ali, a sacar assinaturas a rebarbados transeuntes. O trajecto até à sua secretária foi feito por mim a olhar o seu rabo, e ela a perceber, sem que algo a fizesse protestar, ambos conhecíamos o jogo. O que mais gostava nela, é que não se queixava hipocritamente. Na altura de assinar a colecção, eu estava pressionado, como é que eu mantenho esta interacção, com uma gaja que deve ter mais solicitações que o gajo que faz de Pai Natal boreal em Dezembro. Naquela altura, há uns bons 20 e tal anos, podia-se dizer o que se entendesse, no máximo passávamos por estúpidos. Era a minha táctica no antigo Hi5, suscitar polémica, para depois captar a atenção da pessoa, hiper cansada de ois, comoestás, olás, de legiões de homens sem ideia nenhuma de como se fazerem sobressair no meio das multidões virtuais. A minha forma era forçar uma má entrada e trabalhar a partir daí, e era mais eficaz que a abordagem educada e baunilha. Gabava-lhes o cabelo e depois perguntava se era verdadeiro. Admirava-lhes os dentes e perguntava se tinham sido caros. Perguntava-lhes quanto pesavam, e outras merdas que as faziam responder e não bloquear, pois apelava à sua vontade de me enxovalhar, e eu trabalhava a partir daí. Hoje até essa merda me tiraram, fiz o mesmo no Ok Cupid e os paneleiros bloquearam-me. Já não tenho o direito a ser estúpido. De modo que me saí com o que melhor me ocorreu. «-Olha, quero-te fazer um vestidinho de cuspo.» E ela respondeu, «-Hã?» Ela não ouvira bem a frase, o que pensara ter ouvido não lhe soava a algo de inteligível. «-Não percebi, repita, se faz favor.» Usou de alguma autoridade na voz, calculo que no seu íntimo, sabia que aquilo que eu dissera, extravasava o elo profissional da nossa micro relação. «-Quero-te fazer um vestidinho de cuspo.» Ficámos calados a olhar um para o outro. Ela a digerir o que eu dissera, e eu a mostrar que estava por detrás das minhas palavras e intenções. O momento prolongou-se bastante. Talvez ela estivesse em choque, eu só estava a passar pelos meus competidores imaginários, cheios de charme, savoir-être, graça natural. O nosso olhar ficou preso. Não olhávamos um para o outro para decifrar os trejeitos do rosto, mas para o preto das órbitas e tudo o que está para trás dele. Eu comecei a ficar arrepiado e foi isso que me acordou da hipnose. E ela ao ver-me consciente de mim, também se recompôs. Ambos ficámos sem palavras. O silêncio tornou-se insuportável, e eu meti o rabinho entre as pernas e saí escadas abaixo, e fui a correr para os barcos, para não levar piçada de chegar atrasado ao serviço. Fui até Cacilhas só a pensar em que raio se tinha passado ali. Disse para mim que iria lá no dia seguinte, mas que lhe diria eu, que mais há a dizer, depois que dizemos a alguém que a queremos lamber toda? Fiquei com alguma apreensão. Semelhante à primeira vez em que me masturbei. Eu sabia lá o que era uma punheta. Em determinada altura da minha adolescência, era bom mexer na gaita, e se prolongasse as carícias, algo diferente parecia ocorrer, do nada, o coração batia mais rápido e eu ficava ofegante, mesmo que só estivesse deitado. Certo dia uma gota, única, de um líquido viscoso, saiu de onde antes só urina havia saído. E um certo alívio. E ao mesmo tempo apreensão, por ter partido algo, avariado. Ou por ter passado por um portal onde nunca mais voltaria ser o mesmo que havia sido até ali. Com Mónica, o alívio era acompanhado de apreensão também. Ela era a expressão de que o Mundo me pisca o olho e portanto não é um lugar impessoal, ao mesmo tempo que não sou meu dono, isto é, há algo entre os berlindes, que vai além dos guelas. O Mundo, por via de quem realmente amamos, espeta-nos na cara a ilusão da nossa individuação. Como que dizendo : «-Estou de olho em ti cabrão, mas não aches que és o centro desta merda.» Todas as gajas que vieram depois dessa, foram significantes apenas por autoconvencimento meu. Gostei delas todas, sem excepção. Mas nada que eu não conseguisse controlar. Apesar desse receio, fiz várias vezes o mesmo trajecto a ver se a via, e cheguei a pisar alternadamente o basalto negro dos motivos da calçada, na infantil expectativa de acertar numa combinação que a fizesse emergir ali do Tejo à frente, descascada para eu lamber. Nunca mais a vi. Fui à loja ou estabelecimento e estavam lá outras pessoas. Acabei por sair da tropa e entrei para a Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Lisboa, e certo dia na cantina, a almoçar rissóis vegetarianos de macrobiótica, com colegas, vi entre duas cabeças o rosto de Mónica. Levantei-me surpreso, e por coincidência ela também me viu. Ficou vermelha, mas não deixou de olhar para mim. Levantei-me e fui ter com ela. «-Olá.» Combinámos sair. Estava a estudar Medicina Dentária, que exerce hoje. Na Baixa. Na mesma casa ou prédio, onde me tentou vender uma coleccção de fado. Morava na Amadora e fui tantas vezes ter com ela a sua casa, quantas as que ia a exame de recurso, por deixar tudo para estar com ela. Passado o enamoramento, ela começou a desvalorizar a minha presença, a minha atenção fácil. Não apreciava o meu fascínio por problemas filosóficos e por todas as implicações dos mesmos, que eu via na ‘Vida’. Olhava para mim e via calças de ganga amarrotadas, camisas por fora das calças, e cabelo impossível de pentear e de ser sujeito a penteado. Dava com ela na cama a olhar pela janela, como se perguntasse à vida se era só aquilo. Comecei a perceber que já não era a luz dos seus olhos, e que o amor, lá por valer pelo que é para mim, pode não valer pelo que é, para outros. Isto é fácil de dizer agora, anos depois de tanta ruminação sobre o assunto. Claramente eu não prometia o que ela desejava ou precisava. Olhava-me como olhamos todos aqueles que consideramos pobres de espírito, por não parecerem saber como funcionam realmente as coisas do mundo. É uma espécie de racismo ontológico em relação à índole e crenças dos outros. Tomamo-los como parvos. Inadequados, condenados à extinção e ao esquecimento. Não demorou a pôr-se ao fresco, sem mais justificação que a sua ausência e silêncio. Na sua ideia residia a convicção que estava a desempenhar um acto pedagógico, a dar-me uma lição para ver se eu aprendia, totalmente ressabiada, agoniada até, por ter caído na minha teia que não teci, e de que se safara por um triz. Pior, porque nenhum motivo lhe dera, a não ser o meu amor incondicional q.b., era necessário que me visse com maus olhos para poder conviver com a decisão e consequências. Esquecer-me, negar-me a humanidade de ter ficado sentido, era o caminho mais rápido para se sentir liberta de grilhões que nunca lhe coloquei. Os anos passaram e os namorados também, e ocasionalmente lembrava-se da minha existência quando mais ninguém lhe parecia encher as medidas, ou quando o ego precisava de saber que existe pelo menos um x, tal que esse x é vivo e acredita que ama y. Ela própria percebeu essa dependência, e certa vez achou que a solução era dizer que iríamos ser amigos. Podia estar comigo para matar o que asfixiava dentro de si, sem se envolver. Para ela parecia perfeito. Para mim, era a suprema traição. «-Mas és parva. Achas mesmo que dá para sermos amigos? Achas mesmo que o que se passou entre nós, é um mero choque de berlindes?» «-Berlindes? Estás a falar do quê?» «-Esquece.» Revoltava-me a ideia e ela, ao ponto da náusea e do vómito, não só por eu acreditar que há algo mais que o acaso. Ser ‘amigo’ dela seria negar a minha mundividência, para aplacar a que ela atraiçoara. Isto a partir dos meus olhos, pois ela por certo não pensa ou vê como eu. Mas dizer para sermos amigos é trair o elo que em algum momento existiu entre nós…como que dizendo aleivosamente ao ‘Mundo’: «-Ó filho da puta, escusas de intervir, porque esta merda não passa de acaso, nascer e morrer pelo meio.» Estação após estação, não conseguia reunir comigo, nem afastar-se completamente. Fosse pela facilidade com que encho egos alheios carentes do valor que me negam a mim, fosse, acredito, por algum resquício de memória do amor que trocámos, antes da fonte ficar envenenada. Eh, sou o primeiro a aceitar que por eu acreditar na predestinação dos ‘corações’, não se segue que outros tenham de acreditar. Afinal, cada berlinde é diferente, e batemos uns nos outros de forma diferente e de acordo com as nossas constituições vítreas. Mas o tema que de há uns anos a esta parte me apaixonou, foi esse mesmo, de como nega um indivíduo, essa manifestação do ‘Mundo’, por via das suas crenças e teimosias. Como no caso de Mónica, que se queixa da frivolidade das relações desde mim, mas que é incapaz de me ver sem ser com os seus olhos, tão enviesados como era quando me via como mais um papalvo a ludibriar com prestações a 84 meses. As pessoas veem como são, e nada há a fazer. Chegou uma hora atrasada com um vestido azul que lhe caía bem no corpo tonificado, com blazer branco por cima e óculos com aros vermelhos a combinar com os aros dos brincos. «-Olá, desculpa o atraso.» Sentou-se e ficou de frente para mim, e quando me sentei de lado, achou que o fiz para ficar mais próximo dela, nem dando luta tal a minha prontidão em adorá-la de novo. Mas eu estava era à rasca do pescoço, por ter ficado de frente para a porta. Após as trocas de informação básica, que tens feito, passado, etc, eu perguntei-lhe, «-Que se passou para quereres falar comigo com urgência? Tiveste alguma introspecção nocturna que te fez lembrar de mim?» «-Já me tinha esquecido que vais directo ao assunto.» «-Quero só saber o porquê.» O que se seguiu foi uma rememoração de algumas coisas que passámos juntos, como se acreditasse no mesmo que eu. Eu perguntava-me que queria ela de mim, o que lhe fizera modificar o seu comportamento. «-Este café, onde nos beijámos, e de onde um dia no Verão, perdeste a aposta e foste a correr daqui para o Cais das Colunas para mergulhar na água, e eu fui atrás de ti a apanhar-te a roupa.» «-Do que me lembro foi de ter mergulhado de rabo em maré vazia e ter batido com o cóccix numa rocha, e ter demorado 20 minutos a conseguir subir os degraus submersos de volta, sem escorregar.» Ela riu-se e continuou a evocar memórias, que eu sabia que me moviam por dentro, afinal sou o teórico de que os amores não morrem. Se calhar para dar sentido ao que sente por dentro, mas não quer ou pode… ou consegue, continuar em acções reais. Não lhe perguntei se estava casada junta, amantizada. Não me interessava. A partir de determinado ponto parecia um presidiário que ao comer impede acesso ao prato com o seu braço e torso, para impedir roubos fortuitos de comida por parte dos outros. Eu protejo o meu amor por ela, porque é meu. Ela nunca quis acreditar nele, sempre se negou a uma mesma visão que eu, e está no seu direito. O que o torna ainda mais meu. Comecei a ficar enjoado da conversa, até que não me contive. «-Mónica, no período de tempo em que nos conhecemos, nunca fui uma prioridade para ti. Sempre achaste que o melhor estava noutras paragens, ou no porvir. Sempre te achaste melhor que eu, mais sabida do mundo, das coisas e das pessoas, e eu um imbecil sentimentalista. Sempre foste escrava das tuas idealizações e de onde quer que fosse que visses brilho. Desdenhas os meus gostos musicais que qualificas como infantis, só porque gostaste deles quando eras mais nova. Desprezas o que digo sobre os encontros entre pessoas porque achas que são os livros de Filosofia a falar, ou pior, canção de engate barato análoga a gaslighting que visa convencer-te como me tentas convencer agora. Já uma vez te disse que para vires ter comigo de coração aberto tinhas de te engolir a ti mesma completamente. Não só por uma questão de franca espontaneidade. Mas para me poderes ver menos como achas que sou, desde que me desqualificaste por comparação com as tuas idealizações. Tal como não te exijo que partilhes a minha forma de ver a razão do nosso encontro nesta Terra, não deixo que me exijas aquiescer com a visão enviesada que tens de mim. E que nunca vais deixar de ter. Pura e simplesmente porque tens todo o teu ego investido naquilo que pensas ser e gostar. E é isso que tens de engolir para me veres com outros olhos.» Como ela nada disse, apenas olhou para a mesa, eu prossegui: «- Sempre optaste por outros. Sempre tornaste claro que nunca seríamos mais do que dois ímanes condenados a movimentos opostos de atracção e rejeição. As tuas palavras e acções são tão contrastantes, quanto desnecessárias. Nunca te pedi nada. Nem me interessa saber se o que dizes sentir é verdadeiro. Em mim é e basta-me. Para ti é como se fosse táctica de engatatão que diz sempre que sim a tudo, carpet bombing, quando é mais tomar propriedade de algo em mim que sei existir e nada conseguir fazer contra. És incapaz de me respeitar, e de me entender. E não há mal nisso. Eu é que não tenho de validar essa tua ilusão.» Levantei-me para ir embora, larguei cinco euros na mesa para pagar o café e a água com gás que ela pedira, e quando estou a passar por ela, ela agarra-me na mão e pede para não me ir embora. Baixo-me ao nível do seu rosto, e beijo-lhe a orelha, que continua a cheirar a frutos silvestres, e penso que nunca poderei confiar nela porque nunca fui uma primeira escolha para ela. Sou uma curiosidade que por vezes lhe revela o abismo da sua auto dissolução, de tudo aquilo em que investiu tanto, do seu ego, do seu tempo. No fundo ela vê-me como o seu fim, a sua anulação. Precisa da minha ajuda para me dissolver, porque sabe que sozinha não consegue. Tem de me ver de forma atávica, porque sabe que pode atrair-se pelo abismo. Tal como eu percebi no cacilheiro. Ela faz por encostar a orelha fria aos meus lábios, e eu julgo percebê-la como pessoa, e a sua reacção não me parece tão pessoal como antes. Eu sei que é estúpido, mas é a sua sobrevivência. Há pessoas que vão para a cova sem mudar de lugar à mesa, mesmo que o pescoço esteja dormente. Habituam-se à posição. Eu tinha de sair, e tinha de mantê-la afastada de mim, para que pudéssemos sobreviver na nossa morte, longe um do outro. «-Mónica, e tu lá mereces que eu te trate como estrela, quando sempre trataste como satélite?» Ao caminhar, eu sabia que o frio caminho de regresso ia ser mais longo, pois eu ia bloquear todas as memórias caminhando para Norte. Felizmente a Lua namorava-se tal como Narciso, espelhada no estuário, e eu perguntava-me se eu não era o reflexo de alguém. Vengeance is in my heart, death in my hand, Blood and revenge are hammering in my head — TITUS ANDRONICUS, ACTO 2 CENA 3 Saí de casa logo de manhã, e à minha porta estava um ouriço-cacheiro esmagado pela roda de um carro. Isto estragou-me logo o dia, pois além de ficar triste pela morte do pobre bicho, começo logo a pensar no significado da Existência pensada a partir da categoria do sujeito. Olhando os despojos, ainda se via o que fora um maxilar, um sistema composto de individualidade, por onde aquele indivíduo mamara nas tetas da mãe, ou por onde comera até morrer esmagado em lugar nenhum. Se por um lado eu pensava que a morte havia sido relativamente indolor, um rolo compressor de cerca de uma tonelada impede a viagem comunicativa dos centros de dor. Morte rápida, creio, comparada por exemplo pela morte pelo fogo, que eu já vi, pois, os ciganos adoravam este petisco, e os gritos de dor dos pobres animais são demasiado insuportáveis até para quem ouve. Foda-se, merda de mundo. Sob a capa da beleza, tanta morte e sofrimento sem sentido. Ligo o carro, deixo aquecer, e apanho o comboio na Bobadela, lá o estacionando. Estava há duas horas na Biblioteca Nacional a ler um livro que só lá existe sobre uma filha do D. Afonso II, quando o telemóvel vibra com uma mensagem. Era a Célia, a tal que sem vergonha me havia pedido sugestões para um trabalho da filha. Quer dizer, sem vergonha é forte. Talvez mais correto seja dizer que sem tanta preocupação com a congruência lógica e comportamental. Como aquelas gajas que pedem que lhes mudes um pneu só porque são mulheres, e exageram na simpatia e nas expressões de desamparo. Como já contei aqui no blogue, enrolámo-nos, e eu escrevi um texto nada simpático com um ou outro aspecto físico e da sua personalidade. Não o devia ter feito, mas não me lembro do contexto da altura, lembro apenas que nela tudo soava a falso, tal como a gaja que pede que lhe mudem o pneu. Ficou ressabiada, e num dos meus momentos mais baixos, fez a vingança serôdia dela, tentando convencer-me de um futuro cheio de sexualidade irrestrita, fornicando-me e eu a ela, no seu carro demasiado minúsculo, indo um pouco mais além no seu desejo fingido, de modo a ver se me despojava de orgulho próprio, não correspondendo às estocadas que exigia. Mas teve azar, porque não costumo falhar nesse campo. Eu precisava de distracção e exactamente no momento em que sentiu que eu a procurava, foi quando se distanciou. É preciso praticar Judo para perceber este jogo de desequilíbrios. Isso ou ouvir os adágios populares acerca das manhas femininas. Eu ri-me na altura, estava a passear a cadela e olhava para a sua mensagem seca e contrastante com as anteriores. Disse à cadela «-Olha a Célia vingou-se.», eu ri-me e a cadela abanou o rabo. Envolveu-se depois com um colega de trabalho com metade da sua idade, que pouco depois, após queda do queijo do bico do corvo para a boca da raposa da fábula, a largou com a eterna desculpa do «-Não sei o que quero e tenho de pensar.» Que é a patranha mais eficaz para o descarte. Elas acreditam e é bom para contar às amigas, pois coloca o ónus no gajo que abandona, e não na espertalhona que achava ter fisgado um prémio. Na mensagem a Célia dizia que me estava a dever um café, que tinha muito trabalho e tinha-se esquecido e outras patranhas do seu arsenal. Ainda fiquei a olhar para o visor do telefone a cogitar se lhe dava resposta ou a ignorava completamente. Antigamente tinha pudor em fazer isso, mas fizeram-me tantas vezes que tive que concluir que de vez em quando dá jeito. Fiquei uma boa meia hora, encadeado com os vitrais da sala de leitura, e a ideia de ver até onde ia a toca de coelho da Célia renascida, agora que era enfermeira, e não uma qualquer. E lá respondi, e ela lá despejou o mesmo reportório, o único que sabe. Prometendo sexualidade em troca de atenção e validação. Sabendo que a desejo, dorme melhor consigo à noite. É tão simples como isto. E eu indo no jogo como non-player character, aquelas personagens dos videojogos, que apenas estão colocadas nos cenários mas em nada influem no jogo, apenas na sua estética. Não respondem, não reflectem, limitam-se a mover no seu espaço virtual imaginado, de forma a ajudar a compor a história. As cantigas eram as mesmas e tive de fazer um esforço para fingir estar interessado e acreditar. Quando achei que já tinha perdido tempo suficiente, comecei a solicitar a sua atenção e a sugerir encontros e planos futuros. Farinha amparo e trigo limpo, bem certo começou a dar para trás. Vim depois a saber que nunca teve alguma intenção comigo, que o que queria era a validação, pois andava atrás de um médico do serviço dela, e para se sentir confiante com ele, precisava de alguém que lhe servisse como plano B ou C, para não telegrafar carência com o seu comportamento. Achei graça, estas macacadas são engraçadas. Mas lembrei também que ela não era a única ou a primeira a fazer isto. Lembrei-me da outra maluca (clinicamente), que andava com outro que a engravidara, ao mesmo tempo que me ditava condições para um futuro relacionamento, um potencial relacionamento entre mim e ela, que eu fingia acreditar. Mordia-me para não lhe dizer se queria que eu desse a pata, ou saltasse por dentro de um aro em fogo incandescente. Os seus ditames contratuais, baseavam-se na sua leitura da minha pessoa, e da atenção que lhe dava. A equação é simples, se dá atenção é porque não tem mais que fazer com o seu tempo, ergo, não tem pretendentes, ergo, tem baixo valor. É um non-player character. Quando certa noite perguntou o que eu pensava dela, eu disse, e ela não gostou. Levantei-me do bar na Almirante Reis, e disse boa noite e um queijo, rindo também. Pá, a malta para escrever estas merdas, tem de observar e envolver-se nas situações. O Hemingway foi para a guerra para escrever sobre ela. O Orwell foi lavar pratos para Paris. Eu, envolvo-me com a vida interior dos outros. Observo, meto-me nos seus lugares, pesquiso as suas motivações, afiro as suas avaliações. Seja precisarem de bengala, de um sentimento de possibilidade, de não estarem descalças perante o mundo ou se o actual as largar, gosto de investigar a natureza das pessoas, mulheres (não acho graça a homens) e as consequências dos seus raciocínios e acções. De perceber se sou usado para preencher intervalos monótonos, egos frágeis, ou relações fingidas de codependência real. Saí da BN e estava com fome, fui à faculdade pois come-se bem e é mais barato. Tinha levado o Titus Andronicus e tinha-lo pousado na mesa onde comia. Uma estudante passa e derruba o livro para o chão, e pede desculpa. Digo que não tem de pedir, pois o livro é dos mais ruins do William e até da literatura mundial, que ninguém lhe fica indiferente. Como estávamos a falar há meia hora, digo para se sentar. Ela fascinava-se com as merdas que lhe dizia e que só as sei por andar cá há mais tempo que ela. Anoiteceu e as coisas fluíram naturalmente para jantar e trocámos números de contacto. Ao fim de dois dias de encontros sucessivos, trocámos beijos. Ao fim de uma semana, outros fluídos. Os pais estavam separados e morava com a mãe, que me queria apresentar. Mostrei-me reticente. Certa noite convidou-me para sua casa, fui, e acabámos por adormecer. A sua mãe entra em casa saída do turno, lá pelas 4 da manhã. A filha acorda e vai avisá-la de que não está sozinha. A mãe não acha muita graça, e começam a falar mais alto. Começo a vestir-me para não causar mais problemas, e desço as escadas do duplex encostado às telhas do telhado, quando Célia me vê a abotoar o que falta da camisa. «-Mãe, este é o J…» «-João que estás aqui a fazer, que merda é esta?» Por esta altura a filha percebe que eu e a mãe éramos conhecidos. Ando sempre com uma cópia do livro, em edição de bolso, no bolso. Aquela era da Penguin, e perante a cara de surpresa e choque de ambas, tiro-o para fora, o livro, e mando-o a voar para cima da mesa onde Célia janta, e onde tinha pousado as chaves do carro e a mala de ombro. Olhei para ela e disse «-Tens sorte que a minha ideia de comer os filhos, é esta.» Saí pela noite dentro, envergonhado comigo próprio, pois espero ser sempre um homem maior. Mas por algum motivo a noite estava linda, e os ouriços vivos à procura de comida na várzea. Como Filoctetes, passeio pela vida com uma ferida que não sara nunca e que tem o teu nome. Em reuniões com amigos de longa data, já o meu riso não é tão despojado e franco, quando vejo o pôr-do-sol já não sinto o mundo como o mais maravilhoso lugar, quando olho o céu azul já não lacrimejo, o mar já não me enche de ansiedade por não se aproximar rapidamente do carro que me leva a ele, nem sentir a água fria de encontro ao meu peito, me tira a respiração. Não é que viver faz mossa? Mas eu não era assim antes de acontecermos um no outro. Sei que também não fui tudo o que merecias, desde o momento que as fiz, que reconheço as minhas falhas. Mas que castigo esse, do teu desprezo. Depois de ti, o meu tempo é contado de forma diferente. É como se a vida se tivesse tornado num violento combate de boxe, comigo num canto do ringue a levar pancada que já não consigo sentir por colapso do sistema nervoso, encolhido sobre mim e protegendo a cara, sabendo que é apenas uma questão de aguardar quem chega primeiro, se o KO se o toque do gongo… para eu voltar a esquecer-me que existo. Feriste-me de morte, como um desses pobres touros vazados numa arena derramando sangue arterial às mãos de sádicos sanguinários. Trespassaste-me com a bandarilha da tua indiferença e agora já só aguardo que tudo acabe. O teu desprezo faz de mim parvo apenas por ter acreditado que a sintonia entre as pessoas vai além de uma conjugação de circunstâncias. Mas diz-me, explica-me, como é que é possível que se separem aqueles que em algum ponto se abraçaram e desejaram profundamente não mais se separar, ou que o tempo se congelasse num momento em que a dor da separação com tudo, se aplacou ou tirou férias? Não percebo nada desta merda. Não pode ser apenas a idealização da portadora de útero. Se fosse apenas isso e não uma morte no verdadeiro sentido da palavra, a dor desaparecia com a posse de outras gónadas. E se o que choro não tem a ver contigo, mas com a pessoa, que eu era antes de te conhecer? Será que é por isso que te odeio? Porque roubaste o melhor de mim e deitaste-o num qualquer contentor do lixo nos arrabaldes? Quando demos as mãos, o calor do Estio, amaciava as nossas peles no Parque das Nações, a excitação de termos conseguido obter a presença um do outro, e garantida a mesma nesse tempo, com a tua cabeça encostada no meu ombro o mundo fazia sentido a partir de onde o olhava. Tenho a disciplina para me ordenar a apagar-te completamente da minha lembrança, mas sei também que já levaste tanto de mim, que se tiro mais um pouco, deixo de ser pouco mais que um invólucro vazio. Abençoada a tua vida, com maior capacidade de esquecimento e de seguir em frente. Eu sou infelizmente, como um ecrã de radar, em que o teu trajeto já alguma vez vê o rasto esmorecido. |
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