Cada vez é mais difícil escrever.
Tenho de beber, cada vez mais, e não gosto de me sentir preso. De sentir que tenho de afogar a dor de primeiro mundo, para poder passar a escrito alguns sentimentos soltos ao vento do tempo neste 2021 que se aproxima. A Renata explicou-me porque é que muitas me odeiam, as menos sonsas. Porque ao tornar-me espelho, reflectindo as suas falhas morais, obrigo-as a ser responsáveis pelas suas acções, no corpo de outro – eu- observando-as aplicadas a si mesmas. Mas Renata, disse eu, repara que subestimas e muito, o sentido de fuga à realidade da pessoa mulher. A realidade feminina é solipcista, tem de ser, pensar só nela e na prole. Era a diferença entre sobreviver ao tigre-dentes-de-sabre ou ser comida de forma menos agradável, juntamente com o hipotético parceiro que tentava salvar. Toda a realidade é interpretada a partir do que sente, de si mesma. Não há mal nisto. Mas também tenho sido um conas ambulante, reflectir as falhas morais de outros, por despeito? Que merda de homem é este? Em alguma cruzada por uma igualdade que não é desejada nem por nenhuma das partes? Se por actos ou palavras mostro a uma pessoa que comigo se envolve, que afinal é uma imbecil ou cabra, que ganho eu com isso? Fazer outro sentir-se mal com a sua própria existência? Só porque a pessoa me desilude, deixo de ter responsabilidade por me ter deixado iludir? Ah, mas é a essência do amor, esperar e ver o melhor dos outros, sob pena, de não o fazendo, sermos incapazes de sonhar com eles. De cair em ‘rapture’ por um ente idealizado, ergo, colocado acima da existência concreta. Sentados no meu sofá de cabedal de pobre bovino falecido de morte horrível, a Renata massaja-me o quadríceps com um desvio sob o meu falo. Aproximando-se de mim e aumentando o frenesim com que me esfrega, lambe-me os lábios com a ponta da língua e com os lábios grossos e vermelhos de batôn segreda-me ao ouvido baixinho e com voz doce e promissora de actividades horizontais: «-Pensas demais.» Arranca-me a camisola de sintéctico a imitar lã, e o frio ar abraça-me, e só penso que tenho de acender a salamandra. Outrora tinha medo de estragar o clima, agora já sei que quanto mais confortável, mais aprecio a experiência. Olha-me colocando troncos na boca de ferro fundido, e finge-se contente por eu estar a fazer algo por «nós». A acendalha cai-me da mão, e oiço ela perguntar «-Nunca andei com alguém da tua idade…» «-E que idade é essa?» - pergunto eu. «-Quer dizer, tenho andado com rapazes da minha idade, tu és um homem feito.» Ri-me automaticamente, sem conseguir controlar. A expressão ‘homem feito’. Fiquei muito mais bem-disposto, a vida apresentou-se convidativa através do riso. «-Eu sou uma criança, Renata.» «-Ah, tu sabes o que quero dizer.» «-A censura social que se faz à diferença de idades, visa apenas ainda garantir à juventude a idolatria da posse do novo. E aos velhos, a posse dos corpos não corrompidos. No fundo, a valorização de um suposto mundo dos menos velhos, é uma outra variação de elitismo. Os homens e mulheres de meia idade tentam adaptar-se aos tempos, na ânsia de obter algum corpo jovem incauto, e fugir das almas batidas da sua idade. Metafísica, é tudo uma dança metafísica.» Quase de imediato o ferro fundido de marca Edinoliva começa o seu trabalho de irradiação termodinâmica, e o calor associado ao vinho faz com que ela se lance nas minhas costas, abraçando-me e beijando-me no pescoço. Segreda de novo, «-Falas demais.» Eu sei. Eu sei que falo demais por demais. Excitação nervosa ou medo do silêncio. Vem de algo no fundo de mim. Quarenta e cinco minutos depois, está suada em cima do farfalhudo tapete, pedindo-me um copo de água. Bebido, dá-me vontade de entrar num abraço que me faça esquecer o resto. Encaixado com o meu rosto no seu pescoço, ela diz «-Nem penses que vais dormir, tens ainda muito que fazer.» «-Estou só a fechar os olhos, preciso de me esquecer durante meia hora, não te rales que não falta amor para te dar.» «-Eu quero ser bem comida.» «-O que fizemos agora foi o quê?» «-Por isso quero repetir antes que acabe.» No meio do meu peito, um velho conhecido meu, o ego, inchou-se com o elogio. Como se eu não o soubesse, mas sabe sempre bem ouvir na boca dela. No dia seguinte, pediu-me para me levar a conhecer a mãe, com quem tinha combinado ir comprar camarão para a noite de Ano Novo. Não fui capaz de dizer não. Na entrada do Pingo Doce, geralmente existe uma pastelaria, Renata virada para a entrada, onde as portas automáticas abriam e fechavam como pernas de ninfomaníaca, para deixar entrar e sair os clientes. Renata confidencia que havia dito à mãe que andava com alguém, mais velho. E eu perguntei «-Mas é essa merda algo de importante?» Atrapalhada para responder, Renata é apanhada de surpresa por uma voz nas minhas costas. «-Bom dia, já tomaste café?» Viro-me para trás e o Sol matinal encadeia-me não lhe consigo ver bem a cara, apenas que é baixa, um metro e meio de gente. Olhando-me, o metro e meio de gente exclama: «-João! Estás aqui a fazer mas que…» Levanto-me e o ângulo em que fico em relação aos raios solares permite furar a cegueira apolínea. A Guida. Olho para ambas e censuro-me por não ter visto desde o início, as semelhanças, inconfundíveis. Tensão, permaneço calado, visto que nada tenho a dizer na discussão das duas. Vamos já embora, andas com um homem que tem idade para ser teu pai, e outras merdas que me faziam rir por dentro nesta ópera bufa a que chamamos vida. Puta de coincidência. Vamos resolver isto como adultos. Pede cafés para todos e eu digo que já bebi. «-Bebes outro.» Noto hostilidade na sua voz, apenas composta por receio de ser censurada pelos olhares dos transeuntes que poucos momentos antes tentavam fazer sentido dos berros das duas. «-Mas que merda estás a fazer com a minha filha?» «-Acabámos de passar a noite e estou a precisar de glucose no sangue, por isso vim à pastelaria.» O sangue afluiu ao seu rosto, como que se uma explosão interna estivesse prestes a ocorrer, tudo queimando e soterrando com cinzas de combustão nesta Pompeia momentânea. A tempo percebeu que eu apenas estava a reagir à sua hostilidade, e que nada ganharia com um confronto directo comigo e com a filha, Renata. Expectavelmente, recorre a outras tácticas de manipulação, convicta de que no médio prazo dará a volta à filha, maior de idade para esconder quem quer. «-Onde se conheceram?» «-Isso pergunto eu. De onde o conheces?» - diz Renata. As frases que ameaçava responder eram mortas antes de sair dos lábios. Estava a calcular como diria as coisas, que ângulo evidenciaria para expor ao Sol, da percepção da filha. «-Eu posso responder a isso.» - digo eu, divertido com a mudez súbita, a jusante da berraria prévia. Guida agarra-me o braço, mas nada consegue dizer, pois estava claramente numa situação que levava a melhor sobre ela. «-Renata, eu conheço a tua mãe, desde os tempos de escola. Aliás tive uma grande paixão por ela e ela sempre cagou na minha existência. Sempre preferiu os meninos populares da escola, e um desses engravidou-a e abandonou-vos. Nessa altura, há 20 anos atrás, sem opções que quisessem assumir a responsabilidade reprodutiva de outros, ela lembrou-se que eu existia, e chegámos a ir jantar, ela usando vestidos curtos e meias de ligas, para ver se me fisgava. Eu só sabia perguntar, porquê, porque nunca me dera atenção e agora subitamente aquilo que eu desejava se concretizava. Quando apertada sobre o motivo da rejeição, dizia que era por protecção, que escolhia os maiores e mais selvagens meninos da C+S. Protecção de quê? Do tigre-dentes-de-sabre? De teres um metro e meio? Eu não sou pequeno, nã, o motivo é outro, esse é o que dizes a ti mesma para te convencer. Pois logo na altura decidi agir como ela agia comigo, se me tratava como um acessório de vida, um prémio de consolação, eu faria o mesmo, e portanto nada prometendo, nada neguei. Chegámos a várias sessões de contactos horizontais, sempre com um aumento gradual de pressão para um compromisso. No nosso último jantar, porque eu desviava as exigências de resposta directa a uma promessa de compromisso, ela percebeu que eu não criaria esse compromisso. E cortou a direito qualquer contacto comigo, hoje chama-se ghosting. O que contrastava com a dedicação anterior, toda fingida, desde o fingir que gostava da mesma manga de sci fi que eu, até ao sonho apreciado de cursar Filosofia. A tua mãe depois conheceu outro tipo, tentou o mesmo com ele, e nunca mais me disse nada até há uns 7 anos atrás. Desde então quando se sente sozinha ou sem gajo que a persiga, acha que me manda umas sms lacónicas, relembrando-me continuamente o tipo de pessoa que ela acha que sou. Agora percebo que ao reflectir a este tipo de pessoas a imagem do que são, o conas sou eu. O receptivo e reflexivo, recebendo o espectro da sua canalhice, interpretando-o e exprimindo-o teatralmente para que como missionário de Novo Mundo, o selvagem a converter à moral, entre no reino.» Só Guida respondeu, Renata, nunca me tinha ouvido falar tanto e tão emocionalmente. «-Bela história tens aí, mas não foi isso que aconteceu.» «-Guida, só tens um rosto e um corpo bonito.» Ela ficou perplexa e paralisada tentando perceber se o que eu dissera era elogioso. Levantei-me, deitei uma nota de cinco euros na mesa, e Renata perguntando-me o que eu estava a fazer, para não me ir embora. Fiz-lhe uma festa no rosto, e ao levantar-me, virado para Guida segredei docemente ao ouvido: «-Porque de resto, se pensasses sobre ti, verias que sem querer és e sempre foste apenas uma coisa, uma cabra.» Passei pelas pernas de ninfomaníaca controladas por um feixe de infravermelhos, que se fecham atrás de mim. Contente por me afastar gradualmente por uma cena de telenovela, que quando ocorre, a estranheza nos faz lembrar que se calhar Deus olha por nós e nos testa. A manhã fria fica mais amena quando sinto uma mão quente colar-se na minha, puxando-me para o seu carro e dizendo que vamos para casa dela. Renata mora sozinha numa urbanização na Expo. «-A conversa que começámos ontem ainda não terminou.» - disse-me sorrindo. «-Pensava que achavas que falo demais.» «-E falas, mas não é dessa conversa que estou a falar.» Conduzo o Audi da empresa onde trabalha, cedido como dote de cativação para a função dela, bem paga. Ela encosta-se genuinamente a mim, ao meu braço, que se vê aflito metendo as mudanças, abraçando-o de maneira a que possa fechar os olhos e esquecer tudo o resto.
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O Ivan, é um bom escritor brasileiro, que me contactou por email após se tornar leitor assíduo do meu blog.
Achou graça ao que por lá leu e achou que podia falar com a editora dele para me publicar por terras de Vera Cruz. Por mim. Embora ache que a minha estrada para escrever melhor seja longa e que neste momento esteja sem gasóleo parado na berma, qsalixe, bora siga a Marinha. A troca de emails coincidiu com uma sessão de autógrafos que teve de dar no Chiado, e convidou-me para lhe pagar o jantar quando chegasse ao aeroporto. Lá fui eu, na desconfiança de que pudesse ser um gajo que gosta de gajos e usar a análise do que escrevo para arranjar mais uma aventura horizontal, o que me irritaria nem tanto por ter de dizer que não jogo no clube das bifanas, mas mais por levar a sério – talvez demais – o trabalho e a análise literária. Hemingway como farol, com uns extremos que nem consigo chorar, de integridade e de intensidade no narrado, a que Ivan contrapunha que todo o acto de amor, e a escrita é um acto de amor, implica ilusão, e portanto a impressão do gringo que tanto me impressiona é pouco mais que uma idiossincrasia de carácter. Que o meu é diferente. A sua opinião fez-me revisitar os textos desde 2006, quando comecei a escrever para que Susana me lesse, e acabei por a levar para a cama, mas ganharam vida por si próprios, tornando-se na caldeira onde largo o carvão das aventuras e flirts, para compreensão própria e não para que me leiam. Se bem que se me trouxer mais cueca, a máquina alimenta-se por si própria, e raios, umas palmadas nas costas nunca fizeram mal a ninguém. Aparentemente não. Já ébrios saindo do aeroporto da Portela, ele me perguntou com aquele tom de brasileiro dominicano, que queria ver mulheres bonitas de Lisboa. Tinha dado jeito o Elefante Branco, mas algum inapto fechou-o. Levei-o ao Maxim’s, um dos poucos cantos lisboetas que ainda me faz tirar o rabo de casa à noite, e cujo gerente foi meu colega de curso, e aprecia bastante as merdas que vou rabuscando em papel. Tenho lá uma garrafinha de malte, guardadinha, com o meu nome, para ocasiões especiais. «-Conheces este gajo? Este gajo é um bom escritor brasileiro, o tal que falámos, que estranhamente gosta mais de Camus que de Sartre?!» O meu colega, reconhecendo-o, sentou-nos aos dois na mesa com melhor vista, debatemos um pouco de literatura e meia hora depois estávamos pior do que havíamos entrado. Raramente uma bebedeira me traz para baixo, mas o observar o meu casaco enquanto os outros dois entretidos a partir pedra sobre o absurdo existencial e a inexistência de algo além da própria consciência, e beber em um gole o conteúdo do copo, pausou-me depressivamente. Brincando com o cubo de gelo preso no topo da minha língua, apanhando palavra aqui e ali para alimentar o meu trem de raciocínio, olhando o cabedal que outrora fora um indivíduo bovino, contrastado com a minha cadela e gato, que por mera circunstância apenas recebem comida e afagos ad nauseam, e um pobre búfalo qualquer morreu sobre crueldade indescritível, sendo desmantelado como um monte de merda inerte e sem significado. Como se pode anular assim uma entidade, uma identidade, uma equação de tempo e espaço que nunca mais se repetirá neste mundo nem que o Eterno-Retorno se foda todo. Por isso não gosto de sair comigo às vezes. Eu sei que se a nossa moral nos deixa deprimidos então é a moral incorrecta, já sei, já sei. Mas o veneno está na minha alma, pendo sempre para demasiada lucidez, e esta lucidez não é bonita. Afagando o cabedal preto, gasto, fui inundado de tristeza profunda e fiz algo que muito raramente faço em público, chorei. Não aquele choro convulsivo. Não. Um choro resignado em que só as lágrimas escorrem sem controlo, sem som, sem caretas de dor. Só percebi que me olhavam quando as palavras deixaram de fluir. Quatro olhos incomodados e perplexos olhando para mim, como se eu estivesse à beira de algum colapso. Aquele olhar que os caçadores-recolectores de outros tempos faziam olhando um noviço mijando-se pelas pernas abaixo à vista de um mamute. «-Que se passa?» Para disfarçar inventei uma desculpa, dizendo «-Acho que me tornei incapaz de amar.» Pegou. Começaram os dois a falar sobre o tema, o que eu havia dito era credível e encaixava-se bem no que estavam a discutir antes. Contente pelo foco de atenção auspiciando inadequação, se ter desviado de mim, sequei as lágrimas guardando-as para uma bebedeira futura em casa, no anonimato silencioso do meu próprio quarto. A cabeça inclinada para trás que sempre se desequilibra quando estamos com malte a mais, fez-me reparar num vestido azul no outro lado da sala. Uma mesa com umas miúdas, bem vestidas e com sorrisos tão virgens como as praias do Brasil aos presuntos europeus de Cabral, verdadeiramente apaixonantes por emanarem uma crença na vida e um optimismo que alguma experiência de vida retira. Ri-me por lembrar que as ditas praias não eram virgens de pés dos índios, e imaginei uma cena de suruba com miúdas e índios, cuja piada duvidável só fazia sentido no meu cérebro inebriado. «-Porque dizes isso?» Voltaram-se de novo para mim. Epá, porque ou percebes ou amas, não podes fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Sob determinado ponto de vista, o excesso de informação dá-te a razão que anteriormente deixavas para a acção dos deuses. Depois de perceberes como funciona o macaco, deixas de crer na Afrodite. Falo com uma gaja e vejo-lhe a linguagem corporal identifico-lhe os maneirismos retóricos que visam manter-me na perseguição de forma a captar valor, percebo quando me testa para saber qual o meu estado mental em relação à abundância de parceiras e que falho o teste da forma mais ilógica, exprimindo que ela é a única a que a minha atenção se dedica, esse tipo de merdas. Consigo prever em 2 ou 3 fases da interacção, para onde a mesma se encaminha, e consigo até nalguns caso decidir e operar para onde será o destino. No passado era inebriado por um reino de significados e bruma, hoje vejo biologia evolutiva em todo o lado. Sinto falta da idiotice auto induzida que é acreditar na ficção amorosa e conferindo assim significado à minha interacção com a minha Némesis, a gaja. «-Percebo o que você diz. Mas penso que já devia ter chegado ao ponto de perceber que o ‘amor’ é uma cenoura que homens sem amo inventaram e inventam para fingir propósito e fugir ao sem sentido.» Pois, mas eu sei, sou é teimoso. Estou parado no meio da estrada, a função do escritor é lidar com estes problemas sem solução e forjar uma saída que tresande beleza. Não vale a pena escrever um livro expondo que todos nos mentimos a nós próprios para podermos viver. «-Já tens esse problema desde a faculdade. Sempre achei que fazias como o Quixote de Cervantes, olhavas para uma taberneira e escrevias para ela como se fosse princesa, transmutavas com o teu olhar, chumbo em ouro.» E o pior é que eu sei. Como posso clamar pela verdade se não consigo viver com ela? Alguém se aproxima da mesa. De vestido azul. «-Desculpe, você não é aquele escritor brasileiro que publicou um livro chamado ‘Dos mil rios desta terra’?» Rindo de orelha a orelha, Ivan respondeu afirmativamente. 3 colegas de Línguas e Literaturas Modernas, haviam saído à noite, e não pude deixar de reparar que vinham vestidas de azul, vermelho e verde. Fez-me lembrar RGB e o antigo Spectrum. Ri-me. De novo, com a minha palermice. A de azul sentou-se ao meu lado. Chama-se Diana. E disse que me achou graça, que ao olhar para ela a minha cabeça ondulava como uma trirreme. «-Diana, como podes constatar pela minha voz arrastada, não estou apto para conduzir.» Riu-se sonoramente. Muito seriamente disse-lhe «-Era capaz de te ouvir rir a noite toda.» Uma semana depois Ivan liga-me de São Paulo. «-Agora sei o que sofrem os agentes. Por causa da situação do Covid, ninguém está a publicar nada.» «-Caga para isso. Quando for aí logo vemos isso.» O meu telefone nestas alturas parece uma casa de putas no fim do mês.
Não sei que raio tem a quadra natalícia que aos primeiros sinais de pedofilia dos pinheiros de néon, um ou outro Natal passado me liga. É constrangedor e detesto essa merda. Retira-me a dignidade de pensar que o silêncio do passado se deve a falhas de carácter das amantes que em determinado ponto eram invisíveis para mim. Eu só via o que queria ver, e não vi as falhas de carácter, humanas, de pessoas que sabem fingir melhor que eu. Ângela, Natal passado de há uns 15 anos, achou que me devia ligar. Que puta de surpresa, eu não estava mesmo à espera. Habituei-me a não esperar qualquer contacto que manifestasse um sentimento de ‘ei, fodemos amámos, nunca me serás indiferente’, por via de um telefonema a perguntar se tudo está bem. A maior parte das gajas e boa parte dos gajos, trata de esquecer o outro para o rol de troféus ou de paragens de autocarro, numa viagem de olhos postos no porvir, com cegueira para o quejáfoi. «-Olá João!Estás bem?» Arrefoda-se. «-Tudo e contigo?» «-Também. Estou a ligar-te para te desejar boas festas para ti e para os teus!» «-Obrigado Ângela, boas festas para ti e para os teus.» Terminaria aqui a cordialidade, mas não, tanso que sou, acrescentei algo que sugeria continuação do motivo inicial da chamada. «-Espero que estejas bem e feliz.» Arrefoda-se ao quadrado, de onde saiu isto, da minha boca, ou existe alguém de nome ‘Ego’ a falar por mim? «-Estou, quer dizer, acho que sim, o normal.» Tradução, «-Não estou, e quero que me perguntes por mais, porque te liguei a sondar se eras uma hipótese segura para eu alterar alguma coisa numa existência infeliz.» Eu cumpro o papel. «-Conta lá, que se passa, como estão os teus miúdos?» Ela teve 3 filhos, rapazes. «-Estão bem, dão-me cabo do juízo, mas é bom.» «-Sim ter filhos é um desafio tramado na existência, descobrimos mais quem somos quando cuidamos de outros, acho eu.» A simulação de dúvida da minha parte, permitiu-lhe discorrer sobre o assunto com a autoridade de quem abriu as pernas três vezes para deixar sair outro humano, acha que tem. «-Sabes lá, fraldas e infantários e ir a consultas de família, deixei de ter vida para mim. Sinto falta daquelas discussões sobre Metafísica, que tínhamos à sombra da borracheira no átrio Oeste da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Lisboa.» «-Eu também.» «-Casaste João?» «-Não, não tem calhado.» «-E que fazes?» «-Continuo a pesquisar, à procura.» «-Que inveja.» O tom desconcertou-me, de todo é uma experiência habitual uma mulher abertamente comunicar a insatisfação com uma vida que é integralmente resultado de escolhas próprias. «-Inveja nada, continuo com os mesmos problemas que te levaram a pousar a boca na minha, quando estudávamos.» Passou-me pela ideia aproveitar-me da situação. Se Deus lança pito para o teu lado, tens de comer o que te metem na frente. Mas não. O passado fica no passado, é algo que há muito me digo. Não há cá abébias. Pergunto-me a mim, porque me surgiu a ideia, e lembro-me da minha proposta conceptual de que os amores não morrem, adormecem apenas, à luz das circunstâncias. Seja o outro deixar de nos amar, seja nós amarmos outro. Comer uma gaja para relembrar o que me levou a afastar, e comparar uma pobre alma com as memórias de um corpo 15 anos mais novo? Cruel. «-Inveja sim, acho que cometi um erro, quando terminámos.» «-Que erro?» «-O de te deixar ir sem ir atrás.» Foda-se. «-Não digas essas merdas, isso não é justo para com o teu marido que se esfalfa para vos meter comida na mesa.» |
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