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Corre uma brisa fresca à noite XII - Finis

29/9/2022

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Ela andava com menos alegria do que era costumeiro.
Solipcista como sou, perguntava-lhe se tinha algo a ver comigo, se podia fazer algo, mesmo que isso implicasse baixar a sua atracção e respeito por mi, que não podemos nem devemos ser humanos ao pé do mulherio.
Querem o Super-homem mas dizem querer de facto o Clark Kent. Quando, sem espinha, tentas dar uma de Clark Kent, és desqualificado porque mostraste preocupar-te demasiado com o que ela quer. Por isso não se deve levar a sério nada do que a mulher diz, a não ser a palavra ‘não’.
 
Não é não, e é ou deve ser o maior repelente para qualquer homem que não se queira furtar à companhia do gajedo.
O não é amigo. Limpo, cristalino, mesmo que fingido.
Quem finge um não, é um não.
Como ping de computador que não fica à espera da porta que se possa abrir. Ou abre ou não abre.
Eu gosto do não. Longe vai o tempo em que o via como desafio, nesses tempos de arrogância minha.
Não é não, boa noite e um queijo.
Perguntei-lhe várias vezes, que tens. Cada vez se afastava mais, deixava de responder às minhas chamadas, deixei que a preocupação se transformasse em quase indiferença. Não vinha ter comigo, e interpretei que fosse a maneira dela de me afastar, de forma cobarde, de forma ímpia e corrente como tantas fazem, desculpando-se para si mesmas na sua estupidez, que são claras no comportamento, que se eles não percebem não só corroboram o pouco respeito que têm por eles, mas a crença de partida, de que não valendo a pena por não saber jogar o jogo, não sabe jogar o jogo, logo não vale a pena.
Lógica de gaja, firmware.
O maior inimigo e amigo do homem é a sua lógica. Se e somente se, aplicada ao seu espírito e não ao dela. Como ponto mental de origem, de nada adiantando projectar racionalidade na cabeça da amada, engate, o que seja.
Não projectes a tua forma de pensar nos outros, repetia constantemente para mim.
Gradualmente, a mágoa profunda passou, as noites de choro, o negrume na minha vida. Uns meses depois recebo uma chamada, do pai dela, dizendo-me que o funeral era dia 19.
O negrume não desaparecera, ficara à beira da porta, e voltara com amigos.
Suicidara-se bebendo de penálti um litro de desentupidor de canos.
Foda-se. Que morte horrenda.
No velório mal consegui depositar um beijo na sua testa fria.
Não conheci ninguém, corri para a rua despejar lágrimas e berros de desespero agoniante.
Puta do caralho, a dor que me provocas.
Reconheci algumas amigas, cagonas de primeira, que haviam lutado para que ela passasse menos tempo comigo, e de alguma forma só encontrasse felicidade ao lado delas.
Como não conseguiram envenenar o poço, abandonaram-na, gradualmente.
Gostavam da imagem que gostavam de projectar, nos olhos crédulos Dela, e quando deixaram de ver o mesmo fascínio, nada de valor havia a parasitar.
Vieram ao velório para sugar pêsames, e justificar para alguma instância remota do seu ser, que não eram totalmente uns trastes humanos que desperdiçavam oxigénio estando vivas.
Fechavam-se num restrito grupo de apoio na órbita dos pais dela.
As imagens da noite apareciam desfocadas pelas horas que passei a chorar e que me avermelharam os olhos, inchados como lichias apodrecidas.
Fui para casa, adormeci agarrado à almofada, seca, pois já não conseguia chorar mais.
No dia seguinte levantei-me cedo, entrei no carro a caminho do crematório.
Por duas vezes me ia despistando por causa dos ataques de desespero e choro potenciados pelo esforço que fizera para a esquecer, e à rejeição forçada.
Apercebemo-nos da gravidade da situação quando a mãe dela começou aos gritos a censurar o cadáver pela fuga voluntária da vida.
O embargo da voz, o desespero, fizeram-me de novo chorar e saí, isolando-me da multidão que se amontoava à porta.
Sentei-me e fiquei a olhar o tijolo-de-burro que atapetava o chão, e perguntei-me se cá fora não seria a verdadeira fornalha.
Uma mão tocou-me no ombro, era o pai dela, que me disse para ir com eles, a casa deles.
Segui no meu carro e lá chegado entrei, deixaram-me com um copo de chá na mesa da sala de estar, e quando a mãe desceu as escadas, da mansão onde moravam, deixou-me uma carta em cima da mesa.
«-Sabíamos o quanto ela gostava de ti. Ela deixou esta carta para ti, e disse na sua despedida antes de se matar, para te deixarmos ir ao seu quarto, buscar algo que te queria deixar de lembrança.»
Eu estava sem palavras. Nem sabia que eles sabiam da minha existência, quanto mais do valor da mesma para ela.
Abri o envelope e em papel denso uma única frase escrita a azul, ‘Desculpa, mas era demais para mim. Perdoa-me. Terceira gaveta da direita.’
Subi ao quarto dela, que me foi indicado pela mãe.
Nele estava uma escrivaninha antiga com quatro gavetas de cada lado, e um espaço para escrever ou colocar os braços, demasiado diminuto.
Era muito antiga, ou passara pela família, ou havia sido comprada por ela numa dessas feiras de velharias que ela adorava e frequentava amiúde.
3ª gaveta da direita, mas a contar de cima para baixo, ou de baixo para cima?
São 4. É a 3ª, ou a 2ª?
Escolhi a 3ª a contar da de cima, pareceu-me mais lógico.
Dentro da gaveta estavam alguns envelopes com fotos e duas caixas de DVD.
Nada que mencionasse que me era destinado, abri um dos envelopes e fiquei a folhear as fotos a cores dela, em sessões de filmagens, no que me pareceu um filme pornográfico.
A dor lancinante que me dificultou a respiração…mas porque me quereria dar isto?
Para me macerar? Mas porquê? Que mal havia eu feito?
Agarrada a duas pilas, com um olhar maroto para a objectiva. As fotos eram o que se costuma chamar no meio, de porno a frio, fotos tiradas para o mercado das imagens fixas, os dvd’s deviam ser os filmes finais.
Mas porque raio queria ela que eu visse isto, porquê, qual seria a sua intenção?
Arrumei os envelopes e os dvd’s, sem saber bem que fazer com aquilo. Sentia-me sem sangue, ânimo, ou qualquer energia.
Por descargo de consciência, abri a 2ª gaveta, 3ª a contar de baixo. Nela apenas estava um caderno muito grosso que dizia ‘Diário’.
Colado a ele um post it, que dizia, ‘Para ti João’.
Na última página a que me dirigi imediatamente:
‘Sou incapaz de permanecer tão feliz, lembrando a cada momento que ou escondo o meu passado, ou perco o meu futuro. Só há uma solução, a do cobarde. João queria que escrevesses a preto no meu fundo branco e não a branco no meu fundo preto. O contraste cilício é insustentável para mim. Sê feliz, por nós.»
Levantei-me lentamente, e fui-me embora sem me despedir de ninguém.
Levei comigo o material audiovisual para poupar os pais à visualização.
Entrei em Lisboa pela margem Sul, e a meio do tabuleiro parei o carro e lancei envelopes e dvd’s ao estuário. Tirei os 4 piscas e dirigi-me para casa, com o seu diário bem apertado junto ao meu peito.
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