O seu rosto perfeitamente esculpido em carbono perecível, não era daqueles rostos que de tão belos não têm carácter.
Conseguia ver uma ou outra reminiscência do que imaginei serem traços do rosto do seu pai. Que mais é uma gaja senão uma versão efeminada do seu pater famílias? De certa maneira todos somos paneleiros, beijando as caras de pessoas que como nós saíram para a existência apenas com o sexo diferente. Ou os minetes em plenos clitóris que não chegaram a pénis desenvolvidos. O mineteiro pensava eu era um pederasta paneleiro. Ri-me com a ideia de treta, mais motivada pelo efeito da cerveja, que eu levara para este bar, um dos mais finos de Lisboa e frequentado pela nata da malta intelectualmente arrogante, das Letras, músicas e outras artes de primeiro mundo. O dono do bar conhece-me, e havia-me convidado. É mais um que insiste de todos os lados para que eu escreva um livro, que a blogosfera está morta, e que o limiar de atenção internáutico desperdiça os meus longos contos e dissertações publicadas livremente. «-Pá, foda-se, tens de escrever. Não te digo o quê, mas noto que há aí algo para sair.» O gajo estava rodeado de gente famosa, que eu desconhecia. Havia aquela aura de autoconfiança que esta malta tem. «-Pá, este é o gajo que te falei, o do blogue!» disse a alguém do grupo. «-Eh pá! Escreves umas coisas.» estendeu-me a mão, que cumprimentei, enquanto olhava por cima do ombro dele para o rabo de uma gaja de saia amarela com lantejoulas, e casaco preto à intelectual. A esta altura já tudo era de intelectuais para mim, estava tentado ir ao WC ver como é o papel higiénico para intelectuais lisboetas. A palavra espalhou-se e admito que gostei da graxa e do apaparicamento. Pelo que ia captando, isto era tudo malta com coisas feitas, e só eu andava há 25 anos para escrever a porra de um livro. Começaram a apertar comigo e lá confessei dos livros que tenho na gaveta, e que não completei porque tenho andado demasiado ocupado atrás de rabos de saias, como aquele, e apontei para as nádegas cobertas por lantejoulas num orgasmo de amarelo ou dourado, ou que raio era aquela cor. Toda a gente olhou e tossiu com a minha indiscrição, mas eu caguei-me, bebericando um espumante que mais tarde descobri ser champanhe a sério. Por isso me caía tão bem. O grupo que me rodeara desfez-se gradualmente e só ficou esse meu amigo dono do bar, e mais uns dois ou três. Que se lixe, já enchi o carro de mão de elogios e incentivo, deve durar meia dúzia de dias. Todos a fingir que o que eu não dissera não tinha importância, que em alguns o sinal do génio é mesmo poderem dizer o que entendem, sem se preocupar com as consequências amaricadas das convenções sociais. «-Olha, logo tenho bar exclusivo, passas por lá? Não me faças a desfeita de não ir.» «-Epá, já estou um bocado tocado, não vou vir a conduzir para Lisboa, para reuniões onde um gajo nem pode gabar rabos.» «-O Henrique vai-te buscar.» «-Quem é o Henrique?» «-O meu assessor. Às nove, passa à tua porta.» «-Não tens uma Henriqueta? Faz mais o meu estilo…» «-Este gajo…» vira as costas e vai para outro lado do recinto. Vim inebriado pelo metropolitano, cantando Radio Macau. O ego inchado havia trazido um pouco de felicidade, essa velha amiga que já não via há algum tempo. Troquei de direcção na Alameda e fui para a Baixa comprar todos os livros do Luiz Pacheco que encontrei, velhos ou acabados de reimprimir. Vou escrever, foda-se. Não posso atraiçoar o gajo que eu era há 20 e tal anos. Cheguei a casa e subi para a cama de primeiro andar, arredada por livros, computadores e aparelhagens de som, onde me distraio para não escrever. Olhei o tecto branco, e apaguei. Mal me tinha deitado, estavam-me a bater à porta. Abri a porta com maus modos, e calculei que fosse alguém a vender serviços de televisão internet e voz fixa. «-Sou o Henrique.» Porra já são 21? Chegado ao evento com a roupa amarrotada, censurei-me por não me ter controlado melhor na gestão do tempo. Sentia-me deslocado e fui-me sentar numa poltrona. O doce do champanhe enjoava-me e tinham-me negado água, que era uma celebração e tinha de beber. Saí para apanhar ar, e a fria noite de Lisboa, abraçou-me e disse-me que era bem-vindo, que sentia a minha falta, um dos seus melhores observadores, discreto e pacato. Pá oh noite, que queres dizer com isso? Virou-me as costas a puta, e nas minhas costas um paquistanês com a cabeça enfaixada oferece-me uma garrafa de litro de cerveja, escondida sobre o casaco. Desatei-me a rir, um supermercado aberto e com o pessoal a vender garrafas ocultas aos transeuntes. Estava lento e só depois associei que devia a ter com alguma coisa relativa a licenças e à pressão para a malta pagar bebidas de acordo com o que os bares da moda determinam. Qualquer coisa deste género, e achando estar a fazer algo bem, comprei-lhe a garrafa, calculei que ganhasse algo com cada garrafa que vendesse. Só depois percebi que tinha um problema, não ia beber um litro de cerveja de enfiada, estava cheio. Estava farto de beber. Beberiquei atá ao que o frio me permitiu, tive de ir para dentro e não ia desperdiçar o que me custara dinheiro, com tanta gente a morrer à sede. Que se fodam as vergonhas, com sorte fazem-me má cara e dão-me a justificação para me pôr a milhas. O gorila que estava à porta, torceu o nariz à minha entrada. Fingi que me estava a borrifar, e desejei que dissesse algo, para deixar a garrafa nas suas mãos. Lá dentro, já recebi algum calor e os meus lábios não me pareciam tão gelados. Escolhi o canto mais escuro e sentei-me. Fui bebendo e olhando as pessoas em redor. O meu alter ego começou a falar comigo. «-João, vais largar a bebida.» Eu sei, ando a beber demais. Não preciso de bebida para comer, foder ou escrever. A qualidade, ou falta dela, do que escrevo, não varia quer esteja ébrio ou sóbrio. Nem para drogado sirvo. Vou tendo estes pensamentos de merda, e percebo que estou bêbedo de novo. Encosto-me para trás e percebo finalmente que há uma música de fundo. A música muda, e mais gente circula à minha frente, esse meu amigo dono do bar, aborda-me, olha inexpressivo para a garrafa e chama um empregado e começa a descompô-lo porque não estava a servir-me o que havia no bar. Arranhei uma explicação, dizendo que eu é que tinha saído e comprado, que não me apetecia beber champanhe, que o pessoal não tinha culpa das minhas acções. Ele segreda algo ao empregado que se tenta apropriar da minha garrafa, não deixo. «-Tens a cerveja morta! Ele traz-te Carlsberg fresca!» Não deixei, e fez sinal para que me deixassem como estava. Desejei que ele tivesse dito que dava mau aspecto ter a garrafa à bêbedo assim em cima da mesa. Ao invés, apresentou-me alguém que era alguém no mundo da edição ou das letras. Não me lembro. Que presenciou tudo, a minha embriaguez e até um puxão à manga do fato sedoso, para se sentar comigo e debater literatura, por causa de ter citado Torga. Bebe aí da minha garrafa. Riu-se, levantou-se e afastou-se como gaivota saciada. Fiquei de novo entregue a mim, até que no meu campo de visão apareceu ela. Os dois dentes de cima um pouco salientes, mas soberbamente tapados por lábios carnudos e escarlates, cabelo curtos que não gosto mas nela ficavam bem. Numa orelha tinha um brinco com uma estrela, e na outra um brinco circular que descia quase até ao ombro. Calça de ganga preta justa às pernas, com túnica ou blusa verde-turquesa, assimétrica, mais comprida do lado direito que do esquerdo, e um cinto de cabedal largo e militar à cintura. Apesar da base que colocara no rosto, percebi que tinha pele esticada e sem buracos, não teria mais de 28 anos, e um tom branco que me dizia que não era de sair muito para o mundo. Aquele escarlate labial estava a dar cabo de mim. Tudo nesta pessoa me dizia que era bem-adaptada à vida com os outros, o riso fácil, o olho para o saber vestir, o à-vontade com que passava de conversa e de interlocutor, as expressões francas sem sombra de dúvida sobre si mesma. Um, gajo, eu, fica titubeante sobre o seu merecimento sequer para uma conversa. Lembrei-me das confissões de merecimento que recebera antes e deixei-me de sentir tão abaixo, e veja-se, esbocei o meu melhor sorriso na sua direcção. Se viu, fingiu que não viu. De facto, a cerveja estava morta, tão morta como a minha tentativa de engate por via dentária. O dono do bar, passou por ela, e não sei que lhe disse, mas apontou na minha direcção. Foi quando achei que estava na hora de me ir embora. Inclinei-me para a frente, mas o traseiro teimava em não se levantar. O veludo preto da poltrona girava como cornucópia 3d no meu campo visual. «-Olha lá, soube que me estiveste a gabar o rabo?» Esta voz. Não era familiar, mas não era desconhecida. Era uma voz feminina, com duas camadas, a camada feminina polida na parte de cima, que ouvimos quando percebemos as palavras, mas depois uma outra mais gutural, que exprime o quer que seja que nos anima por dentro. Não era máscula, mas era diferente da das outras mulheres que conheço, que perante exultações de dor ou de prazer, a voz apenas se estica até aos limites do espectro audível. Esta não, não era menina de chiliques. Era carácter, carácter transmitido por via oral. Olhei para cima, a sofisticada desejada, falava comigo. Só lhe consegui dizer, como cabra que não sou, «-Ainda há bocado ri-me para ti, não me ligaste nenhuma, que mudou de então até agora?» «-Não reparei. Além de que um sorriso não quer dizer nada.» Ambos tínhamos razão. Não quer dizer nada, mas ela tinha visto. «-Vá, estiveste a gabar o meu rabo ou não?» Fiquei parvo a olhar para ela, pois não via a lógica da pergunta. «-Agora? Eu nem reparei no teu rabo agora. Estava mais a olhar para os teus maneirismos, para os teus olhos tristes encovados pela parte superior das maçãs do rosto e para os teus olhos azuis. Só me apetece desabafar façanhas sexuais, mas o teu rosto, sendo belo não é ostensivamente belo. Tem carácter. Nem quero imaginar a minha boca na tua.» Esta última frase já soou a cliché, eu e ela percebemos isso e ela riu-se porque detectou que eu estava em modo de engate. Atabalhoado, mas incisivo. Não foi agora, mas foi de tarde. Fiquei confuso. «Eu estava de amarelo e preto. Pensei que tivesses tu, o carácter para assumir.» Percebi que era a gaja que tinha visto de manhã ou tarde, não me lembro das horas. «-Agora é que não assumo mesmo, já me lembro. Não te vi de frente antes.» «-Tens bom gosto e eu tenho bom rabo.» Rimo-nos os dois. Eu estava hipnotizado pela forma como os lábios dela mexiam, enquanto falava, e dei comigo a pensar se era de facto assim ou se eu já estava a arranjar pretextos para gostar dela. «-Sabes, devias rever os textos, não dizer asneiras, e elaborar mais a estrutura para ter integridade.» O raio do blogue. Estava explicada a mudança de disposição. Estava para lhe perguntar o que sabia ela disso. Mas algo me fez ficar calado. «-A minha banda só começou a ter mais sucesso, quando consegui acertar isso nas letras que escrevo.» «-A tua banda?» «-Sim acabámos de tocar!» Era daí que eu conhecia a sua voz desconhecida. Era o som ambiente, que tocava ao vivo na área contígua ao espaço de onde eu escutava. «-Eu não revejo os textos e tenho o processador de texto ora a funcionar ora a fingir-se de morto. Além de que na maior parte das vezes, escrevo directamente para o site.» Ao dizer isto estendi a mão para o cabelo dela, e senti o calor que emanava do pescoço. Ela esperava que a puxasse para mim, porque meteu o pescoço a jeito. Por espírito de contradição inclinei-me para ela e beijei-lhe a orelha com o brinco circular. O seu olhar era trémulo e sério. «-Este momento está perfeito, não queria que acabasse.» disse por fim. Deu-me a mão e afundou o rosto no espaço entre o meu ombro e o meu pescoço.
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Recebo no telefone, uma mensagem de whatsapp às 3 da manhã. Tinha estado a escrever até tarde, como é habitual, e fui apanhado na pior parte em que podemos ser interrompidos, aquele limbo entre sonho e vigília que comigo começa sempre com imagens de gajas boas que a minha cabeça vai buscar sei lá onde, e com toques de pele e beijos sôfregos. Depois deste limbo perco controlo de mim, e só acordo no dia a seguir. Devo sonhar a preto e branco. Sou daltónico nos sonhos e cinzento na vigília. Destrancado o telemóvel, uma mensagem da Briana, com quem eu não falava há uns valentes meses. Não me levou a bem quando lhe disse que não iria continuar a envolver-me com ela. Sentindo que não havia caminho para trás, insultou-me sem por isso eu fazer merecimento, mas depois voltou um mês e tal depois, a contactar, sem qualquer tipo de vergonha (afinal as mulheres são isentas de falhas morais) como se nada fosse, e a conversa (que sempre dou porque acredito na educação e no escutar o outro) conduziu aos seus relatos sobre um novo namorado que conhecera no tinder, e com o qual estava a viver no meio de uma parvónia qualquer. Que tinha acabado e ele tinha voltado para a anterior namorada e que ela não sabia o que fazer. Apesar de não querer continuar a envolver-me com ela, eu apreciava o indivíduo em questão. É boa pessoa, fora dos assuntos com gajos. E é uma pessoa com mitigada maldade, isto é, tem aquela velhaquice que todos temos, mas no geral, está convencida de ser mais esperta nos joguinhos que constrói na sua cabeça, do que realmente intende fazer algum mal. E como todos nós, a sua maldade, se é que lhe possa chamar isso, vem apenas da falta de confiança em si mesma. Está sempre à espreita do bicho papão da rejeição, da discriminação negativa, por parte de outros. Forçada a erigir defesas, como todos nós fazemos, ressente-se do facto de ter de o fazer, e sente que o ‘mundo’ obriga a ser a outra coisa que não é, para evitar a solidão, o opróbrio, a chacota. Não lhe guardava qualquer ressentimento a não ser pela cobardia de me ter pintado à mãe, ao pai, e à irmã, como um cabrão, não sei como, a não ser que a honestidade seja crime nos dias que correm. Queimou-me na fogueira judicativa, para limpar a sua imagem perante os próximos a quem me apresentara. Ok, menos mal, já me fizeram pior, mas nem por isso gosto. Como os insultos não haviam sido vernaculares, e como percebi que tinham sido fruto da emoção decorrente da rejeição, não a bloqueei em nenhum dos meios em que comunicávamos. E por isso estava eu a receber às 3 da manhã de uma quinta-feira, uma foto sua, no seu novo ‘emprego’ como gestora de adereços cinematográficos, com calças de ganga pretas, t shirt de alças, preta, e botas de Inverno em pleno Abril morno. Os braços direccionados para rumos opostos e dobrados pelos cotovelos com punhos fechados apontados para o tecto do pardieiro onde estava, que servia de armazém para uma produtora qualquer. A pose completava-se com a barriguinha exposta e uma careta de esforço guerreiro, para a foto. A intenção da mesma era clara, estou melhor fisicamente, o meu corpo volta lentamente aos carris do desejável, vê o que estás a perder cabrão. Como se a razão da minha recusa prévia fossem factores carnais. Sou capaz de comer um bidon ferrugento se o mesmo tiver uma personalidade interessante. Todo o que lhe havia fodido o juízo para deixar de comer batatas fritas, e moderar na cerveja e vinho, largar o tabaco, fazer exercício, etc., havia sido entendido como uma pressão minha para se tornar mais agradável aos meus olhos. Interpretava como se eu a forçasse a ser o que não era (acostumada a ser o que achava ser no seu laxismo), e irritava-se com as minhas sugestões. Tal como a camarada Sónia, que à minha sugestão de fazer exercício e largar o tabaco, reagiu como se eu lhe tivesse cuspido na sopa. Como se a mera posse de vulva a isentasse de toda a disciplina necessária para manter a saúde. Fazia dietas estúpidas que a faziam ainda mais cadavérica e inerte de tónus muscular. O seu objectivo era manter-se magra, apenas para ir mantendo algum poder sexual, já que o cabelo cronometricamente pintado de vermelho ou laranja, servia como chamariz da atenção da mesma maneira que as penas de um pavão. O olhar masculino é simples, cor brilhante, é magra, ergo fodo. Era a forma de manter o seu namorado interessado nas más fodas que ocasionalmente davam. O pobre desgraçado, sugado até ao tutano, via-se preso numa relação que desprezava e a que não conseguia fugir, senão raramente para junto dos amigos. Mas o anzol estava demasiado fundo, ela sabia como pescar e manter o peixe preso. Briana inicia a conversa que sei da treta, perguntando por mim, já que eu não respondera à imagem que me mandara. Convida-me para café, vamos. Num clube de motards, conta-me as suas novas aventuras, com malta que vem do cu de Judas europeu fazer caravanismo em chaços de óxido de ferro e que para ali pela zona da Fábrica da Pólvora, onde iria trabalhar, após o fim do corrente projecto. Pela repetição do pathos fiquei pior que estragado, pois em vez de se entregar ou escolher um gajo que a apreciasse, se ia meter com degredados degradados cuja única pena de pavão distintiva é a projecção de uma vida marginalizada por uma batida ideia de liberdade assente em não lavar o cabelo e representar um arquétipo de hippies. Que se foda, a vida é dela. À minha reacção adversa, interpretou ciúme. Não queria regressar, mas gostaria da validação de saber que eu a desejava. De novo, o arder na fogueira para aquecimento de outro. Expliquei-lhe que não, que lhe desejava o melhor, mas que a sua sucessão de más escolhas me surpreendia. Eu sei que sou esquisito à minha maneira, mas passo por um gajo normal. Entendo bem como as cachopas se atraem por qualquer coisa que faça reflexão de luz. Pelo brilho e não pelo que faz brilhar. Mas via o seu desperdício de 36 anos de vida, buscando algo que queria, constituir família, nos lugares errados. Nos pardieiros de imagens e personagens pré feitas, apenas porque enquanto primatas, boa parte de nós se perde facilmente no precipício do teatro. Uma pequena vitória de manhã, com saliva dela ainda na minha maçã do rosto. Como podes guardar raiva a seres desprovidos de introspecção, foi a minha linha de engate no bar privado onde a nata lisboeta se reunira para celebrar e fornicar, certa da aniquilação nuclear próxima. Encostado a um pilar marmóreo de cor jade, sentia-me o único antifuturologista no recinto. Ela aborda-me e pergunta-me se e não sou aquele cabrão que escreve umas merdas num blogue. O editor que me convidara para esta merda, devia-lhe ter falado de mim. Escrevo para lá desde 2006 e não me posso queixar do retorno lúbrico que juntar letras me dá. E eu respondi perguntando se ela não era a bardajona que o lia. Riu-se, e disse que alguém me devia ter feito mal, que estava a precisar de uma boa foda. Respondi que agradecia o convite mas fodas por pena já não dava, nem mesmo à beira do apocalipse nuclear que ‘eles’ julgam aí vir. Ela teve a inteligência em perceber que apenas levava as respostas adequadas ao comportamento que tinha comigo, e não desatou aos berros ou a ameaçar, ou a fazer-se indignada. Testava a rapidez do meu pensamento e resposta, vendo se ao ser desagradável, eu modificava o meu comportamento. A virulência das suas provocações foi decaindo na exacta medida em que levava o troco cada vez mais ameno da minha parte. «-Nada mau para quem aprendeu a escrever o ano passado.» foi a reductio ad absurdum que me fez perceber que invertera o comportamento comigo e que já estava a provocar brincando com a finalidade de criar uma ficção comigo, só nossa. «-Mas porquê esse ódio? Quem te fez assim tanto mal?» «-Mas tu leste aquela merda?» «-Li.» «Leste o caralho. Se tivesses lido sabias que eu não escrevo sobre ódio. Não sei. Não sei o que é. O mais que imagino parecido, é a raiva que sinto pelas feministas. Mas nem isso julgo que seja mesmo ódio. Não desejo a morte ou mal de ninguém, pelo que deduzo que se odiar fosse uma arte, eu seria mau artesão.» «-Estás a fazer-te de bonzinho, toda a gente odeia alguém, é do ser-se humano.» «-Talvez, mas eu sou demasiado orgulhoso para prender energia emocional negativa com alguém. Posso ficar ressabiado, irritado, mas isso não é ódio. O mais que seja foi por não ter tido ou a última palavra, ou por me ter deixado enganar.» A sua feição estava agora mais relaxada, pelo que eu via perifericamente. No escuro da sala ampla que dá para uma porta por detrás do Largo Camões, podia-se ver uma nesga de Lisboa lá fora, vazia, deserta a um dia chuvoso de semana, os turistas deviam estar a comer fast food num centro comercial qualquer. Um fino mas comprido néon de cor púrpura iluminava muito pouco, apenas o suficiente para ver o cintilar dos copos, o meu vodka tónico e o Martini com Frize dela. Eu não tinha ainda falado com ela de frente, estava de lado para ela, pois com aquela entrada, eu não lhe queria dar a satisfação de ter o meu olhar e atenção total. «-És muito cerebral.» Ri-me com a expressão mas percebi o que queria dizer. «-O que tu queres dizer é que sou demasiado analítico. E sim, também acho. Pensar demais nas coisas é uma forma de vingança pela certeza amarga que nunca vamos perceber um caralho daquilo que nos rodeia. E por isso, reduzimos coisas e pessoas a cogitações estéreis e anedóticas.» «-E escreves muitas asneiras, vernáculo quer dizer. Às vezes, ou melhor, a maior parte das vezes, acho que são dispensáveis, escusadas, deslocadas.» Afinal ela tinha lido qualquer coisa. A minha vaidade a meias com a vontade de saber opinião de outros, fez-me virar mais um pouco para ela, e ela para mim. Sei que ela percebeu que era por ali o caminho, e continuou insistindo no tema, para me abrir. «-Como diz o Poeta, a minha Pátria é a minha língua. Se o vernáculo são os arrabaldes, os pardieiros e os becos mal frequentados da minha Pátria, são minha Pátria ainda. As palavras são apenas veículos de transporte de emoções. Caralho, cona, foda-se, e outras semelhantes, são meras conjugações de letras e sons. O mal ou bem das palavras não está nelas.» A conversa esmorecera, pela minha explicação imbecil, mas ela já obtivera uma primeira vitória, amolecera-me a partir de uma entrada agreste. E eu não percebia se era sistemático, se ela era tão suave nestes desafios infantis que colocamos a nós próprios, ou se era tudo fruto da minha cabeça. A sua entoação mudara completamente, e a voz estava muito mais meiga comigo, e quase rouca, e diz-me com meio sorriso «-Lá estás tu a racionalizar, fechado na tua cabeça.» Ri-me, subiu mais um degrau no meu respeito. «-Tens razão.» «-Mas eu gosto de ver homens assim, arrebatados em geral, especialmente por ideias.» Não sabia se falava a sério se seria mais um esquema para me meter a falar de mim próprio, apenas para chegar ao fim de meia dúzia de frases, arrependido ou vazio, desiludido por as ter dito. Uma espécie de ressabiamento do alter ego com o ego, por não ter moderação nenhuma. Optei por ficar calado. Obtive a minha vitória quando ela, em vez de se despedir e retirar, fez por continuar a conversa. «-Assim, acho que já te entendo um pouco melhor, e se calhar a minha percepção inicial era desfasada. «-Mas não são todas? Todas as impressões iniciais são desfasamentos entre as nossas impressões dos outros, e o que os outros nos dizem, fazem…» Interrompeu-me: «-Oh João, estava só a dizer que percebi-te mal, não compliques tudo.» «-Como sabes o meu nome?» «-O Márcio disse-me.» Só não adivinho o Euromilhões. «-Mas eu já sabia, em alguns textos deixas escapar o teu nome. Retira ficção à ficção.» Foda-se. De facto, lera. «-Não é ficção. A maior parte das merdas que lá estão, ocorreram de facto. Muito raramente invento historietas. Rumino é depois á volta delas.» Ficou parada, a processar o dado novo que lhe alterava, com esta, duas vezes seguidas, a percepção que tinha de mim. «-Então o desfile de mulheres é mesmo um desfile? Deves sentir falta delas todas.» «-Não, não escrevo sobre elas, são todas o mesmo que eu era para ti há uns 10 minutos, um conjunto de ideias feitas minhas acerca de pessoas para sempre inacessíveis. Eu escrevo é sobre mim, a partir do sexo, da paixão e do impacto que o feminino tem, teve, e terá em mim. Em vez de usar o corpo de uma prostituta, uso as personagens naturais ‘delas’, para fazer a minha introspecção.» «-Acho que entendo, mas não podes negar que há alguma raiva na narração.» «-Outra vez arroz? Não há raiva nenhuma, quanto muito apenas uma nostalgia a la Elliot de preferia que tivesse sido de outra forma.» «- De outra forma como, o amor perpétuo, o mito do amor fusional em que dois se tornam um?» Adorei o ‘fusional’ a sair da boca dela. É tão raro que alguém use termos parecidos com os meus nestes assuntos. «-Sim, em parte, em parte gostaria de continuar a encarar o amor como algo de maravilhoso ou idealizado, pois talvez seja viciado nas emoções do enamoramento. Tens alguma razão aí.» «-Então também acho que tenho alguma compreensão do porque dizes que não tens raiva, ‘delas’, mas da situação, apesar de como dizes num daqueles textos, pagaste todos os teus amores com sangue ou sofrimento. Mas todos o fazemos, eu faço, tu fazes. É um processo que recusas, porque gostavas que o amor com ‘ela’ durasse para sempre. Sim, agora percebo-te, o ressabiamento ou raiva, é por causa de te matarem a ilusão amorosa, não por causa da pessoa em si.» «-Nem sei o que te dizer, é interessante a tua perspectiva. Como te chamas?» «-Dora.» «-Engraçado, Dora. Uma das tipas que narro…» «-Eu sei, a que dizia que se vingaria dos homens fazendo-os sofrer, para vingar o que o seu pai fizera à sua mãe. A tua colega de Filosofia.» Eu estava parvo, esta pessoa conhecia melhor as minhas historietas do que eu. «-Seja como for, não odeio, não tenho raiva, não lamento nem o caminho deixa de ser para a frente. Não posso adiar porque em um ou noutro momento foram minhas amigas, isto é, em grau maior ou menor, preocuparam-se comigo. Nem posso guardar rancor a um ser desprovido de introspecção, incapaz de acartar, como Atlas, o peso da culpa própria no seu mundo. Parou de verter Frize para dentro do copo de Martini que enchera de novo. Olhou para o pouco que de mim podia ver no escuro, e pediu-me: «-Repete a última coisa que disseste.» Fiquei incerto sobre se seria agora que faria uma cena triste de feminista, ou se se iria embora. Não consegui perceber na entoação. «-Atlas, o peso…» «-Não, da introspecção.» «-Não posso ter raiva de um ser, a mulher, incapaz de fazer introspecção.» Não se foi embora, mas ficou a olhar muda para mim. Nesta fase já estava quase todo virado para ela, e uma bola de espelhos na traseira do sítio onde estávamos, fazia cintilar raios de luz fugazes e aleatórios pelos nossos rostos. A expressão dela assustou-me pois esporadicamente via um olhar congestionado como se estivesse prestes a chorar. Peguei-lhe em ambas as mãos, e senti a pulsação acelerada, e perguntei «-Dora, estás bem? Se foi o que eu disse não ligues, só tenho teorias da treta.» O contacto físico fez libertar a tensão que rapidamente acumulara com a frase que me pedira para repetir. Inclinou a cabeça para baixo e como que se quebrou em lágrimas e instintivamente a abracei para purgar a dor e a tristeza do seu corpo. Quanto mais protegida, mais chorava, e mais eu a apertava, e como costuma ocorrer, ao sentir o seu cabelo perto da minha boca, soltei-lhe um beijo, a ver se passava algum do meu carinho, para o ser indefeso e vulnerável, uma forma de dar um beijinho no dóidói, para passar a ferida. Não vi, no escuro, a posição da cabeça dela, e o cabelo que eu sentira nos meus lábios estava sobre os lábios dela, pelo que sem querer lhe beijei o canto da boca. Isso fez com que se recompusesse, pois era como um lembrete de quem eu era e do motivo de ter passado parte desta noite a falar comigo. Limpou as lágrimas, chegou-se para trás e pediu desculpa. «-Estou emocional, pois o que disseste era o que o meu pai dizia muitas vezes, e eu achava que era por raiva da minha mãe que nos abandonara para viver com outro, mas não, o meu pai não a odiava. Fazes-me lembrar ele, tão destruído como a sua ideia de amor.» «-O teu pai deve ser uma pessoa interessante de se falar.» disse eu. «-Era, morreu há 10 anos.» «-Epá, não sabia, desculpa.» Fez um gesto com a mão a cortar a atmosfera, para escusar as minhas desculpas por ter mencionado o pai. «-Criou-me e ensinou-me quase tudo o que sei, e durante muito tempo ressenti-me dele por não me criar como rapariga. Com mariquices e pompons cor-de-rosa. Fizeste-me lembrar dele e sinto muito a sua falta. Por isso fiquei aqui parvalhona a chorar à tua frente. Deves achar que sou uma tola não é?!» «-É. Mas já achava isso antes.» «-Parvo!» e com a palavra saiu um ataque da mão aberta ao meu braço, castigando-me pela injúria prévia. Mas a sua mão ficou e agarrou o contorno do meu úmero. O movimento gravitacional terrestre pareceu abrandar, e os olhos fixos na escuridão intermitente, com raios de luz passageiros a alta velocidade, olhando um para o outro. Ambos tínhamos o mesmo tipo de casaco de cabedal gasto, mas eu tinha botas da tropa e ela um vestido branco com papoilas vermelhas e a rama verde das mesmas. Lembro-me do meu avô me chamar ‘João das Flores’, porque quando era pequeno estava sempre a colher flores e a dar-lhe a ele e à minha avó, e as minhas flores preferidas eram as papoilas. Sempre adorei o vermelho. Ela era mais alta que eu para aí uns dois dedos. O cabedal rangia de abrasão, com os pequenos movimentos e agarrei os braços dela que agarravam os meus. Julgo que nem eu nem ela sabíamos o que fazer, mas algo de demasiado forte me impelia para ela. O seu cabelo era negro, mais comprido à frente, escadeado em ângulo, não sei dizer pois não percebo nada de cortes de cabelo, muito menos femininos. Toda ela tinha estilo, a roupa assentava-lhe bem, e sabia claramente vestir-se. Tinha umas botas que terminavam pela canela cujo cabedal preto tinha por alturas do peito do pé um enfeite qualquer vermelho, que combinava com o malmequer do vestido. Eu tinha-me apercebido dos olhos claros mas apenas quando olhou para a claridade do telemóvel, é que percebi que eram verdes. Na sala ao lado alguém deixara cair um tabuleiro com garrafas e copos que se estatelaram no soalho, com algum alarido, e no momento menos próprio, mais inadequado, puxei-a para mim e beijei-a. Estivemos a respirar a respiração um do outro, e eu sem aquela pressão de mostrar que beijo bem ou de conduzir as operações para a cueca. Apenas sorver todo e qualquer gás libertado de dentro do corpo dela, por via exclusiva dos dois orifícios cranianos. Havia algum desespero existencial nos amassos que me dava. Como se acreditasse piamente que era eu, por quem sempre esperara. Comecei a temer a vergonha de ficar de pau feito encostado a ela, mas assim que me sentiu apertou-me mais para si. Encostámo-nos à parte de um sofá alto, e envolveu-me com as pernas, e já toda a dança e sofreguidão exigiam passar a uma solidão a dois. Mas como não nos conhecíamos, ela apenas olhava com desconforto em torno de nós. «Eu sei o que estás a pensar. Porque estou a pensar o mesmo. Preciso de estar contigo mas não aqui. Não vim aqui para nada do que se vai passando relacionado com as consequências da futurologia.» disse eu. Ela percebeu e concordou e disse, «- Quero estar apenas contigo, a sós, não neste ambiente.» Saímos e fomos para a rua. Chamei um Uber, e ela disse que tinha o carro próximo. Cancelei, e fui de mão dada com ela, até à casa dela, com vista para o mar escuro de espuma branca iluminada pela Lua ali da Ericeira. Sorte grande e prémios de consolação I
Pode um homem nascer chato por dois motivos, por uma visão que flutua como farpa em carne viva, (que não consegue retirar e que é a visão de que há algo de errado consigo, é inadequado ou de outra qualidade inferior em relação aos outros), ou por ser um cobarde que foge da vida. Mas ambos têm algo em comum. O chato não o é por falta de jeito para não o ser. É por falta de motivação, porque sabe que no final de contas, não vale a pena o esforço para deixar de o ser. Sente que o esforço não vale a pena ou porque se tem em elevada conta, ou porque tem tão pouco amor próprio que acha que existe algo de congénito mal nele. Um culpa a metafísica, outro a biologia. Ser-se chato, sem brilho, corriqueiro, normal, é um conceito infantil ao mesmo tempo que tragicamente perto do pulsar da vida. O chato geralmente sabe que esta merda é uma pantomina, em que todos fazem de conta e em que ele se perderá se fingir como os outros. Por mais que tente, algo no seu olhar revela aos outros aquilo que não consegue esconder ou não exprimir, que não acredita totalmente em si. Mesmo o espampanante que fala alto na rua e nos cafés, está só a compensar a sua crença que tenta de qualquer forma esconder. Nascem os indivíduos com personalidades ordenadas em escalas de aproximação ao que seja o gosto geral em cada época. Talvez o chato fosse aquele de quem ninguém sentiria a falta por ser comido por um urso ou tigre-dentes-de-sabre. O chato, o pacato, o taciturno, talvez fosse a carne para canhão da pool genética. Hoje em dia, os chatos passam ao lado da reprodução, enfiados numa solidão mitigada com jogos de computador, redes sociais e idas ocasionais ao bordel. Também existem mulheres aterradoramente chatas, mas com as mulheres é diferente. Por pior que seja a mulher, existe sempre um enfadonho parceiro que a aceita como é, e a quem ela acaba por desprezar por isso. Voltaire dizia que a arte de se ser chato era falar sobre o que se achava saber bem. O chato é duplamente chato, fala do que acha que os outros querem ouvir, ou fala de si mesmo. Há também o chato e chata que evitam falar, e se escondem da vida, para ninguém notar neles. Esses passam menos por chatos, pois não arriscam sequer exprimir a sua verdadeira personalidade, jogam pelo seguro, cobardes, apenas até onde sentem que escusam de continuar a fingir. Muitos tomam essa cobardia como traço distintivo de carácter, que tratam de trazer ao peito. Mas, dizia eu, a mulher pode ser chata e sem sentido de humor, encontra sempre um paliativo para a solidão, não encontra é AQUELE que ela quer. O chato é aquele culpado de ser o que é, sem poder evitar. AQUELE, é igual, mas simplesmente é apreciado sem que faça algo para isso. Por mais intragável e bidimensional que seja a tipa, pode sempre encontrar um burro que a carregue, se não fisgar um puro-sangue. O chato e o sedutor não têm, em 99% das vezes culpa da lotaria genética, ou da Providência que os fez vir ao mundo com uma personalidade mais ou menos melancólica, com diferentes gradientes de tristeza e vida interior. Passava na televisão do Irish Pub, o videoclip da Kate Perry, o ‘The one that got away’. Nele se via que ela chorava, ainda depois de velha, por um amor de juventude, arrebatado e intenso como só a ingenuidade de poucas Primaveras permite. As coisas batem mais quanto menos sabemos. Por isso os velhos são chatos, acham que sabem muito da vida, e falam disso. Ela bebia uma cerveja à minha frente, com o mesmo ar de enfado de sempre. Era raro ver a moçoila alegre com alguma coisa. Nem me encarava bem nos olhos, tal não era o despeito, o desprezo a jactância em relação a mim. Foi quando percebi claro, que se achava melhor do que eu, que nestas cabeças equivale a achar-se acima de mim. Perguntei-lhe por umas amigas que haviam saído connosco a semana passada, e parece que toquei num botão, pois a habitualmente calada fêmea, desfiou uma torrente de palavras acerca das aventuras das amigas, e eu senti a sua catarse ao fazê-lo. Ela não me estava a contar nada, a partilhar comigo. Ela estava a tirar tensão do peito, claramente triste por não andar nas mesmas aventuras. As amigas eram frequentadoras assíduas das discotecas da parvónia onde trabalhavam. Facilmente granjeavam atenção de cachopos desejáveis e arrumados em escadas hierárquicas de interesse. Um mais interessante que o outro, conforme o conhecimento do jogo, a habilidade em não mostrar interesse interessando-se, e de mostrar liberdade sem se prender. Haviam conhecido dois tipos, que as convidaram assim do nada para ir a Benidorm, porque é algo inesperado e relativamente chique (pois lembram-se de algo que era comum há 20 anos mas não é tão em voga hoje) e toca de partirem. Sem saber se os tipos eram assassinos, violadores, ou padeiros. Foram, elas seguindo a filosofia YOLO (You Only Live Once), e correu tudo bem e na semana seguinte outros e outros sem fim, as iam seduzindo para a vida com promessas de novidade e picos de endorfina. Quanto mais altos esses picos, mais difícil se torna a elas algum dia aguentar com o gajo pacato lá do trabalho. Quem andou em jets privados, nunca se contentará com um Volkswagen Jetta. Claramente a minha interlocutora sentia-se amarrada a mim, por contraposição às aventuras contadas pelas amigas. Enquanto ia falando, eu reparava no dito videoclip, e dissecava a historieta, ela idosa, com uma boa vida material, com o marido na cozinha, chora pelos cantos um amor de juventude que morreu num despiste de automóvel por ela deixar algo seu na viatura que o distrai para a morte no fim de um penhasco. Ambos artistas e radicais como só os jovens acreditam ser, pintam telas em branco, ele apaixonado pela sua arte, uma clara mitificação do pintor que pinta por violentos impulsos como se esse fosse o sinal do génio, o vulgo gosta. Quando algo se torna comum, torna-se estéril de novidade e portanto, a excentricidade é tomada como factor de sofisticação dos indivíduos. Ora o chato sabe que isto é que é estéril, e frívolo, mas isso é porque ele não sabe jogar o jogo, o jogo é esse. Fingir. E acreditar no que se finge. E não falar do jogo. Na minha análise não consigo deixar de pensar no marido, no prémio de consolação depois da morte da sorte grande. Se calhar porque sou orgulhoso demais para me contentar ser a segunda escolha de alguém. Mas por isso, se calhar sou chato, se calhar jogar bem o jogo é não se ralar com isso. Como pode alguém viver feliz com outra pessoa que sonha pelos cantos com um terceiro? No videoclip, a idosa tem um carro, marca e modelo, do amante desaparecido. A ideia é gira e poética, apelando à YOLO e ao amor perdido. Ao que podia ter sido e não foi, ao que é. Eu estou sempre a ruminar no passado, para o interpretar, não para voltar a ele. A viúva alfa, isto é, a mulher que está de luto por alguém do seu passado que não logrou manter, por morte ou ruptura, vive no passado e nunca pode ser uma opção de futuro, por mais que escondam ou a Cosmopolitan tente convencer do contrário. Claro que todas têm as suas histórias, umas escondem melhor que outras. O chato anda sempre à procura dos indícios que revelem esse logro. Acabado o videoclip, vejo-a de braços cruzados e cogito um pouco mais sobre a quantidade de mancebos que estão a preencher o sidecar de alguém. Mando vir mais uma cerveja para ambos, que bebo de imediato para o caminho. «-Para onde vais?» pergunta-me ela. «-Para onde sou eu que faço o guião.» Arrastava-me pelas ruas dos meus vícios maldizendo os crimes cometidos contra o meu corpo. O meu coração prometia desgraça, fraco, tímido e débil, por anos de inactividade e indolência complacente com a pandemia. «-Posso-me sentar?» pergunta uma voz ao meu ouvido, arrancando-me de olhar o horizonte ali perto da Estação Fluvial do Cais das Colunas, para onde as minhas esperanças embarcavam amiúde, indo visitar família à outra margem, e voltando por breves momentos, sem se fazerem anunciar. Assim ando eu ao sabor das minhas esperanças e desesperanças que outrora também passavam por ter mulher, que me desse sexo, distracção e validação para poder viver comigo próprio e provar ao mundo que sou passível de ser amado. Que sina esta de servidão, considerava eu, manietado por ter ou de fugir de mim, ou enganar os outros, para me sentir bem. Que há no meio de tudo isto senão uma vergonha tóxica que me leva a acreditar que há algo de errado em mim, que me minto, que me trato mal, que não me defendo, que acredito por vezes, que os fins justificam os meios. «-Ei, yo! Posso sentar-me ou não? Estás a pensar na morte da bezerra?» insiste ela essa voz, meio ofendida por ter de insistir na pergunta, meio divertida com a minha completa entrega a um pelotão de pensamentos. Olho para a origem do som e vejo que é a Regina, e a Regina não é daquelas pessoas que quando encontra alguém conhecido numa esplanada de café, por trás, lhe tapa os olhos, para que o cego momentâneo, adivinhe. É do outro tipo, mais inteligente, do que vem até a um dos nossos lóbulos da orelha, e com uma voz quente promissora e terna, nos mete dentro da cabeça doces, ou venenosas oscilações do ar transformadas em impulsos eléctricos aprazíveis, a que chamamos ‘som’. «-Não sei o que tens nessa voz, mas já estou com o barrote pronto.» disse eu, e estava. Estava preparado, como alguém que acorda de manhã antes do despertador tocar, mas não queria sair da cama. Isto é, naquela fase da minha vida, ainda tinha interesse pelo sexo, mas pouco ou nenhum pelas mulheres. E ela insistiu de novo «-Yo, não estás a ouvir? O que é que se passa contigo hoje?» Confesso que não tinha ouvido nem em surdina, o que me perguntara. Disse-lho. «Perguntei-te se me ias deixar assim, depois do que me acabaste de dizer, nem um beijo me dás?» Tive de fazer um esforço para lembrar do que havia dito, mas por coerência já avançara o beijo, onde ela esmagou a boca contra a minha, um pouco atabalhoadamente, pensei, mas com vontade, sem dúvida. A meio caminho da luta de línguas carnudas é que me lembrei que lhe dissera que estava entesado. O beijo só viera solidificar mais o meu estado prévio, e apeteceu-me dizer-lhe para irmos para um quarto qualquer ali perto, mas depois lembrei-me que a cópula é tão perene como qualquer outro vício. E que depois de consumada só me apeteceria estar a sós com os meus pensamentos, que ainda é a única e última forma que tenho de me sentir fiel a mim mesmo. Lembrei-me que pensava, na estrada que separa a Torre do Tombo, da Faculdade de Letras e que se esgueira para a Faculdade de Ciências, há vinte anos atrás, que a mais genuína expressão da minha entidade humana, era o sentimento. Que o quer que surgisse de um húmus emocional em mim, seria a verdade do que eu era. O que me tornava volátil, inseguro, incerto, caprichoso e impulsivo. Como foi possível ter acalentado esta crença tanto tempo? Ela percebeu que as nossas bocas estavam coladas mas eu já divagara para outro lado qualquer. E afastou-se para a sua cadeira. Para honrar a memória desses tempos de completo engano, para mais eu lia Kant e a sua definição de liberdade enquanto legisladores e súbditos de nós mesmos, disse-lhe o que pensara. Que a queria levar para um quarto e foder até ao Armageddon ou até ao fim deste mundo com batimentos cardíacos irregulares de bomba atómica. Seus olhos animaram-se, mas assim que disse que não podia, que estava constrangido de tempo, vi que ela se desiludiu e adoptou uma postura defensiva e ressabiada, que muitos podem confundir com recobro de dignidade, mas que agora vejo que não passa de falta de hábito em ouvir um ‘não’, ou de saber lidar com a rejeição, rara para quem tem uma cara tão bonita como a dela, lábios pintados de vermelho vivo baço cuja convexidade parece abraçar os raios de Sol que se esgueiram por entre as nuvens, pernas bonitas e bem tratadas, magistralmente encaixadas nos seus 177 centímetros de feminilidade. O seu cabelo preto é posto entre a minha visão do seu rosto e os seus próprios olhos, de forma que tomasse a compostura sem que eu visse, e adoptado o sorriso que visa fingir a indiferença para com este desfecho inesperado, diz-me também, de forma falsa e condescendente: «- Eu também não posso, tenho de ir dar aulas agora.» A forma como disse isto lembrou-me que estamos naquele nível de confiança mútua onde o outro não é ainda res conhecida e familiar, mas ainda um relativo estranho apesar das vezes em que acordamos juntos na mesma cama. Muitos amantes interpretam isto de acordo com uma prisão de grau variável, que ocorre sempre mais numa das partes que na outra, do tipo ele ou ela está mais caída por mim que eu por ele ou ela. É reconfortante para quem pensa assim, pois assim os pares ordenam-se numa hierarquia de valor no mercado da carne, é que o mais caído pelo outro é sempre aquele que tem menor valor de mercado na feira do engate. É o que mais precisa do outro, e eu sabia que a partir de determinado número de cópulas, não tenho a disciplina para me desgrudar emocionalmente das cachopas com quem tenho afinidade. Portanto a minha recusa era um caso de zelo pelo meu bem-estar. Tantas e tantas vezes que vi elas mascarar esta crua dinâmica, com o uso da carta do amor. O seu sentimento de insegurança revela-lhe interiormente que eu sou o prémio (pois não fui ainda desvalorizado pelo excesso de familiaridade, sou ainda res a conhecer), e tentam ganhar o meu apreço e afecto até ao ponto que as reconforte o suficiente para que eu pareça garantido. Para camuflarem essa sua insegurança, lançam-me poeira para os olhos, como um bom ilusionista sabe fazer, com ostensivas e teatrais demonstrações de afecto, para desviar o meu olhar da mão sob o recto do títere. «-Vieste para aqui escrever?» disse secamente. «-Vim, gosto de olhar o Tejo pelo meio daquelas colunas, e imaginar as vidas que passaram entre elas. Faz-me sentir nostálgico, nostálgico a partir de imaginações de vidas abstractas que suponho terem ocorrido.» Vendo-me quase desafectado pela sua presença e beleza física, aumenta o grau de aridez, e começa a fingir tédio, e ansiedade, de forma a pressionar-me a representar para ela, não por causa do teatro em si, mas do esforço que a reconforte, sabendo que parte do seu anzol se cravou na minha carne. E ao mesmo tempo é ela que se debate, a minha indiferença é sedutora para ela, pois não me encontra um ângulo de desqualificação, não percebe uma falha na armadura, que tantas vezes no passado a levou a deixar outros pobres diabos a falar sozinhos porque não lhe deram a atenção que ela achava merecer. O seu fascínio aumentava, pois eu tinha dito o que para ela era familiar e óbvio, que a queria foder, mas agia de forma contraditória, quase enfadado pela sua presença, especialmente depois de eu mesmo ter dito que o sexo não ia ocorrer. Era a contradição que a seduzia. A incapacidade de me encaixar nas suas certezas acerca do mundo que para ela tinha a sua idade, 26 anos. Também isso lhe guilhotinava o cérebro, um gajo mais velho como eu, não lhe beijar o chão à passagem, com medo de perder a pele esticada, o hálito sempre fresco pela manhã por ausência de interstícios dentários que ocorrem com a idade mais madura por retracção das gengivas, a stamina sexual com que nós homens gostamos de nos enganar confundindo-a propositadamente com desejo pela nossa pessoa…Não, eu estava tão enigmático e sólido como as colunas que me atraíam o olhar. Por fim cedeu, e teve um infantil acesso de cólera. «-Não sei para que escreves essas merdas, és sempre o herói, o bonzinho da história, vives preso ao passado e degradas-te no presente por isso. Odeias as mulheres, especialmente as que foram tuas no passado, e passas esse ódio às do presente. As tuas personagens não têm dimensão porque os teus textos não passam de solilóquios.» Adoro esta palavra, «solilóquio». Parte do seu olhar é expectante, tenta perceber se a sua provocação provocou efeito em mim, atacando a minha obra de arte, o texto, e a mim, por proxy. O alvo não era o texto, mas a minha compostura emocional. Um ping de submarino lançado para perceber por onde me pode afundar. Sorrio para ela, e de forma inesperada pego-lhe na mão, que se retrai um pouco por ela estar num estado emocional de ira, que é incompatível em parte, com uma demonstração de afecto, e é precisamente por isso que o faço, beijo-lhe a mão da forma mais terna e lenta que consigo, o que só lhe aumenta a confusão. Depois respondo sem olhar para ela, e olhando para as colunas, pois olhar directo nos seus lindos olhos azuis, seria expor uma parte de mim como prémio regatado pelas suas acções, quebrando parte do feitiço. «-Eu não odeio as mulheres, de todo. Odeio as feministas, sim. Odeio com todo o meu ser, mas não odeio as mulheres. Eu adoro mulheres, evito-as apenas quando sei não estar em estado de lidar com elas, pois existe um traço de carácter previsível no feminino. É sobre isso que escrevo. E escrevo para mim, não é para mais ninguém. Escrevo-me para me entender diante a Deusa, é só.» Pouso a mão sobre o seu joelho jacente sob uma liga cheia de estilo, parecida com aquelas dos anos 20 ou 30, da decadência de Weimar, e ao massajar-lhe a perna digo que é uma pena ter de ir dar aulas ali em Belas-Artes pois o que me apetecia era mesmo usá-la como tela numa cama. Beijo-a na bochecha vermelha, levanto-me deixo uma nota de 5 euros para pagar os cafés, e caminho na direcção do Martinho. Viradas costas às colunas, perco-me a pensar sobre o mapa mental do Pessoa, mas subitamente distraio-me, com uma mão que se encaixa na minha, e assobia à trolha para um táxi que está a passar. |
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