I Falo aos ventos sobre a minha capacidade de reflectir os pés de barro dos outros, mas na realidade, quando se olha o abismo o abismo olha-nos de volta. E nesse sentir-me observado sei que vejo os meus pés de barro também. O pior deles é a facilidade com que pinto lentes que coloco nos olhos de forma a não ver a realidade mas miragens em jardins perfumados. Douro a pílula para poder extrair dela o paliativo para uma qualquer dor de existir. Não vejo a mulher pelo que ela é. Cego-me deliberadamente aos seus defeitos para poder viver uma fantasia a dois. É o cúmulo da idealidade. Somos idealistas fingindo que somos realistas, elas realistas fingindo que são idealistas. O nosso realismo baseia-se em imaginar como fazer uma ponte sobre o rio, afinar uma árvore de cames. Olho ao espelho e percebo que a idealização não é só fuga. É algo a que dou sentido cósmico para não me aborrecer com tédio de uma existência sem sentido que não a anulação completa de cada indivíduo. Se Deus existe, tudo é permitido. II A Sandra tinha sido parceira horizontal em anos idos. Nesse passado, apanhei-a no Rubicão do seu valor de mercado da carne. O seu acme misturava o topo da sua presença mental com um corpo amadurecido mas já na curva descendente. Já na altura o eco de cada acção sua revelava demasiado jogo e bagagem. Era impossível acreditar nela, mas tinha dois lados, o de pessoa vulnerável e outrora franca, e depois uma espécie de alter ego materializado em personagem que desempenhava, que deixava ver à distância, que ela era marioneta dos seus demónios. Gostava de mandar-me fotos parolas que eu interpretava como tentativas suas para que eu a mistificasse. Fumando e olhando o infinito numa noite de lua cheia, dentro de um elevador estroboscópico com quatro paredes de espelhos. A confiança no seu olhar vinha da ilusão de se sentir no trono que o seu corpo permitia. Era bem feita, se bem que nada de especial, para o meu gosto e hábito. Mas isto dos corpos é a coisa mais relativa. Se fossem eles que me movessem, não havia necessidade de escrever. Tinha corpo de namorada. Espírito não. Turista de falos, embrenhava-se como eu descobrindo a humanidade dos outros através do sexo, mas com a vantagem de uma maior facilidade de corte. Como carrinhos de choque que se estampam em pista exígua, os meus choques levavam sempre tinta da minha carroçaria, e deixavam vestígios da tinta das outras que comigo chocavam. Ela não, não criava ligações, senão no que lhe interessava na composição da sua fantasia de mundo. Os parceiros eram experiências, bonecos menores na composição da sua casa de bonecas a que chama ‘realidade’. Sabia vestir-se para tirar o melhor partido do seu anzol, o corpo. Enquanto tinha as pernas tonificadas, usava leggings e botas de cano alto. Deixava o observador mordendo o lábio por causa da imaginação de uma sensualidade que nela era apenas instrumental. E por isso não se vinha. Estava demasiado entregue a observar, e a meter mobília na sua casa de bonecas. Sabia-se estéril na sua capacidade de se entregar. Tão estéril que tornou o defeito em virtude. Identificava essa incapacidade de criar laços emocionais com uma sofisticação emancipada. A sua imagem de si mesma como sofisticada era o deus a quem orava. Sem a oração sentia que estagnara ou que não evoluíra. Nunca se preocupou com o seu carácter. Com a consequência das suas acções. Os acólitos do seu deus eram os que ela colocava como modelos do que queria para si, esses gajos sofisticados que espremidos pouco mais que caroços secos deixam sair sob uma pele lustrosa de fruto emplumado. Como ela. Era, é só aspecto. Como pessoa é uma cabra, só lhe dão atenção por isso. É uma cabra não pela falta de carácter, mas pela teimosia em não conseguir uma introspecção crítica. E não consegue porque só pensa nela. Sofreu algures, por um desses que elegeu como modelo, um golpe mortal na sua complacência e bonomia e jurou nunca mais se sujeitar a isso. A sua implacabilidade trouxe-lhe orgulho e substituiu a verdadeira afecção por coisas e pessoas, com uma sensibilidade de celofane decalcada do mundo dos seus modelos. Enquanto o corpo lho permitia, havia sempre um palhaço pronto a arder na fogueira da sua validação. Escolhia os momentos próprios para o abandono e rejeição, sem qualquer explicação e satisfação, pois sabia exactamente o que isso provoca na cabeça de quem pensa como construir pontes entre margens de rios. Desde nova que pintava o cabelo de azul. Gostava de ver a reacção das pessoas quando a olhavam. Era uma mensagem e um anzol. Dizia a todos e a si mesma, que era moderna por pintar o cabelo castanho, e em espaços fechados distinguia-se das concorrentes. Essa distinção enquanto móbil, era claramente assumida quando falava de outras menos castas e honestas que ela. Nos seus relatos não se apercebia que a narrativa que compunha a mostrava como igual às que encobertamente criticava. Porque era melhor que as outras? Porque não criava ilusões nos outros que a pinavam, e sabiam claramente que a relação não é condição para a cópula. Percorreu assim um carrossel de pilas sofisticadas, que lhe aliviou qualquer lembrança de tempos de carência num subúrbio de Bogotá, de onde veio com 14 anos. III A sua relação terminara e havia percorrido a lista de anteriores conquistas a ver se alguém lhe pegava aos 40 anos. Eu devia ser um dos últimos números, a quem ligou para um ‘café’, que é o que se usa para disfarçar se o interlocutor merece uma hipótese, se vale a pena ou não. Ou de pinocada ou de esmifrar ao gajo, atenção e validação. É tão bom ouvir alguém dizer que gosta de nós, embora saibamos lá dentro que é só por causa do nosso aspecto. Vingamo-nos tendo vários pretendentes em aberto, afluentes do rio do nosso solipcismo. Quando cheguei, ela estava a falar com vários deles por Whatsapp. Não me viu. Fiquei a olhar para ela e a lembrar, o então comparado com o agora. Então era boa, mas nada de especial. Agora, comia-se, mas nada de especial. A cara descaíra e a magreza fizera que o rosto parecesse uma tampa da caveira. Uma tampa ou carica com extremidade própria para ser arrancada, pelo queixo saliente e descaído que os filhos da puta dos anos tornaram missão em fazer mirar o chão. A sensibilidade ao aspecto permanecia na escolha da roupa e no escarlate escolhido para os lábios. Aparentemente estava mais polida, comparando com alguns anos atrás. Mais falsa. Os dentes já se iam afastando como continentes, e o aspecto geral decaía mais rapidamente por causa das más noites de sono e ingestão de espirituosas, e de dietas para não ganhar peso. O tabaco dava-lhe cabo da pele, que betumava com cosmética. O anzol com que me tentou iludir foi extremamente inteligente, revelando uma brutal capacidade de análise da minha pessoa. Fingiu uma entrega ingénua, primal de alma atormentada. Consegui resistir algum tempo, sabendo que a cachopa era má onda e traumatizada. Mas meti as lentes coloridas com a desculpa do deixa ver onde isto vai dar. Quando comecei a observar em mim respostas emocionais, soube que ela havia ganho. Raios. Puxei-lhe a blusa para cima, desapertei-lhe o soutien, tirei-lhe as calças de fato de treino que usa quando está em casa. A magreza tirou-lhe anca e rabo. As omoplatas sobressaem como duas rótulas que assinalam os ombros demasiado finos. Apenas as mamas permanecem redondas e apontadas para diante. As coxas com menos volume, distam uns quatro dedos uma da outra ao nível da vulva. Sabe-se fotografar, andou a aguçar-me o desejo durante semanas com fotos tiradas ‘para mim’. Os gemidos dela tinham um som hispânico. Os pés dela, emagrecidos, revelavam falanges sob a derme. Sinais de aproximação do caixão para nós os dois. A mesma lengalenga. Perdida nos subterrâneos em vez de presente no momento. Parei e perguntei-lhe, afagando o cabelo azul, se podia entregar-se em vez de observar ou tirasse notas. Que se tinha separado do marido, mas que nunca se casara com a sua própria vida. Algo de mim a fez, como a outras, achar que sou idiota. Nem ligou. Sentei-me e perguntei-lhe, o porquê de se ter lembrado de mim. Que nunca se esquecera. Perguntei-lhe se era porque quando tinha muitas escolhas me tinha descartado. Negou o descarte. Que as coisas são eram muito complexas e tretas assim. Como se eu não soubesse o que ia naquela cabeça, então e agora. Achava-se melhor que eu, porque digo coisas esquisitas e aparento ser pão sem sal. Talvez seja. Ela preferira sempre a miragem à imagem. A aparência à substância. Porque se sentia em casa na superficialidade. Perguntei-lhe se achava que eu não via que ela me via como prémio de consolação após ter perdido a sorte grande. Fez-se desentendida. Que conseguia quem quisesse mas que me havia escolhido a mim. Eu disse-lhe que não. Que só me contactara porque me achava imbecil o suficiente para não saber o que custara a sua infantilidade anos antes. Quando tinha opções e a barriga cheia de bajulação de pretendentes. Eu não sou Ulisses e não nos vou construir nenhum leito conjugal. Mandou-me sair, aos berros. Ao vestir-me disse-lhe, «-Deve ser triste, não teres evoluído um milímetro. Continuas a ser uma cabra, só com aspecto.» Ela riu-se, achou que eu o dizia por raiva, ou dor de cotovelo.
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I
Imagina. Imagina só. Imagina que processas a realidade com uma ordem sequencial de instinto-emoção-razão. Imagina que o sexo oposto que te complementa processa a realidade numa ordem sequencial de instinto-razão-emoção. Imagina. Imagina que esse género que se te opõe, tem 17 vezes mais testosterona, causando 17 vezes mais desejo sexual que o teu. Imagina que esse género tem mais dificuldade em lidar com a rejeição e ruptura, e cai mais facilmente numa espécie de torpor psicológico a que muitos chamam ‘amor’, isto é, a expressão exagerada de um instinto que visa proteger a expensas próprias, a vida da fêmea e da prole, ante os predador dentes de sabre. Imagina que ante essa força debilitadora no outro, o teu aspecto se sobrepõe e te dá o poder sobre essas marionetas do desejo, e que tu sabes que esse aspecto em nada depende de ti senão de uma sorte genética. Imagina que esses sobre os quais exerces efeito, são maiores, mais fortes, mais inteligentes e mais decididos que tu, mas que o teu aspecto se sobrepõe a tudo isso, e que aprendes com o tempo a mestria de usar a promessa de sexo para conseguires manipular esses exemplares superiores física e intelectualmente, mas inferiores emocional e psicologicamente. Esse ser mais inteligente nada tem que ver com capacidade craniana, mas com o valor dado artificialmente a cada género. Qualquer mulher pode ser astronauta, mas umas preferem ser sedutoras fazendo render a sorte genética. Outras não têm essa sorte e jogam a melhor mão que podem com as cartas que lhe calharam na vida. Imagina esse ser que constrói pontes, aviões e navios gigantescos, e que tu apenas tens uma cara bonita, glândulas mamárias desenvolvidas e os lábios pintados de vermelho para assinalar a tua receptividade de vulva escondida sob um eixo vertical de torso. Imagina. Podes imaginar. E desde já te digo, eu faria bem pior. Eu se fosse gaja levaria todo e qualquer gajo à loucura e sem apelo ou agravo. Trocaria o meu ressabiamento existencial de ter nascido mulher sangrando uma vez por mês, pelo paliativo de saber que homens por mim haviam tirado a sua própria vida. A Noémia apareceu numa loja do Vasco da Gama, acompanhada pelo seu marido, 20 anos mais velho. Na mão trazia o filho e na outra uma pulseira de uma viagem que fizera a Badajoz para aprender reciclagem de coisas velhas, na qual gastara mais unidades energéticas de autocarro que aquelas que alguma vez na vida iria poupar com a sua reciclagem. Instinto-emoção-razão. Despromovido, fazia vigilância numa loja de roupa. Quem me mandou mandar o supervisor ir levar onde lhe aprouvesse? Vá lá não fui despedido. Apenas retirado da vigilância electrónica para a presencial. Foda-se. Que se foda. A minha cara de enfado fez que ela, notasse as minhas expressões faciais. «-Desculpe, onde são os sanitários?» pergunta-me. Com a mão esquerda, apontei-lhe a placa que indicava com setas a direcção das sanitas e mictários. Nem olhou. «-Desculpe, estou a falar consigo.» Dignei-me a olhar para ela, encarando-a dentro dos seus olhos e uma ligação ocorreu entre nós. «-Minha senhora, é naquela direcção.» «-Podia ser mais simpático, se não gosta do que faz, saia e dê o lugar a outro.» Olhei melhor para ela, baixa, bem feita, o cabelo pintado de azul, os pezinhos bem enfiados nos chinelos e um à vontade de quem acha saber viver porque sabe fazer compras no supermercado e ler nas entrelinhas dos seguros. «-Obrigado pela sugestão, mas a minha função não é a de polícia sinaleiro ou GPS. A minha função é de verificar a possibilidade de furtos, ou de auxiliar as forças da Administração Interna. Se não está a furtar ou é polícia, não me importune.» Estava mal disposto e a tipa não tinha culpa, mas quem a mandara tentar tirar-me do sério? Olhando para ela, vi que estava vermelha, irritada. Qualquer coisa na minha existência e obtusidade a afrontava. «-Quero falar com o seu supervisor.» Passei-lhe o telemóvel de serviço com quase desprezo e disse «-Ligue daqui fica mais barato.» Ela perdeu o controlo de si com a minha completa negligência com a sua indignação. Uma queixa já não servia. Via-se que precisava de me ver anulado em remissão total e lamentando o momento em que a enfrentara. Olhando-lhe o corpo percebi porquê. Desde os 14 anos que seria assediada por rebarbados e outros imolados no seu altar de pequena deusa. Fazendo as contas por baixo, se desde os 14 anos recebia um piropo por dia, até aos 24 havia recebido 3650 piropos. 3650 propostas de sedução ou sexo. 3650 confirmações do seu poder sexual ou do seu ser especial por ser mulher atraente. Eu não seria único na indiferença, mas ela estava naquela fase dos trinta e muitos, em que revê seriamente o ocaso do seu poder, e portanto um reles vigilante como eu baixava-lhe a fasquia a ponto em que não podia tolerar. Ala de fazer queixas ao marido. Pelo canto do olho observei que ele, mais velho que eu, nem queria ligar ao ocorrido. Mas ante a insistência dela, e o ultimato, lá veio fazer o pro forma de me chamar a atenção. «-Ouça lá, a minha mulher diz-me que a insultou.» «-Negativo, fez-me uma pergunta e respondi. A senhora sua esposa exigiu mais deferência que a que sou pago para dar. Não lha dei, nem lha darei. Caso queira apresentar queixa tem aqui o telefone de serviço, contacta directamente com o supervisor e queixa-se de que não fiz uma vénia à sua esposa.» Ciente do gozo a que estava sujeito, optou pela única escapatória de face erguida, ir-se embora da loja sob a superioridade moral da minha falta de educação. Saiu dizendo sonoramente que a sociedade estava perdida que já ninguém respeitava ninguém. A indignação criara um acumular nervoso e emocional que a mera deserção do local não permitia aplacar. Ela vendo o marido ir-se embora acerca-se de mim e diz «-Isto não fica assim seu mal educado.» Fiz-lhe o gesto de mandar um beijo com os lábios, e a mão dela levantou-se automaticamente mas pouco, pois observou a minha fora do bolso e pronta a responder à agressão na mesma moeda. Saiu da loja, olhando-me, o chão e a montra. Voltou a entrar e aproximando-se de mim coloca-me um papel no bolso. Vai-se embora de vez. II O papel tinha um número de telefone. E eu para mim mesmo «-Queres ver que tenho de meter os cornos ao gajo de camisa de marca e chanatos de prestígio?!» Tinha. Amachuquei o papel e mandei-o para o lixo, no intervalo de 8 horas de pé. Os dias passaram-se. Continuei a ver as mesmas ondas de pessoas batendo na praia do centro comercial. Num intervalo da minha cara de mau contra o pequeno furto alguém me toca com aspereza no ombro. Era aquele metro e meio de pessoa olhando para mim ao mesmo tempo excitada de ansiedade e raiva. «-Porque não me ligaste?» «-Minha senhora, não quero problemas, pode dar-me o prazer da sua ausência?» «-Não me trates por você, preciso de falar contigo.» A sinceridade desta frase amoleceu-me. «-Saio à meia noite.» «-Eu espero.» respondeu ela. Eram nove da noite. Três horas depois, estava eu a sair com as pernas moídas e com vontade de ir para casa, mas lá estava ela esperando por mim, fora da porta principal. Olhava-me com a admiração de quem usa a admiração e a expectativa para mitigar a possibilidade de aspereza de um desconhecido. Apeteceu-me dizer que de mim nenhum mal viria, mas a minha bagagem dizia-me que a maior parte do gajedo que conheci não merecia essa gentileza, mas o próximo pito é sempre novo e não merece o lastro do passado. Calei-me por fim. «-Eu não consigo pensar em mais nada senão em ti. Desde que te vi.» disse ela com algum desespero na voz. «-Não entendo como, quase nada falámos e se provoquei isso é porque te enfrentei e não pactuei com o teu capricho.» Claro que ela nunca admitiria isso. Negaria a minha suposta satisfação de saber que acertara nos pensamentos de outro, ela, e negaria com todas as forças que a atracção exercida por mim se devia a uma indiferença ao seu poder de mulher, que pouco tem que ver com vulva, mas com a promessa de. Negaria que a sua acção era ditada por um impulso que não só assumiria, como a revelaria como membro de uma biosfera na qual o ser humano masculino é o mais baixo representante. Nã…a mulher determinada por 100 000 anos de evolução antropóide? Nã. Impossível, as mulheres são feitas de ouro e os homens de reles carbono. Eu podia mostrar-me muito interessado e chacalídeo de forma a ela saltar fora, ou continuar o verdadeiro desinteresse e ter de enxotar o suficiente até ela me desqualificar como forma de proteger o seu próprio ego. O que mais pesou na balança foi contudo a lembrança da cara de desprezo do marido da roupa de marca. Sou muito bom a estudar livros de ética, mas a exercê-la é mais difícil porque sou controlado pelos meus demónios. Possuir a mulher de outro que me desqualificara com uma mundividência manca parecia uma boa ideia, acho que não sou tão evoluído espiritualmente como acho. Morena e baixinha, de todo não o meu tipo, tinha algo de nervoso nela, uma latente fúria de estar viva, era visível por detrás dos olhos uma fuga de algo ou um ir para algum lado, o que vai dar ao mesmo. O seu corpo escondia-se bem por detrás de um leve cardigan branco sobre ganga rasgada dos calções mostrando as pernas bem torneadas, que contrastavam amorenadas com a blusa também branca. As mãos unidas como que em oração, exprimiam uma encenação dirigida a mim e ensaiada antes, com resultados garantidos noutros. «-João só um café.» Ela sabia o meu nome porque o decorara da placa que o M.A.I. exige que qualquer manequim de farda use. «-Ok, próxima sexta.» Esperava que a distância temporal e o dia a desmotivassem, mas o seu sentimento de missão levava a melhor dela, e vi-me vencido ainda antes de começar a luta. Foi-se embora para o seu Jaguar de 2019, e ficou a ver-me entrar num Toyota de 1994. Sexta-feira chegou mais depressa do que eu esperara. Merda. Sábado tinha trabalho. No bar combinado, a sua perna revelava o caminho para o êxtase, com ela declinada sobre a cadeira no Pavilhão Chinês. Assim que me sentei, mirou-me as botas castanhas tentando aferir o valor das mesmas, a proveniência, etc. Ouvi-a falando mal do marido, da atenção que não lhe dava, dos sonhos perdidos com a maternidade, e de como de alguma forma eu lhe lembrava os futuros possíveis que na altura certa não escolheu. E eu disse-lhe «-Não.» «-Não o quê?» «-Não vou contigo para a cama nem me atrais. Concedo que algo existe atrás desses olhos, que me chama, mas neste momento tenho mais que fazer que perder energia neste tipo de cambalachos.» A minha fase de menos confiança havia começado a dissipar-se, assim que deixei de esperar a mesma casa moral das cachopas, que exijo a mim. E pura e simplesmente já não tinha a paciência. «-Mas que te fiz eu, só porque sou casada?» «-Achas pouco? Não celebraste votos e palavra dada a outro gajo? Que raio queres de mim que o teu marido não te dê?» Lá começou o chorrilho de racionalizações, já as ouvi quase todas, de como algo de especial havia entre nós e que não dormia e mais não sei o quê. Tudo para se convencer a si mesma a ir para a frente com a vingança sobre o gajo, que devia ter feito qualquer coisa que lhe desagradou, que a ofendera. E agora via em mim a oportunidade cheirosa de exercer vingança. Não deviam ter jardineiro. O meu desinteresse motivaria acima de tudo. Rejeitada por um gajo que anda com um carro que vale menos que a jante do dela, oferecido novo pelo marido no aniversário de casamento. Ela nada fazia, ficava em casa a orientar o seu negócio de internet, para que ninguém dissesse que ela nada fazia. Mas como sabia que os humanos também vivem de emoções, era rainha de exibir virtudes, com posts sobre o degelo polar, sobre atropelos a minorias étnicas, ou sobre critica de costumes, de forma a mostrar às suas redes sociais que havia uma preocupação ética por sustento da sua alma. Tinha ido recentemente a Milão, fazer uma formação em reciclagem de caramelos, como forma de poupar o planeta, gastando mais em combustível aéreo que todos os caramelos que conseguisse reciclar em anos de trabalho ininterrupto. O marido, bem mais velho, apanhara-la numa fase em que ela já não conseguia competir com a sua versão de 26 anos. Aos 34 era chegada a altura de começar a encarar a própria mortalidade. Já não conseguia deslumbrar pelo mero facto de existir com simetria facial, glândulas mamárias e glúteos adiposos. A sua individualidade já não era dia sim dia sim, validada com a atenção que quase todos os homens dão demasiado facilmente. Quando somos todos os dias tratados como especiais, estrelas no firmamento, temos tendência em acreditar e interiorizar que o somos. Chega um dia em que percebemos que vivemos numa ilusão, que a validação que nos era dada, nada tinha que ver com algo – que no fundo – nos é intrínseco, 17 vezes mais testosterona. Mas o ego, esse sacana, não pode deixar-se obliterar assim. Labora de forma a encontrar as melhores justificações, a melhor luz para as nossas escolhas. Não teve sorte com os homens. Raramente assume que fez más escolhas. Mais raramente percebe que foi programada para essas escolhas. É triste viver a fugir. Com o passar dos anos o stock de cobaias vai-se reduzindo. Nunca chega a zero. Mas as que ficam nem valem a pena a experiência. Nem eu nem ela queríamos algo de sério um com o outro. Pura e simplesmente fazíamos o que sempre havíamos feito. Ver até onde vai. Eu na minha inexplicável tendência de reflectir na cara das cachopas a sua insuficiência moral, como espelho anódino, papel que represento demasiado bem, talvez para não mostrar a minha personalidade, com vergonha dela, ou porque tenho medo de ser abandonado, o que vai dar ao mesmo. Ela, revivendo os seus tempos de laboratório, e de alguma forma extasiada por esta súbita e intemporal avalanche de atenção. Um balão de oxigénio para a sua auto-estima. Percebendo-lhe o ponto da vida onde estava, não regateei nem atenção nem validação, o que vai dar ao mesmo. Sempre pronto e operacional para lhe responder e estar com ela. Não lhe dando uma aresta para poder apontar o dedo que percebi logo ser a grande táctica de lixiviação de si mesma perante si mesma. Os outros eram sempre os maus, era a sua táctica para fugir da sua própria responsabilidade. E orgulhoso como demasiado sou, iria empregar mais uma vez a táctica do espelho. Que só é eficaz em indivíduos interessados o suficiente, ou humildes o suficiente, para perceberem o meu grau de disfuncionalidade. Que ganho eu com essa tarefa de missionário? Apontar os defeitos do outro ao outro, numa peça de teatro que represento na cabeça. Como me havia seguido nas redes sociais, comentou enviesadamente os meus textos. Escusado será dizer que nada havia percebido deles, imagino literatura a sério. O arsenal de obras que dizia ter lido e gostar, perdeu de súbito valor, pois se nem me sabia interpretar a mim, quanto mais outros mais talentosos. Sobre o texto do comboio, fui obrigado a explicar, que o comboio era uma metáfora. Meteu-me a mão no joelho, e eu disse-lhe que se não a tirasse, na próxima meia hora estaríamos enrolados nos jardins em frente aos Jerónimos. Não tirou. III Dentro do Toyota, observava-me enquanto eu olhava o conta-quilómetros para calcular o consumo que um dos motores mais eficientes dos anos 90, me andava a fazer. Ela interpretou como eu olhando para o indicador de combustível, claro indicador da minha indigência e não validade como opção. Estive para lhe perguntar se sabia que o seu Jaguar híbrido era mais nocivo para o ambiente que o meu velho Toyota. Não lho deviam ter ensinado em Milão. IV A erva fresca sob a noite quente deu connosco olhando a cara do outro, perdidos em afagos patéticos, cada um representando uma peça gasta e repetida, de captação de vitória sobre o outro. Sob a luz artificial de um candeeiro, gabou-me o rosto e o físico. Percebi que era a consciência dela a roer. Fazia juras de amor eterno e ia deixar o marido, eu observava. Ela também, tentando perceber o efeito das palavras em mim. Uma vez telefonou-me dizendo que o ia largar. Pensei comigo, não, não o deves fazer. Continua com esse, que já conheces e já moldaste a teu gosto. Não quero a responsabilidade de dar umas cambalhotas contigo, perceber que não te quero aturar e deixar-te ir outra vez com o rio. Não que outros não te apanhem, mas esse é o pai do teu filho e já o anulaste até ser uma fracção dele mesmo, não vás escavacar outro. Numa outra ocasião, deu-me uns livros e uns cd’s. Senti que fosse um prémio de consolação, como quando um pai ausente compra o afecto e desculpa do filho com um carro telecomandado comprado no chinês. Sabendo que eu gostava de livros, lá procurou os mais adequados a mim e que menos mossa lhe fariam. Não me queixo. Pagava-lhe da mesma forma com um amor fingido e seriamente acreditado, por lhe espelhar na cara as suas falências morais, para eu não ter que ver as minhas. A cópula era acessória, o objectivo era mesmo conspurcar o género feminino com mais uma constatação da sua inferioridade moral. Mesmo sabendo que ela jogava sujo. «-Noémia, sabes qual é a diferença entre mau carácter e sem carácter?» perguntei-lhe eu numa noite em que o marido e o filho tinham ido passar o fim de semana ao Alentejo, na quinta de família. Ela havia ficado em casa com a desculpa de reciclar caramelos. «-Não. Não é a mesma coisa?» «-O mau carácter é dono dos seus defeitos. Tem uma estrutura qualquer que o faz aceitar os seus pecados como característicos de si. Aceita-se. Gengis Khan era mau carácter, violava e matava no mesmo dia aceitando ser essa a sua natureza.» «-Era um sem carácter, portanto.» conclui celeremente. «-Não. O sem carácter não só não aceita as suas falhas de carácter, como as mascara ou esconde debaixo do tapete. Os piores, projectam nos outros, todos os defeitos, para o foco de culpa não pousar sobre si mesmos.» É que depois de tu fazeres merda que não podes apaziguar com livros e elogios não sentidos, a única forma que tens de aparecer limpa do outro lado do túnel de Shawshank é dizer que o outro é x,y,z. E assim pelas eras vais sem algum dia reconheceres aquilo de que foges. E foges tanto que tentas controlar a apreensão que os outros têm de ti, muito moral e preocupada fora de portas, intragável intramuros. O que revela que no fundo não queres mudar. Queres continuar a achar que és um doce mel num mundo de fel, porque no fundo, lá mesmo no fundo acreditas que és uma merda, mas não te podes dar a esse luxo. Tinham um piano na sala de jantar. Foi aí, debaixo dele, que a despi e lambi os seios. «-Fala-me mais da falta de carácter.» pediu ela. Algo havia reverberado nela. «-A melhor imagem é a de alguém que entra num comboio em hora de ponta, empurrando os outros para garantir lugar, e que subindo um degrau, se borrifa se os cotovelos móveis atingem o que vem atrás a tentar entrar, enquanto as portas fecham. É aquela pessoa que crema os outros no fogo desse solipsismo. Mas não admite. Quer ser até vista como altruísta. Nas paredes, retratos de ocorrências passadas, férias, primeira comunhão do miúdo, etc. «-A empregada chega às 7, tens de sair daqui antes.» «-Ela estava convencida que consumaria a vingança saloia contra o marido através de mim. Arranjei-lhe o cabelo preto por detrás das orelhas, e nos seus olhos vi reflectidos os meus, numa espécie de lamento pela ilusão que é a nossa própria individualidade. Nunca me senti tão próximo daquilo que os filósofos chamam condição humana. Senti-me uma alma velha, por este tipo de mariquice, afinal tinha a comida no prato e o garfo pronto. Senti que a vida é o jogo que jogamos vivos para fingir que estamos mortos no Nada. Levantei-me, calcei-me e ela surpresa a perguntar-me o que se passara. Meteu-se à minha frente no meu caminho para a porta. «-Lamento minha senhora, mas não sou pago para lhe dar esse tipo de informação.» Eram onze da noite e ouço o tom de mensagem de Whatsapp.
'-João bora beber umas cervejas.» Mas que raio. Cinco meses após eu terminar um envolvimento de um ano, aqui tenho de novo a mesma pessoa a querer 'falar'. Como nunca nego diálogo a ninguém, acedi. A desculpa era para eu aferir se de facto aquilo que lhe havia dito uns meses antes era mesmo assim e não sei quê. No fundo, estava a pesar, como na balança que o judeu de 'O mercador de Veneza' queria usar para pesar uma onça de carne, se eu seria alternativa viável ao recém promovido ao meu lugar, que a desiludia em alguns aspectos. Numa escala como as que guardam os pesos nos ginásios e fit albergues, estava a verificar qual seria o peso que poderia usar sem rebentar a musculatura. E fazem isto com uma candura e ingenuidade que me deixa sempre desarmado. Elas acham de facto que os gajos comem gelados com a testa. Eu penso que é porque existem muitos que comem com o sobrolho. «-Epá ó Andreia, quando vires a tua tia manda-lhe um beijo meu.» Andreia era orfã, tinha um irmão, ambos criados por uma tia paterna, muito simpática e que gracejava comigo e eu com ela sempre que nos víamos. «-A minha tia não gosta de ti.» «-Porquê?» «-Por causa do que tu me fizeste.» «-Mas que raio te fiz eu senão o que toda a gente decente faz quando não consegue estar com outro, afasta-se.?!» Imagino o que foi dizer de mim, para lavar a sua própria imagem. É uma coisa curiosa, quando demonificamos o outro, torna-se fácil vermo-nos como anjos. Se calhar é isso, afogar o abismo com sangue alheio. Eu percebo a dinâmica e vejo fidedignidade nessa possibilidade de resposta. Percebi também que a rejeição lhe tinha ficado engasgada. As mulheres estão menos habituadas a ser rejeitadas. Fiz-me interessado, tentei beijá-la, e afagá-la. Confessei-lhe um amor eterno constrangido pela inadequação da minha personalidade. Foi nítido o alívio nos seus olhos. Não só conseguira desqualificar-me a seus olhos como devolver-lhe um pouco de dignidade e amor próprio. Mas tinha sido muito fácil. Precisava de mais umas provas do meu sacrifício, para ficar convencida que de facto tinha ascendente sobre mim, e que portanto ficara por cima. Oh amiga, se é por isso, pensava eu. Tentou oferecer um trato, eu dava-lhe atenção não sexual, e ela podia despejar tudo o que lhe apetecia, em particular falar mal do outro que a iria traçar à noite. Eu seria o tampão emocional, o satélite em torno da sua órbita. Declinei gentilmente o negócio. E insisti nos meus avanços. De molde a levar a um ponto de ruptura fictício para mim. Fui convincente, e ela revelou-se. A sincronia e extensão das suas respostas e atenção revela claramente uma espécie de desprezo, de despeito até, que evidencia sem mascarar, que estou numa elíptica muito afastada do centro. Era só o biscoito, passo a expressão, que viera buscar. Tendo-o, mostrava quem era. Tal como Célia e outras assim. A última da Célia é que queria que lhe fizesse um trabalho para uma cadeira de faculdade. Antiga muito mente, eu iria ao espelho, verificar se tinha gelados no sobrolho, pois não entendia a completa cara de pau de algumas cachopas acharem que conseguem fazer este tipo de tropelias comigo. Agora sei apenas, que com todos os meus defeitos, e mesmo sendo um malandro de primeira, dou dez a zero a boa parte delas, em questões de ética. Não me estou a fazer bonzinho. Mas estas bacanas que conheço, na faixa dos 35 para cima, ou estão queimadas da cabeça, ou ficaram paradas no tempo com as técnicas de sedução da puberdade. E os joguinhos? O que me rio e partilho com amigos para nos rirmos todos - para não chorarmos - dos joguinhos que fazem, a ver se captam atenção e perseguição, e validação. Uma incongruência sistemática, a nível lógico, que sempre que exposta, se esconde debaixo de um argumento emocional, ou seja, não é argumento, é um capricho com pele de argumento. Imagino a cara dela do lado de lá, rindo-se achando que me confundiu. Entre gajos, um que continuamente não faça sentido no que comunica, passa a ser encarado como chato, esquisito. Se for uma mulher, são subtextos e é misteriosa. Andreia e Célia sabem disso, associam subtilmente a sua conversa comigo a uma promessa futura de pito, se e somente se, eu jogar bem as minhas cartas. Gostava de poder voltar atrás, uns anos, quando ainda me conseguia entregar a estes jogos, acreditando neles. Agora não. Agora só me pergunto como só me envolvo com pessoas que talvez sejam um reflexo da minha própria maleita existencial. Dos meus demónios. Pergunto-me se de facto serei louco, e coloco abertamente essa possibilidade, mas depois confiro que é sinal de sanidade, podermos considerar estarmos loucos. E não há uma, uma única, que me surpreenda, é uma monotonia constrangedora que começo a formular a possiblidade de que as mulheres que têm entrado na minha realidade pararam todas de evoluir, ali pelos vinte anos. O que me levanta a questão, quem tem caído nas ciladas? Sobrolhos sorvedores de sorvetes? Então bate-me. Elas também se espalham todas ao comprido. Tanta solicitação e tanto rato de laboratório onde experimentar, é indiferente se matam este ou aquele, o stock nunca acaba. E o mundo é a sua ostra. Mais uma cliente que foi para casa com o ego remendado. Cuspindo de alto para o meu ego, como nunca disse ser possível fazer. Fico apreensivo, quando encontrar uma tipa normal, saudável, vou achá-la diferente. Se o mercado da carne fosse empresa, eu era o empregado deste mês. 'No good deed goes unpunished.' |
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Outubro 2024
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