O Brás é um camarada dos tempos de tropa.
Com aquele rosto congestionado das gentes do interior de Portugal, aquela forma de tornar irmão quem quer que seja que passe pelo seu crivo judicativo, liga-me às tantas da noite: «-Pá desculpa as horas, mas preciso de falar contigo. Vamos tomar café amanhã que já tenho bilhete do Alfa.» «-Tás parvo? Olha o confinamento, se te apanham olha que levas por tabela.» Que se passa que em confinamento toda a gente sente mais necessidade de sair de casa, algumas pessoas, para falar comigo. Nego-me, mas perante a insistência assumo que o assunto é inadiável e saio. «-Ninguém me apanha, preciso de falar contigo, pode ser?» «-Pode.» O tom era sério e respondi que sim, perguntando-me sobre que raio levaria um comissário da PSP a querer fazer 300 quilómetros para falar comigo. Conheci-o como grumete electricista, saiu da tropa e estudou para ir para a Polícia. De volta e meia falamos por telefone, sobre assuntos de segurança pública, manipulação política e outras coisas. Continua a ser uma pessoa humilde, com quem podemos falar sem a arrogância de um interlocutor demasiado convencido das suas próprias crenças. Não simpatizou comigo logo ao início, foi forçado a ir à tropa, eu fui como voluntário. Ele estava de saída eu havia acabado de chegar. Ele tinha a mania de fechar a torneira da água fria quando a malta estava no duche, com pressa de apanhar a embarcação que nos levava a Santa Apolónia e daí para casa. A cada missão, quando eu chegava, todo o meu mundo familiar parecia alterado, as coisas haviam evoluído, prédios pintados de novo, solteiras com peneiras e inacessibilidade de comprometidas, os pilares da Vasco da Gama um pouco maiores. Farto de apanhar escaldões avisei-o para parar, e ele continuou a fazer o mesmo, como qualquer gajo de 19 anos faria. Um dia em que não viria para casa, guardei dois rolos de papel higiénico perto do chuveiro na coberta de praças. Após fechar de novo a torneira, decidiu evacuar umas fezes numa sanita rasa que se elevava num degrau acima da altura do solo, com portinhola a tapar alguma intimidade do acto, só se viam os pés e a cabeça. Saí do chuveiro, ensopei os rolos de papel higiénico no lavatório, formando uma pasta homogénea. Ao ver-me no corredor que leva aos evacuatórios riu-se e perguntou como estava a água do chuveiro. Ao ver-me aproximar-se estranhou a curta distância e passou-lhe pela cabeça que eu me pudesse vingar de alguma forma. Já tarde agarrou a portinhola que abri para deixar passar a pasta de papel que se espalhou pela volumetria agachada de forma uniforme. Aos seus desabafos vernaculares, respondi apenas que era a paga das suas anteriores acções, e que se persistisse nelas, as repercussões escalariam de acordo. Isto passou-se no Verão e por isso a água secou depressa deixando o papel agarrado à pele e à farda. Passou horas a retirar papel da mesma. A partir desse momento lá deve ter pressentido que eu não permitiria tais macacadas e passou a respeitar a minha opinião, motivo pelo qual 20 e tal anos depois ainda mantinha contacto comigo. Combinei com ele perto do circo onde o Trancão beija o estuário, e levei-lhe dois cafés gelados comprados no Aldi. Esfregadas as mãos em gel alcoólico, uns passoubens, já que os abraços estão interditos. Começou por me agradecer por ter saído do confinamento mas não tinha mais ninguém com quem falar. «-Que se passa?» - perguntei eu. Ele foi hesitando, desviando a conversa, bebericando o café, até que lá deixou escapar… «-Estou-me a divorciar…» Gajas. Sempre o mesmo assunto que leva gajos confiantes a abanar como espigas ao vento. «-Então, que se passou?» A separação ainda não estava consumada, já não moravam na mesma casa, mas no papel nada estava ainda assinado. Contou-me que vivia num casamento sem sexo e que no aniversário da mulher, ela costumava dar-lhe uma meia hora de sexo sardinha morta, mais para agradecer a prenda e por pena, que por algum indício de desejo. A gota de àgua havia sido o último aniversário da matrona, no qual esse privilégio anual de sexo havia regredido para uma sessão de masturbação. E eu perguntei»-Como é que é?» «-Sim, ela agradeceu-me o vestido que lhe ofereci, e disse-me para ir buscar uma das luvas do forno, à cozinha. Eu perguntei, para quê? E ela disse-me que era para me masturbar. Fui, mas comecei a pensar nisso quando a vi meter a luva, para me tocar. E percebi que ela tinha nojo de me tocar e não era nenhuma brincadeira marota, era nojo. Nunca me senti tão mal na vida.» Fiquei sem saber o que dizer. Ele tinha razão, que leva uma mulher a ter tanto nojo do seu marido, que por pena mete uma luva na mão para lhe pagar uma prenda de aniversário. A sensação que é ter a gja de quem gostamos, sentir de tal forma nojo por nós, que só com protecção manual nos é capaz de tocar. Pela narração dele, deduzi que ela sempre fora uma daquelas pessoas que casa para ter um momento alto de atenção, e um placebo de projecto de vida para animar uma existência privada de privacidade. Mas os problemas de Brás não ficavam por aqui. Havia conhecido uma cachopa na Esquadra, que se embeiçara por ele, tinha 26 anos e um filho. Que ela parecia genuinamente apaixonada e o convencera a alugar a casa ao lado da casa dos pais dela, onde morava. A altas horas da noite entrava no quarto dele e faziam sexo simiesco, e ele acordava preenchido de manhã. Bombardeava-o com demonstrações de amor, que são sempre esforçadas. Fazia-lhe broches na casa de banho da esquadra, e que revelava um interesse insaciável por ele, enquanto pessoa, ele, o Brás. Que o havia largado depois de um tempo comum de seis meses, por um gajo mais novo, e que voltara a mandar-lhe mensagens. O problema dele era esse, escolher a ex mulher e a ex namorada que aparentemente se haviam lembrado de novo, dele. O dilema dele era com qual das duas devia ficar. O rosto dele fazia agora sentido, aquela jactância de ter escolha e o desespero de sentir que algo está mal, mas não sabemos o quê. «-Que queres que te diga?» perguntei eu. «-Não sei que fazer.» «-Sabes pois, a tua dúvida vem de algo dentro de ti dizer-te algo que não queres aceitar.» «-Como assim?» «-Estás assim porque por um lado tens a pessoa que fazia parte do teu mundo confortável, e cuja presença na tua vida reporia a imagem que gostas que os outros tenham de ti, e por outro lado tens uma promessa de sexo bom por contraposição ao que tens tido, com uma miúda que te daria validação perante os teus colegas da Segurança Interna.» Ficou imóvel e a pensar. «-Como é que é isso?», perguntou por fim. «-Sabes perfeitamente que nenhuma delas merece a tua atenção. Uma tem nojo em tocar-te, e tem tão pouco respeito por ti que está disposta a dar-te uns tempos de sexo para te voltar a cativar e voltar a pedir luvas do forno. A outra mostrou que és a segunda opção, para fazer parte do puzzle. O teu problema não são as gajas, mas o quer que seja que estás a comunicar que permite que pensem isso de ti.» Ao escutar-me, só pareceu ir de encontro ao mesmo discurso da sua voz interior, sob os ecos de estátuas sendo destruídas. É mais difícil para um homem matar a idealidade, que esbracejar por um placebo de dignidade.
0 Comments
Já sei, já sei.
Um anjo visitou-me no sono e me disse que não devo temer. Choro quando me embebedo porque é quando solto os grilhões racionais que no limpo campo que então se me apresenta, mostram que não sou rasteiro como a relva onde a malta leva os cães a cagar nos jardins públicos, mas sombrio como as florestas escuras no leste da Alemanha. Foda-se o peso que me saiu de cima. Por intuição percebi que o conas afinal é uma peça de teatro que represento por figura do meu alter ego, de forma a convencer-me a permanecer vivo e activo. Que significa então essa sabedoria fatal nietzscheana que me revela o mundo como um exagerado logro que componho só para permanecer vivo e engatado? Os movimentos de sua cabeça correspondem a sensações na minha zona do baixo ventre, não é a mais hábil, mas lá por isso é esforçada, tenho a pila murcha mas nem por isso percebe que não é apenas por fricção mecânica que vamos ser felizes um com o outro. Trouxe o jipe aqui para a serra e a lua minguante está de acordo com o meu Gervásio. A minha namorada é melhor que ela, se bem que com menos espírito, mais monhofonha. Sei que amanhã vou andar com remorsos, a pensar que a minha namorada não merece, nem os pais ou família dela com quem me sento ao Domingo para comunhar na unidade sagrada de primata. Juro que não quero desiludir a Célia que me chupa o falo como forma de me convencer que sabe foder e tem desejo por mim. Mais mais ainda falo com os meus botões e lhes digo que nenhuma mulher contará ao mundo que eu, a deixei a anhar. Ordeno ao lá de baixo que se erga, e torno-me mau para merecer a erecção. Concentro-me nos pormenores que me podem excitar e bloqueio todos os que me tiram tesão, o formato dos pés, as unhas mal urdidas, os pés mal feitos ou as mamas disformes. A cara envelhecida, o corpo semi decadente, o espírito semi carcomido. Carne é carne e macacos me mordam se esta gaja não vai levar algo daqui. Faço questão de lhe mostrar que o índice de gordura corporal está dentro dos limites em meu corpo e a cada investida a cabeça dela bate na janela do carro, enquanto raposas e texugos passeiam na várzea de Loures. É tão fácil ser homem…conhecem alguma gaja que não lubrificando, se diga dela que não é gaja suficiente? Pois. Alguma gaja foi contigo compreensiva, por lhe teres negado fogo, por algum motivo por lhe teres não dado prazer? Pois. Que te diz ela? Que quer pichinha, que és um frouxo, porque só a tua combustão como cinza ao vento, permite que ela sai voando como traça pela vereda da noite. Se tu fores o frouxo, nunca será ela a gaja incapaz de te dar tesão. Continua a chupar-me, penso que agora é só uma prova de teimosia. Começo a chorar olhando o vidro embaciado. Por causa das pequenas peças de puzzle que me mostram o que seja a condição humana. Sinto a língua dela tornear o prepúcio, e até cospe – vejam lá- para o falo, acompanhando com um movimento da mão. Ui, luxo, ternura. Afago-lhe o cabelo, e passo a mão pelo rosto para que pense que há carinho de agradecimento pelo fluxo eléctrico de prazer interpretado pelo meu cérebro, à conta da sua estimulação mecânica. Ali anda ela de volta da minha pila com a sua boa vontade, e eu a chorar copiosamente por causa das dores do mundo. Lembro-me de Salamina, dos que morreram no mar, sacrificando a sua vida não apenas por liberdade, mas pelas gajas que estão em casa com os filhos. Foda-se, quem se lembra de Salamina a meio de um broche? Porque penso em merdas depressivas em cada acto de karaté alentejano? Porque o sexo é a forma como me distraio da demasiada lucidez que julgo ter. Foda-se. Fico embevecido…demasiada lucidez, eu? Mas não consigo dar-me algum tipo de valor ou crédito? E porque não? Não existem pessoas que logo á primeira percebem o quer que seja? Porque não será toda a minha vida uma fuga à relatividade da existência, que aprendi de antemão? Duas coisas, a minha voz interior negativa, sempre pensando que o outro é melhor que eu, e uma instância superior a mim me dizendo que é melhor fechar os olhos para descansar de tanta luz. Mas que de tão grave me faz chorar? Morreu alguém? Em concreto não, mas vamos morrendo. Ela de joelho com os mesmos no chão do carro onde já tantas outras estiveram antes, tentando mostrar que dá o litro e que a devo tomar regularmente. Eu, presa desta natureza de fornicador, nós por irmos morrendo aos poucos, presas de uma maior estranheza em relação a tudo. Os do passado que morreram mortes violentas, e os do presente que nem sabem porque morrem. Não vou deixar que se sinta mal consigo mesma, e beijo-a, sabe a pila, imagine-se porquê. Ao beijar volta a tesão e virando-a de costas, espeto-lhe uma palmada na nádega esquerda, que fica lá marcada a mão. Só me lembro da palavra «arrêté». Passámos a ficar mais tempo juntos, em sua casa, raramente saindo senão para compras e corridas em direcção à saúde pelos parques urbanos da zona. Evitávamos a beira do mar naquela zona, para não deixar a relação que se iniciava, cair em cliché. Sem paciência para desempenhar papéis rebuscados de gestão do espanto inicial, que todos os amantes gerem nas primeiras fases de enamoramento, confesso-me já agastado pelo mais que expectável percurso deste novo envolvimento, é tudo igual, resta-me portanto, apenas observar. Observar, analisar. E calar-me, pois a racionalidade expressa oralmente, é o maior desidratante vulvar conhecido pela Humanidade. O orador de discursos racionais não práticos sobre a realidade, para sobreviver psicologicamente, tem de aprender a calar a sua voz, a viver entre os escombros sem alguma vez olhar para cima para o Sol. Nem sempre me controlo, pois o nervoso constante que me acompanha, cá dentro no âmago, me faz falar mais que feirante orgiástico. Canso-me do esforço para me manter calado, sinto-me não ser eu. De volta e meia, quando a ideia ou indignação levam a melhor sobre mim, lá saem meia dúzia de frases desabafadas, que contra minha vontade recebem em resposta um olhar surpreso, daqueles que damos aos borracholas que tentam fingir não estarem ébrios quando espetam com a mini no chão sem querer. Convidava-me constantemente para pernoitar em sua casa. Os jantares começam sempre após uma sessão de abraços e beijos e posteriores fingimentos que não se está assim tão feliz por ter ali o outro e estar próxima mais uma noite de sexo. Nem sempre ia, que tenho uma data de merdas para fazer todos os dias, especialmente agora que não se pode sair de casa nem para mergulhar, nem para pesquisar, nem para ir para arquivos chafurdar no passado. Observava em mim próprio, os sinais que exprimem o não me sentir em casa no meio das pernas dela. Ao início é para esquecer, a força da paixão, leia-se endorfina, é tal que cega o monstro interno. Mas da mesma forma em que gradualmente ela me vai comparando com as suas estátuas do passado, também eu me vou apercebendo do lado humano daquela que me encandeia por agora. Do extinguir do seu olhar de admiração por mim, de fascínio, não porque eu vá encarquilhando como folha seca, mas porque o jogo das comparações corre desenfreado em seu espírito. Lembra aquele com quem fez amor no topo da montanha do Pico, na viagem da C+S aos Açores. O rapaz mais popular da turma, com roupa de marca e postura despretensiosa com a vida, cujo maior factor de distinção para os demais, não lhe era inerente, mas relativo ao apreço que uma pequena multidão de ninfetas por ele exprimia. Como restaurante anónimo, que ganha fama apenas pela persistência em manter portas abertas, a observação de desejo de outras apenas suscitava o desejo nela, entregando-se de forma mistificada ao prémio que a desfloraria numa noite de Verão a 2000 metros mais próxima do céu. Ou aquele que com ela se lançou numa viagem de mota pela costa ocidental da África do Sul, e que ela contou aos pais ser no Mediterrâneo, para eles não ficarem preocupados. O firmamento estrelado, a fuga de uns leões que vieram à costa ver o mar, ou a pitão que ela viu enrolada em torno de uma gazela. Nestes altos de emoção, a vida passa pela garganta como brandy suave, certo o indivíduo de estar a capturar recordações para a velhice e para justificar uma existência, um sentimento de aproveitamento da existência através da manufactura de impulsos eléctricos gravados no carbono encefálico. Ou aquele que por via do seu carisma, a fazia chorar quando se zangavam e ele ameaçava retirar o seu amor. Já tendo passado os 25 anos, ela começava a aninhar-se na ideia de que seria aquele que lhe faria um filho, uma casa e uma história convencional de amor. Abandonada por este, chegou a temer pela sua capacidade de amar, até que as amigas a convenceram de que ainda havia tempo, estava prestes a conhecer um homem que lhe provocaria esses altos emocionais que o justificariam como prémio, e dessa forma provando de novo que ela era especial, e a prova está no conjunto de coisas especiais que lograra. Captação de valor através de símbolos externos a nós. Porque os nossos demónios não nos deixam viver saciados apenas connosco. É preciso o apreço do outro, que outra alma prove a nós mesmos, que somos dignos de existir e de sermos amados. Que somos mais que a nossa aparência, que nas gajas boas está tão ligada ao que são, que não conseguem conceber a ideia de que pouco tempo têm para continuar a suscitar desejo. Convencida de que o Verão nunca acaba, pousa delicada como borboleta nas mais variadas aventuras sem preocupação que não procurar validação e novas memórias que rememorar. Pensamos na mortalidade e decrepitude, mas não conseguimos conceber que venha a calhar a nós. Damos palmadinhas nas nossas costas com orgulho porque não instrumentalizamos o outro, terminando a nossa relação com ele, apenas para o trocar por um terceiro que nos venha a facultar a validação que ele já não consegue. Sentados no sofá, a luz das duas da tarde deste Inverno, espalha-se pelos cortinados brancos e reflecte-se ondulatória nas paredes, e provoca-me uma nostalgia filha da puta. Olho para o espaço entre a parede e a janela, e pequenos grãos de pó flutuam em suspenso, e é como se visse o tempo, o tempo como um eterno e adiado gemido pelas galerias fora, tenho de sair daqui, de me concentrar no momento e felicitar-me neste tempo, fazer como elas, capturar memórias para me enganar no infinito do espaço. Puxo-lhe as calças do pijama para baixo, ficam presas pela posição das pernas dobradas, tenho de a comer, apenas o sexo me distrai destes pregos temporais, não lhe tiro as calças completamente, mas o fio dental preto fica à minha mercê. O algodão e a viscose agarram-lhe a anca como os anéis de uma constrictora em torno da carne, a superfície da pele está quente, e sabe a dormência quando a lambo e sopro de seguida, para lhe provocar um arrepio que a acorde. Na televisão continua a passar o ‘Altered Carbon’ que a convenci a ver. Com ela adormecida acabei por me aborrecer revendo o que já sabia. Um movimento de pernas que se juntam mais a mi, faz saber que algo no seu sonho lhe diz que a chamam na realidade cá fora. Gradualmente vai-se lembrando que estou ali e que ainda não é tempo de rejeitar os meus avanços. Um leve gemido de conforto em relação ao sono acompanha o movimento de rotação dela para mim, que aproveito como caçador ardiloso, para bloquear as pernas na posição que quero, e agora mordo-lhe a parte interna da coxa, que a acorda de vez, apenas para largar um gemido maior e abrir mais as pernas ao sentir o calor molhado que promete viagem para outras paragens. O sabor agridoce amostalhado que jorra sem parar, dança com urros sonoros que a fazem agarrar ao sofá e encarquilhar como folha seca ao Sol de Outono. A respiração ofegante lembra-me uma praia com o contínuo restolhar das ondas, e após um estertor que parece uma suspensão do tempo, ela tenta-me puxar para si, para me beijar. Permaneço no mesmo sítio e tapo-me quero ficar às escuras à porta do portal. Encarar o inimigo de frente e perguntar-lhe que tem ele contra mim. Prefiro olhar de frente para o futuro que se insinua por debaixo das frestas das portas, de mim curvado sob a monotonia da rotina, e descaracterizado pela familiaridade. Ela inerte no leito à espera que eu termine, enquanto sonha estar no cume de uma montanha. Vivo em sobressalto por ela me fazer ciúmes com outros e desdenhar-me de forma tão ostensiva que o ar se torna irrespirável, enquanto me consumo em pensamentos que me recriminam sem quartel. Faço-lhe uma festa na pele das pernas, sob carne firme, e em direcção ao seu rosto, me atiro, como vaga vinda de longe só querendo na rocha morrer. A Sara convidou-me para um jantar do seu conjunto de amigos.
Costumam-se reunir todos os meses, boa parte do grupo são mulheres que foram colegas de faculdade, e um homem apenas, que cursando com ela, com boa parte de emasculação, deixaram entrar no grupo de irmãs. Tudo o resto são os apêndices. Seja os troféus que exibem entre elas, seja as muletas que usam para calar o sopro mudo do espírito. Sara conhece-me há um mês, e não lhe faltando perseguidores, indago-me se o motivo do convite é para que eu sirva de troféu visível, ou para me tentar impressionar mostrando que tem vida social. Se calhar nem uma coisa nem a outra, ou ambas. Em parte consigo acreditar na genuinidade do seu desejo e respeito por mim. A dilatação das pupilas e o ritmo cardíaco quando lhe agarro os pulsos impedindo-a de me abraçar, não mentem, e há de facto excitação genuína quando me vê. Mas dificilmente alguma me convence que a sua natureza hipergâmica é subordinada a uma racionalidade ética que tenha o outro em consideração, mais do que o solipcismo possa permitir, e este é se calhar o maior drama não assumido de todos os gajos, o de saber se a gaja com quem estão, gosta deles pelo que são, ou pelo que disponibilizam. Repara que não digo ‘fazem’. Eu, por exemplo, não faço ponta de um corno, apenas observo, testo e escrevo. E não me faltam Saras. Digo ‘disponibilizam’, pois é mais do que a função. Ser médico é das poucas profissões que dispensa este tipo de pormenor semântico. Médico é médico, à função corresponde por inerência, um brilho que se toma de empréstimo. O totem, o gajo, tem de fazer algo de prestígio, e igualmente bem remunerado. Se com menor prestígio, como ser dono de uma cadeia de lojas de ferragens, tem de exibir riqueza por via de bens de prestígio, e alguma sofisticação nas conversas, sob pena de ser tomado apenas como mais um labrego laborioso. O curso superior passa a estar associado a uma exigência de conhecimento e savoir faire, além da inteligência que releva da capacidade de cada um e uma retirar bom vencimento do que supostamente aprendeu numa licenciatura. O advogado, o professor, o arquitecto são valorizados como quid mínimo, o inspector da Judiciária, o acessor do Presidente da Câmara ou o piloto da Força Aérea, sobressaem pela relativa raridade e originalidade das suas profissões em relação à restante sociedade civil. Tive um professor sociólogo a quem na primeira aula ofereci o dom de me antagonizar, pois à sua tese de que o móbil social do indivíduo é a dignificação da existência por captação de apreço por parte da comunidade, eu retorqui que o móbil social é o sexo e garantir ou manter a escolha sexual, e que só quando a gaita já não funciona ou a vagina já não tem muito apelo para outros, é que o indivíduo encontra outras formas de ocupar o vazio que o instinto sexual anteriormente preenchera. O senhor ruborizou, inflamou-se e percorreu meia sala até mim dizendo que rejeitava de todo essa ideia. Eu disse que podia mostrar através do registo arqueológico e de teoria antropológica, o papel de bens de prestígio, e do sexo nestas nossas sociedades de primatas. Disse-lhe que ia fazer o trabalho a provar isso mesmo. Deu-me 12, só para não dizer que me chumbava. Preparei bem a coisa, com fontes daqui até ao cara de alho mais velho. Preparei bem a estrutura formal e lógica da minha tese. Negar-me, seria negar toda a bibliografia citada. Eu já sabia que ele justificava uma ideia que lhe era querida e que eu só para mijar na parada dele, me prejudicava a mim. Mas não conseguia não me ofender com aquela ingenuidade. Como não me estava para chatear com uma cadeira dada à base de autores dos anos 70 plasmados em powerpoints monocromáticos, não recorri, mas baixou-me a puta da média. Nada de novo. Sara liga-me dizendo, «-Amor, é para estarmos às 20:00 no Cais do Sodré.» «-Vou-te comer no Cais do Sodré.» «-Vais nada, está demasiado frio e não podemos andar muito juntos sem máscara.» «-Ok, vou tomar banho.» A água quente relaxa-me o corpo todo, marreco de 8 horas de ler e escrever, e de tentar resistir à tentação de rever filmes de ficção científica ou de amores infelizes. Apoio ambas palmas das mãos na parede porosa e arenosa do chuveiro e sinto a vaga de calor inundar-me de cima a baixo. Que raio vou eu para estas caldeiradas, que se lixe. Preciso sair de casa, e não estou obrigado a entreter ninguém, que é aquilo que qualquer gaja espera quando é o homem que a convida para sair. Como se bastasse aparecer, que aparecer é já por si o prémio. Engraçado que é mais comum nas mulheres desinteressantes do que naquelas que têm alguma vida interior. Poderosa ferramenta, a vulva, criando a ilusão de que vale por si, e todo o mundo é a sua ostra. Que merda faço eu aqui na estação fluvial, com este frio à espera de uma cachopa que conheci numa seguradora. Com uma saia castanha e óculos da moda, maiores que a própria capacidade de rotação ocular, olhou-me e perguntou-me o que eu queria. Eu respondi que o que queria e o que estava ali a fazer eram duas coisas diferentes. Que queria cheirar-lhe o cabelo molhado após tomar banho, mas que estava ali para resolver de uma vez por todas o imbróglio no qual a companhia em que trabalhava, Sara, havia causado. Riu-se, e tentou reencaminhar-me para a primeira linha, recusei, e disse que a história já vinha de trás, já havia passado por todos esses passos e que estava ali para falar com alguém que mandasse qualquer coisa, pois são assim as coisas cá no burgo. Apesar de agradada com a minha presença, cheirava-lhe justamente a reclamação e antes de me enviar para outro departamento qualquer disse-lhe que gostava que a minha história com ela fosse pelo menos tão antiga como a desta reclamação. Ela responde-me dizendo que não terminasse igualmente em reclamação, pois histórias de amor tristes, não permitem reembolsos. Riu-se muito convencida do seu atrevimento no jogo e da sua presença de espírito. Eu respondi que nenhum amor meu é uma história triste porque não só não reclamo, como o reembolso é sempre dado de antemão, em suor e beijos. E que portanto, quando acaba, nada há a pedir. Ficou sem resposta, vi que estava hesitante entre o que lhe mandava o senso comum, mandar-me dar uma volta, e o que um pé meu na fresta da sua porta lograra, curiosidade em saber mais de mim. Antes que respondesse, arranquei um papel do seu retrógado memorando e pedi-lhe para lhe escrever o seu número, que tínhamos um amor triste por fazer. Riu-se. Uma semana depois, após jantar, sessão de cinema e passeio pelo calçadão do Estoril, pediu-me que a abraçasse que estava com frio. Nossos lábios uniram-se e só se largaram ao fim de uma curta semana que passámos na sua casa com vista para o mar, de onde solicitara trabalhar à distância, trabalho só possível quando me apanhava a dormir. As amigas iam ligando para saber porque cancelara compromissos e inadvertidamente eu ouvia no telemóvel as suas vozes perguntando: «-Sua puta, conheceste alguém?! Deve-te estar a saber bem, para te cortares com a gente.» Outra dizia «-Fazes bem, aproveita, parte essa pila ao meio!» Ela ruborizada tentava baixar o volume do altifalante e terminada a chamada eu disse-lhe: «-Devias seguir a sugestão da tua amiga.» Iniciava-se um longo e prolongado beijo, com todo o peso da seriedade e entrega do mundo, em que o indivíduo pode alijar momentaneamente toda a descrença pós amores juvenis. Assentando os lábios no objecto de amor que acredite ser o ‘Tal’, pode sentir-se ainda que ilusoriamente, olhando no rosto do Criador, ainda que através do reflexo de uma paixão. «-João!» Saída do Metro, oscilando seu braço para mim, para que a visse, com as 29 Primaveras, encurtadas por uma mini saia de cetim verde, e um blusão de aviador de pele de carneiro, cujo forro interior coincidia com os sapatos prateados, realçando o lacre viçoso que adornava os seus lábios. Há muito que uma gaja boa não me provocava uma reacção assim, de me fazer mexer o falo, que se coloca em sentido como que pedindo a sua vez para falar. Nem bom dia nem boa noite, disse-lhe: «-Porra, o meu mangalho quer jantar antes de mim, estás de arrasar, vais ser comida ali no escuro, e nem te queixes das baratas.» «-Tonto, vou nada, está frio e estamos atrasados.» Fiquei com cara de parvo por ter revelado a facilidade com que dois dedos de carne feminina me lançariam em fornicação, mas não me ralei muito, fiquei até contente por isso, pois agora sei que após algumas cambalhotas, o que tinha carácter de absoluto se vai gradualmente relativizando. É como o oxigénio debaixo de água…só temos consciência do seu valor, imersos. Agarrou-se a mim de forma apertada, dando-me o braço, para que a abraçasse, e não pude deixar de pensar que se algo seria fingido, uma forma de me fazer sentir com familiaridade suficiente com ela, que permitisse uma noite de fingimento correr sem sobressaltos. Dei comigo a censurar-me por pensar nestas merdas, ordenando-me a entregar-me à experiência, mesmo que fosse fingida, nada paga a minha espontaneidade. Pelo caminho ainda me agarrou para me beijar, ou por desejo genuíno ou para compensar a nega dada anteriormente à sessão de sexo em lugar público. Tive de me esforçar para me entregar ao beijo e ralar com este tipo de cogitações, e terminado -seguindo-se a continuação da marcha e o morse das mãos dela que com apertos visavam dizer-me que estava feliz- dei por mim a indagar a mim mesmo, que sou lento, porque raio se queixa do frio mas vem de mini saia, e estando atrasada sai a cerca de 2 quilómetros do destino. Não quero saber, não há lógica, para quê querer encontrá-la? Entrando no restaurante, apinhado, perguntei-me a mim mesmo se não havia recaído na condição de conas. Então numa situação de pandemia, vou-me enfiar num lugar apinhado e ressentido com a reclusão sanitária que o governo nunca deveria ter levantado? Por causa de uma gaja e da promessa de vulva? Estive para voltar para trás, mas vendo um lugar desocupado num dos topos da mesa, disse a Sara, que isto é de loucos, e que eu fico no topo, onde mais ninguém me pode tocar. Ela estranhou, primeiro, percebeu depois e respondeu que só me queria bem e presente. Sim, mas se ficas ao pé das tuas amigas, eu fico no topo. E ela respondeu que ficava ao pé de mim. Toda a mesa com quase cerca de 20 pessoas teve de se reorganizar, para eu ficar sozinho numa ponta, com Sara perto de mim, e a impressão geral passou a ser que eu era ou esquisito, ou velhaco, ou com a mania de ser melhor que os restantes. Sem prato vegetariano, tive de pedir bacalhau assado, como se o desgraçado por não ter voz, não gritasse de dor quando o matam. Valeu ter duas garrafas de vinho à minha frente, que usei para me silenciar tendo em conta a algazarra em redor, com solicitações de todos os lados da mesa para todos os outros lados da mesa. Os homens eram os mais calados, por menos histórias terem em comum, tirando alguns serões em conjunto deste ou aquele casal. Assim que apanhava algum tema de conversa em que podia deiar-me levar, refocava a atenção nas garrafas de vinho que iam aparecendo à minha frente. Fingia olhar as pessoas de ambos os lados da mesa, para não parecer anti social, e ia saboreando o vinho da casa, entregue a pensamentos próprios. Sara ia-me esfregando a perna com as suas, e ocasionalmente metia a mão na minha braguilha para me afagar na zona, eu sem saber se era o prémio de consolação ou de agradecimento por eu estar ali, ou se realmente estava impaciente por mais intimidades entre nós. Levou com um garfo, um pouco de bróculos à minha boca, pois ela não liga muito a verduras. Do canto oposto da mesa alguém exclama: «-Eh lá, ó Sara, nunca te vi assim tão mimosa! Ai tão querida que ela está dando a papinha à boca.» Perante a risada geral, a atenção súbita e o rubor de Sara, o que conta foi que bebi mais um copo de vinho. Alguém perto de mim, com mais controlo e maturidade, (ou para me tentar convencer de algo) diz-me: «-João!? É João né? A sério, é a primeira vez que vimos a Sara assim tão ligada, e carinhosa, e só por isso estamos a estranhar.» O tom era de me convencer a acreditar na excepção, mesmo que inevitavelmente releve que antes de mim – a excepção- houve outros, as regras. Eu respondi: «-Ainda bem. Ela é muito meiga.» Agarrei-lhe na nuca e puxei-a gentilmente para mim, e beijei-a, deixando a interlocutora prévia, sem nada que dizer. Chama-se Laura e é uma das mais velhas do grupo, e, portanto, das mais comedidas. Senti o seu olhar avaliando-me, porque não corara, e porque respondera à sua tentativa de testar o meu enconamento com o bypass emocional que promete excepção, como se a excepcionalidade de alguma coisa fosse prova do que quer que seja nos dias que correm. «-Chicas Fatais, de penálti até não mais!!!» Era o grito de guerra delas, repetido de forma ostensiva e gutural até, treinado previamente nas noites de festa na residência universitária que partilharam. Os tipos, riam-se e quase que ficavam encolhidos perante tal exposição de vitalidade e empoderamento. Um ou outro, ria-se sardonicamente, por perceber o espírito de grupo que tomando conta dos indivíduos era o maior prenúncio de possível granel. Ficamos sempre na dúvida se o indivíduo que age em grupo, é o verdadeiro indivíduo, ou se é um outro além do que normalmente todos fingimos. «-Então João, não bebes?» pergunta a matrona matrafona do grupo, aquela que menos afortunada com benesses genéticas de geometria facial, vinga-se do mundo e da vida que não teve, com ressentimento que se exprime em comportamento ostensivo, como que para mascarar o aspecto físico com a poeira da personalidade. De nome Ângela, respondo-lhe: «-Bebo e bebo mais que tu.» À resposta a mesa emite um sonoro «Uhhhhhhhhh!», interrompido por alguém que diz «-Isso cheira-me a desafio!» Eu cometera a infantilidade de medir pilinhas com uma gaja, que suponho, não a tem. Não podia voltar atrás. Com surpresa vejo que traz – por certo já ébria dos brindes anteriores – duas garrafas de vinho cheias, para tirar a limpo o desafio de dominância que achou que eu tinha feito. Olhei para ela, a ver se estava a sério. Alguém disse «-Pá ò Ângela isso é estúpido beber uma garrafa de vinho pá, isso não tem graça.» «-Pshiu.» - diz ela, «-Eu bem vi como ele puxou a cabeça da Sara para trás como se ela fosse dele, e ele um grande machão!» Um silêncio súbito abateu-se naquela zona do restaurante, e a maior parte dos presentes, constrangidos por aquela estupidez dita por uma amiga parva, olhavam para mim a ver como eu reagiria, e eu olhando para Sara, vi que ela mais que os outros temia a minha reacção, pois é necessário elegância para resolver este tipo de imbecilidades que qualquer ébrio pode dizer ou fazer. Pareceu-me que devia ser eu a não estragar a noite a ninguém e disse em voz alta: «-Ok, até à última gota, mas se alguém não beber, lava a roupa interior do outro durante um mês.» A gargalhada geral abafou as exclamações de «-Bem dito!», «Boa!» ou «-Bem respondido!» Quando estávamos defronte um do outro para beber alguém entrelaçou os nossos braços, alguém bêbado de certo, eu deixei-me ir na onda. Por um lado só me queria esquecer, por outro lembrar onde estava. E então percebi que o nome que todas elas davam ao seu grupo era «Chicas Fatais». Um sentimento infantil e missionário emergiu em mim, como se estivesse a defrontar uma equipa de feministas ressabiadas num jogo de futebol de 5. Bebi rápido a minha garrafa, e ao pousar a mesma, que a Sara me disse para não beber, reparo que a minha oponente ainda nem a meio ia e já o verde rosto de vómito anunciava ir pairar. Ainda bolsou algum vinho ao chão e fez o esforço de voltar ao lugar. Urros e palmas, e orgulho em dois ou três gajos apêndices que por certe numa ou noutra altura haviam sido enconados por esta mulher masculinizada e castradora, envergando um sorriso. Por acaso o vinho caiu bem, apenas me dando vontade de mictar, que adiei, para apreciar o momento e não indiciar que iria vomitar o vinho. A espera amaciou-me e a minha fala começou a arrastar-se, se bem que o pensamento continuava acutilante e fluido, como sempre que me embebedo. Aliviado da carga liquida, regressei à mesa, mais bem disposto e já disponível para falar com alguém. Ao sentar-me ao ver o pernão de Sara, disse-lhe ao ouvido que o WC estava limpo. Ela riu-se e respondeu que era uma boa ideia, mas não queria chamar as atenções. Nem eu, respondi de pronto. O gajo que estava ao meu lado, ergue o copo e olha para mim para brindar. Brindo bebo e ele continua surdo e mudo após beber também. Fiquei sem perceber. Siga. Ângela volta à carga e olhando para mim ergue o cálice e diz «-Brinde ao feminismo!» «-Brinde!!» respondem quase todos erguendo os copos e bebendo em alegre e jovial celebração. Eu não. E era isso precisamente que Ângela previra e pretendia, um quid para desqualificar o gajo pelo qual perdera a face ou parte dela, no seu grupo. «-Então João, não bebes?» disse sorrindo maliciosamente. «-Nop.» respondi. «-Podemos saber porquê?» «-Podem.» Enchi mais uma vez o cálice, e bebi vagarosamente, com boa parte dos presentes olhando para mim, como que esperando uma resposta. «-E…?» esbracejou Ângela, por certo esperando que eu largasse lenha onde me queimar. «-E o quê? – perguntei. «-Porque não bebes?» «-És tu que queres saber ou o grupo, é que a pergunta que fizeste implicava estares a falar por todos.» Retorceu os olhos «-Ok, sou eu que quero saber, diz.» A vontade de me anular numa questão parva como aquela fez com que não tivesse noção de que podia correr ainda pior para o seu lado. «-Ainda bem que queres, mas nada ganho em dizer-te, nem é importante.» «-Bem me pareceu, não queres admitir que defendes a patriarquia contra um sistema de igualdade entre os sexos.» Visava ela manipular emocionalmente, e condicionar a minha resposta usando a pressão social também. Ri-me e traguei o que restava do bacalhau. «-Então, não brindas?» «-Não.» «-Porquê?» «-Porque não gosto de apoiar discursos de apoio ao ódio.» «-Desculpa?! Feminismo, discurso de ódio? Ah, espera, para ti igualdade é ódio.» «-Não, igualdade estrita sim, é desejável, mas uns serem mais iguais que outros já é outra coisa.» «-Admite que te chateia que as mulheres se organizem e tenham força e não dependam de homem nenhum.» «-Escuta, o feminismo é um discurso de ódio. É como alguém que tomando uma chuveirada no poliban e achando que a água está muito fria, abra toda a água quente, e ache que sem limitar a quantidade de água aquecida, por milagre a temperatura correcta chegue sem afinações.» «-Claro, pois temos sido subjugadas e limitadas pelos homens inseguros durante milénios. Reduzidas a papeis instrumentais e dependentes do homem financeiramente.» «-Não gosto desse discurso simplista acerca da ‘história’. Por exemplo, em eras mais violentas que a nossa, é natural que existisse violência com as mulheres, mas havia violência com os homens, com outros homens, como hoje. Se não gostas de ser dependente de um homem para ter liberdade económica, achas que algum gajo gosta de ser dependente de ti para ter liberdade procriativa?» Todo o grupo escutava o esgrimir de frases. Nem tanto pela novidade da minha personagem, mas pelas ideias em jogo, e por estarem uns quantos gajos presentes, a quem provavelmente era finalmente dada a oportunidade de ouvir canções diferentes. Um esperto, tomou o partido das mulheres, curiosamente aquele a quem a relação com a gaja em frente dele parecia mais precária, onde era mais notório que ela era dona e não parceira. «-Que lata, então o corpo é delas e queres mandar no útero de outros?» «-É precisamente esse tipo de mentalidade que te inferioriza ante um membro do sexo oposto. Ao dares a liberdade total de abortar, estás a relativizar o teu próprio código genético, estás a dizer que o espermatozóide não tem qualquer valor, e que o ser humano masculino é secundário em relação ao detentor de útero, a mulher. Estás a assinar por baixo da tua própria menorização.» «-Também era melhor eu não ter direito de mudar de ideias.» responde Ângela, curiosamente não desviado para um ataque de vergonha ou emocional, o que me surpreendeu. Continuei: «- O aborto como forma de contracepção é só a celebração da liberdade feminina, é permitir à mulher dizer, olha, emprenhei deste gajo, acho que consigo fazer melhor e portanto, aborto – ou seja, deito para o lixo o código genético de alguém a quem concedi consciente ou inconscientemente, acesso a um útero. No mínimo é inconsciência, no máximo é algo muito longe da igualdade.» «-És, portanto, contra a mulher ser dona do seu corpo?» «-Não, sou a favor da responsabilidade da mulher perante as suas acções. Violações e outras margens percentuais dos abortos, fazem com que o mesmo tenha de ser legalizado nestas condições, porque se for como forma de contracepção, não passa da decisão última da mulher em anular algo que o outro tenha a dizer numa relação consentida. Qualquer gajo que não veja sequer um problema nisto, é um conas.» Olhei para o gajo que me interpelara quando disse ‘conas’. Ângela responde, «-Então nesse cenário que pintas, como conseguirias uma igualdade estrita?» «-Não conseguia, o mal está feito. A única solução é, infelizmente, registar mentalmente e ignorar qualquer imbecil, homem ou mulher que diga que é feminista. » «-Registar e ignorar? Como é que é isso? Isso é possível?» - finalmente Ângela a mostrar uma velhaquice retórica, fácil de desmontar. «-Simples, se defendo que as pessoas têm de ser responsabilizadas pelas suas escolhas, como é o caso do aborto, a única coisa a fazer é lembrar quem se discrimina com base no género, e não lhe passar cartão, deixar a falar com o vazio.» «-Eu não discrimino com base no género.» responde ela. «-Discriminas, achas que eu por ser homem, ou para ter dignidade da minha opinião tinha de ser defensor do feminismo.» Parou para pensar e sou interpelado indirectamente por um dos casados. «-Ele fala assim, porque sofreu no passado, a nossa Sara será a Salvação!» O riso geral aliviou a conversa e amenizou a atmosfera em torno das sobremesas que, entretanto, chegaram. Percebi já tardiamente que tinha ganho uma excelente oportunidade de perceber os níveis de interesse de Sara, se agisse de forma arisca, indirecta ou desinteressada, então o convite tinha obedecido a um interesse meramente pessoal onde eu era um acessório. Se pelo contrário, mantivesse o mesmo comportamento, a atracção por mim seria real. Na fase dos cafés, O tipo que falara por último dirige-se a mim em tom conciliatório e pergunta se quero um cheirinho no café. Agradeço, recuso e acrescento: «-Todos já provámos desse cheirinho, por parecer que o tens no café, não quer dizer que continue a cheirar.» A frase soou de forma estúpida mas de alguma forma pareceu-me que ele ficou a pensar naquilo. Ângela exorta todas de novo a um brinde «-Ao feminismo e aos namorados patriarcais!» Peguei no copo e brindei para regozijo dela. Sara pega-me na mão e puxa-me para a saída, acenando com a mão a todos os que estavam na mesa. Já havia pago e chamado um Uber enquanto eu estava na conversa. O vinho ainda fazia das suas e eu estava de certa forma dormente, e na traseira do C-Elysée a minha mão fez subir a saia até à cintura, no mesmo ritmo em que a respiração dela se tornava mais ofegante. Exausta na cama, via-me cozinhando para ela, e trazendo o pequeno almoço à cama, beijei-a no rosto, e apertou-me contra si num abraço apertado, que não me queria largar. Nem para comer. Eu tremia por causa do vento frio que se faz sentir à beira das águas do estuário, mas o Sol de Inverno estava a pique e a cerveja com a sua frescura, de forma estranha, parece tornar o frio interno em calor externo e portanto, apenas o vento se tornava desagradável. Ela, na interminável sucessão de cigarros de tabaco barato, que ia enrolando e fumando com mais amor pelo ritual que pelos coices de nicotina, apreciava a atenção que eu lhe dava, seu ego ouvia-se inchar como balão virgem na boca de criança sôfrega. Não pela atenção de mim, mas pela atenção em si, cada vez mais difícil de captar por olhos de gente não muito decaída no altar dos anos. Recordava ela os tempos de atenção anteriores, onde cada mancebo era uma prova externa do valor interno, onde cada apaixonado aparecia como só mais uma nota na sinfonia cósmica que elogiava a existência do indivíduo feminino, representado pêlos olhares de desejos nos olhos de outros. Mais cruel que a ilusão, só a realidade, que mostrava que passando o período de pele esticada e relativo assombro pelo mundo, que naquelas idades é a ostra da mulher bonita, o longo ocaso até à morte apenas traz à outrora flor sedenta de Sol, o anonimato da penumbra. Poucas coisas existem de mais terríveis para uma mulher, que sentir que passa a ser invisível. Uma delas é ser-se homem. Vês, é que se a ninfeta a partir da primeira menstruação, dos primeiros augúrios de mamilos na brisa de Verão, se torna visível e entra na ilusão da aprovação masculina que a vê como um corpo, a possuir, a saborear, a manter e a proteger, o homem não desejável passa a maior parte da vida invisível, sem uma mão ou lábios que o façam sentir desejado. Aprende e interioriza que não é digno de amor e que se alguma mulher dele se enamora, tal é por outro tipo de interesse. Não recebe nem saberá receber amor. Por mais feia que seja a ninfeta, o superior desejo, oferenda da superior testosterona, permite que a maior parte delas sempre encontre um gajo qualquer que as queira cobrir, ou pelo menos cortejar. Poucas ficam sem atenção masculina, apenas se o caso estético for mesmo grave, ou se vivem isoladas num barril de castidade. O truque, como diz o ingénuo Lawrence das Arábias, é não importar que dói. É não ralar se as tipas nos perseguem ou não. Se caminhamos no meio da estrada, nem loucos selvagens nem abastados e promissores partidos, os carros passam todos por nós. Nada há de mais solitário que nascer sem dinheiro e sem vantagem financeira e social. Torna-se invisível para as gajas e vê-se reconduzido a pescar em barris restritos, o café do bairro, as gajas das aulas de dança, ou outro microcosmos relativamente fechado em si, que permita que o grupo não seja obliterado pela oferta do mundo aberto. O tinder, bumble e outros obliteraram as únicas escapatórias dos gajos que caminham no meio da estrada. Perdido nestas cogitações nem me apercebi de que falava há meia hora do namorado. Meio irritado por estar a falar de outro na minha companhia, por teste ou labrega velhaquice, disse-lhe: «-Esse desgraçado não me parece ser um mau diabo.» Se tivesse dito que lhe tinha mijado no copo de cerveja quando o fui buscar, não tinha provocado reacção tão adversa.» «-Mas quem pensas que és, não te admito que te refiras a ele dessa maneira, ele é uma excelente, excelente pessoa, e …» A lenga lenga continuava. Com ameaços de se levantar e ir embora, na convicção de que eu já estava fisgado por umas sessões de sexo anterior, futuro, uns enrolanços sob os ciprestes da Expo, e promessas fingidas de amor, não expressas por palavras, mas pela insistência dela em que a sua companhia era prova suficiente do especial que era a nossa relação. Tentava-se convencer e a mim, que éramos tão especiais que só o facto dela estar ali, era prova conclusiva. Obviamente que não, claro que é prova apenas de que nem uma efabulação semielaborada eu era merecedor a seus olhos, não tendo enquanto humano qualquer serventia que não o plano último da sua acção, vingar-se do seu namorado nem que para isso tivesse de reificar outro. E na cabeça das gajas a única forma de vingança plena, é encornar o gajo com quem está, tocar-lhe no ponto, no orgulho próprio, traindo a relação que têm com ele, num acto violento psicologicamente, mais apontado ao valor próprio do indivíduo, como quem marca gado com ferro em brasa, toma lá que também és corno. Já não te podes gabar aos teus amigos. Contava que ele de forma não regular, mas faseada, lhe mostrava que ela não o dominava, e por ela, leia-se os quatro lábios entre as pernas. Os isolamentos dele, os jogos emocionais de braço de ferro a ver quem menos liga ao outro eram narrados como ofensas que se admiram. E eu apenas os percebo como gestão da relação com uma tipa que é o maior desafio dela mesma. Reconheci inteligência ao gajo, e percebi a frustração e desespero de gostar daquela gaja, e conhecê-la ao mesmo tempo, o que é paradoxal. Depois de todas as ameaças, e avisos e frases que apenas visavam dar a si mesma uma opinião de si, como digna e moral, eu perguntei-lhe: «-Então se ele é assim, porque lhe meteste os cornos?» Não respondeu, mas eu sei porquê. Porque ambos sendo inteligentes há muito que as discussões passaram das palavras, percebem demasiado bem quando o outro está a mentir. A única forma de controlo e manipulação do outro, passa a ser a verdade. Não lhe diz que fornicou com outro, mas através do comportamento, do que o olhar exprime quando ostensivamente quer esconder algo, diz-lhe – se o olhar usasse palavras - «-Olé, toma lá a vingança ó corno. Não te metas fino que faço de novo.». No dia seguinte, já preparando a forma de descartar como fralda usada, pois a vingança estava consumada e eu ajudara a vergar o gajo – que viu que não era bluff, o bluff que ele pensava que ela fazia – liga-me a altas horas e relata as suas suspeitas de que ele era gay, num claro contra-relógio que indicaria quanto pelo beiço eu estaria, e assim assinando a minha inferioridade, libertando-a para me descartar com uma consciência mais ou menos limpa, que se convencera previamente de que éramos especiais um para o outro, e que agora me desqualificando a isentava de responsabilidades, pois o amor, esse ser de largas costas, a induzira em erro e a prova estava que eu a desiludira, me revelara um ser sem sal e chacalídeo que aguentara até altas horas da madrugada escutar um chorrilho de desabafos caprichosos, e ainda sentenciara – por falta de paciência – frases e ideias laminares sobre a profusa confusão na qual ela se perdia. Também essa suposta confusão, como tinta de choco, serve para que o interlocutor coloque o pé na argola da armadilha, à primeira frase de censura do amante oficial, desqualifica-se do sidekick, eu, por ter a audácia de criticar uma pessoa tão humana e tão boa. Se a provinciana velhaquice falasse por palavras, diria «-Para estares a falar mal de uma pessoa tão boa a quem traí por boa natureza convencida de amor, é só porque és mau, reles, não nobre, inferior, invejoso, que fazes de tudo por qualquer gaja que esteja disposta a trair o namorado, e portanto és descartável.» Tal como uma namorada muito alta que tive me dizia «-João, sou grande, mas também sofro.» também nesta eu compreendia quando dizia que não me via como vítima ou que não tinha problemas em me magoar. É que por fora, mantenho bem a compostura, através de uma análise constante das motivações dos outros, para os entender. Isto transparece como frieza e velhaquice, falta de nobreza, como merecedor de castigo análogo ao de Ícaro. Esta troca de vítima sacrificial, onde retiramos da lareira, a nossa responsabilidade, para colocar o outro como mau da fita, é o que chamo de lixiviação, deixar outro arder pelo fogo que pegamos. Divirto-me como Espinosa se divertia a olhar para as teias das aranhas, olhando estas manobras, muitas vezes não conscientes, das cachopas. Nelas tento avaliar a origem da sua falta de respeito e estima pela minha pessoa, o que por sua vez me permite aferir sobre os seus critérios e daí, para a forma como olham para o mundo, por detrás da falsidade das palavras e encenações. Coloco-me eu próprio na armadilha para servir de isco ao predador, ele leva a ilusória ideia de que é o selector e que me rejeitou, eu levo a paisagem interior dos seus pensamentos, para poder comparar com outras que tenho e assim poder formular leis gerais, e comparar em que os indivíduos se distinguem, e como eu próprio funciono. Aquela treta do Pessoa, do poeta fingidor, que finge que finge. Se calhar é uma defesa para não sofrer tanto. Os trejeitos, as frases, os comportamentos repetem-se. E o mais interessante permanece, os critérios de rejeição, dessa emoção que arde de dentro para fora como uma azia feita de ácido molecular, que parece consumir o pouco valor próprio que sentimos quando uma pessoa sofrível se cruza connosco. É este o fogo amoroso, que arde sem se ver. |
Viúvas:Arquivos:
Junho 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|