I
Por acaso, uma das coisas que não cessa de me surpreender é a convicção com que a maior parte dos indíviduos da espécie Sapiens sapiens acredita na invisibilidade para outros membros da espécie, da raíz das suas motivações mais profundas. Tendemos sempre a acreditar que o nosso móbil mais recôndito está coberto por uma espécie de véu que o oculta ao mais perspicaz perscrutador alheio. Enternece perceber que a maioria acha que uma cara relativamente inexpressiva serve perfeitamente como biombo de pensamentos em surdina. II Talvez porque eu próprio sou assim, e isso projecto nos outros. Desfilo a minha vida interna no intermitente monólogo da minha consciência como se mais ninguém o ouvisse ou dele notícia tivesse, esquecendo eu continuamente, que a minha projecção da minha humanidade nos outros recebe em troca a sua projecção de humanidade em mim. Vemo-nos uns aos outros com os olhos de nós próprios. Vivemos numa equação de ignorância superficial em relação aos outros, a nós, a tudo. Conhecer a mim, é conhecer o outro, basta assumir, e a palavra aqui é ‘projectar’ que o outro funciona com as mesmas forças, moléculas, líquidos, que eu. O que altera, e faz divergir não pouco do outro em relação a mim, tem apenas a ver com uma percentagem irrisória de bioquímica e história. Como artrópodes com antenas tacteantes, apalpamos à frente a humanidade alheia, que não é senão uma pálida reflexão da nossa. Vivemos sozinhos, sem ninguém que nos peça contas, nem sequer um eu moral que nos exija rigor, vamos vivendo em segredo por detrás do que escondemos, assim nos revelando. III Assim era ela. Fodia por fora quando casada, para se vingar do marido, há muito a crédito no seu malparado factor de atracção. O bem estar material já não era suficiente para ela pois o apertado controlo, derivado de uma falta de confiança que as circunstâncias espácio-temporais teimavam em confirmar, sufocava e pedia mudança de ares. Toda a atracção pré nupcial se extinguira, e o sexo só como moeda de troca era usado. Justificava para si própria que fazia o que fazia porque merecia ser feliz. A esta motivação, juntavam-se outras, como a vingança, operando em surdina aquilo que ele só lugubremente podia imaginar, para com este esposo, que a mando de um direito matrimonial de controlar, a ameaçava, a impedia, a subjugava. IV Ele, conhecia-la bem, muito bem. Outras traições, passadas e não esquecidas, toldavam-lhe o juízo apesar das juras de perdão. Não podia confiar nela, de novo. Mas também não tinha coragem para agir fora do seu sentimento de esperteza e posse, ao passo que ela já não podia passar sem a adrenalina da emoção parola e desesperada, dos ameaços de paixão, pela vertigem do interdito, como se fossem estocadas de falo hirto na vulva de uma vivência burguesa sem sal. V Também a sede de validação, em que procurava preencher algum buraco dentro de si no qual se achava inferior e se odiava, só era suprimida através da comprovação visual do desejo dos outros, da sobrecompensação dos anos gravados na carne já tardia, que filhadaputescamente (para o ego) se contrapunha com a ideia e auto imagem de si, numa há muito ida e frugal juventude. Ou seja, sentia o poder escorrer-lhe pelos dedos, e precisava de foder para se poder validar. VI Fazia questão de sorver o falo, masturbando-o ritmicamente, de forma demasiado acelerada mostrando pouca compreensão de biomecânica e sexualidade masculina, com a mão que envergava a aliança. Aquela aliança que serviu de desculpa para um rito de passagem à maioridade e à determinação de vida, celebrada com brindes, liturgia e camisas brancas e gravatas de Verão acompanhadas por vestidos de cetim brilhante, malas de mão que só se usam uma vez, e uma espécie de glamour com se celebra a dignidade na vida que se aproxima cada vez mais do fim. VII Pensara deslumbrar-me com os truques parolos que haviam funcionado noutros parolos previamente seduzidos e menos habituados à variação das sevícias. Apareceu lá por casa a propósito de uma desculpa para jantar, esforçando-se por fazer um brilharete através das ligas escolhidas e da disponibilidade para lavar a loiça. O mesmo modus operandi de sempre. Eu espectador, para o mal e para o bem, relativamento desatento, confesso. Enfadam-me cada vez mais as individualidades projectadas – talvez porque revejo a minha e portanto torna-se monótono – e por isso estava era entretido na avaliação de intenções e no cómico de situação. É fácil, basta assumir um estado de espírito no qual a pergunta base é «O que é que esta pessoa vai fazer para me surpreender?» Assim que se apanhou nua, sobre mim e em pé no colchão, perguntou-me orgulhosa, «E então?» referindo-se às suas mamas grandes ainda não cabisbaixas como cabeças de crianças tristes, e relativa boa figura para quem já havia sido mãe e levava mais de uma década a ser dedilhada por marido enfadado. VIII O rabo dava, como ruína leprosa, ares dos tempos àureos de algum império glorioso outrora digno de ser admirado, também as suas coxas haviam sido mais musculadas e torneadas, mas nem a gula ou a preguiça haviam evitado algum desgaste nas curvas assoladas de crateras convexas a que se chama no vulgo de ‘celulite’. O formato atarracado de todo o conjunto, a donzela em questão é baixa, fica desproporcionado pelo par de mamas exuberante, que lhe ocupa metade do tronco, e pelas pernas curtas, com feios joelhos e mais feios pés espalmados cuja única remissão de harmonia geométrica jaz no arco rasante pelas pontas dos dedos dos pés, em que o mais saliente se ordena em sentido crescente da direcção oposta ao do mindinho. IX Não podia não ser honesto, e respondi:«Que tem?É um corpo.» com expressão fleumática, na minha cara e na minha voz. Inquieta por não receber a validação esperada, mudou nitidamente de estratégia, não intrigada pela minha individualidade per si, mas como se eu fosse apenas mais um, como os outros mas exigindo um pouco mais de trabalho, sim, porque nós os homens somos como o aço, uns temperados pelo fogo e outros pela vagina. E a sua via para a minha individualidade não era metálica e tinha pelos. X Com o decorrer dos anos apanhei-lhe várias mentiras, ou ilógicas confabulações. Nunca revelei que sabia mais que aquilo que ela pensava que eu sabia. Quem acha que os outros são parvos acha igualmente, ou projecta, o limite do que conhecem ou podem conhecer, não do mundo em geral, mas dos seus joguinhos internos, e das linhas com que são cosidos. O mentiroso vive na sombra. Especialmente na penumbra que é sempre a percepção do outro. Supõe que o outro é sempre um ingénuo desprovido de espírito dedutivo. A mulher particularmente acha que por pensar com a cabeça de baixo, qualquer homem não pensa com mais nenhuma. Particularmente se não reclama ou expôe as mentiras que só ele pensa saber existir. Se não reclama por justificação às mentiras desmascaradas. O ciclo vicioso na sua mente, se não reclama é porque não sabe, se não sabe é porque é parvo, se é parvo continuarei a mentir. XI Dizia que estava tudo acabado com o marido, que viviam na mesma casa apenas até resolver a burocracia marital, mas a qualquer gemido do telemóvel entrava em pânico disfarçado, num misto de experiência adúltera, de entusiasmo juvenil e terror puro. Por vezes eu tinha a sensação de que ela usava outros como eu, como forma de se libertar da necessidade de um marido, vivendo como borboleta alegre pelas facadas conjugais, e a borboleta só é um exemplo de leveza se soubermos da existência de outros seres esvoaçantes mais pesados. É que o inferno marital, dos silêncios tensos, das bocas, dos testes de resistência, das birras, dos berros, o ambiente que se corta à faca, colhem seu tributo sempre no lado fraco.Que nunca era o dela. Ele privado da vulva não tinha a arte para arranjar substituta, e ela tinha, mal ou bem. Foder por fora era portanto uma válvula de escape para o braço-de-ferro caseiro. Ao mesmo tempo a vingança. O casamento apenas serve para diluir o valor pessoal daquele elemento que menos conseguir atrair os outros. XII Agarrava-me com força pelo rosto, na covinha das suas mãos com gestos atabalhoados, olhando nos olhos e dizendo que gostava, mesmo, de mim. Como se a suposição da possibilidade de haver alguém que mente ao dizer que goste de outrém, enfatizasse o acto de gostar. Mesmo, mesmo. À segunda repetição já se percebia que não era a declaração, mas o convencimento que era pretendido. Desconfiado e batido, ria-me. Pensava nisto, e que não conhecia ninguém, que gostando mesmo precisasse de fazer algo para convencer. Nestas situações, o ‘gosto de ti’ é uma espécie de visgo para apanhar o incauto, baixando este as defesas e deixando-se ir na conversa. XIII O seu forte era mesmo a insistência. Até para o encómio fácil, se tornava repetitiva. Tinha disso noção. Achava-se uma pessoa esforçada, e por isso a insistência era sentida naturalmente e como sinal de pureza interior, pois quem faz aquilo que lhe emerge no âmago, só está a ser pura. Também sabia que não era fácil pegarem-lhe e que por isso tinha que desenvolver outros métodos para manter a freguesia. Um deles é o encómio, que se torna grave quando o encomiasta nada percebe do assunto a partir do qual tenta engodar o outro. O que era o caso. É sempre difícil nao deixar sair o cabrão judicativo em mim, e julgar o outro nas suas falhas. Mas não conseguia deixar de me sentir ofendido com toda esta tentativa de manipulação, que com os anos havia aprendido a reconhecer. Sabia que mais tarde ou mais cedo se seguiria o abandono súbito ou desprezo, completamente contrastante com o interesse e o pairar solícito por cada peidinho que damos, que previamente merecera. Por vezes ficamos na dúvida. Se aquela pessoa que nos mentiu e tentou convencer de algo, com o abandono súbito, prova as reservas que sempre tivemos para com ela, ou se ela própria padece de uma patologia qualquer do espírito, só identificável daqui a uns anos pelas legiões de psicólogos de pacotilha. XIV Mas o verdadeiro espanto, o verdadeiro inominável que nos deixa sem palavras, é a certeza na forma de proceder connosco como se fôssemos realmente burros. Não é o afastamento que chateia, mas a fraca estima que tem por nós o mentiroso, quando nos toma por parvos e claramente revela que nem se dá ao trabalho de inventar melhores mentiras ou de disfarçar a completa cara de pau com que age. Se me tivesse, (sendo mesmo mesmo estúpido) deixado ir nas conversas de convencimento, teria saído magoado, pois teria desenvolvido sentimentos por alguém a braços com abraços de infinito em si. XV A sua auto imagem plena de pureza no agir retira-lhe qualquer atitude reflexiva das consequências da sua acção nos sentimentos dos outros. Escondendo ao mesmo tempo que é uma pessoa descompensada. Passível de compaixão, não por uma suposta enfermidade, mas por ter tanto contacto com a profundidade da capacidade empática, como as nádegas da deputada Cicciolina têm uma com a outra. XVI De volta e meia mete-se, como quem se preocupa. Email’s formatados que espalha como sementeira por todas as suas conquistas passadas. Não por se ralar com elas, mas porque deseja não fechar a porta de possível, para o caso da relação presente dar para o torto. As oscilações são claras e relativas ao estado dessa sua nova «paixão». Precisa de sentir ali, no virtual, uma qualquer porta aberta, um séquito, uma miragem reconfortante que não a faça sentir presa, limitada, sem escolha na escolha que fez. Sem qualquer consideração pelo direito do outro à indignação perante a facilidade com que falha à verdade, com que falha à individualidade que tenciona manipular, convencer. XVII Tanto mais respeito sentimos pela honestidade, doa o que doer. Mas não, na sua cabeça continua a brincar em segredo, ao sabor das paixões e despaixões que inventa para si, para marcarem o ritmo da sua vida. Enganado-se a si mesma, enganada pensando que engana bem os outros.
0 Comments
|
Viúvas:Arquivos:
Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|