Conheço o Ramiro desde os tempos em que fazia noites na vigilância privada para pagar as propinas da universidade pública. E os livros, e o passe social, e todas essas pequenas coisas que me forçavam a passar noites em branco e a apanhar o comboio e vir directamente para a Faculdade de Letras, pois se fosse à cama nem que fosse meia hora, chegava atrasado e não tiraria o rabo da cama. Chegado à aula, o Professor empatava o início da mesma, pois nenhum colega havia chegado às 8 da manhã, por certo aborrecidos por terem de se levantar cedo. Protelava contando histórias dos seus tempos de aluno, e lamentando-se, a mim, de que hoje os seus alunos não valorizavam o ensino e nem a horas chegavam. Um dia, farto da conversa, disse-lhe para dar matéria, eu estava ali, e tinha chegado a horas. Fez uma cara, como se me tivesse visto cuspir na sua sopa. Como podia eu sugerir algo de tão sórdido e imoral, pouco ético para com os colegas? Nem pensar, teríamos todos acesso ao mesmo tempo à mesma matéria. Tens de ver que eu tinha 20 anos na altura, e que os jovens são pequenas máquinas de cálculo acerca de poderes que supõem, mas não conhecem na totalidade, o que torna o mundo mais sinistro. O mundo, dos outros, dos velhos que se agarram como lapas ao ‘poder’, pode ser prejudicial, e há que jogar sempre as cartas certas. Por isso apenas duas ou três vezes estive para dizer ao Professor a falha da sua ética, que eu estava a ser prejudicado pelas complexas lucubrações a leste da «Ética a Nicómano», pois nem ia à cama para ir À aula, enquanto os outros descansavam ainda em lençóis quentes. Mas, ainda tinha de ser avaliado por ele, e não convém mesmo nada ser honesto para um catedrático, que todos identificam a profissão à identidade pessoal. Seguia de metro para casa, com menos de uma hora de matéria no bucho, pois era apenas aquela aula de Filosofia Moderna, à Segunda e à Quinta de manhã. Eu sabia que estava a chegar ao ponto de ruptura, e que não aguentaria muito mais fazer noites e ir às aulas, sob pena de algum colapso, ou pior, falência de diminuta capacidade lúbrica. Deus me valesse. Sou colocado num serviço adicional, onde era necessário reforço de um vigilante, enquanto durassem umas obras. O Ramiro trabalhava aí, na mesma empresa do que eu, mas a ver se entrava para o cliente, onde ganharia 3 vezes mais. Beca beca para aqui, beca beca para ali, e ouvia fascinado as minhas tretas e teorias acerca do mundo e das pessoas, sempre citando bibliografia, que alguns confundem com arrogância da minha parte, mas que é vital se desejamos que quem lê os nossos artigos, tenha acesso às mesmas fontes. Se é assim por escrito, porque não havia de ser na oralidade? De modo que aqui o je, citava livros, e ele começou a citar os seus também. Andava de volta da ideia de ir para a Universidade, mas tinha-se convencido a si mesmo que não tinha o que era preciso, que não dava para os estudos e que pouco compensava tal esforço. Na realidade tinha uma namorada que fazia com que se contentasse, e que seria mais apreciado com disponibilidade financeira, do que andar a fazer noites como eu, para contar trocos, como me disseram certa vez. Ela não precisava, já tinha cursado Psicologia, e não convinha que ele tivesse alguma inflação do seu próprio valor, sob pena de poder vir a pensar que ela era areia a menos para a sua camioneta. Gostava dele assim, dócil, servil, e contente por ter uma ‘namorada’. Chegámos a ir os 3 para o Bairro, no tempo da moda do ‘Gótico’, onde as ruas de Lisboa eram passerelles de cabedal preto e caras com pó de arroz e lábios negros ‘à vampiro’. Eu tinha ‘namorada’ na altura, mas a relação já estava na curva descendente, e andava portanto, à procura de algo que me apimentasse a vida, além do sentimento de vitória relativa que é ‘ter’ uma gaja que finge que gosta de nós porque nos abre as pernas ocasionalmente e nos liga a fingir que se rala connosco, para se enganar a si e ao mundo, sob um propósito na vida que não tem. E guardam-nos como cartas, até que surja um Às do baralho, com que nos possam destrunfar. Sabendo disto, ambos me engataram com uma amiga que tinham em Sintra, que estudava História da Arte na mesma faculdade do que eu. Contaram-me a história, tinha andado enrolada com um bombeiro sapador, que a comia e largava e que ela não conseguia esquecer. A minha arrogância, aqui sim, garantia-me que era mais um caso para eu salvar, e que facilmente substituiria o tipo passado, com o brilho aterrador da minha personalidade. Tinha umas boas pernas e não era manca de rosto. Vivia num pardieiro que adorava, pois, era em Sintra e só ‘dela’, onde os dramas com o tipo da protecção civil, faziam ocasionalmente pernoitar. Ela contente pelos altos emocionais que como as marés lhe elevavam os humores, ele, entretido no jogo de não se dar por garantido e a sentir esforçar-se mais para o garantir, sabendo que quando o sentisse garantido, o largaria sem qualquer apelo pelos seus próprios sentimentos. Havia glamour de viver em Sintra, especialmente com a tal moda lúgubre da altura. Havia alugado a casa na altura em que ganhava bem por ter trabalhado para o Ministério da Cultura. E agora ia gastando o que amealhara nessa altura. Pensei comigo que era mais um destroço emocional que andava por aí a fingir ser gente. Mas lá se combinou uma de duas refeições que lhe paguei na cantina universitária, apesar dos seus apelos para irmos comer a outros lados, mais especiais, leia-se caros. Pois bem, estás a tentar mugir a vaca, neste caso eu, o boi. Ok, faz parte do jogo. Libertei-me da ideia de Salvação e pensei que talvez dar uma cavacada fosse o mínimo quid, pelo menos para o currículo. Num café qualquer, onde me fez ver todas as exigências necessárias para um dia eu vir a ser aspirante a seu amante, leia-se, todos os truques que teria de fazer para lhe encher o ego para se sentir bem com ela mesma, e onde eu me ria por dentro pensando na contradição (ainda acreditava que as mulheres eram seres lógicos) de que só falava mal do bombeiro, mas a ele não colocava condições, nem quando aparecia em casa dela ébrio, saído do quartel, para um petisco horizontal. Eu, o suposto cortês e decente, teria de desempenhar uma respeitosa cerimónia de humilhação, uma vez que percebia que havia sido desqualificado só por ter mostrado interesse nela. No tal café, com as paredes cravadas de espelhos, olhei o meu reflexo num deles, enquanto ela foi à casa-de-banho, e falei em voz alta, para a imagem, perguntando o que estava ali a fazer. Com farto cabelo preto, no ar, desgrenhado, ruborizado do calor que sempre tenho, e perguntei se me havia de humilhar só mais um pouco, pois o sexo estava ao virar da esquina, usado como anzol para mais uma captação de valor. Ou se dispensava a minha fraqueza pela dose de dopamina, e faria o que era raro fazer, respeitar-me acima de tudo e todos. Eu ou a minha fraqueza expressa na ânsia de copular? Peguei no casaquinho, paguei o meu café e ala que se faz tarde, entreguei-me ao ar frio mas convidativo da noite lisboeta e rumei para casa, embrenhar-me nalgum livro. Dias depois liga-me o Ramiro e perguntou-me pelo acontecido, ao que lhe expliquei e ele concordou, dava mais trabalho e menos paz de alma que o merecido. Estas pessoas depois chegam a uma idade onde se queixam que não conheceram alguém decente. Não que eu o seja, por aí além, mas porque de facto conhecem, mas tratam como aqueles seixos que se usa para atravessar ribeiros, quando a água do tempo perdido chega ao pescoço, não se lembram como chegaram ali. Contou-me que a namorada é que o convencera a apresentar-nos, e ele como me via como um sedutor capaz de seduzir quase tudo o que mexesse ou piscasse os olhos, mobilizou-me para a causa mesmo achando a nina um pouco estranha. Mas nunca desconfiaram, pois os criminosos escondem bem quase sempre a condição de o serem, as putas contam-se como puritanas para os pais, os chulos como trabalhadores para os amigos, os manipuladores como mártires, para quem os quiser ouvir. Por tempos, cheguei a pensar que tinha o dom de revelar a verdadeira natureza das pessoas, bastando para tal manifestar a intenção de me envolver com elas, que é o mesmo que manifestar a disponibilidade a que tirem partido de nós. E um gajo, vai jogando até poder, até ver a sua imagem reflectida e alguém mais adulto dentro do nosso olhar nos dizer, «-Não é para estares aqui.» Os anos e as estações passaram, e mais se vincou a ideia de que a grande epidemia do mundo é as pessoas não conseguirem gostar o suficiente de si mesmas, e que um náufrago sem pensar te utilizará como bóia, para safar a sua própria pele. A sucessão de amores infelizes do Ramiro, também ocorreu, e em parte de forma igual, talvez menos consciente e cogitante que a minha, também a vida sentimental dele foi uma troca comercial de sexo por recursos, só que eu não os tendo, sei que houve uma troca de algo que não recursos, quem sabe aspirações ou a utilização de mim como bóia no mar do não sentido. Talvez esta ruminação constante me tenha arrancado do meu registo, fiquei mais cínico e comecei a avisar o Ramiro de que o jogo deixa de lados os amores incondicionais. Que com essa crença vamos para combates de armas armados de fisgas que disparam bolas de pompom. Mas, como não lhe iam faltando cachopas que se deixavam desenfeitiçar por ele, lhe reforçavam a crença de que ele estava certo, estava a agir como é suposto, então não tinha ele uma gaja no braço a comprovar? Há algo de validação na exposição de um parceiro ao mundo, revelamos que somos capazes de gerar amor num outro e que por inerência temos algum valor no mundo. Essa certeza até nos torna arrogantes, pois olhamos para os celibatários como se fossem filhos de deuses menores, incapazes de saber jogar o jogo, deficientes não visíveis, que não foram eutanasiados à nascença. Passados todos estes anos, o Ramiro fartou-se das desconsiderações de uma parceira que o escolhera porque ele não é manco de cara e tem um emprego estável. Professora com um filho de um homem que provavelmente também olhou no espelho e não gostou do que era com ela, a largou, mas não ao filho que via amiúde mas sem a poder encarar. Nas duas ou três vezes que a vi percebi porquê. É daquelas pessoas que sabemos que está sempre a magicar por detrás da testa. Observando avaliando, ajuizando, conspirando no recobro do seu pensamento. Não foi preciso esperar muito para que semeasse o veneno, pois o pior para uma mulher que tem o troféu controlado, é aparecer alguém feliz, eu, amigo do seu homem de estimação, a lembrar que existe felicidade fora do conforto da sujeição implícita. O Ramiro deixou de me ligar e convidar para café por causa disso e até me ressenti um pouco com esta falta de personalidade. Finalmente terminou com ela, quando percebeu o que eu já lhe dissera, pelo que me relatara. Estiveram separados uns meses, ao que ela reatou com ele, e o pateta voltou. Descobriu depois que ela voltara para ele, apenas porque ele havia prometido fazer obras no jardim no Verão, na casa dela e dos pais. Feitas as obras, boa noite e um queijo. Ressabiado e furioso, decidiu comprar casa própria e de uma vez não parasitar a validação das mulheres. Comprou uma ao pé do trabalho, bem como um Mercedes comprado na Alemanha com esquemas a meias com colegas de trabalho. Viu-se portanto a braços, pela primeira vez, com as mais apreciadas penas do pavão humano masculino, o ninho e o meio de transporte. Ajudei-o a fazer a mudança, e a meio da mesma disse-lhe, olha Ramiro, agora vais estar mais no radar de certas pessoas. Não penses que finalmente e após tanta agrura, encontras porto de abrigo, que te sai a sorte grande... Não, desconfia e lembra-te das situações passadas, as pessoas não são todas iguais, mas quando estamos partidos atraímos o mesmo tipo de pessoas. Inebriado por se sentir o prémio, acenou que sim que concordava, mas eu via nos seus olhos que se sentia o vencedor e que para eu dar lições de moral, devia ter algo mais que um Corsa ferrugento de dois lugares e morar num quarto na casa da minha mãe. Nem eu, nem as minhas cogitações pelos anos, tinham algum valor. Isto a malta só se avalia pelas penas ostentadas. Pouco tempo depois contou-me que conheceu uma tipa assim e assado e relatou-me a mesma fase de enamoramento cliché, e eu ri-me e exclamei, lá vai o Ramiro… Ele perguntou, o quê? E eu disse nada nada, já sabia que se ia recolher para dentro da casota e da vida a dois, até que o despeito acumulado fosse tal que a mulher lhe desse todos os sinais a mostrar que não o respeita a ver se ele se vai embora. Mas não percebemos, seja pela hipnose, seja pelo idealismo. Só depois é que percebemos os imbecis que somos, para com a nossa própria dignidade. Bem dito bem feito, cessaram os telefonemas constantes e as intermináveis narrações sobre o sentido da vida. Regressado ao conforto de uma ilusão reconfortante, deixei o meu amigo em paz, com mais uma morte desejada. Por mim, cumpri a minha obrigação como amigo dele. Resta-me cumprir como meu amigo. All rights reserved, fair use movie 'Marriage Story'
Production company Heyday Films Distributed by Netflix
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De novo as folhas amarelas arrojavam pelo chão, perdidas em rodopios de decrepitude em direcção ao esquecimento de que alguma vez haviam existido. Sigo contra o vento, como gosto, com os olhos semicerrados e como sempre, a sensação de pandemónio à minha volta, agrada-me. Um toque de telemóvel rasga-me a fruição desta pequena amostra de caos, e ao atender, do outro lado alguém exclama: «-Sou a tua morte, vem ao teu velório, Alto de São João, às 15 horas.» Assim como surgira, a chamada terminara, desligada em cheio na minha cara. Não resisti a soltar umas gargalhadas, até pela patetice de entreter a sério a ideia do meu funeral, uma vez que estava vivo. O meu espírito filosófico, que alguém pode confundir com indecisão, faz-me colocar de novo a questão, «-Estou, mesmo…vivo?» Da Avenida de Berlim, onde me encontro, ao Alto de São João, não dista muito, e eu gosto de andar a pé, especialmente nesta Lisboa de agora, onde de quilómetro em quilómetro vejo uma loiraça estrangeira de outras paragens, daquelas que nos fazem fervilhar o sangue e querer copular de forma demoníaca, ou angélica, como preferires. Ponho-me a caminho, faz anos que não vou ao cemitério de referência da minha capital. A última vez que lá estive, na cremação do pai de uma antiga namorada, perdi-me nos corredores entre tumbas arrebentadas e cúbitos aos elementos, pois cadáveres antigos não têm a segurança do sentimento de alguém que zele por eles. Glórias passadas decaídas em esquecimento eterno, tanta história por detrás dos restos mortais das anteriores pessoas ali depositadas como meros traços a negro numa folha de papel branco que visa capturar o pensamento que lhe deu origem. Sempre achei que um monte de ossos andrajoso é ainda assim um vestígio de um quid que merece respeito pelo mero facto de algures na linha do tempo, ter existido, ter sido um processo histórico em forma de gente. Uma dialéctica de ser e pensar como criança, a volúpia suada da juventude e o cinismo do ocaso. Cheguei. Na sala branca e ladrilhos escarlates, algumas pessoas em redor de um caixão, cujas caras me são familiares. Espreito para dentro do caixão e curiosamente não me assusto, com o que vejo. Um cadáver que é mesmo a minha cara. Não posso dizer que sou eu, pois eu estou a ver um cadáver, e o cadáver nada vê, digo eu. Deixa-me processar esta merda. Sento-me numa cadeira ao canto, e esforço-me para que lógica me torne esta experiência inteligível. Estou a sonhar? Que merda de sonho, e parece tão real? É possível sonhar com o vento do qual ainda há pouco vim? Alguém se senta a meu lado. Alguém grande pois consigo ver que as pernas são quase o dobro das minhas, a partir da posição encurvada com que brindo a cadeira com pés cromados. Uma longa veste, de estranho linho negro, arrasta-se em parte pelo chão. Nos dias que correm, todos somos zelosos pela nossa imagem, e pelas nossas roupas, quem seria esta pessoa que vestia roupa vários tamanhos acima do próprio número e que arrastava assim tecido pelo chão? Se não estou a sonhar, será que estou morto e no caixão está o meu corpo a caminho da incineração enquanto estou por aqui aos caídos e perdido? Mas como justificar que ainda há pouco senti o vento no meu rosto, se apenas o rosto de Deus tem existência, pelo menos enquanto vogava sob as águas? Será que o gajo no caixão é apenas parecido comigo? Mas como explicar o telefonema críptico? E a curiosidade que tenho de levantar a cabeça e ver quem se sentou ao meu lado, mas no fundo acho que não o quero fazer pois tenho medo de confirmar que de facto estou morto. Não gosto de fugir. Olho, e os meus medos confirmam-se, um crânio de branco esmalte contempla-me a partir de órbitas vazias, rodeado pelo tradicional capuz cónico. Do negro interno sai uma espécie de riso sarcástico. Arrisco uma frase, «-Confirma-se, morri.» Silêncio. Se calhar a morte não fala, apenas nos faz companhia. Volto a perguntar algo, «-Ao menos posso saber como morri?» Silêncio, e o mesmo olhar fixo para mim, como se me estivesse a pesar com olhos inexistentes. Confesso que me incomoda, mas se de facto estou morto, que mal pior me pode acontecer? Olha para aí, o que é bom é para se ver. Se não fala, deixa-me sorver tudo até ao último momento, pois ainda tenho a minha consciência, isto de saber o que sou ou não sou. A minha família chora de facto em torno do caixão. Anos de ligações emocionais, vertidos em lágrimas que toda a gente deita quando um ente querido morre e percebemos que o nosso grau de alheamento sobre o esquema geral das coisas, é quase total. Um ou outro amigo agarrado à borda do caixão, tenta captar para si o último momento a sós com o cadáver, que apenas já só simboliza uma relação passada e ida entre dois seres que se escolheram nas circunstâncias. Engraçado, nem um dos amores passados aqui está. Nenhuma conquista, nenhuma paixão assolapada de tempos recuados veio prestar o último adeus. «-Ó morte, não achas engraçado que nenhuma das mulheres que amei e que me disseram amar, esteja aqui presente? Acho estranho como no final de contas, das ilusões de paixão ao início e de tudo o que decorre até ao fim, as relações são apenas fingimentos de merda entre as pessoas, que brincam ao amor. Foda-se morri, devia ser perdoado, ou visitado por alguma que olhasse para trás e dissesse que em certa altura desta vida amei este gajo. Nenhuma, dá que pensar não?!» Não esperava resposta, a pergunta era só para mim. Mas uma resposta veio: « - Eu não sou a morte, eu sou a tua morte.» Superado o espanto de ver um amontoado de ossos despojado de carne, fazer vibrar o ar em cordas vocais inexistentes, pensei no que fora dito. «-Foda-se, se és a minha morte, és muito impessoal.» «-E, no entanto, eu estou aqui a acompanhar-te, e as tuas mulheres não.» Esta frase, estivesse eu vivo, seria daquelas que me faria sentir uma pontada no músculo cardíaco. Adeus ó ilusão que vais daqui. Tem razão. Tento desculpá-las. «Elas não têm culpa. Se só amam condicionalmente, ou oportunisticamente percebe-se porque é que é tão fácil ultrapassar a vivência com alguém que se reduziu a um mero cadáver abandonado num qualquer cemitério da memória. Nós é que somos defeitos de fabrico. A investir demasiada energia nervosa em amores faz de conta. Se soubesse o que sei hoje será que tinha gostado de alguma? Se calhar não. E olha que gostei o suficiente para me lembrar de todas. «-Irias ao funeral de alguma?» perguntou-me rindo-se. «-Sabendo, de todas. E até em vida lhes ligaria a perguntar como vais, e a desejar que estejas bem. Não o fiz porque a mulher só respeita a força, e actos comuns de cordialidade são vistos como fraqueza. Como sensibilidade ou segundas intenções que atestam a indesejabilidade genética. Assim é preferível amargar até morrer, com as memórias de amores infelizes que só nos mostram continuadamente que tudo foi em vão, um entretém.» «-O teu tempo está a terminar, a tua consciência termina em breve. Escolhe agora como queres apagar. Com o sentimento de amargura por causa da verdade ou de outra forma?» Pondero na minha resposta. De que nada me adianta lamuriar de como as coisas são. Ao contrário, a suposta capacidade de amar eleva-me acima das meras símias determinadas por milhões de anos de antropogénese. A melhor bofetada na cara é dar-me grato pela experiência e exercitar a mais bonita expressão em língua portuguesa: «Entregar a alma ao Criador». Como se não fosse nossa e apenas algo emprestado. A morte livra-me gradualmente do ego, e portanto os dóidóis mitigam-se com o passar do tempo. Sinto-me deveras grato pelos rostos e bocas, e almas que comigo foram partilhadas. Sem querer sorrio um pouco. Vejo-me envolto em redemoinhos de vento, primeiro forte, que esmorecendo vai fazendo diminuir a luz até à escuridão total que me abraça com mais amor que as paixões passadas que de mim se esqueceram. 'The Sixth Sense' - all rights reserved - fair use -
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