V De prodígio anterior, eu passara a ser o empecilho, aquela bolha de acne que sabemos que não devemos rebentar, mas está mesmo no meio da cara. A vida dela prosseguira e só mesmo por caridade ainda fazia eu parte dela. Chamada por festas deslumbrantes, sob vestidos sedosos com brilhantes, e sorrisos radiantes de concretização social, tinha cada vez menos paciência para a minha existência, quando muito para lhe escolher um telemóvel novo e tratar da inserção do cartão, matar uma centopeia em casa, dar-lhe ideias para bibliografia. Tudo na arrumação estrita da utilidade. Eu próprio olhava para o par romântico de dois anos antes e nem me reconhecia, quanto mais a Queda. O estado de choque era duradouro, pois, quando pensava na forma de tratamento dela, tentava perceber que raio em mim, sugeria tal asco, tal reacção gutural ao quer que fosse que fosse a minha pessoa. Eu? A minha imagem? O que existe dentro de mim que mereça tal desdém e pena. A espiral regressiva lavava-me o cérebro, e ela, presa entre um sentimento de dever e um imperativo biológico que lhe fazia sentir nojo em relação a mim, acumulava pressão como panela de cozedura com carrapito, rebentando em pequenos episódios de puro despeito. Eu não conseguia escrever, estava emocionalmente e psicologicamente desfeito. E numa consulta de medicina de trabalho, foi-me dito que tinha uma arritmia. Perguntei:«-Só doutora? Nem sabia que ainda sobrava qualquer coisa…» Saindo do consultório na Avenida do Brasil, ao apanhar o autocarro para casa, ela liga-me. Um assunto de treta apenas para ventilar com o seu caixote do lixo emocional, ainda considerado para o efeito, porque a sua baixa auto-estima não estava habituada a ter alguém de ouvido sempre pronto para ela. A minha reacção de revolta perante tal fez despoletar uma discussão, na qual senti claramente o meu coração bater descompassado, eu que fazia desporto desde miúdo, que podia com sacos de 50 quilogramas nas obras, e que pegava sozinho em máquinas de afagar, vergado por um rabo de saias. Ia-me convencendo disto através de repetição mântrica, para me preparar para o óbvio, estava tudo terminado de facto, apenas ainda não oficializado. A capacidade de introspecção é algo d lixado. Consegues perceber os teus cordelinhos, mas também consegues perceber como a outra pessoa realmente é, tendo tu, os óculos do amor desligados. Não é muito difícil, depois de passado o feitiço, pois como reza o chavão, sabes quanto gostam ou gostaram de ti, pela forma como te tratam quando nenhum interesse em ti já têm. V Além de depósito de toda a desordm emocional que gerava, eu servia o para ela invisível propósito de convencer-se de que era boa pessoa. Sabia que já não gostava de mim, o motivo era constantemente rebuscado nas justificações formuladas. A verdade é que tinha razão. Eu jogava por um conjunto diferente de regras, ia para a frente de batalha no Somme, com fisgas quando do outro estavam a Schwerer Gustav de 800 milímetros. Todas as mensagens em relação ao sexo oposto, iam no sentido errado, erradicando-me da pool genética, pela consequência das minhas acções. A rejeição do amor Disney, idealizado e até romanesco, espreitava pela esquina, mas ainda assim eu queria amar a mulher. Em curto circuito, o cérebro desfazia-se entre a incapacidade de conceder falhas de espírito a um corpo perfeitinho e rosto simétrico. Ou em perceber que trata-la como delicado milagre, como achava que se devia fazer às mulheres, começando pela minha mãe, era o indicado, e apreciado. As minhas amigas também me haviam dado indicações do que queriam num homem, e vá se lá entender, não funcionava, não era bem assim, não podia estar tanta gente enganada, portanto só podia ser uma falha da minha natureza. A desconsideração dela era tal, que eu próprio já principiara a desgostar dela. Não foi com surpresa, que o fim, me trouxe liberdade. Vim depois a saber que se envolvera com um treinador de fitness, sem barriga de cerveja, ou seja, andou à procura da qualidade genética. Apesar de bonita e bem feita, tinha um feitio desadequado para o mercado da carne, pelo que andou aos caídos, servindo de receptáculo de esperma a uns quantos que não se queriam comprometer com ela, certos claro, de que arranjariam melhor. Perto da idade dos trinta, lá conseguiu desviar um marido de uma colega, com quem assinou um contracto de utilização de útero, por troca de rendimento mensal estável. Vive feliz até agora e o despeito continua, tendo-me em tão pouca consideração que não vê mal nenhum, em ocasionalmente, me lançar uma ou outra tarefa de desarticulação argumentativa, de fulano ou sicrano que lhe expuseram a ignorância que não deixa de tentar mascarar. VI As minhas crenças são escolhas minhas, sempre foram, não posso culpar ninguém. Mugi as letras do amor, para descobrir que as tetas estavam secas, e é risível, porque é só mais uma parte do embuste. Dourei cada paixão com o brilho da minha imaginação, apenas para fugir do demónio que pasta dentro de mim. Fora de mim o vazio infinito das subjectividades dos outros. O amor no qual eu depositara a minha fé de redenção eterna para nós os dois, esboroara-se na minha crença de inadequação esculpida por meu cinzel. As forças em acção nelas são também inacessíveis, e mesmo que lhes pudessem tocar com uma mão, não o fariam. Mas o pior, sabes, o pior nem é o abandono. O pior é aquela postura de asco, e a contradição plena de sistemas de crenças. Para ti, a quem determinada nunca será indiferente, cabe-te um mau bocado. A maioria reduz a paixão a uma mera troca de fluidos com algum conteúdo emocional. O inadequado fica para trás, sem alguma saber que o seu crime foi existir. E apaixonar-se por gente morta. VII Hemingway dizia que bebia, para tornar as pessoas mais interessantes. Eu forço-me a apaixonar. ////// As ruas de Lisboa ornadas de alfarrabistas Percorridas por nós de mãos dadas Recolectando livros para as nossas futuras estantes Os dias quentes e gordos Regados pela saliva dos beijos Que não mais irão ver A nacionalidade de nós os dois Espalhada Pelas bandeiras cardiais.
0 Comments
III
Quanto tempo demoraria a perceber que eu não era o prémio que aparentava ser, que o pardieiro a que chamo casa, o óxido de ferro a que chamo carro, revelassem afinal, a minha origem social, a minha incapacidade em gerar algo melhor para mim e para os meus. Como os olhos dela contrastaram inconscientemente, afinal eu era de um mundo um pouco menos farto. Mas prometia imenso, mas de que me adiantava passar por um ‘pequeno génio’ em algumas tiradas e presença de espírito, em algumas posturas filosóficas ou literárias, por algumas introspecções expressas em voz alta, quando a realidade material me retirava quase toda a credibilidade e dignidade, aos olhos, se bem que as bocas o negassem… A ditadura da realidade material, aquela que afinal apalpamos, fazia esboroar a charada. Eu começava também a suspeitar que tanta elaboração de discurso, soava afinal a um papel de regatear sexo e afeição, convencer a gaja, por via de palavras, cheirava a um orgulho deslocado, bem como a uma pressão de desempenho desigual a favor da mulher, reforçando-lhe o papel de prémio, e consequentemente, o meu papel de submissão. Amor transaccionado, significa que não valemos por quem somos, mas pelo que damos ou fazemos pelo outro. Ninguém engana ninguém, nós é que nos enganamos a nós próprios. Dissolvendo-se a charada gradualmente na familiaridade, começa então a descoberta que é oriunda da procura, da procura de motivos para justificar um abandono que é decidido à partida. Algo no seu âmago lhe diz que merece melhor, que se iludiu com uma sombra, com uma fantasia, que não corresponde À verdade, um logro. Perde o medo de perder, e começa a testar cada vez mais intensa e sistematicamente. O humor cada vez menos jovial e interessado, os pedidos para tarefas que encarnam os truques de animais amestrados. Ligava-me e dizia que estava enfadada, aborrecida, ou a braços com um trabalho e que talvez fosse necessária a minha avaliação. Isso era suficiente para eu pegar na pasta escolar, passe social e ir da zona oriental de Lisboa para a Linha, com o meu leitor de música e phones no ouvido, variando de música que exaltava o amor ou heavy metal agressivo, que é o que um eu superior a mim usa para me dizer que algo está mal. Perante estes sinais racionalizava, a fraca condição de cabeça dela, que isto as mulheres são sensíveis e incompreensíveis, temos de as tentar entender e proteger. No fundo, mascarava a dependência do sexo e de um corpo bonito para mostrar na rua, se alguém mo dissesse na altura, não acreditaria e desmentiria completamente. As perguntas com que me interpelava, os assuntos que partilhava comigo eram um pouco ímpios e infantis, perdera toda a consideração anterior, e eu sentia-me esgotado e sujo após as conversas, até que num dia de epifania, me surge a expressão ‘caixote do lixo emocional’, isso, era o que eu sentia para o que ela me usava. A ideia do amor fusional e escrito na eternidade das estrelas, começa a corroer-se, pois se o amor é uma dança a dois, não se pode dançar sozinho com um pau de esfregona que era como eu me sentia. O maior aliado delas, é sempre o meu cérebro, que conspira contra mim, na sua missão suprema que se sobrepõe a tudo, procriar. Mesmo que a arrepio da dignidade pessoal. Que interessa o amor próprio perante um útero que nos dá a concretização da imortalidade possível? Que se lixe como tu sentes, faz tudo para manteres o sexo e o útero, nem que tenhas de rastejar e lamber sapatos, ou pior, mendigar por sexo. Lembro-me de um dia em que ela na sua secretária, escrevendo, e não me ligando nenhuma durante horas, e eu feito estúpido para lá tinha ido por causa de um seu caprichoso pedido (não queria estar sozinha em mais um drama formulado na sua própria cabeça) me senti injustiçado e lhe coloquei a pila, tesa que nem um cabo de machado, em frente à cara. Que gajo nunca fez isto? Achando que as mulheres ficam excitadas como nós, exultantes por esta forma de revelar a exuberância da vida e a capacidade do portador. Elas também não entendem porque é que os homens gostam tanto de mostrar a pila. Os dias que passava com ela, ela tinha o seu comer, e eu pouco ou nenhum. Ela não se ralava com a alimentação, e a mãe dela, achava no íntimo, que não ia estar a sustentar nenhum marmanjão, sem amor próprio que tão facilmente inundava com a sua presença, a casa dela. Ambas começavam a ver-me como móvel da sala, daqueles que não se manda fora, porque ainda sustém um vaso velho no canto da marquise. Não era que a sua mãe fosse uma má pessoa, não era nem é. Pura e simplesmente, algo dentro dela lhe dizia que não ia fazer nada por um homem, nem que fosse o da filha, não ia cozinhar, especialmente para um tipo sem graça, e não prémio, como eu. Mas esperava ser entretida, passeada e ter este ou aquele jantar pago, pelos homens com quem se envolvia. Vivia alegre, entre a fruição da sua música, os serões entre amigos sofisticados, e um ou outro engate, ou pico emocional que a vida burguesa urbana nas raias lisboetas ainda permitia. Valia-me o queijo e as tabletes de chocolate que ia comprar ao supermercado antes de chegar a casa delas. Passei alguma fome, e explicava a mim mesmo, ‘-É por amor…’ Quando vinha à minha, nem que tivesse de a levar a comer fora, ou fizesse a comida, eu e a minha mãe não falhávamos com refeição certa. Poder-se-ia pensar que faria tudo para garantir a proprietária do útero do filho. Mas não, ou talvez só um risível pouco. Gostava das miúdas que eu levava para casa, menos da Susana. Dessa nunca gostou, apesar de a achar muito bonita. Cenas das mulheres. Via-me trazer para cas as vítimas como gato doméstico que parece querer ensinar o dono a caçar. Eu pensava trazer pintassilgos e ser um grande gatão, mas durante a passagem das horas, as pequenas aves, por algum truque de alquimia, transformava-se em ratazanas agressivas, e ausentes. Uma vez fiz uma birra com ela, interpretava a sua secura de ofertas como sovinice, não tinha a capacidade de ver que ela já não gostava de mim, tinha pena, pois via que eu gostava dela. Conspiravam ego e idealismo, contra mim. O ego dizia-me que sou tão extraordinário, que a razão do comportamento dela não pode ser a falta de amor. O idealismo indicava o caminho no qual a razão do amor é ele, próprio e valendo por si, e que sendo raro, que sendo uma conjunção irrepetível no espaço-tempo, é forçoso que se aguente e lute por ele. A rarefacção do afecto físico levou-me a procurar carinho e sexo noutras paragens. Não a larguei porque não me lembro de ter arranjado alguém fisicamente mais aprazível nessa altura. A Lúcia era melhor na cama e desejava-me, mas algo nela soava a falso. Expunha um sobredesejo como elas gostam de exprimir um sobreamor, mais para nos convencer que gostam de nós, que propriamente por gostarem efectivamente de nós. Após noites de cauboiada, o cacilheiro deixava-me no Cais do Sodré, vendo Lúcia ir para o trabalho e eu com uns remorsos de todo o tamanho. Que é o que acontece até hoje quando traio alguém. Numa dessas noites, logo ao início com Lúcia, eu ainda achava que foder era inserir a carne hirta o maior número de vezes possível, na vulva receptora de forma a provocar mecanicamente um orgasmo e assim garantir o afecto e respeito que se haviam perdido, pelo motivo menos óbvio para um idealista, o motivo material. Eu culpava a minha personalidade ou atavismo, ou falta de roupas caras e sofisticação, mas depois observava a forma como ela e a irmã falavam do namorado desta última, que não sabendo citar de cor Rimbaud, tinha muito mais posses do que eu, era alguém do nível social ‘delas’. De modo que o sexo raro, era gasto nesse objectivo, dar-lhe um orgasmo que a sua psicologia impedia. A repetição rítmica prosseguia até ficar completamente seca e eu continuava pois ao longo dos meses justificara a sua desidratação vulvar, com problemas fisiológicos. O resultado era um pénis inflamado e com pús corrosivo, que me incomodava e fazia mictar a qualquer hora, andando constantemente a lavar o marsápio nas casas de banho da faculdade e dos cafés finos lisboetas onde ia ter com amigos e colegas. Numa dessas noites com Lúcia, coitada, que nunca levei a sério, a dor aliada à comichão não me deixavam revelar toda a expressão do meu desejo horizontal. A gaita pedia por uma limpeza maior que água e sabão. Inventei uma desculpa para o facto e ocorreu-me a feliz ideia de despejar álcool etílico, que jazia ali próximo. Lúcia olhou-me com uma cara de estranheza, mas não queria naquela fase, desafiar-me a assertividade que se esforçara por incentivar, de forma a que me sentisse bem por ser homem, com ela. Condicionando-me, por sua vez, a associar bons sentimentos à sua presença, tal como eu queria associar bons orgasmos ao meu outro amor, para que ficasse comigo voltando ao que éramos no início. «-Passa aí o frasco.» A dor lancinante foi tal que só podia competir com o esforço que fiz para manter a compostura, o meu inconsciente já me sussurrando no ouvido que não podemos dar parte de fracos, senão era mais um pito útero a afundar a depressão da nossa rejeição. «-Estás bem?» Recorri a festas e beijos para desviar a atenção, esticando o rabo para trás e para a frente para poder lidar com a dor. Tirei a gaita para fora e pedi para que soprasse nela, e ela achando que eu estava a gozar, começa a sorver, aumentando a agonia, pois o calor do céu da boca e da língua só vinha acentuar o contraste da sensação de ardor, que a frescura etílica a secar mitigara. Como fazer agora para evitar magoar os sentimentos dela? Deixa-a chupar, acontece que a dor me fez murchar como criança triste deixada à sombra, ela assumiu que era por causa dela, por causa do aparelho que tinha nos dentes. A minha próxima missão seria dar-lhe um fodão, para restabelecer o seu amor próprio, a ver se não me esquecia de manhã. Mas não, eu estava com a pila naquele estado e com a alma prestes a estilhaçar-se por um desgosto amoroso que se aproximava. Lúcia também se começou a afastar, como forma de preservar o seu amor próprio, pois se uma mãe de namorada não cozinha ou nos paga o jantar, uma potencial candidata não se esforça demais para garantir um gajo aparentemente igual aos duzentos que lhe entopem o telemóvel com propostas. Ò amigo, não queres há quem queira. Solicitada por engravatados, não era eu com calças à boca de sino, barriga de cerveja e cabelo à tropa, citando Heidegger, que a ia impressionar. Estava ainda preso numa relação de codependência, onde lea nitidamente esperava que Deus lhe lançasse alguém melhor ao caminho. A tal birra que fiz com ela, por achar que entre quem se ama não existe lugar para ser-se forreta, (e tenho razão, mas ela já não me amando…), e queria forçar, tal como o orgasmo, uma prenda da parte dela. Andava de olhos num cd do Billy Idol, havia-lho mencionado ao de leve e esperava que ela mo oferecesse, como acontecia quando ela me exprimia o desejo de algo. O meu amor afigurava-se contratual e com base num sistema de trocas, o que só me aviltava mais a mim próprio, para comigo mesmo. Mas também sabia, que no fundo, só queria o retorno a um estado anterior de encantamento, incapaz de lidar com as coisas como elas são, esperando que fossem como deviam ser. Nem era pela merda do cd, que o compraria facilmente. Era apenas pela destruição que eu tentava adiar, da esperança de um amor redentor. «Quero deixar escrita uma confissão, que ao mesmo tempo será íntima e geral, visto que as coisas que acontecem a um homem acontecem a todos.» JL Borges I A história de um amor feliz equivale mais ou menos à vida de um ente querido, bicho ou pessoa. A vida nos estágios iniciais, promete muito, ejacula alegria e viço, que são no fundo meras auto-celebrações. O encontro onde jaz algum tipo de sentimento, acaba sempre por degradar-se, dar origem a outro, ou morrer, tal como o receptáculo desse afecto. As relações alteram-se, ou acabam. Seja pela morte, seja pela vontade. Vemos o vizinho na rua, a quem no decurso dos anos aprendemos a cumprimentar, uma ou outra vez cogitando na razão desses ‘-Bons dias. ‘ que lançamos aos outros, que essa saudação emerge de um acto mecânico instaurado pela sociedade de costumes, cristalizado sobre a vontade de duas pessoas celebrarem a presença mútua num espaço e tempo, uma espécie de tradução de «-Seu cabrão, bom dia, estás vivo? Estamos vivos e que continue assim, até morrermos daqui a muitos anos.» Pela boca, e mecanicamente apenas sai «-Bons dias vizinho!» Diz a ética amadurecida, que difere esta dinâmica com os humanos menos viajados em torno do Sol. Os bons dias ditos a adolescentes ou jovens adultos, é uma mera formalidade que amiúde cospe de regresso um eco de cordialidade do outro lado, na urbe desta orbe. O jovem corpo é alérgico a ruminações sobre a própria morte, ela é-lhe tão estranha com um copo de água fresca é no meio do deserto. A morte dos outros, ocorrida ou adivinhada, não traz grande carga metafísica, apenas uma ténue suspeita de que o outro que morreu, ou aqueloutro que morre, merecem tal, para expiação de uns quaisquer pecados cometidos. O jovem pensa conceptualmente a morte, mas não tem a experiência da mesma na carne. Dedutivamente é-lhe óbvio, que tudo acabe um dia. Mas a janela de futuro recém aberta ao seu caminho, transbordante, grandiosa, transforma aquele ponto preto lá ao longe, num minúsculo grão de Cosmos, que com o passar dos cada vez mais curtos dias, se agiganta até se tornar a inevitável parede ou túnel ferroviário. A morte parece ao jovem corpo algo tão estranho como uma rodela de gordura num mar de água limpa. Afogados em hormonas e neurotransmissores com nomes esquisitos, que ora aceleram o ritmo cardíaco, ora nos afundam numa depressão, ora nos elevam numa mania, os jovens corpos estivais, ora retribuem o cumprimento, ora não retribuem, consoante o comportamento hormonal que não entendem. Olha para os mais velhos não como receptáculos de experiência desta merda de estar vivo, mas como cadáveres adiados que de alguma maneira se recusam a perecer, como humanóides ultrapassados, despojados da única coisa que justifica o querer estar-se vivo, cá, todos os dias abençoando o Sol. Aos olhos do novo, o velho é algo de ultrapassado pela evidência da passagem do tempo enquanto sucessão de consciências, o velho ultrapassado por um mundo que mudou, um corpo sem utilidade no mundo requentado da vertigem e sentimentos ao rubro. Essa gente de outras eras, alinhada em fila para o abismo, um passo de cada vez em direcção ao abismo da obliteração e do esquecimento. Condições humanas irrepetíveis, ao que parece, perdidas para sempre num turbilhão de nascimentos e mortes. Mortos a prazo. Mortos a prazo que nos passeamos pelas ruas, recusamo-nos a morrer, a sair dignamente nas nossas condições, não. Inventamos histórias que nos convençam que o dia de amanhã valerá ainda a pena testemunhar, que progredimos no espírito, esse malandro que só vale alguma coisa no ocaso do corpo. O que nos faz continuar a respirar, mesmo sabendo que não viveremos mais um amor, que a ‘vida’ cada vez nos entusiasmará menos, que as coisas cada vez menos notáveis serão? Como continuar vivo, sem a capacidade que a vida tinha de nos seduzir, capacidade que decresce exponencialmente ao ritmo que mergulhamos na ideia de que ela, a vida, outrora foi diferente do que é agora. Não foi. O nosso corpo é que mudou. Os nossos pensamentos são o nosso corpo a falar. Como se num prédio abandonado e escuro, uma janela onde só sobra o rectângulo da guarnição, deixasse entrar a luz do móvel e previsível Sol, que rasteja iluminando o decrépito soalho bafiento e com cheiro a urina de rato. Cada dia assinala a sua passagem, cada vez mais curta ou longa de acordo com a translação da Terra. Assim se sucedem as gerações, iluminando o espaço escuro por fugazes momentos, oscilando entre elas, da escuridão, ao meio-dia, ao ocaso, empurradas por um orbe que não conhecem ou controlam, inexorável, para as margens de uma janela em ruínas, até que cada fotão de glória passada se lance de novo na escuridão e no esquecimento, pressionado pela luz que agora foge prometendo voltar amanhã como amante disputado por outros afectos. Sorrindo amanhã, mas a outros, já não a nós que temos também de enterrar a esperança. Os que agora sentem estar no umbigo do mundo, controlado por gente velha para explorar gente nova, reinventam a mesma sopa de sempre, os trejeitos mudando pelas eras, as ideias, as roupas, para proteger esse bem, essa unicidade no tempo, essa celebração do zénite corporal, esse privilégio, na marcha imparável de se ver o Sol por momentos no cume de uma montanha aonde chegámos saídos de uma prisão, e que passa breve até iniciarmos a viagem de descida de uma vida abreviada. Nesse clube só são admitidos membros que partilham as mesmas características, como se o envelhecimento fosse uma lepra que apodrece os corpos, infectando o ambiente, de jovialidade e disponibilidade para celebrar. Por isso dizemos os bons dias aos mais jovens que conhecem o caminho ascendente, e que não sabem senão discriminar. As relações entre as pessoas pautam-se por uma sucessão de adiamentos e de ódios, ao mesmo tempo, de prolongamento dos prazeres. Quando chega a sombra do Sol que na penumbra auspiciosa se deita no canto do céu para desaparecer, é que ficamos apenas com a recordação dos dias luminosos passados entre prazeres tépidos de recordação de todos os desgostos provados, relativizados pela luminosidade do astro-rei. II Queria fazer-lhe uma surpresa. E garantir ao mesmo tempo, algum grau de certeza para mim acerca do sacramento que iniciáramos um mês antes num hotel de Cascais. Pelo último nome dela, indaguei na terra de onde me dissera ser a sua família. Algures nos arrabaldes lisboetas. Procurava o que fosse esboço de uma morada que ela não me dera e não valia a pena ligar a perguntar sob condenação de estragar a surpresa. Na rua principal, onde quer que perguntasse, toda a gente conhecia quem eu procurava, pelo nome de família, e ao seguir as indicações para o que me parecia ser o mais próximo de onde morava, perguntava-me a mim mesmo que tipo de sacrilégio estaria eu a cometer, misturando a minha classe social, com uma vários furos acima, só possível por via de frequência na mesma instituição universitária. Chegado à porta de uma extensa quinta, pálida ruína do que parecia ter sido em tempos mais recuados, puxo um pequeno sinete que era proporcional à distância de audibilidade de gente no espaço habitado. Ninguém respondeu. Fiquei sem bateria no Motorola, e desloquei-me alguns quilómetros até encontrar um café que me permitisse contactar por linha fixa. Lá se ia a surpresa. Ao discar os números, um misto de sentimentos, a certa estadia com ela, que não se rogaria a convidar-me, talvez quanto muito, desqualificando-me por este possível abuso de privacidade e distâncias. Por outro lado, o sentimento emanado de algo mais elevado em mim, de que esta perseguição do ‘amor’, quando tinha leituras para fazer na minha secretária, era afinal, uma degradação e o verdadeiro sacrilégio, só mascarado com as duas ideias que o cabrão do meu ego me leva sempre, que a vida é curta e temos de aproveitar, e de que o amor é razão mais que suficiente para valer por si mesmo. Sobrepondo-se a tudo. Tentamos, nós os conas, agradar sempre às mulheres, com algo que vai além de nós, aquilo que podemos fazer por elas. E se sabemos claramente que o fastio, o enfado, o aborrecimento, são escolhas que tomamos ou não, no caso das mulheres damos o litro para que não se aborreçam, não vá dar-se o caso de preferirem o outro a nós. Dei comigo a pensar se não era essa mesma, a razão de querer fazer uma surpresa. Pairava a dúvida de que o que me tinha levado ali era não o desejo de estar com outro ser humano, mas a artimanha de manipular a sua percepção, para provento meu. E nisso degradar-me. E degradando-me, errar o alvo. Emparedados entre duas lâminas, a nossa exigência ética e dignidade pessoal, e a neofilia feminina com uma pitada de competição sexual. E a incrível facilidade com que se aborrecem connosco, caso não sejam cumpridos os mínimos, ou caso pertençamos à maioria que se rala com o seu enfado. Na hierarquia masculina, cada homem é um caracol que se arrasta lentamente pelo gume de uma afiada navalha. Tentando manter o equilíbrio entre o enfado que possa provocar na mulher, para tentar garantir a cópula, a paz domiciliária, o cessar-fogo das agressões verbais, e no fundo, evitar o abandono. Tentando manter o equilíbrio entre o enfado que possa provocar e o seu sentimento de dignidade pessoal, que por sua vez oscila entre o valor que o indivíduo dá a si próprio, o conhecimento da natureza humana e o condicionamento social que lhe sussurra constantemente ao ouvido, que a mulher, a vagina, são o prémio. Coacção por contínua repetição, torna-se segunda natureza. Claro que já viste estes homens, nas viagens saloias de fim-de-semana, passeando as mulheres dentro de veículos, onde o que mais conta é a deferência para com elas, na escolha de um novo trajecto, que nunca seja a repetição dos anteriores. Deve o tipo ter um alargado conhecimento de cafés, praias, discotecas e hotéis rurais, para trazer o carácter da novidade à relação, mesmo que na relação baste à mulher aparecer, de preferência bonita. Liguei por fim, para ela, enganando-me à primeira num dígito do número que ela me deu, quando estivemos à conversa, sentados depois de uma aula, no Anfiteatro principal da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Lisboa. A voz que surge do outro lado indaga sobre a minha autoria, e ao aperceber-se que sou eu, demonstra-se alegre e receptiva, e não a conheço o suficiente para saber se é sincero ou cordialidade que traveste um sentimento de estranheza e imposição. Diz-me para regressar ao portão da quinta, ao que respondi que já lá tinha estado, tocado e ninguém me respondera. «-Não ouvi, agora estarei à tua espera.» Quer dizer, atenderam, uma cadela bem grande, cuspira-se toda para me tentar ferrar o pé por entre a folga inferior do portão, e só jogando com essa intenção dela, consegui através de coordenação motora, chegar ao sinete e puxar rapidamente antes que a cadela percebesse que a mão em cima estava dentro e acessível, do seu território. Ao entrar no espaço, disse-me que prendera a cadela noutra área da quinta. Conduz-me para o interior habitacional, e a meio do trajecto de me mostrar a casa, abraçamo-nos muito apertados um no outro, e beijamo-nos, só terminando no amparo que a cama dela oferece ao peso da gravidade dos nossos corpos, revelando-se o mundo de forma explícita, no reflexo do espelho onde nos vemos exprimir durante horas. Uma almofada sob a minha nuca, e ela por cima, permitem-me olhar o espelho defronte, em toda a glória hardcore de mim dentro dela, da sua vagina, ambos imersos na convicção de que é isto, é este o momento de redenção de toda a solidão passada, mosto dela escorrendo pela minha verga dorida de tanto congestionamento sanguíneo, mosto com cheiro a vinho novo que os mais ingénuos identificam sem dúvidas de ser a mais pura expressão de desejo genuíno. Apenas nos largávamos para mictar e comer o que eu fazia na cozinha, para comermos. Andava pela casa de outros em boxers e meias como gosto de fazer nas casas das minhas mulheres, mexendo o arroz ou a massa, e olhando em redor para tentar adivinhar a vida costumeira, que está ausente na minha presença. Tornámo-nos inseparáveis, e enquanto eu fui novidade, ela baldava-se às aulas comigo, para irmos para as praias radiculares em torno de Olisipo, almoçávamos e jantávamos com amigos e familiares de ambos, e alguns até me diziam «-Eu gostava que alguém gostasse de mim da maneira como ela parece gostar de ti.». Ao que eu nada respondendo, só podia lamentar cá dentro, «-Como é possível ser fiel a alguém, que sabemos indubitavelmente, está connosco a prazo, e gosta de nós condicionalmente?» Levanto o cu da cama, desço os degraus, e vou mijar.
Bebo meio litro de água que deixei numa garrafa de vidro desde ontem. Faço jejum desde as 20 horas da noite passada. Dormi com um peso no coração, fiz o teste de apneia do COVID, aguentei 2 minutos sem respirar. A falha cardíaca nada tem que ver com doenças fisiológicas. Quer ver que tem a ver com as putas que frequentaram o meu corpo e alma? Putas, porquê? Fizeram-te mal? Ou tu é que não sabias o que a casa gasta? Que mal te fez o gajedo que não tenhas merecido pela tua natureza menor? Se o padre Disney te ensinou, que tens de culpar as gajas por agirem de forma paleolítica? Vais para a guerra com uma fisga com pedras almofadadas. Não culpes o jogador, culpa o jogo e quem te enganou em relação às armas permitidas. Pego no moinho, que mói os grãos de café. Não posso beber café, mata-me, acelera-me o ritmo cardíaco, indago se o salivar pelo café matinal não é uma sede de desaparecer, uma vontade de me matar a mim mesmo. Após bebido fico hiperactivo e agressivo, saio do carro em disputas de trânsito e dou cabeçadas em taxistas que acham que o piso betuminoso é deles. Sentado ao computador compilando a lista de músicas numa pen, que colocarei no rádio do carro com que farei os 3000 quilómetros que me levam a Copenhaga porque tenho de levar merdas para o apartamento e, portanto, não posso ir de avião. Que esta merda do Covid passe, não tenho paciência para os dias que passo na estrada. Lembro-me de escrever um texto de merda a relatar o que sinto, para que olhos alheios na internet acedam aos sentimentos anónimos de um qualquer cabrão da internet. O texto não está a sair como quero, uma das minhas namoradas, liga-me, é a Solange, brasileira de Fortaleza. Que me quer ver hoje, hoje não posso, não estou com paciência para ninguém. Foda-se. Tenho de sair de casa estou a dar em maluco. Saio, já tenho a playlist completa, que me enfada ali por alturas de Namur, a meio, portanto. Após 18 horas de condução. Vou ao Aldi, compro cerveja biológica, emborco duas garravas de sete decilitros e meio. O álcool rés vés Campo de Ourique afoga-me as inibições. Ao regressar a pé, a casa, pelo caminho onde a malta leva os cães a defecar, onde passo sob as arcadas onde a malta sacode os lençóis púbicos da noite anterior, ou as toalhas amigalhadas do almoço, vejo 3 indivíduos entrando num café fechado, com papel vegetal forrando as vitrines transparentes antes do confinamento. Olá, transgressão me chama. Bato à porta. Respondem que estão fechados. Digo «-Ou abres essa merda ou ligo já para a esquadra.» Abrem. Entro. O café está cheio, de gente que finge ou não se olhar com olhar de reprovação, ou com indiferença de que só foi ali para tomar um café. Sento-me na última mesa ao fundo ao pé dos lavabos, peço uma cerveja preta, tremoços e que as venha trazendo conforme eu vá bebendo, que no final paga o multibanco. Sairei daqui de gatas, é uma promessa. Decidido a beber para esquecer, como tremoços para amenizar o impacto etílico no neocórtex. Uma mão pousa na mesa e me pergunta: «-Posso-me sentar?» Olho para cima e vejo Urraca. Urraca foi minha colega na C+S. Lembro-me dela, bem, pelo nome. Ela disfarçava bem quando gozavam com ela por causa do nome estranho, bem antigo pelo sinal. «-Senta aí.» -disse eu. Fico a olhar para ela, com cara de ébrio, compondo todas as memórias passadas ao lado dos motivos potenciais que a levaram a identificar-me e desejar sentar-se ao meu lado numa tarde de Inverno na periferia lisboeta. Após a conversa da treta que equivale a preliminares, perguntei: «- Porque te sentas ao meu lado? Nunca me ligaste nenhuma na escola ou na idade adulta. Qué passa?» Encolheu-se para dentro de si mesma, pois a curiosidade que a motivara esboroara-se numa sobreanálise minha. «-Olha João, tenho lido os teus textos, e tenho uma opinião sobre os mesmos.» Olá. Foi directa ao assunto. A forma como entoou o que disse, preocupou-me. Alguém que sabia do que falava? «-Venha ela.» «-Acho que continuas a falar do ‘gajedo’ com quem te cruzaste, porque é de certa forma uma maneira de se te veres superior a ele. Ao continuares a falar sob textos, das gajas que comeste ou te comeram, evidencias a tua superioridade por não as esqueceres como elas te esqueceram a ti, e por isso te sentes sujeito a uma lei humana superior que não coincide com a reificação, numa mundividência que despreza a relativização dos outros num determinado espaço-tempo em que vives.» Foda-se. Aproveito que o dono do café renova a frota de Sagres pretas na mesa e vejo no Facebook do smartphone, qual a formação da senhora Urraca Silvana. Professora de Línguas e Literaturas Modernas. Foda-se, fui para o MMA à espera que os oponentes desconhecessem grappling. «-Olha, queres passar algum desse espaço-tempo a revirar os olhos a olhar o estuário?» Eu esperava que se negasse e me descartasse por suposta falta de respeito. Fazia uma ideia de onde ela morava, e por isso flaei de fornicar olhando as águas azuis do estuário do Tejo. «-Bora, vamos no meu carro.» Foda-se. Chegado à porta do Skoda dela, olhei para ela e disse: «-Mas pensas que me esqueci dos teus critérios de selecção de há 30 anos?» O Sol põe-se a Oeste, para ele caminhei, agarrado à pélvis e à vingança da treta. «-Pára! Estás a fazer-me cócegas!» O lençol branco de cetim é por mim puxado de forma a expor mais carne branca onde o roçar a minha cara com barba de 3 dias provoca o contorcionismo que me diverte a mim e desespera a ela. Que frescura entra na alma de um homem quando um riso jovial e um desabafo de contentamento com a existência sai da boca da amante que regozija por ali estar. Sim, homens e mulheres podem morrer precocemente por excesso de passado, quando temos mais tempo vivido que tempo por viver. Quando a legião de mortos queridos, começa a tornar-se considerável e do outro lado chama por nós. Não digas a ninguém, mas não é o teu carrinho de marca, a tua casa onde bebes chá quente nas noites frias com peúgas felpudas, ou a tua roupinha bem arrumada que assenta bem no teu corpo para impressionares outros com pele maquiada e dezenas de artefactos pendurados nas orelhas, mãos e pescoço – nada dessa parafernália de merdas é o que importa. Primata de carbono, o que importa é a rede de relações que desenvolvemos com os outros. A forma como lidas contigo e com aqueles com quem te cruzas. Podes ter falhas de carácter, mas tens de as enfrentar de frente. O que importa é a verdade, a congruência e a aderência a um conjunto de princípios. Não podes ser um cabeça de papoila que marra com os cornos no vento às quatro direcções, só porque lhe dá o vento. Tens de te determinar, porque determinar é uma expressão de quem és. Não tenhas medo de falhar. É o medo, que nos impede de desenvolver relações deste tipo. O medo de sermos rejeitados, desconsiderados. Mas também nós rejeitamos a vida. Aquela ou aquele que achávamos que ia estar connosco para sempre, decidiu ir-se embora, rejeitando-nos e rude golpe deixando no nosso amor próprio. Achamos que éramos perfeitos um para o outro e que pelo outro ter rejeitado a nossa pessoa, algo de errado fizemos. Algo de tão errado que vai contra o que era suposto ser. E então daí para a frente, passados a rejeitar a vida, como alguém que no tricot continua a tricotar a camisola, sabendo que deixou um buraco visível, bem no peito, para trás, sabendo que nunca ficará nada de jeito. Cicatrizado para a vida, tudo o que vem depois já não tem apelo para o espírito. O que importa é o intangível. Marras com os cornos numa parede, por causa de um cabrão ébrio que espetou o carro contra o teu e te fez bater num poste de electricidade que espalho massa encefálica pelo asfalto, ainda a espreitas antes de exalar o último suspiro e reconheces nos pequenos montículos as recordações dos beijos que deste na praia, num outro o rosto da tua mãe, ou um abraço do teu pai, num outro jazendo aos elementos as memórias da primeira vez que te deitaste num tufo de relva com os botins azuis e amarelos e olhando o céu choraste com o belo azul que sorria para ti lá do alto. Fazem-te um velório onde os teus entes queridos que sobram cá deste lado, dispostos num círculo onde o teu corpo encaixotado, está composto por um fato que te fica mal, e só o rosto parece normal, cozido às três pancadas pelos gajos da funerária que arranjaram o cadáver para não parecer tão desfigurado, e deixar que as pessoas depositassem um último beijo sem asco ou maior aflição, na pele fria que se vai decompondo. Como em ondas concêntricas, as relações que desenvolveste com as pessoas, são identificáveis no velório, as com quem eras mais próximo, hesitam em afastar-se muito dos restos mortais, as que te conheciam apenas, como figura que passava amiúde na rua dizendo os bons dias, não se sentem engatadas no mesmo registo emocional das que choram lá dentro, e vêm cá para fora fumar um cigarro e comentar os motivos da morte, após manifestarem o pesar aos mais inconsoláveis. Já nada te importando, apenas vês o tecto branco com uma ou outra teia de aranha, e enquanto estás na fila para passares a luz ao fundo do túnel, lamentas teres estado tão entregue à tua estreita compreensão da vida, que deixaste de ver os outros como igualmente prisioneiros de uma percepção menor. Lembras as merdas que fizestes aos outros e os crimes que cometeste contra ti. Recordas o ódio, a raiva e o choro continuado, por causa da incompreensão acerca das filha-de putices que achas que os outros te fizeram. Vem o Criador com a Sua mão pesada dar-te um estalo no focinho, de realidade. Tipo, olhá aí filho da puta, foi para isto que te dei o espírito? Para o subordinares ao ego e achares que tudo o que te fazem é mesquinho e pessoal? Achas que os outros também não são tapados, e imbecis e limitados, e a braços com os seus próprios desafios? Seu merdas, não vês que recebeste uma dádiva, um dom, um milagre, que jogaste à rua só porque as coisas não iam correndo como querias que corressem? Que fizeste ao sentido de humor que te dei, à infinita paciência e À força de conseguir estar de peito aberto a cada indivíduo novo, que te aparecendo não seria alvo de desconfiança por experiências anteriores? Antes de taparem o caixão ainda dás por ti a pensar que o teu ego, mesmo depois de morto te continua a querer proteger, alterando-te a percepção da realidade. Porra, estás morto e ele ainda traz tudo a ele para ser interpretado. Que raio interessa isso tudo agora. Não mais continua o jogo. Não mais cheirarás uma flor ou verás lúpulo crescendo na beira de uma estrada rural. Não mais serás escravo dos outros que te fizeram mal, nem néscio aos que te fizeram bem. Não mais darás poder de uns sobre ti, e desprezo de ti para outros. Os torrões de terra caem sob a madeira, ainda alguns gritos lancinantes de dor, dos que te vêem desaparecer de vez, perdendo a companhia do teu cadáver, a luz desaparece e recordas o círculo completo. Voltas ao saco de plástico preto de onde saíste quando nasceste. Apenas consciência, escutas manhã após manhã, o chilrear dos pássaros lá fora, os aviões que sobrevoam o ar em direcção à Portela, o barulho irritante das Famel dos bêbados que se dirigem ao mata bicho matinal de bagaço, que lhes permite superar a balança dos anos que ficaram para trás. Sabes que outros vivem a eternidade, dentro de caixões ao teu redor, o cemitério está cheio de gente.Mas ninguém fala uns com os outros, não conseguem. Morrem, que é a vida dos mortos na morte – tal como viver é a vida dos vivos na vida – sozinhos e em suplício. Não existe maior inferno que ter a consciência da vida fora de nós, mas não querer ou poder determiná-la através do amor e dos nossos cinco sentidos. Uma consciência de algo externo a si, condenada apenas a ser consciente de si própria através de um outro incognoscível que não ela própria. Dando em loucos, já só pedimos que a consciência pare, que Deus este que nos condena à eternidade com uns espasmos ocasionais de vida, para que saibamos o que deixamos para trás, que maldade profunda, limpa, eterna, esta. Nada, nem uma palavra, nem uma explicação, Deus não fala contigo, e nem chorar consegues, por não teres valorizado o que realmente contava, entretido por quaisquer das ilusões a que aderiste. O teu carrinho novo apodrece ao céu, para ser desmantelado num sucateiro, a tua casinha é vendida a outros que reeditam as sessões de foda que tinhas no sofá da sala com as tuas novas conquistas, como se tu nunca tivesses existido naquele espaço. Outro te substituiu no teu trabalho, e até à próxima festa de Natal da empresa, ninguém dará pela tua ausência. Apenas quem te amou, a tua família, aqueles a quem partiste o coração, os amigos que te abraçaram quando te viam chorar, apenas esses, se vão lembrar da tua cara, do teu rosto, do cheiro do teu pescoço quando davam um abraço. A esses agradecerás o amor, chamando-os a partir da cova. Serás mais um ou uma, a dar motivos a quem te amou, a não viver. Seduzes para os sete palmos de terra, para o inferno do esquecimento eterno, aqueles que te quiseram bem. Especialmente quem te agarrou nos cabelos enquanto se vinha, ou te virava de lado enquanto te penetrava, para te beijar as bochechas, sonhando que o momento não passasse. Quem ficou a olhar o telemóvel indagando que havia feito, para que tão facilmente tivesses esquecido, cagado e passado à frente, entretida com a tua vida, depois de teres cruzado a minha, descartando-me como fralda preenchida. Deitaste à noite convencida de que és uma boa pessoa, adulta, e que o ghosting foi a decisão adulta, que não, não foi reificação do outro, ele sabia o que estava a fazer. Achas mesmo que os beijos que ele, eu, te deu, foram fingimentos normais dos gajos que nos tentam convencer de amor para baixarmos as defesas. Esses cabrões são falsos e portanto é permitido fazer tudo a eles. Sentes que sou asqueroso apenas porque nas nossas conversas, não digo o mesmo que os teus amigos cocainómanos que reforçam as tuas crenças de provinciana, de morta-viva que quer ser surfista do seu tempo, sempre procurando a crista no meio de milhentos outros cadáveres flutuantes. Que sou demasiado complacente e pinga amor, porque procuro a ligação emocional de forma a não chegar a cadáver apenas com um carro novo apodrecendo ao Sol. Ou pensas que apenas procurava compromisso de forma a poder-te foder de forma regular sem que andes enrolada com outros, que é esse o acordo tácito das relações. A fronha da almofada faz-te comichão e viras-te para o outro lado. Os altos emocionais passados facilmente afogam a lembrança de mim, que cai para os corredores vazios da tua memória. Tapas a cova lá dentro, com as narrativas que constróis para ti que justificam o que fizeste. De há uns anos para cá, confesso, que evito mulheres com mais passado que futuro. Prefiro-as abaixo dos 28 anos, que aos 28 começam a ver ao espelho, os primeiros acenos da Morte, que oscilando os bracinhos no reflexo vai dizendo «-Ó sua puta, demoras muito?». Procuro nas mais novas, o que as matronas não me conseguem dar, testemunhos de vida. Vês, é que sem o viço da alegria de se estar vivo ou viva, estamos mortos. A partir do momento em que a vida se torna a sucessão de instantes em que apenas esperamos o que vem a seguir a ver se nos surpreende, somos consumidos por demasiado passado. Quando te contentas com alguém que não seria a tua primeira escolha, aninhas-te numa cova. Confesso que automaticamente me esforçava por abafar a vida dos outros, por incapacidade de gerar a minha própria. Mas depois de te conhecer percebi que eu é que estou vivo. Pois a capacidade de amar traz a capacidade de dar conteúdo emocional à vida. E a capacidade de amar não é mais que a capacidade de entrega além do excesso de passado que temos. Amar, que nada tem a ver com as mariquices dos romances de cordel, é o único acto intemporal, rebelião contra o Deus do Alfa e do Omega, que te recebe no final do túnel, exclamando ‘-Assim é que é meu puto!’ A partir dos 28 elas sabem que o Verão não dura para sempre. Que o tão bem que sabe a brisa de uma noite feliz, vai embotando a pele arrepiada. A partir daí apenas querem concretizar o seu plano, venha quem vier, e quanto mais avançam na vida, mais querem arranjar pretextos para esquecer a vida que não conseguiram ter e a que vêem nos outros. Nos dias de chuva, ouves os pingos de água sob o caixão, e a cansativa tarefa de rememorar todas as merdas que fizeste enquanto vivo, tem uma clareira de Sol: «-Epá, só me senti vivo quando amei quem me amou. A morte é-me familiar, porque amei algumas mortas que respiravam.» Fico contente pelas cócegas que ela tem. O vulgar adágio de que não temos idade para ter cócegas, como se a vida fosse embotando a derme. «-Queres que pare?», pergunto eu. «-E tu lá consegues?!», diz ela com mais um garoteado riso. «-Que queres fazer hoje? Eu quero ir contigo para um lugar que tenha Sol.» «-Eu quero ir contigo.» Bem respondido. Deus concorda. |
Viúvas:Arquivos:
Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|