Acordámos de cara um para o outro e com os dedos enregelados imitando o padrão ondulatório das ondas, que durante umas duas horas nos agrediram pese embora a passagem de transeuntes e nudistas, que ao verem dois cadáveres sendo estuprados por ondas marítimas, preferiram manter-se na sua vida. Ela acordou primeiro e ficou a olhar para mim. O Sol já não queimava, perto das 20 ou das 21 horas da noite. Quando abri os olhos, vi o rosto dela, e por detrás o Sol Poente, a 45 graus da Linha de Cascais lá ao fundo, no outro lado do cemitério de navios onde ganho a vida. Fiquei a olhar, antes de abrir a boca, pois foi um daqueles momentos epifânicos em que sabes, que a memória os guarda e nunca se repetirão. Ela riu-se e perguntou, oi pssst, qué passa hombre? Eu ri-me também e disse que se passava nada. E lambi-lhe o nariz. Ela riu-se, colocou-se em cima de mim, ondulando com a sua bacia sob o meu quadril. Meia hora depois menos 29 minutos, fiquei teso, e ambas as expirações quentes e ofegantes, ela própria chegou os seus ‘boxers’ ou que raio de nome aquilo tem, e me convidou a entrar nela. A posição ortogonal em relação aos esparsos transeuntes no areal acima, com cães, namoradas, mulheres, sós, viam dois corpos na linha de água, que, entretanto, se retirara um pouco por causa da baixa-mar, mas não conseguiam compreender o movimento, suspeitavam, mas não tinham provas, e a passagem de transeuntes e nudistas, que ao verem dois cadáveres sendo estuprados por ondas marítimas, preferiram manter-se na sua vida. Longe vão os tempos em que eu era interrompido no coito em pleno areal, por transeuntes que alegavam o interesse das crianças em não ver actos sexuais nos seus passeios. Hoje com Netflix e outros serviços de streaming, admira-me como não me agradecem por manter alguma discrição. Mas eu respondia-lhes sempre, aos objectores, incentivados pelas esposas cobardes, ó amigo, aqui mesmo na Fonte da Telha, eu quando tinha 8 anos vi um velhote a beber vinho branco de um garrafão com a tomateira de fora, e num sítio por onde toda a gente passava, e ninguém disse nada, incluindo o meu pai, portanto quem é o caro amigo para me dizer alguma coisa? Por ser para uns não é para outros? Que merda de justiça é esta? Porque tenho eu de ver tomateiras sexagenárias e ninguém pode ver eu com uma cachopa, recatados no acto de fazer o amor? Ó caro amigo, se eu tivesse 220 centímetros dos pés ao cocuruto e 140 quilogramas de hipertrofia muscular, vinhas aqui tentar impressionar a esposa com a tua coragem? Pó caralho, abelha. Só mesmo eu, para ter uma gaja cebola por cima de mim, e estar a lembrar merdas da minha infância. Dava jeito por vezes, ela já se tinha vindo, e estava à minha espera pela volta de cortesia. «-Queres que te coma todinha?» perguntava eu retoricamente, mordendo os dentes ao ponto de os mesmos rangerem, e apertando-a contra mim em tom de ameaça contida. E ela respondia «-Come-me toda, não tenhas medo, não sou feita de papel. Podes comer até não quereres mais.» E eu dizia, «-Como-te toda minha puta, até te conseguir fazer sair a cabeça com a força das minhas ejaculações.» Ela vinha-se. Invariavelmente. Há pessoas assim. O pior é que eu acreditava no que dizia. Sempre que eu me vinha, olhava para o seu pescoço com medo que se rasgasse. Coloquei a palma da minha mão entre as covinhas que ela tinha nas costas, entre a bacia, aquelas covinhas que algumas mulheres têm ao fundo das costas, e tratei de me satisfazer despudoradamente e de consciência tranquila, pois ela já se tinha deliciado duas vezes. Comigo controlando a distância e o torque, rapidamente me vim para dentro dela, que me abraçou com mais força e beijou, repara, não me observou vindo, não. Participou comigo no acto de vir. Revelou inteligência e não mera simpatia por uma analogia que conhecia. Que merda é essa dizeres que te queres unir espiritualmente a uma mulher e não conheceres todos os passos de dança? De negares a ‘animalidade’ como lhe chamas, enquanto verdade última, transindividual, que facilmente aceitas noutras circunstâncias, excepto naquela onde te humilhas perante a deusa? Invariavelmente vim-me, e apertei-a de tal forma que os seus ossos estalaram. Em vez de fugir, apertou-me de volta, contente por eu me sentir feliz com ela, como ela se sentia comigo. Dei comigo a pensar onde terminaria a inevitável fase de enamoramento onde a contraparte só desejaria o fim deste ritual. Mas ralhei comigo mesmo, não estragues os momentos presentes, com momentos que não chegaram, ainda. Ordem recebida, zero distorções. Rebolámos na areia molhada à boleia de beijos intermináveis, e ofegantes de espaços ainda mais íntimos para cessar a ansiedade dos separados corpos. Onde queres ir jantar, perguntei eu, quando vi que sua pele estava engelhada e arrepiada com a brisa semi nocturna. «-Qualquer sítio, contigo, mas como falaste de Munique…» «-Munique? Isso é em Outubro!» «-Eu por mim ia já!» Ri-me, mas olhei para ela e vi que estava a falar a sério. «-Em Outubro vamos, não te preocupes!» «-E eu lá chego a Outubro…» A forma como disse isto, assustou-me de tal forma que lhe perguntei que se passava. Levantou-se e foi passear pelo areal. Não a persegui. Nem entendi sequer. Aproveitei para olhar as ondas, e relativizar as minhas relações passadas perante esta. De como todas perdem a cor ante a seguinte. Isto se o indivíduo for capaz de acreditar. Eventualmente regressou de onde quer para onde foi, e disse-me, «-Vamos a Munique, já.» Ante que eu pudesse dizer o quer que seja, virara costas, pegara nas coisas, e dirigia-se para o carro. Quando cheguei ao carro, ela estava no lugar do condutor. «-Despacha-te.», foi o que me disse. Eu não estava a gostar do tom da coisa, fugia do meu controlo, e, no entanto, submetia-me. Ela tinha um plano, uma ideia. Parámos em Tires, antes que me respondesse ao quer que fosse. Que tens, que se passa, onde vamos. Também não podia voltar para trás ante alguém que a nada se negara do que eu havia proposto ou feito. Era uma questão de orgulho próprio. Antes de entrar no Falcon 7x, ainda olhei em redor à procura de uma dica em cartão prensado, a dizer o que fazer a seguir. Já com o bimotor no ar, é que me respondeu que íamos a Munique, e que não me deixaria nunca estragar este momento dela. A minha ira, e indignação, esbarravam na minha tentativa de a entender. Mas que merda é essa que não respondes, não falas no carro, e não me perguntas sequer se quero ir agora. Ela respondeu, sem que eu fizesse as perguntas. Sentou-se ao meu colo e pediu, ‘-Não me faças perguntas.’ Beijou-me, disse que o avião era de um amigo do pai, e que em Munique tínhamos 24 horas até voltar ao aeródromo de Oberpfaffenhofen. Mas que caralho, pensava eu. Sentia estar numa peça de teatro da qual desconhecia o guião. O que se passou em Munique, ficou em Munique. Sei que subi o avião de gatas. Cheguei à casa dela em Sintra, ao tal quarto, de gatas também. O cilindro aéreo da aeronave, foi em todos os cantos, preenchido pelos nossos corpos transpirados e ébrios. Ainda no táxi uber, íamos colados um ao outro, em vias de provar que no final de cada orgasmo não sai um líquido de cor fluorescente como nos finais dos rolos de fita-cola. Chegados ao quarto, dançámos por horas ainda inebriados pela cerveja de trigo do Sul da Baviera. Nenhuma objecção ou pergunta me surgia no cérebro, de modo a fazer perguntas. Uma força em mim, revelava que não era tempo de fazer perguntas, mas de captar estímulos na memória para quando à hora da morte, saber que não vivera em vão.
0 Comments
I O Sol enredava-nos a pele num tórrido abraço enquanto percorríamos as dunas para a Fonte da Telha, a praia que gosto, por permitir menos ajuntamentos em época estival. E porque de vez em quando passam umas gajas nudistas quando um gajo está a sair da água, vencendo o anti climático castigo térmico abaixo do ventre. Castigava-me a mim mesmo, carregando o chapéu de sol, a caixa com gelo e cervejas de trigo ao estilo de Munique, e ela um saco com sandes, protector solar e os telemóveis. Composta a cena, fui à água arrefecer, ela pouco tempo depois seguiu-me, abraçando-me e beijando-me. Era visível que estava feliz. Eu e ela havíamos emborcado meia dúzia de Sagres médias, eu por sede, ela para não se ficar atrás e para me impressionar. Tinha-lhe dito que queria ir ao Oktoberfest este ano, e ela estava a mostrar que não tem moral de puta púdica a beber cerveja. Entre beijos e abraços, Baco faz das suas, e ela mais do que eu, deita-se à beira da água, não se conseguindo suster de pé. Está com cara de quem vai vomitar. Sinto que não resisto tão bem às ondas nas minhas costas, mas não estou bêbedo, mas estou relaxado. Coberto pela certeza de que só mais 6, me tirariam do controlo de mim mesmo. Sento-me ao seu lado, e ela cobre o rosto com os braços cruzados na testa, para não apanhar com a inusitada força do sol das 17 horas deste Julho do ano de Nosso Senhor de 2022. De pernas escanchadas na direcção do mar, vale o facto de ter um mini bikini de duas peças, à moda do vólei, sei lá, não percebo nada de vestuário balnear. A pele dela fica bem à luz do Sol forte da tarde na margem com alma. O pressentir a sua luta com a embriaguez, fez-me debruçar sobre ela e beijá-la, perguntando-lhe de caminho «-Amor, estás bem? Precisas de algo?» Ela diz que não, para lhe dar apenas uns instantes a ver se ganha controlo de si mesma. Igualzinha a mim, quando estou ébrio. Ao seu lado, garantindo que não corre perigo, por causa das ondas no seu fluxo e refluxo, de a afogarem, com a minha mão direita na sua coxa, olho para o mar, para os contornos da costa e para os locais onde ao longe julgo já ter mergulhado. Dou por mim a sorrir por perceber quão diferente ela é. Meteu a cabeça no cepo, isto é, mamou 6 médias de empreitada, desejou vir comigo para a Fonte da Telha apesar de conhecer, Bali, Dubai e Cuba de lés-a-lés. Esta gaja não estava ali pelo que eu lhe podia dar, estava ali por mim. Por eu ser quem sou. Algo mais do que ser quem ela espera que eu seja. Nos tempos que correm isto é raro, e por isso levou mais um beijo, recebido em silêncio por seus lábios enjoados com promessa de vómito. Para a apoquentar, ia-lhe dizendo que se vomitasse, eu lhe comia o vómito, da água salgada e tudo. Ela dizia enojada, que nojo, comes nada, pára, estás a enjoar-me mais. Eu ria-me, dei-lhe a mão, e deixei-me a mim próprio vogar ao sabor do som das ondas enquanto ela recuperava. Comecei por olhar em redor, e percebi que conhecia bem aquela zona do areal. Fui calão e deixei o carro dela, um Mustang qualquer importado, a pouca distância da descida da Fonte da Telha. Bem vistas as coisas, bem…era o exacto spot de onde costumava vir com o meu UMM com a Marta. Assim que o seu nome surgiu na minha mente, atacou-me uma vontade de chorar. A luminosidade à minha volta alterou-se, comigo preso entre a presença de uma felicidade imediata e a lembrança de uma felicidade lembrada. Porque razão me teria eu lembrado de tal, além das lembranças geográficas. Ela fazia anos em Julho. Foda-se, a que dia estou eu? 19. Foda-se. Ela faria anos hoje, se estivesse entre nós. Cada onda que me acertava nos pés, inexorável e impassível, assistia ao meu relembrar da minha história com a Marta, de como cheguei tarde demais ao seu óbito, por ter saído demasiado tarde de casa e ter apanhado trânsito na entrada para o IPO. De como ao chegar, apanhei os seus familiares em pranto, pela morte recente, à qual já só cheguei por via de um beijo na testa do cadáver do meu amor. De como passadas as mágoas do que era expectável, fiquei sozinho num corredor, a chorar a Deus, por me ter levado o meu amor, uma pessoa realmente boa e consciente, depois de tanta puta que me passara pelas mãos. Os seus familiares foram tratar dos preparativos para o funeral, e eu fiquei num corredor contíguo ao dela, aguardando que chegassem os tipos da funerária. Deus devia rir-se lá no alto, olha-me este cabrão a achar que é diferente. Marta tentou proteger-me várias vezes, já depois de não estar cá. Mas eu sou teimoso e recuso-me a ler as dicas. As putas das suas amigas trataram-me como um punhetas abaixo dos que estavam habituadas, pensariam por suposto, que pelo pouco tempo de namoro, eu não tivera ligação com o indivíduo que consideravam sua posse. Foi só por contactar sua mãe, que soube que o funeral era no dia seguinte ao do contacto. Aí fui eu para Ourique, com um amigo meu que a conhecera. No velório, não fui capaz de mais que um beijo na sua testa fria, e do lembrar do seu choro quando rapara o cabelo para a quimioterapia. Não aguentei e fugi cá para fora a chorar, o que estava nas minhas costas não era ela, mas a ritualização social, encorpada na figura de um cadáver. E levei a sério esta ofensa de Deus. Atreves-te a levar o meu amor, com tanta puta por aí, levas alguém decente? Foda-se. É preciso alguém que me valorize, para pagar com a morte tal ousadia? Uma onda mais forte, com água fria jorrada na minha tromba, acordou-me para o facto de que uma morte de alguém que eu amava, nada tinha a ver comigo. Filhas de putice da vida. Nada mais. Onde eu já estava a ver uma conspiração divina para comigo, era afinal, o velho resultado da aleatoriedade ou de algum quejando da mesma. Ainda assim, os meus olhos vermelhos e as lágrimas escorriam abundantemente pelo meu rosto. Na primeira vez que visitei a sua cova, após o funeral, vindo do Algarve, saí do cemitério de Ourique, que estava fechado na altura, a chorar. E que pelas estradas fora, tive de parar o carro para não me despistar, pela forma como chorava, tinha os olhos inchados e já não via bem a estrada à frente. Em pouco mais de 10 minutos, eu passara de uma feliz exuberância, para um estado depressivo galopante. Que culpa tinha esta cachopa a meu lado, das cicatrizes do meu desassossego? Olhei para ela e por duas vezes se virara de lado para responder à água, com líquidos de sua autoria. Larguei-lhe a mão e disse-lhe, venho já. Fui até à mochila, ao pé do pinhal traseiro, e liguei à sua mãe. Costumo fazê-lo, desde 2007 até hoje. Pela primeira vez, o IVR diz que o número não está disponível. Enterro de novo o telemóvel, onde estava, e volto para o pé dela. Continua enjoada, mas ganhou algumas cores. Está a melhorar. A pele retorque que existe calores dentro da massa carbónica algures. Faço-lhe festas no rosto e afinal ela acorda, vira-se para mim, e beija-me o joelho. «-Não estou muito bem.» Digo-lhe, podias estar em destinos paradisíacos, com gente sofisticada e prémio para as ‘melhores’ e estás aqui, na Fonte da Telha e eu, porquê? «-Porque já estive em todo o lado, e prefiro estar aqui contigo.» Bebi mais uma cerveja e de facto, as ondas começaram a fazer das suas. Deitei-me também a olhar o Sol mais clemente, e voltei-lhe a dar a mão. Sentindo-a, virou-se para mim, abraçou-me e colocou o rosto no meu peito, acima dos salpicos das ondas recorrentes. Beijei-a forte, e garantindo que ambos conseguíamos respirar até que o mar decidisse terminar nossas vidas, adormeci. II Sonhei que ela não era como as outras. Camaleão, que finge as tuas cores, o que gostas, o que almejas, o que detestas. Afinal o caminho mais rápido para as guardas baixas e o teu apreço, é o fingimento de gostar do mesmo que tu. Sonhei que ela não era assim. Que tinha vida própria além da rapina, que tinha personalidade além de brincar com a presa. Que gostava realmente de escrever, que não era uma hipster das modas como a Sónia indigente. Encarava de facto, os problemas que levantava como lebres das silvas. Meio acordado, dei-me como feliz, e o meu debruçar-me sobre o meu peito do lado direito, sofreu alguma resistência porque ela respirava de forma plácida, de encontro ao meu mamilo, que a convidada a ser feliz. Passámos 2 semanas fechados naquele quarto com vista fugidia para a praia e para a Serra de Sintra. Ora eu ora ela, encomendávamos pelo Uber Eats, comida cerveja e vinho, que seriam queima das actividades lúbricas que se seguiam. Mais batido, eu indagava até onde iria durar esta fase de enamoramento. O meu alter ego, a parte mais adulta e mais chata de mim mesmo, dizia-me que tudo o que é bom acaba. Ora a capacidade de conseguir amar depende da capacidade de sentir alguma esperança em relação ao mundo que nos aguarda no porvir. De que te serve gostar de alguém, quando sabes que a bomba do Putin amanhã te leva, aos teus pais, aos teus filhos? Ficas com a criança nos braços, todo o esforço que largaste na vida, tudo aquilo que te privaste, tudo pelo qual lutaste. Cai a bomba, o asteróide, ou a seca final, e tudo se esboroa como pão velho ao vento forte. De que te serve gostar de alguém, quando sabes que as pessoas seguem certos caminhos estabelecidos há 100 000 anos ou mais, que são marionetas de um títere evolutivo implacável e inescapável? Que a mulher te ama enquanto sentir que és um prémio a obter por outras, ou o prémio de consolação por aqueles que não conseguiu? Que o homem te deseja e trata com consideração, enquanto fores objecto de desejo também para outros, que tenhas simetria facial, e uma fisionomia passível de facultar uma erecção? É tudo relativo e uma charada. Uma pantomina. A contraposição entre mim e o gajo que eu era há 20 anos, faz-me chorar. Lembro-me que há 20 anos desejava ter a sabedoria, isto é, a experiência que tenho hoje, de onde retiro lições completamente determinadas pela minha doentia subjectividade. Hoje, que a tenho, gostava de a jogar fora, pois só podemos ter uma de duas coisas, a verdade ou a felicidade. Eu sempre escolhi a verdade, sempre. Sempre. Por isso gosto de músicas tristes. Por isso e pelo meu passado relativamente triste. Por isso não consigo ser feliz, e choro por essa infelicidade. Mesmo neste quarto, onde uma mulher que faria girar a cabeça a qualquer um, de bonita, tesuda e inteligente, jaz aqui ao meu lado enquanto escrevo no portátil, suada, exausta, sempre pronta para me receber. Eu conheço o fim do arco-íris, amei todas aquelas que agora chamo de ‘putas’, e que só o são, por se terem ido embora, deixando-me a ruminar com a ausência da sua presença. Sei que por onde quer que olhe, os amores acabam, onde acaba o interesse e visão dos indivíduos. Sei que no fundo isso não é uma coisa má. Tal como um cavalo ou um cão não podem estar fechados durante muito tempo num mesmo espaço, ninguém consegue estar fechado numa relação que se reduza a cama, ou a ambos os elementos da mesma relação. Quando é só isso que subsiste, fazemos render, porque amamos a pessoa, não sabemos estar com ela, mas sabemos que queremos que não saia da nossa vida. Mas que não pode permanecer na nossa vida, sem termos com ela a única coisa que nos prende, o sexo. É como foder um cadáver, já lá não está, cheira mal, mas pela memória ainda nos dá tesão suficiente para foder. Para amassar as carnes inertes, os fluídos nauseabundos, a fricção que aquece, só para podermos sentir que há vida em nós a foder um corpo morto. Para nós. A Flávia dizia-me que não entendia o meu apego a este lado negro do existir, de gostar de chafurdar na tristeza. Ela tinha, e tem, toda a razão. No entanto, a minha escolha, foi prévia. Só podes escolher entre verdade e felicidade. Ou uma ou outra. Antes de ter perdido uns 6 quilogramas a foder esta amazona loira, jogadora de vólei do Dafundo, eu percorria os cafés, bares, festas e arraiais deste torrão pátrio. Encostado a um canto qualquer eu observava as pessoas a dançar, rir, seduzir, vomitar, ébrias de vida. Se só posso ter verdade ou felicidade, o que é a alegria, o excesso, a embriaguez, senão um cuspir na cara dessa puta de escolha inexorável? Como posso levar a sério que um outro ser humano me tente reduzir a peça de puzzle, a imbecil que não sou, a pai de filho ou filha cujo verdadeiro pai não quer saber? A amante prémio para mostrar às amigas e família, como prova de que a vida está minimamente encaminhada, e que pelo facto de que alguém as ama, significa que são amáveis? Como posso levar a sério ou como ofensa, a bebedeira dos outros? Como pode a ilusão, não ser tão verdadeira, como a verdade que tenta mascarar? Mas a pergunta não é essa. De certa forma, é até irrelevante. A pergunta é, o que é que eu acho sobre o assunto. Parafraseando Camus, que se foda a quantidade de categorias do espírito. O que interessa, é o que faço com a informação que tenho. E tendo-a, como reajo, nas reuniões familiares, na vida comum pantomineira, como consigo fingir e saber o que passa como verdade ao mesmo tempo? Mais concretamente, como vou comer o meu amor por trás, a seguir a postar este texto no blogue, quando eu e ela estamos exaustos, com dores musculares e assados, ela da minha barba, e eu da sua púbis. Como, no final, no momento em que ela me pedir algo fora desta cama, quando se quebrar o feitiço por fim, me vou escapar a sentir de novo como mais uma peça na engrenagem, como em mais uma etapa numa puta de lição que não consigo descortinar. Mas são as coisas que correm assim, ou sou eu um traumatizado de guerra com o seu sistema reticular, que procura na realidade, dicas que confirmem a sua teoria? Mas esta miúda já me deu algum motivo de queixa? Não. Tenho de continuar a tratá-la como se fosse a primeira, sem ter de levar, na medida do possível, com a merda que as outras antes dela fizeram. Mas sinto que esta, posso estar enganado, é diferente, pois não me força a estar na farsa evolutiva da coisa entre homem-mulher. Esta trata-me como indivíduo. Pelo menos é o que sinto. Essa é a definição de carácter, receber a luz do mundo, mas só esporrar nos outros, os comprimentos de onda do espectro electromagnético, que interessam. Cessar o ciclo da doença, de espalhar merda, infelicidade, crueldade, apenas porque nos calhou a nós. Porque me queimaram um cigarro no braço, não tenho de o fazer o outro como paliativo de uma Existência que ficou aquém do prometido. Ou se calhar nunca houve promessa alguma. Estava tudo na minha cabeça, e exijo demais dos outros, porque não tenho coragem de exigir a mim. Quero-a tanto que sei que se a trato como quero tratar, num instante me desqualifica e passa a outro. Tenho de aceitar que escolhi a verdade e que por isso, tenho de a encornar, tratar menos bem do que o desejaria, para que permaneça comigo e me deseje. Tenho de jogar o jogo entre homem e mulher, que prometi a mim mesmo não jogar, há longas décadas. Mas eu estava enganado, errado. Como indivíduo que se apresenta à minha frente, a gaja não é uma extensão da minha vontade, mas outro humano determinado pela sua condição. A merda do amor Disney, foi um logro que comi às colheres cheias. É um logro, uma pantomina. Pego no telemóvel e envio sms a todas as gajas passíveis de me facultarem vulva, sem muito esforço. Meia dúzia responde de volta, e combino para a próxima semana sair com todas. Eu não queria, só quero esta, mas se só quiser esta, esta deixa de me querer a mim. Foda-se, vou ter que foder gajas que me vão tratar como se me fizessem um favor. Que se lixe, é uma charada, é nisso que tenho de pensar. Mas como fica o indivíduo nesta reificação que faço? Sim, que exijo a mim próprio determinado comportamento não completamente egocêntrico. Afinal a gaja que me engole o falo é uma pessoa por si mesma. Com toda uma galáxia incognoscível, de subjectividade, de incapacidade de me tratar da mesma forma como eu a ‘ela’. O fodilhão ético. Contradição nos termos. Como as posso tratar como fins e não como meios? Prostituindo-me. Dando-lhes o que acho que querem, até que se fartem. E quando se fartam, e me largam por algo que acham melhor, tenho de apanhar os cacos depois da rejeição. Verdade ou felicidade. É impossível ser feliz, quando me vou diminuindo, cortando partes de mim, e deitando-as no lixo. Ano após ano, amor, após amor. Uma mão afaga-me o rosto e retira-me desta cogitação. Ela olha para mim com a íris totalmente aberta, não apenas pela ausência de Luz, mas por amor verdadeiro, se eterno só Deus saberá. Começa a fazer-me festas no cabelo pastoso do suor, e a massajar-me os músculos da cervical. Apesar de relaxado, sei que eventualmente não serei eu a ceder. Sou capaz de permanecer pela eternidade fora a foder. Sei que por ela ter metade da minha idade, ou quase, o apelo do externo ilusório é maior nela, e uma constante na equação, que eu não posso, devo ou quero negar. Se fizer parte da mesma, eu, tanto melhor. Mas, sei onde pára o comboio. O olhar dela, nos olhos azuis que apenas parecem ser indecifráveis, parece andar à volta de algo ou da forma como me dizer algo, sem magoar os meus sentimentos. Debruço-me sobre ela, puxo-lhe o cabelo para trás e digo «-Diz.» E ela, «-Nada.» Rio-me e digo, «-Tenho uma fantasia contigo, quero ir para a zona de rebentação de uma praia e embebedar-me contigo, nós os dois, água salgada, Sol, alegria, celebrar estarmos vivos. Eu tu, uma caixa com gelo e cervejas dentro, beijos molhados e memórias efémeras!» Ela riu-se e os olhos dela brilharam, como se um peso tivesse saído de dentro. Eu demonstrara que a nossa vida não se reduzia a foder até cairmos de exaustão. E que não era uma mera caixa de ressonância das feministas imbecis e hipsters. E acrescentei, «-Quero ir contigo a um bar que conheço, que bomba no jazz até às tantas. O jazz é uma música triste, porque apenas reflecte a verdade.» Ela sorri, e responde, «-Amor, eu contigo vou até ao fim do mundo.» Como é que um gajo não se derrete com respostas destas? Ela deixara a velha janela meia aberta. O mar ao longe rugia docemente de vez a vez, com uma brisa tão leve, que apenas mexia os cortinados e refrescava um pouco a minha pele suada. Ela adormecera temporariamente, e eu, não o conseguindo, só olhava ora o tecto branco, ora o oscilar dos cortinados, numa coreografia não ensaiada, onde a direcção do vento era constantemente barrada pelas propriedades mecânicas do pano. Nas paredes avermelhadas, sombras projectavam-se nas paredes, vindas de todos os ângulos. Ela não havia largado a minha mão esquerda, e eu para não a acordar, não a largava, sentia escorrer o suor entre ambas, mas mesmo dormindo, não profundamente, mantinha-se agarrada a mim, sabe-se lá porquê. Passado o calor que me fizera parar, debrucei-me um pouco para ela, por cima do ombro, e beijei-lhe o ombro ao alto, que ela estava virada na minha direcção. Como não reagiu, estiquei-me mais um pouco e beijei-lhe a clavícula, e mais pelo mexer do colchão que pela sensação do beijo, ela despertou e abriu um olho. Bastou olhar para mim com um olho às escuras e meio ensonada, para perceber o que eu queria. Passou uma perna por cima da minha perna esquerda, e o roçar áspero da sua púbis aparada, aliada ao voluntarismo, rápido e decidido, ao sim dado à cópula, à expressão de desejo, fizeram-me ficar teso de novo, e ir beber na sua boca, novos goles de sua língua, gemidos e suspiros. Só os seus lábios me saciavam o desespero de estar longe dela, mesmo estando a meu lado. A vontade de trocarmos carinhos, carícias e corpos, abreviava os preliminares necessários, quanto mais estivéssemos ligados por carne húmida, quente, palpitante, em frémito, melhor apaziguaríamos o demónio glutão que só se saciava dentro do outro, penetrado pelo outro, acolhendo o outro. Cuspiu para a sua mão e agarrou-me na pila, sentando-se nela. Não me pediu carícias, não olhou para mim, para ver a minha reacção à sua potencial manipulação da minha percepção. Precisava de mim, queria-me, e tudo o resto era secundário. Segurei-lhe as firmes nádegas que horas antes envergavam umas cuecas com o símbolo do Super-homem, e ao baixar-se para me beijar, deixou que o cabelo comprido me entrasse na boca. Rapidamente o tirou, até porque me fazia um calor dos diabos, e o prendeu com o elástico verde, transformando-o em rabo-de-cavalo, e no momento em que elevou ambos os braços ao céu para reunir o comprido feixe loiro, dobrei-me pela cintura e abocanhei-lhe ambos os seios, apertando-os para dentro na direcção da minha boca aberta, abraçou-me e continuou a fazer o seu jogo de cintura atrás do zénite. O desconforto inicial da sua vulva não completamente molhada, dera lugar a um corrimento diluviano que só contribuía para uma espécie de loucura minha, uma espécie de sentimento que quer parar naquele momento o tempo, e repetir a acção ad aeternum, com o mesmo ritmo cardíaco e sensação de completude. Uma espécie de arritmia vitaminada com ansiedade, prazentosa, que impede o total fruir na ânsia da próxima fruição. Que não acabe, que me sinta eternamente em casa, sem os fluxos e refluxos do desamparo. Como telepata, sente este ponto além do sexo, e beija-me com sofreguidão, acentuando os seus movimentos circulares, até que por fim o orgasmo chega e com ele uma exalação indefinida vinda de dentro, e um estertor de pequena morte, que simula demasiado bem, a paz do abandono desta vida. Acelero um pouco para a levar ao ponto de rebuçado, até perceber que dali não passa. Deixo-me estar quieto até que recupere o fôlego. Com o seu cabelo no meu queixo e a sua respiração ofegante aquecendo o meu mamilo esquerdo, deixo-me estar quieto, mexendo ocasionalmente e apenas o suficiente, para não perder a tesão, que eu, sou vítima do parar é morrer. A minha pila é económica e calculista. Sem palco não há peça. Olho para baixo e vejo as suas costas subir e descer à medida das suas inspirações e expirações, os seus joelhos por alturas da minha anca, bem redondos, torneados e os seus pés bonitos espreitam também lá atrás dos joelhos, que é a vista que tenho a partir de cá de cima. Recuperada a normalidade oxigenante, beija-me o dito mamilo e mexe o resto de quadril para ressuscitar o freguês que já se preparava para sair do estabelecimento. Não foi difícil convencê-lo com mais uma pipa da sua bebida predilecta. Entendi este retorno, como a volta de cortesia, o ‘agora é a tua vez’, que é algo que se usa muito nos países civilizados. Sinto que tenho bar aberto e, portanto, liberto o símio, agarrando-a e criando sempre posições onde o afastamento entre os nossos corpos facilitava um reencontro cada vez mais impetuoso. Não por violência, mas por oração, celebração litúrgica de dois corpos que se encontram de novo, vorazes um pelo outro, e separados por alguns segundos. É como se fosse ao café, e houvesse a posibilidade de o nosso amor aparecer, eventualmente, se esperamos o tempo suficiente. Puxo o corpo dela ao meu, com força e percorrendo o carril conciliador do meu falo. Sempre na esperança de que o seu corpo se desfaça para dentro do meu, e cesse o suplício de sermos dois. Ela submete-se, ora interrompendo com iniciativas próprias, ora cedendo por colapso muscular, e sabe que a cada resposta ao ímpeto, apenas o redobra, a pontos em que ambos tememos pelo que esteja do lado de lá do arco-íris. Parece que até o desvario é como Ícaro, voando demasiado próximo do Sol, mas com medo da queda inevitável. Mas que vale a pena. Tenta tirar proveito da minha forma de atingir o mesmo Fim, adapta-se, conhece a minha linguagem, e ao entendê-la começamos a dialogar, mesmo quando a esmago contra mim. Não é para a magoar, ou me sentir grande por a sentir gemer, é apenas uma ode à deusa que se torna mulher, e à minha maioridade enquanto perante a Deusa. Mesmo que ilusória. Ela não tem medo que eu a parta ao meio. E começa a apreciar a minha forma de adoração, respondendo-me na mesma moeda. Aqui e ali polvilho com as doses de carinho necessárias para que a experiência física ascenda a emocional. Fica então a animalidade como testemunho de uma pureza na ligação emocional, e não ensaio ou premedito isto. É a minha linguagem, tal como é minha esta forma de me exprimir por palavras. Transformo-a num ‘V’ humano, comigo dentro dela, posso lamber-lhe os seios, sorver-lhe a boca e admirar-lhe o rabo. Manieto-lhe os movimentos, para que se sinta completamente presa, e ao mesmo tempo protegida. Para chegar a ela, o Mundo teria de passar por mim, e retiro ao mesmo tempo, o facto de eu me tornar assim o seu mundo, como devia ser sempre. E como o clímax não venha, há sempre uma forma de relembrar o amor, retirando-lhe o ar dos pulmões por via de beijos sôfregos. Deixar o ar que lhe vem, cansado da combustão celular, visitar o meu corpo, talvez dela fique qualquer coisa em mim. Quando já nada pode, quando já nada consegue, viro-a para mim, e revejo a imagem da deusa receptiva, desejante, de pernas afastadas e acolhedoras, que mendiga por um depósito genético dádiva de vida, onde morro brevemente por instantes, depois de me sentir completamente aceite, finalmente, neste esquema de coisas. A angústia antes da ejaculação começa na base da minha espinha, um arrepio avisa-me, e nem preciso fazer nada, apenas olhar a mulher que me recebe, deseja e acolhe, do ponto de vista em que a vejo pelo rosto, pelos ombros e quadríceps tonificados, pelas ancas largas e robustas, pelos seios geometricamente perfeitos, pelo seu colocar de mãos nos meus ombros, puxando-me para ela, e segredando-me ternamente ao ouvido, ‘-Vem-te para mim amor.’ Eu seguia de mão dada com a dela, por uma rua que nunca havia percorrido. Como se me levasse para uma teia, onde me morderia, largando um veneno que me dissolveria e, depois, me sorveria, para não ter trabalho a mastigar os ossos. Ah puta de néfila! De facto, a pensão onde morava não era nem pardieiro nem hotel de 5 estrelas. Tinha personalidade e via completamente algum escritor a inspirar-se aqui. «-Queres um gin?» Para não parecer mal disse que sim, e ela empurrou-me para uma poltrona vermelha, de tamanho exagerado, e disse venho já. Ao sentar-me, ou melhor, ao cair, é que percebi quão ébrio estava. Na rua e com o ar fresco, se me mantivesse calado, disfarçava. Mas sentado, o espaço siderava à minha volta. Se misturo gin com cerveja, estou fodido, pensava eu. Passa um ancião de pele alva, com uma fedora no cocuruto, que levanta e saúda: «-Good evening old chap!», olhando na direcção do bar e do guichet, para onde ela andava. Não fiquei desconfiado pois a hospitalidade do cumprimento não me fez sentir que o mesmo fosse gratuito, vulgar ou imerecido. Lembrei-me do Vincent no Pulp Fiction, não sei porquê. Talvez porque estava à vontade na situação que me aparecesse de seguida, fosse por ter naquele momento descoberto qual seria a minha e dela, canção. E como gostava muito da canção, só podia significar algo, este estar com ela, que a propósito, me traz um balde de gin. Não era um balde, mas um cálice tão bojudo, que no final do mesmo teria de subir as escadas de gatas. Ela sentou-se e perguntou-me então se gostas disto, que achas. Ri-me e disse, «-Impressionante.» Sorriu vitoriosamente e concordou. Eu disse-lhe: «- Pensava que eras daquelas meio malucas que se embrenham em situações mal medidas apenas em nome de um ideal ou de uma estética. Reconheço-te inteligente e com sensibilidade para a causa, pois este velho albergue tem de facto vibes literárias.» Ela olhando para mim, ficou a pesar as palavras. Deduzi se pensaria se o que eu dissera era um insulto ou não. Para 3 da noite, tinha bastante movimento nestas noites de calor infernal onde ninguém dorme. Por estupidez de bebedeira, gritei para o átrio coberto de mármore e de gente que circulava de e para os quartos: «-Aproveitem que o calor do Putin vai ser pior.» Quando estatelei de novo o rabo na poltrona, dei comigo a rir com a laracha, e com a constatação final de que sim, estava bêbedo com meio cálice bojudo pela frente. O seu silêncio observador relembrou-me tempos passados, onde optei por me esconder, de modo a manter o meu amor e a concórdia com os humanos mais importantes para ela. É como quando no final, quando nos servem a conta no restaurante, que realmente avaliamos se a refeição valeu a pena, se o prazer gustativo mereceu o pagamento em numerário. Ela pergunta se subimos. Mas eu não oiço. Estou ainda a pensar nos anos em que me permiti anular a mim mesmo, para me poder dar bem com toda a gente, e fazer que me amassem. Ganhar aquele quid mínimo de apreço que nunca me dariam, precisamente por eu gostar de o ter. As pessoas reagindo ao meu desejo, com desconfiança, pois só alguém desejável é imune a ter de se esforçar para ser desejado. As vezes que constatei que quanto mais faço para ser amado pelos outros, mais me perco a mim próprio. Perco-me até ao ponto de não saber quem sou, e ter de iniciar nova aventura de descoberta do caralho que seja que eu sou. Procurar nos arquivos resquícios de mim, do que me fazia mover há uns anos atrás. Por isso aparece o amor como uma terna viagem de auto-anulação, onde no final somos cuspidos como lixo sem qualquer valor. Humilhados pelo singelo intuito de querermos agradar aos outros, cuspidos fora como água tépida, apenas porque quisemos fazer alguém feliz. Arrastado sou até ao seu quarto de paredes vermelhas e duas poltronas verdes à entrada, 3 cães de loiça que recebem os visitantes, bordejando à porta, à direita fica uma pequena sala com um sofá de canto para 3 pessoas, e uma televisão esplanada na parede, uma mesa de centro em vidro, atarracada e anã, e uma janela ao fundo com visão para uma colina que se intromete entre o mar e o quarto. Quarto com cama de casal e lençóis brancos, para lá do hall de entrada. Uma mesa de cabeceira, um jarro com água e a ideia de existir um quarto de banho comum a todo o andar do prédio. Se queres cagar, mijar ou vomitar, tens de sair do recinto. Ela está deitada na cama, retirou os sapatos de salto alto, tem as pernas brancas e musculadas sobre o branco dos lençóis escancaradas, e olha para o tecto como alguém que espera uma prece divina. Ao ver-me aproximar, pisca-me o olho e convida-me a deitar ao seu lado. Deito-me, e abraço-a, colocando-me em posição fetal com ela em frente a mim. Curiosamente as suas pernas atracam-se nas minhas, sob protestos da sua saia de cabedal. Sabe-me tão bem-estar abraçado a ela. Quando estou quase a adormecer, sinto a sua impaciência na minha boca sob a forma de um beijo. Para o leitor que gosta de finais felizes, a história acabaria aqui, eu granjearia meia dúzia de likes nas redes sociais, e umas palmadinhas nas costas por causa de um final feliz. Mas quando a sua língua tocou na minha, e encaixei seu rosto ofegante entre as minhas mãos, no momento menos apropriado tocou o meu telefone. Era Elvira, uma estampa da C+S, que dava agora aulas de inglês na mesma C+S. Tenho sorte com gajas de Anglísticas, caem quase todas. Que tenho de te ver e quero estar contigo. Como não se satisfizesse com a minha negação (se eu fosse gaja diria que tinha sido violada), insistia mesmo após terminar a chamada. Farto, gritei-lhe ao ouvido, mas que caralho Elvira, falamos depois. Que urgência há agora contigo?! Na C+S achavas que eras melhor que eu, não me ligavas nenhuma. Casaste fodeste e engravidaste de quem bem entendeste. E agora, só porque me viste na RTP3 num programa da treta, lembras a minha existência. Foda-se, vai-te foder. E desliguei a chamada e o telemóvel. Olhei para ela e perguntei se era melhor ir-me embora. De todo, um tipo que é desejado por outras, é por certo um privilégio a ser desfrutado. Exclamei que era a minha heroína e minha Super mulher. Ela riu-se e disse que por acaso tinha algo a rigor para o efeito. Saiu de cima de mim, deixando-me com uma surpresa assinalável. Quando voltou do roupeiro, percebi e ri-me bastante às bandeiras desbragadas . Chamei-a para mim, e pedi para fotografar para o meu blogue. Disse que só depois de a beijar muito e prolongadamente. Puxei-lhe as pernas dobradas na posição fetal para o seu peito. Apanhando-a de lado sussurrei, «-Eu é que te vou desfrutar a ti.» Durante gerações e gerações de homens, o fenómeno amoroso tem sido fonte de perplexidade apenas por uma mera confusão ou mal-entendido. A dicotomia entre sujeito e género. O interpretador masculino, com a sua racionalidade lógica (existe outra?), privilegia a interpretação da realidade como se esta fosse uma máquina. Quando avalia a peça «mulher», transpõe para a mesma uma forma igual de pensamento, por comparação com a sua, mas com o cheque em branco infinito, de a «mulher», ser como ele a pensar, mas também algo de melhor ainda, por causa da sua suposta ‘intuição’. Esta é a essência da ‘deusa’. A primeira vez que tive de lidar com esta ideia, tinha 16 anos, e alguém me disse «-Elas também cagam. E cheira mal.» Não consegui não pensar nisso. Eu sei, apodicticamente que a mulher caga e mija, ergo, é humana. Mas por saber, não quer dizer que tenha interiorizado. A gaja, leia-se, humano do sexo feminino, continua a aparecer aos meus olhos, como um pouco acima da condição de mortal. A grande diferença entre percepção racional e idealização, que exprime a forma como gostaríamos que as coisas fossem e como elas são de facto. É o grande trunfo delas, irem para a guerra sabendo que o inimigo se derrotou antes do combate. Só assim pode ele submeter-se. Um elemento nele funciona a favor delas. Aprendem isto muito cedo. Olham para um homem e conseguem cheirar o sangue da fraqueza, de tudo aquilo que podem usar a seu prazer e capricho. Às vezes vou dormir mais cedo, porque corro o risco de sonhar com ela. Sonho com ela dia sim, dia não. Tenho 50% de probabilidades de viver com ela em sonho, que sonhar acordado viver com ela. De lhe fazer festas no rosto quando sei que me trai copiosamente. De lhe dar beijos na bochecha onde sei que outro ejaculou horas antes, apenas evitando o cabelo, a pedido dela. Odeio-te. Odeio-te apenas por me forçares a dar razão ao vulgo por distinguir amor e paixão. Prefiro-te em sonhos, onde apenas lamento a tua ausência. Mais suportável que a realidade da tua presença. Sei que o sonho tem viés. Mas depois de limpo de ódio, ressentimento e raiva, o que resta é só a prova de uma coisa. Que de nós os dois, eu sou o humano. Tu, um cliché. Ficámos mudos a olhar um para o outro. Ela para o caralho que a foda, e eu para os seus olhos azuis como os do meu avô. Sentia-se no silêncio um prazer apóstata após a troca de palavras que cada um consumira de forma ávida. Meti a mão no meio das minhas pernas e senti duas bolas, ovaladas, lá pelo meio. Cabia a mim, desfazer o empate silencioso de nossos olhos. Sem que algo tivesse sido dito que mo permitisse inferir, aproximei a minha cara da sua e perguntei: «-Queres sair daqui?» Como Ulisses perdido entre as vagas de Carídbis, estava perdido no seu olhar. O quê, o verdadeiro amor é assim tão fácil? O quê, todo o esforço que me convenceram ser natural, para manter o interesse de uma gaja, é ficcional? Artificial? Afinal a coisa-em-si marinha não requer esforço, vai e vem sem intervenção do indivíduo. Tal como as marés. Há tantos anos investido em forjar um amor metafísico e redentor, não perdi um instante que fosse para me perguntar se a artificialidade do meu desejo não era contra-natura. Por outras palavras, queres tanto viver uma história de amor que inventas uma para ti. Onde os outros não passam de figurantes ou adereços. Deus lá no seu poleiro diz, ó filho da puta, mas quem te disse que era hora de ir ao pote? Então deixa de ser uma coisa entre ti e o vazio do mundo, é o próprio Deus a chafurdar-te na cara, quem é mais forte na Existência que Ele inventou. Estava em casa alheia, tinha de limpar os pés à entrada. A questão era saber se eu mesmo ainda conseguia acreditar no que eu sabia ser ilusório, mas se sabia ser ilusório, tudo o resto é impossível. Querer ser amado, nesse ponto, não passa de desafiar a Deus, num jogo perdido antes de jogares Nele. Amas e és amado, se Deus te permitir e te der a bênção. O irreverente é incapaz de esperar, quero a minha cona e é já. Deus responde, ó filho da puta, afocinha aí que só tens completude se Eu desejar. Ou então faz-te à vida, mas Eu lavo as mãos daí. Se fizeres merda, é responsabilidade tua. Para te sentires completo, com outra alma a quem esporrar a tua vida interior, tens de ir de joelhos a Fátima. Mas depois, como manténs a cona que amas, se lhe depositas aos pés, todas as oferendas que recolheste para ser por Ela apreciado? Ela não ficará à tua espera, mas do crente mais investido. Deus não prevenira, ó filho da puta vais ter algures na tua vida, amor não forçado, natural como um ataque de gonorreia. Tão habituado estarás a fingir por verdade qualquer puta Dulcineia que te apareça. Que ficarás sem reacção com a gaja genuína que reservei para ti. Ali por alturas do Restelo, a puta da noite estava quente para caralho, e já havíamos falado por campos soltos da cerveja, e ela cedeu primeiro. No jogo de quem cede primeiro ao encanto do outro, que se aguenta sem manifestar desejo sexual. Para ela o caminho parecia bloqueado pela minha frugalidade. Ficava sem jeito. Este gajo não executa as vergonhas habituais para garantir a minha exclusividade. Nem mesmo quando se atracou a um vendedor de cravos paquistanês, para ver se me provocava ciúmes. Estes cabrões já circulam até Cascais, a ver se vendem uma flor roubada dos enterros recentes da capital. Como eu continuasse a andar, e por acaso encontrei uma colega minha de faculdade com quem me dava bem. Abraços sobre os anos passados, e verdadeira amizade, transpareciam para o olhar externo como algo mais além do que o que realmente era. Foda-se são todas iguais. Com a pré-selecção externa, o medo abeirou-se dela, será que o gajo não estava garantido, afinal qualquer um pode fingir desejo. Como me viu ir para a Pastora, sem olhar para trás, deve ter temido o pior. Fui ver se a Fátima das mamas grandes ainda lá trabalhava. Era boa companhia e ao menos tínhamos em comum um genuíno prazer pela noite de Lisboa e arredores. Quantas vezes não apanháramos um táxi ali para a 24 de Julho? «-João, se não arranjar ninguém esta noite, vou-te dar uma noite de foda que nunca esquecerás.» Quantas noites. Quantas manhãs não tinha de a acordar com ovos estrelados, para ir trabalhar para alimentar o filho que andava no Liceu Camões? Quis Deus, que não me dá a gaja, mas gajas, que eu desse explicações de Filosofia ali para a Praça do Chile. Foda-se quando olhava para ele, não me esquecia das maldades que fizera à sua mãe. Quando me chegava com negativas a Filosofia, eu não sabia o que responder. Cheguei a ir falar com o professor dele e perguntar a causa das negativas. Ó seu caralho, porque dás negativas ao miúdo. O filho da puta punha-se a dançar à minha frente que conhecia os meus livros, e sabia que eu era colega de anos anteriores. Podes crer Ó cara de osga, explica lá porque me fodes a vida com negativas a este mancebo. Depois tenho os pais à saída da sala de explicações, a perguntar, com os testes na mão, porque é que o puto não tira positivas a Filosofia. Desgraçado do miúdo emparedado entre uns pais castradores ( a Fátima nem tanto), e um professor que passado recentemente ao quadro, exercia o controlo urinário que Freud descrevera 100 anos antes. Dá-lhe positiva, seu brochista. Não é no secundário que decidem se Filosofia lhes serve, seu caralho. Andou a saltar à minha frente, quem era eu para duvidar do seu ensino. Ó seu caralho, queres debater a ‘Fenomenologia do Espírito’ ou a lógica elementar? Após a esgrima de argumentos o gajo identificou-me como soldado da causa. E por isso amainou nas negativas, o que me trouxe mais notoriedade nas explicações. Caracterizo-me enquanto docente, por dar demasiada confiança aos discentes. É um mal com que vivo bem, e com o qual facilmente retiro a cagança adicional. Sentem-se à vontadinha e depois fodo-lhes as certezas de forma subtil, e então ficam onde quero, no deserto, entre uma zona onde o ego respirava bem e no limite da hipoxia. Ai gostas do Kant? Bora lá para as antinomias. Queres bater punhetas ou foder como um homem? Invariavelmente, era mais fácil o trabalho de dar explicações do que o de dar aulas. Foda-se. Tinha de sopesar ambas as funções. Apenas em dar aulas havia verdadeiro poder, o da avaliação. Mas o papel de explicador fazia-me sentir tão underground e underdog. Não poucas vezes as professoras indagavam aos alunos explicandos onde iam buscar os exemplos de situações limite a la Jaspers. Por um lado, sentia que mijava para um cacto, por outro desprezava a arrogância intelectual de malta que estagnara nas pedagógicas de Filosofia. Mas arrependi-me tanto, quem era eu de facto, para ir pressionar um colega. Se bem que havia causa, eu não me sentia bem pelas minhas acções. Ela aparece-me com uma suruba de canecas de imperial, ali por alturas de Carcavelos. Morava no Estoril, e eu como bom conas cavalheiro havia ficado de a levar linha afora até dormir nos quartos comunitários da novel burguesia lisboeta. Tudo em nome da literatura. Meu Deus, como aguento eu isto? A lembrança dos que já se foram, que eu amei? Como posso continuar vivo após a hecatombe nas trincheiras da vida? Senão sendo um filho da puta arrogante e assumindo um lado do espectro como meu? «-João, és o que sempre procurei.» Em Carcavelos havia tomado as ondas como afronta pessoal, e havia nadado até perder o fôlego que não perco, e nadado de volta. Na areia ela esperava por mim, sentada ao lado da minha roupa. Ao sair da água, chorava, e ela ao ver, não precisou de explicação, começou a chorar também. As minhas lágrimas relativizaram a sua frase sobre eu ser o que ela procurara. Ela sabia perfeitamente porque chorava eu. E por saber, chorou também. O meu corpo frio e salgado só terminou no seu, na suavidade dos seus trapos secos ante o meu molhado desafio carbónico, pois ao vê-la chorar, a abracei de amparo. As noites de Cascais prometem sempre noites de fodas intermináveis. Já o Estoril é uma incógnita. Podes passar a noite a foder ou a chorar, depende da gaja que escolhes. Esta que me trouxera aqui, era do tipo mais raro. «-Então João, não me vens ao cu?» Isto enquanto eu avaliava uns restaurantes de beira de estrada que a nome do proveito, estendiam esplanada em direcção da cidadela. A frase dela pára-me o raciocínio, não por ser raro o cu, mas por ser rara a frontalidade. Apetecia-me dizer ‘amiga, o que vier no cardápio, eu como’, mas soava-me a justificação. Portanto soava mal. Caneca plastificada após caneca… O cérebro desligava e os olhos só focavam ao longe o Cristo Rei com a Lua por cima. Ela trazia mais uma rodada de cervejas, sem que eu as solicitasse e tomei uma nota mental para lhe perguntar porque tinha tanta tesão para trazer cerveja. À quarta já eu estava pronto para contar toda a minha vida, foda-se. Mas não contei. Só lhe perguntei se achava mesmo necessário estar a polvilhar a nossa interacção com frases típicas de manipuladora. Como assim, pergunta ela. Que sou o que procuras, que queres que te vá ao cu. Não precisas de me testar com essas infantilidades. Como uma mulher apanhada de mamas ao léu, se cobre por vergonha ou pudor, com os restos dos lençóis, também ela se sentiu exposta e afundou o rosto entre os braços em direcção à areia. Ficou bastante tempo assim. «-Tens razão.» - concluiu por fim. «-Sinto que conspurco a nossa recente relação com estes automatismos, mas é por insegurança minha, não por te relativizar perante as minhas experiências passadas. Sai sem que eu dê por isso, resultou no passado, não há manipulação da minha parte.» Entendi o que disse, e concordei, já estava a ficar defensivo, mas percebi a sua explicação. E o facto de ter pensado antes de falar, não negando a minha percepção, antes explicando a sua. «-Mas diz-me, que insegurança é essa, qual o motivo para ela?» Voltou a olhar para as ondas que se desfaziam em orgasmos brancos que definhavam pelas areias. Passados uns bons minutos, sem olhar para mim, explicou:« - É que desde que te vi que imaginei o que seria beijar-te esmagada em ti.» O sal estava a arder-me no rosto, nas zonas abrasadas pela lâmina que me desfez a barba de manhã. Com a língua ia aproveitando esse sal lambido em torno da minha boca. Demorei alguns momentos a perceber o convite dela, sentindo-me tão bem nu e com o vento em torno da minha pele embalada pelo som das águas. Quando finalmente reparei nas suas palavras, debrucei-me sobre ela que pouco resistiu ao afago que lhe fiz no rosto. Quando os nossos lábios se tocaram meigamente, a sua respiração ficou ofegante, e o sentir o seu entusiasmo no beijo, fez-me acreditar de novo e ficar feliz por ser capaz de acreditar, e superar finalmente uma descrença mais salgada que o sal. Ela descobrira que albergava sob a sua própria consciência, um eu. Sob as decisões diárias de alguém que se trata a si mesmo como res extensa e res cogitans das quais se tem suprema posse, ela não concebia a possibilidade de um elemento neutro, abstracto, operante e canalha, a operar sob o seu sistema operativo. O eu. Ela viu que o tinha, quando, a chorar de solidão para a almofada, enquanto o gato cagava no areão na marquise, mais que se arrepender das decisões tomadas, contemplou, finalmente, o impacto das mesmas não em relação ao seu umbigo, mas em relação ao umbigo dos outros. Thread lightly because you are threading on my dreams, ou algo apaneleirado assim. Conseguiu, acto raro, sair do egocentrismo básico e primário, para uma análise fria do lugar do outro como se fosse o próprio. Limpou as lágrimas, sentou-se na borda da cama fria e vazia, e deteve-se a calcular como se sentiria ela mesma na situação do outro, se o que fizera, a ela mesma tivesse sido feito. Sem as paneleirices ilusórias do ego, que tudo faz para nos lavar a alma... mesmo que mates 500 crianças, a função do ego é convencer-te que foi o melhor que podias ter feito, e que lhes podia ter acontecido. Por força das circunstâncias, tens o ego a justificar porque foste uma cabra sem coração, a pensar exclusivamente no teu cu, quando foste além de descartar um gajo, tiveste de o humilhar e reduzir a pó. Ressabiada por a escolha prévia ficar entre o idealizado e o percebido como concreto, havia que castigar, sim, é esse o termo, o tipo que oscilara nas tuas equações solipcistas. Foi como que uma catarse de ódio por tão longo período de desprezo. E como a necessidade é estulta madrasta, a mula do Papa solta coices muito violentos. Mas ela não desejava quem a amava e lhe queria bem. Isso é fácil arranjar. Basta mostrar os dentes, dar umas fodas, e esperar que o chumbo dentário não seja demasiado visível. E mesmo que o seja. Os homens são uns tolos adoráveis que querem tudo o que mexe. Não, arranjar homem não é problema. A qualidade do homem é que põe desafios, e se põe desafios, coloca também dúvidas sobre o mérito próprio, sobre a auto-estima. Não ter um prémio, reduz a capacidade de conseguir viver consigo mesma. Que a celulite nas pernas e as papadas sob o queixo, não tirem tesão. Tenta escondê-las, seja nos ângulos das selfies, seja por via de maquilhagem experimental, seja pelo poder negacionista do ego. Poder, que a faz olhar ao espelho, e o ego, essa voz demoníaca por detrás dos olhos, visa facilmente, negar a realidade, não tens papadas sob o queixo, isso é normal, a tua carne não está velha, apenas madura, não estás caduca, apenas madura, alguém te vai amar como és, preferindo-te à tua versão 20 anos mais nova. E se não o fizerem, são todos uns grandessíssimos cabrões. Ó raça. Sem que ela dê conta, na sua azáfama semanal de e para o trabalho, na habitação moderada que conseguiu, longe dos pais e dos irmãos, das primas e dos tios, o ego labuta em surdina, tomando mão de tudo o que a mente consciente lhe tráz, os melhores silogismos, as frases feitas, não que não tenha ele mesmo, como ancião coscuvilheiro e manipulador, influência nas avaliações e cogitações diárias. Como caçador de borboletas, procura na realidade frases, sinais, ideias, que ajudem a compor a narrativa salvífica. No final da composição, o indivíduo sai protegido, limpo, isento de qualquer culpa, e pasme-se, de qualquer responsabilidade. Ah, foram os homens, esses malandros que não sabem o que querem, mas só querem sexo. Ah, foram os homens, que me trataram como depósito de esporra, mas que eu afastei todos os que não me tratavam enquanto tal. Fodê-los para esconder o facto de que como indivíduo, pouco mais ofereço que um corpo bom para se ressonar em cima. E esporrar dentro. Ah, foi o alinhamento dos astros, e não qualquer incapacidade de cogitação retrospectiva dos meus actos. Mas sine qua non, a culpa tem de ser deles. Ai de mim, perceber que sempre tive um eu. Opá tinha sido tão bom, mostrar o novo troféu, sofisticado e rejuvenescido, à minha rede de aprovação. Mostrar que estou em controlo da minha vida e que tenho, também eu, um homem de qualidade superior aos anteriores, para mostrar como medalha no 10 de Junho. E para provar a mim mesma que sou passível de ser amada por outros, já que eu não consigo amar-me a mim mesma...e por arrasto, alguém que não tenha mais que valor de utilidade para mim. Se a verdade se viesse para a minha cara, como se vêm todos estes novos prospectos de redenção, eu não gostaria da imagem de Dorian Gray. Tal como fantasmas, bruxas, espíritos e pais natais, o eu está aí, para ser visto. Invisível apenas para aquelas que acham que fazem a mínima ideia do que estão cá a fazer. A prontidão que ela revelou a desembocar uma história inventada à pressão, fez-me duvidar se não seria esse o seu originário intuito desde o início. Tornar-me refém da sua vontade de esporrar palavras, por via do sacrifício prévio de ter de ouvir as minhas. Esbocei uma lágrima, pois estava convencido de que era por admiração pela minha obra, e não por um motivo tão egoísta como este. E ela começa: «-É difícil arranjar quartos com casa de banho em comum, em Lisboa. Queria sentir aquele cheiro a urina, masculino, que entra pelo nariz adentro, por ser agressivo, desagradável, mas suportável. O cheiro a mijo faz-me sentir viva. Queria conhecer um médico que me dissesse ou explicasse qual o componente do mijo, que me transporta para o âmago destes primatas de carbono. Recebo no email o convite da editora, para ir à soirée do lançamento da colectânea. Vai lá estar o gajo que me deixou acordada por um par de noites, a tentar perceber de onde vinha nesse jeito agridoce de se referir às mulheres. Lia-lhe os textos à noite, na cama infestada de percevejos, no único ‘hostel’ onde encontrei as condições análogas às de Pacheco, Monteiro e outros históricos que conheci na faculdade. Como posso eu almejar ser escritora, se não sair do meu pedestal burguês, e me enfiar no húmus miserável do existir humano? A cada frase no seu blogue, desligo chamadas do meu pai e da minha mãe, desesperados por eu não aceitar que me ofereçam um apartamento ali em Telheiras. Como lutador, não posso escrever se estiver em conforto. Serei A romancista portuguesa do século XXI, ou morrerei tentando. Mas este cabrão, imprimia intuições inquietantes nos seus textos, a manipulação do feminino para efeitos de autoconhecimento, a suspeita de um outro mundo por debaixo das aparências afáveis, uma postura moralista em relação à diferença entre o expectável e o comprovável nos comportamentos humanos, especialmente das gajas. Mas também a expressão de alguém que gosta de foder e que fode por paixão. Não, este cabrão não deve foder para esvaziar a tomateira, este cabrão fode, e gosta de foder, com quem ele gosta, ele ama. Tenho de o conhecer. Mas aposto que este é o tipo de cabrão que cheira agenda a quilómetros. Tem a atenção ou o sistema reticular, especialmente calibrados para distinguir falso amor, love bombing e merdas do género. Este gajo quer ser realmente amado e só o posso ludibriar se fingir ser amor o amor que deveras sinto. Foda-se. Tenho de acreditar no meu próprio fingir.» Neste ponto, confesso-te, não sabia o que pensar. A crueza do exposto incomodava-me e reconfortava-me. Esta não era uma gaja normal. Era alguém que eu podia respeitar. Alguém com vida interior superior aos interesses comezinhos e vistas curtas. «-Por isso, vês, eu tinha de vir aqui, ver que caralho de homem escrevera aquelas linhas. Não para saber se valia a pena sacar-lhe do gervásio para fora das calças e lambuzar-me com uma massa inerte mas expressiva, dentro da minha boca como honra ao meu respeito pela força primordial, primal, ontológica, que abafa a consciência como um homicida com almofada sob um rosto de idosa que roga pelo alívio da vida. Algo na sua escrita me interpelara. Me captara a atenção. Não queria saber de gajos com Porsches ou caipirinhas com vista para o mar em bares finos e caros de Cascais. Eu, preferia este cabrão, a outros cuja filosofia hedonista não me faria progredir enquanto ser humano. Ao passo que com este, com as suas verrugas, chulé, odor corporal, cabelo despenteado e dentes desalinhados, eu retiraria algo de mais próximo com a verdade das coisas. Com este e outros como este, com cabelos gordurosos, olhos tortos e torturados a partir de dentro, com as suas roupas desalinhadas, inabilidade de serem totalmente aceites pelos outros, com esses é que eu me tinha de dar para me conhecer e ao mundo. Quem não tem uma missão dedica-se ao hedonismo, à recepção fútil de impulsos eléctricos dos sentidos interpretados pelo cérebro. Não, eu queria acesso à verdade, ao pulsar do mundo. É uma escolha. É uma questão de gosto pessoal e congruência. Queres viver no país das maravilhas, vive. Eu não, não tenho tempo a perder. Mas eu entendo-te. O prémio bípede que agora se afigura como tua melhor opção, parece de facto, o melhor caminho, não é? Todas as forças do teu corpo se orientam para a ideia de que é essa opção a verdadeira e derradeira. Toda a aparência se conjuga para fazer parecer que o brilho equivale ao ouro. Ainda bem que assim é! Dá uma hipótese à gazela, de poder fugir ou proteger a jugular. A estupidez das gajas é a válvula failsafe para os gajos. Pelo menos para os que conseguem, ainda, ver. É o verdadeiro teste, de personalidade, de adesão amorosa. Só sabes que alguém te ama, quando todos os aparentes motivos para que não o faça, são aparentes. Colocando o pézinho em vara verde, ficas a saber. Tive de perceber a osmose entre o meu sentimento de mim e a força arrebatadora do meu instinto, que sobrepujando toda a racionalidade, cria o sentimento de urgência, a ansiedade incurável e asfixiante de sentir que tenho de largar um para capturar o seguinte. De como em mim, algo que não eu, conspira para esculpir a cinzel a estátua novamente para bloco, o amado, para estranho desprezível, a fim de a minha mistificação se depositar total e fielmente, no novo objecto de desejo. Tive de lutar contra essas forças e contra o pior instinto de todos, aquele que me faz sentir traidora de mim, se não obedecer a todos os outros instintos. Que puta esta Natureza, funcionando como relojoeira e ourives. Depois que me conheci como mulher, consegui dedicar-me apenas à lógica e a lógica trouxe-me até ti. Andava à tua procura há anos. A tua alma amargurada, ressequida, ressentida e ressabiada, mas também angustiada, dando placenta a um monstro desesperado que teima em não nascer, abortado sempre que sentes ir perder o controlo de ti. Por isso te afogas em cerveja, para ires aguentando a visão cada vez mais clara das coisas. Tens-me tentado conhecer, fazer queixinhas até, pois podes parar, aqui estou para atender às tuas preces. Eu vim, para ser tua Deusa.» Raros são os momentos na minha vida em que fico com a boca seca e um sério e profundo medo. Tinha a laringe inchada e sentia latejar nela o meu coração acelerado. Uma ou outra tontura fez-me engolir em seco e chegar a mão à gola da camisa para aliviar um botão. Ficámos a olhar um para o outro, excitados e em silêncio. Foi ela que desfez o silêncio com um «-Então, que achas?» O seu sorriso foi irónico e suficientemente dado, para me dar alguma segurança, mas também para eu ficar na dúvida acerca da sua natureza, ou divina, ou telepata, ou simplesmente louca, que em qualquer dos casos, me lera e lera bem, os textos. |
Viúvas:Arquivos:
Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|