Acordei de um sonho, a meio da noite, onde estava preso por algo, não podendo sair, mas não vendo o que me prendia também. O que sentia, era que algo de interno me mantinha aprisionado, incapaz de sair. Seria baixa auto-estima ou uma mentalidade batida de criança assustada? O que me prendia à situação desesperante e meio difusa do sonho? Desço da cama, sei que não voltarei a adormecer, a tempestade nocturna amaina, e meto mãos a merdas que tenho de fazer e tenho procrastinado. Mantenho o som do computador desligado, e a meio das tarefas pousa em mim o pensamento sobre a adequação daquilo que acho que sou e aquilo que acho que as pessoas pensam sobre mim. Se tenho a inteligência necessária para controlar o ego do meu orgulho, ou o orgulho do meu ego…sei lá. Porque se não tenho, percebo que posso desagradar a muita gente, impondo comportamentos meus que não consigo não ter, sob pena de sentir de alguma forma, que me estou a trair. Tenho o telemóvel enfiado num dos volumes da ‘História de Portugal’ que estava a ler, e por estar o som abafado, não ouvi as mensagens que chegaram. Uma era dela, a perguntar se me apetecia ir a casa dela. Há 3 horas. Posso ir de jipe, mas não tem a inspecção. Tenho de ir com aquela merda à IPO. Mas será que quero mesmo meter-me para o meio de Lisboa, para pinar uma tipa que deve estar a dormir agora, ferrada no sono. Rio-me e lembro-me de quando isto nem era uma questão que me passava pela cabeça. Repito para mim, ‘-João, tens de engolir cada vez mais moeda falsa, fabricada por ti.’ Porque senão, bem o sei, nem vale andar atrás das cachopas. Respondo-lho à sms dizendo se quer que a vá comer à bruta. Foda-se, para comer à bruta tenho de acreditar, e a minha fé anda tão baixa nos dias que correm. Recebo uma resposta. ‘-Já cá devias estar.’ Lacónica. Vou tomar banho de água fria, escolho uns boxers que não estejam rotos ou desbotados. Meto perfumante, e ao olhar ao espelho exclamo ‘-Cabrão, tens de ir correr.’ Passo horas sentado e o pneuzinho acena do outro lado da reflexão. Chegado à casa dela, (deixei o carro na Expo e fui o resto de TVDE) e depois de ouvir a censura da minha mãe, primeiro que sou maluco por sair a estas horas, e depois com o habitual ‘-Andas numa rica vida…’ – não ouvi mais porque fechei a porta de casa rápido o suficiente- ligo por Whatsapp, e digo, ‘-Boazona abre aporta.’ Um clique metálico destranca a passagem, e quando me abre a porta, recebe-me coberta por uma camisa branca de homem, toda nua por baixo, que é como dorme. Gracejo perguntando se a camisa é do marido, mas não me deixa acabar a frase porque me enfia a língua boca a dentro, o que me faz ficar logo pronto para a comer em cima do estirador que tem o espelho que nos saúda à entrada. Aí uns 15 minutos após os gritos dela e o estirador a bater na parede, os vizinhos do lado batem com algo de madeira na citada parede e lá do outro lado ouve-se uma voz que diz ‘-Parem de foder pá!’ Desatamo-nos os dois a rir, ela mais preocupada pois tem de os ver todos os dias. Mesmo tento parado, ouvimos a discussão que se passa do outro lado da parede, despoletada pelo nosso acto lúbrico, aparentemente. ‘-Vieste-te?’, pergunta ela. ‘-Não.’ – respondo eu. Debruça-se sobre mim, e começa a engolir-me a pila, puxo-a para cima, e digo que não tem de retribuir nada. Ah mas que quer. E eu digo que temos tempo, e ela responde que tem de sair daqui a duas horas. E eu, mas foda-se e disseste para eu vir? Fico aqui a fazer o quê? Ela diz para me acalmar, posso dormir na cama dela, que vai mas volta, um não sei quê não sei onde. É uma tipa que conhece e faz parte da malta inteligente e fina de Lisboa. Dezenas de malta que desconheço por completo, todos muito certos e bem-sucedidos na vida, que descendem sempre de alguém importante. Rio-me sozinho por pensar que Lisboa e a vida intelectual da cidade, é em parte uma comunidade endogâmica, de gente fina mesmo que se digam de ‘esquerda’, que se perpetua ao longo de décadas. Quando me leva aos bares dela, diz-me aquele é o tal que pintou o grande quadro y, e é neto de um qualquer grande poeta dos anos 50. Aqueloutro, filho ilegítimo do maior escultor português do neo neo retro realismo. Foda-se, e eu que sou filho e neto de proletários anónimos. Digo-lho. Ri-se divertida, e faz questão de me beijar, esfregando o seu casaco no meu, forçando as peles mortas dos animais que nos aquecem, a gemer mais um pouco a partir do Além. Lembro-me disso e reconheço que ela até é fofinha e decente comigo. E deixo de estar chateado, festejo-lhe a franja e beijo-a ternamente e em breve penetro-a devagarinho. Sai satisfeita do quarto, e adormeço. Quando acordo é dia e estou sozinho. Vejo se tenho chamadas. Tenho 3, não atendidas, que tinha aquilo no silêncio. É de um amigo que se está a divorciar, ou para divorciar, há anos. Que precisa de falar comigo. Na pastelaria onde nos encontramos, evita chorar por haver muita gente à volta. Eu feito estúpido, vou-lhe dizendo para largar a gaja. O filho dos dois é crescido, já não adianta permanecer com ela para não traumatizar o miúdo. A quantidade de tipos que eu conheço na mesma situação, é elevada. Ficam, porque é a coisa correcta de se fazer, neste mundo dos homens. Auto-sacrifício tendo em conta o bem presente e futuro da vida da criança. Mas há algo mais. Neste destroço em forma de gente, que passa 10 minutos a remexer o açúcar no café, como que se os círculos desenhados a preto morno, o fizessem pensar. Destroçado entre uma opção que já tomou mas não consegue concretizar. Destroçado entre as ruínas da fantasia decorrente do seu investimento emocional, numa relação que achava ir durar para sempre. E agora essa certeza desapareceu. No lugar dela voltou a ameaça de solidão, e pior, a ausência dela. ‘-Mas como podes gostar dessa puta?’ – pergunto eu, estupidamente. Sei perfeitamente que o sexo prende a malta emocionalmente, a menos que a tipa seja mesmo, mesmo execrável. Mesmo que nos vá limando, pound of flesh a pound of flesh…até que sobre apenas uma ameaça de carcaça do nosso ser anterior. A mulher julga que esculpe o homem, tornando-o melhor. Transforma um bloco acabado e útil, numa massa disforme, ornamental, sem função. Quando se apercebe do seu cinzel cego, o objecto perde a utilidade e enjoa como ornamento demasiadas vezes visto. E ele não a consegue largar. Sou estúpido de novo e pergunto, ‘-Se te aparecesse uma gaja boa, de quem gostasses, ias ver, largavas essa num instante.’ Não o devia ter dito. Insinua que o problema de gostar de uma gaja, é uma questão de abundância de alternativas. Desvaloriza todo o investimento emocional que ele fez na tipa e na vida em comum. Não sei. Ele olha para mim, ri-se, e volta a cair no seu mundo inescapável. Ela tem-no bem enrolado no seu dedo. E ele concorda, ou não. É uma merda gostarmos da outra pessoa. Não nos passa pela cabeça sair. De noite volto à casa dela, e após afagos vitaminados no chão da cozinha, adormeço e sonho que estou preso e pendurado num penhasco. Que só roendo a perna pelo joelho me liberto. Faço-o. Caio. Não há para onde ir. Os anos passam. Dá-me a fome, mas já nem erva há que me sustenha, quanto mais carne que eu possa perseguir. Para não morrer, vou comendo pedaços de mim mesmo, só para prolongar mais uns instantes, a estadia do lado de cá. Com dores, gasto, dorido. Mas cá. Se é isto estar vivo, Deus tem sentido de humor. Sinto no sonho, que Ele sorri e lança lá do alto, a Sua aprovação, porque pelo menos luto, esbracejo na miséria. Foda-se. Acordo. Visto-me. Saio porta fora. Para não voltar.
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Ela soluçava amiúde, à noite, sozinha na cama, depois de ter metido os miúdos a dormir. Lê umas páginas de livros fáceis de ler, para ver se chama o sono e para sentir que a vida não está estagnada. Sente-se evoluir ao ritmo de cada página de romances de cordel, sente uma alteração decorrente da leitura, mas não o suficiente para ter o tapete varrido debaixo dos pés. Pergunta-me o que eu achara do que me contara. E eu perguntei-lhe : ‘-Queres a minha opinião fofinha, ou o que realmente acho?’ Olho para a cara dela a tentar perceber se vai ser ela o unicórnio que não encara a minha opinião como um ataque pessoal, uma censura proveniente de ódio, uma manipulação que lhe visa baixar o valor ou a estima, e mantê-la controlada, apenas…porque lhe digo o que penso, e o que penso não é agradável para seus ouvidos. Peso as minhas palavras de modo a conciliar a minha jura de não trazer mágoa ao mundo, com a intenção de provocar uma introspecção no outro, vejam bem o arrogante que sou. Como se as pessoas levassem a sério, quem não conseguem respeitar. O que ela queria ouvir era que eu concordava com a sua opção em abandonar o marido. Disse-lhe, que da forma como me contara as coisas, eu só podia achar que ela era um pobre destroço humano a meus olhos, na medida em que largara o marido por motivos fúteis, por lidar mal com a sua própria idade, pelo sentimento análogo ao desespero de uma vida que parece que lhe passou ao lado, e que todas as suas relações a partir daí não teriam passado de um afã pessoal em envenenar essas mesmas relações, para conduzir as mesmas a pontos de ruptura, onde ela corta de forma resoluta e espectacular, com a outra pessoa, com a intenção última de mascarar para si mesma, os motivos frívolos pelos quais se envolve, e os motivos frívolos e egoístas pelos quais se afasta, ao mesmo tempo que o corte espalhafatoso e provinciano, a encenação representada para si mesmo, desnecessária, mesquinha, lhe dá a sensação de que faz algo de grandioso, do tamanho do seu ego e da sua suposta paixão. Ah pois, anda por aí muita gente que acha que é grande por achar que aquilo que pensa dos seus afectos, é grande também. Dei-lhe o exemplo do sapo e do boi, e do quão difícil para ela era inchar até ao tamanho almejado por seus olhos. ‘-És muito pequenina. Mas não tomes isto como uma crítica pessoal, julgo que o teu tamanho vem do mecanismo de defesa do teu ego, da lavandaria que tudo lava, incluindo os vestígios do local do crime.’ Creio que não percebeu, mas isso não a impediu de responder: ‘-E se fosses para o caralho? Mas não tomes isto como uma crítica pessoal.’ Pronto, não era o unicórnio. Perguntei ‘-Pediste a minha opinião e respondes-me assim?’ As feições do rosto haviam mudado nela, a aspereza do que eu dissera, ainda que à sombra da honestidade, magoara-lhe um âmago que só esperava confundir anuência com paixão incondicional que ela era, é, e será para sempre…incapaz de reciprocar. Um animal ferido não tem considerações éticas. E a vida burguesa dela, apesar de nada ser senão anedótica para com outras histórias de vida mais agrestes, era ainda assim, um calvário de pequenas feridas e mágoas, de pequenos ocasos de bondade por parte de outros, por certo tendo a ver com o facto de que o aspecto físico condiciona muito a forma como nos tratamos uns aos outros. Há um viés inescapável, para com as pessoas bonitas, que ela não era. Nem por dentro, no que me dava a conhecer, nem por fora. Andava pela casa, com berros grandes e ostensivos, enquanto o meu esperma lhe escorria pelas pernas abaixo, em direcção à casa-de-banho, tentando projectar uma personalidade que não tinha, mas fingia ter. Da mulher resoluta e que trata por ‘tu’ a vida. Alguém cuja ideia do mundo é a acertada por ser igual à dos demais. Com feitio inicialmente pacato, talvez se tenha deixado atrair por comportamentos estridentes, como forma de deixar marca memorável na mundividência dos ‘outros’ de onde retira para si própria, a sua auto-imagem. Que isto de não ter introspecção, força a que parasitemos a imagem que os outros têm de nós, para confirmarmos a nossa auto-imagem, que não conseguimos formular, por manifesta incapacidade e cobardia, de olhar para dentro. Aquilo a mim, ofendia-me. Fazia com que ela se assemelhasse a uma taberneira. Toda a sua proactividade e voluntarismo, além de soarem a falso, pareciam-me uma deselegância. E dizia-lho. Ela respondia que eu tinha medo de mulheres fortes. Eu ria-me por confirmar assim que a minha suposição sobre ela, estava certa. Ela queria que pensassem que era forte, por ter um feitio de merda. Eu ria-me e respondia que gosto de mulheres fortes,fracas e até marrecas, desde que femininas. Que não quero encarar numa tipa, o mesmo comportamento agressivo e confrontacional, que encaro todos os dias no trânsito, por parte de labregos que recorrem sempre à ameaça física para condicionar um estranho que conduz uma anónima viatura. Dizia-lhe a ela, que esse tipo de postura decorre, porque não tem consequências. Nenhuma mulher se arrisca a levar um murro na cara sendo forte e proactiva para com um homem. Ao passo que, pancadaria no asfalto, ou noutras situações onde não há peso nas acções, resultam em dentes partidos e falanges deslocadas, pelo que há mais reservas, na proactividade e voluntarismo no mundo dos homens. Sim, os tipos não hesitam em espancar ou outro, por uma fracção do desrespeito com que uma qualquer ninfeta possa ter para com ele. Geralmente, depois de dizer isto, lá iniciava ela o fado das suas tretas. Os lugares-comuns repetidos ad nauseam, para justificar a sua posição sobre as coisas…sem introspecção que a sustentasse. Chamava-me machista, falava de masculinidade frágil, e engolia a maior parte do que queria dizer, pois ainda acreditava que eu iria confirmar a ideia que queria ter de si própria. Eu via claramente as contas de merceeira que fazia, o cálculo energético que lhe norteava as acções. Via através das suas atitudes, da sua forma de tratamento, a minha posição na sua mundividência, aferindo sempre se eu retribuiria ou não, o seu próprio investimento energético na coisa. Nas poucas vezes em que olhei a fundo nos seus olhos, via um quid lá por detrás deles, suponho que a sua verdadeira identidade, afogada em milhares de tácticas militares com finalidade defensiva. Que todas juntas, formavam uma nova 'ela', bem distante do ponto de partida. Lamentava, pois era esse quid náufrago, que lhe permitiria alguma vez, voltar a fazer alguém apaixonar-se por ela. Mas ela havia escolhido. Havia escolhido a si, e a não voltar sofrer o que fosse. Só que as merdas não funcionam assim. Determinando desta forma o que permitiria que a vida lhe enviasse, apenas fazia uma lavagem cerebral a si mesma, sem consciência de tal, porque não tem introspecção, ou pelo menos, uma que fosse além do choro à vista de uma praia num Inverno lúgubre. A escolha é sempre a mesma, ou escolhes a verdade ou a felicidade. Ambas são mutuamente exclusivas. Aproximara-se de mim, uns meses antes, numa sessão de dedicatórias, e imediatamente senti a vibe da minha instrumentalização, de acordo com uma imagética alienígena para mim. Parece-me que aos olhos dela, eu simbolizava todos aqueles badboys com algum brilho que a desprezaram ou fizeram sofrer no passado. Um objecto com brilho, que por outras palavras, é um artefacto que reflecte luz. Conquistar-me tornou-se desde então, a sua forma de provar a si mesma e ao mundo, que tinha o que era necessário para manipular os afectos de alguém que considerava, ainda que temporariamente, acima, numa qualquer escala social que imaginava na sua mente colectiva. Um pouco como um gajo alivia a tensão de uma má opinião de si próprio, seduzindo a rapariga mais bonita da escola ou do trabalho. Troféu que permite viver mais um pouco consigo mesmo, ou pelo menos asfixiar a crença interiorizada de que somos filhos de um deus menor no cômputo geral e no meio da restante macacada. As rupturas estrondosas, a opção por tarefas hercúleas à partida, apenas visam engrandecer o tal sujeito que se sabe pequeno, afundando lentamente sobre o peso de um outro ficcional, que toma as rédeas à frente do quid, que gradual, e lentamente, vai morrendo, sem terreiro onde se exprimir dançando enquanto chove. Como peça de puzzle que não se encaixa senão com uma marreta, queria forçar-me a encaixar nas suas ideias e crenças sobre o mundo e as pessoas. Além de que era mais uma com a mente dividida pelo grupo de amigas, que afogam mágoas em jantares intermitentes de codependência tribal. Pergunta-me o que quero que use de lingerie, e compra uma que lhe parece agradar-me, completamente diferente do que eu sugerira. E ressente-se por não me provocar efeito. Ou o efeito esperado. Cálculo energético. Não, não entrara a bordo. Infere a partir daí que sou um caso perdido, que não exprime as emoções por ela, que a reconfortam. O outro reduzido a mera caixa de ressonância de um wishfull thinking. No fundo, que não a apaziguem na crença que quer ter do mundo, das pessoas. Do sexo. Começo a perder a tesão por ela, e percebo que cortará comigo o quanto antes, para não passar pela vergonha de situações constrangedoras, de perceber que um gajo a fode noites inteiras numa semana e noutra prefere nem aparecer lá por casa. O que mostra, que no fundo sabem, sabem bem, que há a possibilidade de ser tudo uma avaliação a si mesmas, não ao que ‘verdadeiramente’ são ou foram, mas à personagem de merda que desenvolveram para se protegerem a si mesmas da inevitabilidade da dor. Putas hedonistas que optam por uma vida de fingimento à procura de vidas genuínas. E antes que o outro, desiludido pela pantomina do enamoramento, corte polida e gradualmente, cortam elas, corta ela, sem apelo nem agravo, de forma grandiosa, para mascarar a sua própria pequenice. Passamos metade da vida a sonhar, e a outra metade a acordar para o pesadelo. Ela diz ‘-Tu és um completo traumatizado.’ Oiço, e cogito, sobre o significado da afirmação. Que algures paira a acusação de inadequação, de ser amargo por causa das circunstâncias da minha história, do meu Do, como dizem os japoneses. Por outro também percebo que há um intuito de iludir, além de vexar, ou enconar. Como se ela, controlasse uma supranarrativa segundo a qual, a visão justa das coisas e dos acontecimentos, seria contraposta a discursos como o meu, toldados pela amargura dos narradores. Como se fosse um ameaço de divindade com melhor acesso ao real que os restantes transeuntes. Como se enunciar coisas que ferem, que doem, que estão mal na natureza das relações hodiernas, fosse um escarro na harmonia. Como se todos preferíssemos uma ilusão e matássemos quem quer que viesse como mensageiro das más novas. Há quem diga que sou um tipo de trato difícil. Eu digo que me aborrecem de morte, as personagens inventadas por quem desconhece ter identidade própria. Sentei-me em frente ao espelho. Olhei prolongadamente para os meus olhos, até ao ponto de desconforto, de reconhecer a existência de algo que não se deixa subscrever pela minha ideia de posse de mim mesmo. Um ente qualquer que é mais do que eu, além do meu controlo esclavagista da minha pessoa, reflecte sobre mim, do lado de lá. Sou obrigado a respeitar-me mais. Perguntei-me sem dizer uma palavra, se tinha feito um trabalho meritório aqui nesta terra, que me podia deixar honrado e descansado pela minha tarefa em ser sempre a minha melhor versão. Mas já sabia a resposta. O arrependimento forçava-me a lamentar, que podia ter cumprido o potencial que acho que tenho, e não ter magoado algumas pessoas, que acabei por magoar pelo caminho. Ser romântico é o mais profundo instinto que um homem pode ter no que diz respeito a desejar que o mundo fosse um lugar melhor. Querer acreditar na unicidade do aperto carinhoso e prolongado dos lábios, é a forma de se enganar a si mesmo, fechando os olhos e imaginando que o amor é uma essência qualquer na forma de piscar de olhos pessoal, do mundo ou de Deus, à sua pessoa. Por isso quando está em torno da que lhe capta os afectos, o tempo parece parar e mais nada existir. As imbecis acham que é só tesão, e não um vínculo único e extraordinário entre dois caminhos que se cruzam. Estou farto de imbecis, e a culpa é minha, de ser tão imbecil a escolher. Não, não sou melhor que ninguém. Mas sei o que quero, mas não me dou ao trabalho de procurar. Qualquer pessoa toca à porta e entra porque a mesma está aberta. Acham que é um efeito que emana dos seus corpos, que estes não se degradarão nunca, e que lhes diz pessoalmente respeito. O que as faz pensar isso é uma profunda inveja por serem incapazes de amar assim, tão profunda e idealmente. Uma mulher olha para um homem como se fosse um cavalo de corrida ou um amuleto qualquer. O homem olha para a mulher como se ela fosse deusa, mistério do universo, ou res extensa, objecto para seu uso, quando se fartou de receber o mesmo tratamento…e considera retribuir de forma igual. O ódio entre nós, tornados joguetes em nome de outra coisa maior, a nós completamente alheia. Condicionados pelos ventos que sopram das modas humanas em nome de outras vontades e ideias. Até que ponto o outro olhar emanado por detrás dos olhos, vem em busca daquilo que eu seja? Até que ponto aguentamos olhar a sério uns para os outros de frente e bem lá fundo, onde incomoda por não percebermos para o que estamos a olhar? Até que ponto não procuramos apenas a superfície uns dos outros, reconfortante apenas por nos conseguir enganar por mais meia estação? Acreditar no destino é uma maldição para quem acredita. Bem-aventurado aquele que acha que é tudo casual e aleatório. Que não tem de lidar com a dor de uma rejeição que não entende, por alguém em quem ainda acredita pertencer. Monólogo em frente ao espelho, para alguém que no final não está lá, o espelho no fim não reflecte imagem nenhuma, o monólogo é um diálogo para uma mulher idealizada. Liga-me um amigo, que quer jantar comigo. Trabalha como guia e especialista de arte portuguesa na Idade Moderna. Aliás, foi assim que nos conhecemos, numas aulas. Que tinha um engate em Coimbra, num Sábado, e que se eu podia dar o tour a um grupo de canadianos, para ele poder ir a Coimbra atrás de uma morenaça de quem me mostrou as fotos num perfil qualquer de rede social. Eu disse-lhe que não era guia acima de água, nem de arte moderna. Epá não há problema, mostra-lhes Lisboa e vai dando umas lérias que eles não percebem nada. O jantar era afinal, a paga, e já estava no bucho. Seja. Sábado de manhã, os olhos dela não largavam os meus, dois buracos verdes em carne branca, por vezes tapados por um berrante cabelo ruivo. Em inglês ia explicando umas merdas de arquitectura, e as pracetas e as efemérides e as mortes. No Restelo, ou por lá perto, ficaram horrorizados com a história dos Távoras aos 4 ventos, e ela ficou a minha maior fã quando percebeu o trocadilho de que do outro lado do rio, a mesma cidade é Almada, e do ‘nosso’ lado, desalmada. Ao jantar ouviam deliciados as minhas memórias deslumbradas sobre as várias Lisboas que conheci, e deixei alguns incomodados quando indiciei que a Lisboa dos turistas, é como ter uma filha violada por cães raivosos, todos os dias. Ela antagoniza-me, o que é um sinal de me querer, dizendo que os turistas deixam cá dinheiro e eu digo que apenas deixam dinheiro para oportunistas cujo modelo de negócio é meter outros a servir à mesa. E que nada percebem dos sítios, pois passam por eles como a raposa de Torga, na vinha. Ela disse que eu estava a generalizar, que por acaso tinha cá casa, e ia passar a morar cá. Quando eu disse ‘-Good for you.’ Ela perguntou-me se a queria ver. Todos à mesa cruzaram olhares uns com os outros, e eu disse que sim. Entrámos em casa dela e foi logo fazer um café, ali por alturas da Graça. Descafeinado, atalhei. E ela perguntou porquê. Respondi que se bebesse café às 23 da noite, iria passar a noite sem dormir. Respondeu-me ‘-Thats a double shot for you then.’ Porra. Não me lembro de alguém tão directo e com vontade de receber o meu suor pingando no seu rosto alvo. A casa estava cheia de caixas, estava a fazer as mudanças, e ao primeiro beijo dei graças a Deus por não ser esta, ou parecer, daquelas que compõem a tragicomédia das aplicações de engate, com as mesmas frases, roupas, e até a perninha alçada e língua de fora para parecerem joviais. Hinos à frivolidade que não servem para mais que enganos e reprimendas se por acaso lhes perguntas o que significa a língua de fora, a perninha dobrada pelo joelho e a sapatilha branca a tocar com a biqueira no chão, as fotos de ginásio com headphones hipertrofiados e licras justas ao corpo. O tinder e o bumble são casas mortuárias e ecos ao infinito de gente que se imita, e que parasita outros para fugir das monotonias diárias. Na cama, passado o período refractário e tentando não cair na fantasia melosa de pensar que ‘This is it’, acordamos de manhã e beijamo-nos, e ponho-me a andar que tenho de fazer. Ela pede-me para ficar e pergunta-me se me voltará a ver. Respondo que sim, claro, só hoje não posso, que tenho trabalho. Ao Domingo, pergunta. Sim ao Domingo. És casado, sim, sou, com o meu trabalho. Qual é o teu trabalho, pergunta. É entender. Não gosta da resposta, mas não insiste. Ao sair pela porta, digo-lhe para me ligar quando quiser, ou quiser que eu venha ter com ela. Terça-feira liga, e acedo a ir ter com ela. Já na cama, exausto e feliz, volto a lembrar a imagem que vi ao espelho. E quando percebi que sou uma tarefa de mim mesmo, muito mais importante que a satisfação das minhas vontades imediatas, agora de colhões vazios é fácil falar, arrependi-me profundamente pelo tempo gasto em bocas que não eram lar. De rompante alguém entra pela porta, à nossa direita, e ela salta sobressaltada da cama. Era casada e o gajo viera directo da Portela, do aeroporto, desconfiado de que algo se andava a passar, mesmo antes de eu aparecer na vida de ambos. Levanto-me de imediato, visto as cuecas, e só digo ‘-Foda-se, não posso ter um momento de paz.’ Eles discutem e constato com algum asco e horror, que este é daqueles filhos da puta que acha que se espancar o outro, ela por artes mágicas fica isenta da traição. Ah filha da puta, penso eu, achas que sou um ping de computador? Que anda aí a fazer-se a tudo que mexe. O gajo vem com uma soqueira, que tinha no bolso do casaco Camel, a dizer que me vou arrepender de me meter com as mulheres de outros. Ela aos gritos, e eu aviso o tipo para meter aquilo no bolso, e que eu não sabia que ela era casada. Não usa aliança, não tem fotos numa casa para a qual se está a mudar, nada. Não sou adivinho ó cabrão. O gajo está cego e avança, falhando-me o rosto por pouco, porque me esquivei. Apanhei-lhe a têmpora com uma cabeçada, e ao vê-lo cair no chão, aproveito a dica para me por dali para fora. Mas ele não apaga, e de um dos bolsos tem uma Glock 9mm escondida, e ilegal. Sinto duas pontadas nas costas, e todo o mundo abranda, até os gritos tresloucados dela. Um sentimento de calma parecido ao de quando nos mijamos na cama, invade-me, e o chão de soalho flutuante, parece subitamente convidativo para um abraço. Vejo sangue escuro tornando-me numa ilha, e vem-me uma lágrima ao olho de imaginar a aflição da minha mãe. Desde que me conheço que faço tudo para tentar agradar-lhe, que seja feliz aqui nesta terra. Foda-se. A porta é arrombada por alguém do lado de fora, que estaca à minha imagem prostrado no chão. Passa algum tempo, tocam-me no pescoço, e o som do mundo vai baixando, e a última imagem que vejo é a de um bombeiro que me levanta a cabeça para me enfiar uma máscara de oxigénio. Já não vais a tempo camarada. Uma luz branca e difusa dirige-se a mim, e pergunta-me ‘-Como estás João?’ Tento olhar a forma da luz que me envolve, mas estou meio combalido como que me habituando a novo líquido amniótico. Penso em sentar-me e sento-me, mesmo sem haver cadeira ou sequer as minhas pernas e rabo. Olho para baixo e nada vejo senão uma forma de luz, que parece divertida comigo. Quando a fixo, sem lhe perceber os contornos, parece ficar séria e diz-me sem soltar um som: ‘-Fica aqui meu menino.’ Não sei quanto tempo passa, mas sei que volta com um saco preto, de plástico daqueles do lixo. Isso vejo plenamente. Como se tivesse um gato meio morto lá dentro, o saco mexe-se. ‘-Quem és tu?’ – pergunto eu. ‘-Sou um anjo, mas isso não é importante.’ Se estou morto quero falar com Deus, mas até eu sei que Deus não fala connosco. Mas sei que Ele está por ali. Sinto mais alguém naquele espaço. Espanto-me por só estar eu ali. Com tanta gente a morrer, parece que temos tratamento personalizado. ‘-Sabes o que é isto João?’ Digo que não. ‘-É um outro que como tu queria sair do saco preto do Infinito Esquecimento. Vamos dar-lhe a mesma oportunidade que te demos a ti. E estás aqui porque lhe vamos dar o mesmo corpo e alma que te demos a ti. Todas as capacidades e oportunidades.’ Minha alma estava parva, ou melhor, eu estava parvo. Vi o quer que seja sair de dentro do saco e entrar num corpo de bebé, e como em Imax ou Cinemascope, vi toda a vida daquele filho da puta decorrer, com os meus defeitos e virtudes, mas tirando todos os resultados que não tirei. Ele era feliz, plenamente lá em baixo. Percebi a intenção da mensagem que me davam fora do tempo, fora do espaço. Era para mostrar que eu não sabia o que era estar vivo, viver, fazer o melhor possível. Abanei a cabeça que não tinha e admiti, tendo de dar a mão à palmatória. Sou um falhado de facto. Espero não ter magoado alguém. Foda-se. Um desespero tomou conta de mim, e qualquer castigo que me quisessem dar eu aceitaria. ‘-O que me vai acontecer agora?’ ‘-Voltas para dentro do saco.’ Chorei, mas há de facto, razão para o lamento. Morto por um corno, descubro que me atraiçoei. Vou para aquilo que pensava ser o Céu, e então percebo que Céu e Inferno existem, mas que a gerência é a mesma. |
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