I Recebi a notícia da morte dela, quando estava a acabar o meu turno de trabalho. Um amigo em comum liga-me a avisar. Não tinha família nenhuma e eu era a pessoa mais próxima dela, viva. Morrera subitamente apesar de nem 42 anos ter feito ainda. Faria em Outubro. Esse amigo em comum estava de férias e queria que alguém acompanhasse o caixão, que ele não podia vir, pois só tinha avião para a semana por vir. Tretas. Desatei a chorar no velório, por a ver vestida com o rosto da morte, logo ela que era tão vaidosa. Nenhuma das suas melhores amigas veio da Bulgária, onde tinha feito carreira em investigação molecular. O padre veio ter comigo, e disse-me que eu era o único que cumpria os requisitos de tratar de tudo o que é acessório na morte de alguém. «-Eu?! Mas eu não a vejo há anos.» «-Olhe à sua volta.» Olhei, duas ou 3 velhotas que são habituais nestas coisas, deduzo. Falam umas com as outras, fazendo cara de enterro claro, mas parecem apreciar a companhia umas das outras, mais do que algum sofrimento por ambos os caixões em exposição, separados por um átrio ao meio, e por uma mesa com dois livros onde a malta rabisca as últimas palavras para um defunto que nunca as irá ler, na ilusão de que essas palavras perdurarão até ao Juízo Final. E de facto sou o único na capela. No lado dela. As velhotas fazem parte do mobiliário. Sentem-se bem no serviço publico que acham que fazem. Consolam os outros, com um ar de autoridade e habituação à dolorosa experiência da perda. Dão consolo precisamente por causa de uma dor que fingem, mas que não sentem. Esse fingimento reconforta, sentem-se humanas, que se sacrificam em prol de quem realmente sente o abismo da morte do ente querido. Todos ganham com este pequeno fingimento. O padre coloca-me umas chaves na mão. Fico a perceber porque o cabrão foi tão amável quando cheguei e porque se fartou de me perguntar sobre como a havia conhecido. Estava a fazer-me o raio x. Por ter deixado cair que fôramos namorados, uma hora antes quando me viu a chorar junto ao caixão, ele deduziu que eu era o melhor para não lhe dar o trabalho que queimaria o seu fim-de-semana. «-Trate como entender, ninguém o recriminará de nada.» Que caralho quer ele dizer com isto? Vira-me as costas e vai à vida dele. Fico sem palavras aí uma boa meia hora. Quando caio mais ou menos em mim, olho em redor, e sinto que estou a ver a cena mais triste da minha vida. Morre uma pessoa, uma gaja, e no seu funeral nem familiares afastados, ou amigos, ou sequer conhecidos a quem dizia os bons dias quando ia comprar o pão para o pequeno-almoço? Já para não falar dos gajos que lhe chafurdaram o corpo todo, e que pelo menos um seria decente o suficiente para perceber que nada de pessoal está envolvido, quando a morte chega, e que portanto, um último adeus é da ordem. Que merda pode ser mais triste que uma vida e mundo que à saída, ninguém lamenta a nossa retirada? Foda-se. Morrer na cabeleireira? Mas quem é que alguma vez morreu subitamente enquanto o cabelo é ornado e arranjado? Deus me perdoe, veio logo arranjada para o caixão. Provavelmente com a roupa com que se estatelou finalmente no chão. Sim, que não deve ter passado pela autópsia. Não sei, e nem sei porque estou a pensar nisto. Se calhar porque estou sozinho, e não existe mais ninguém que me ponha ao corrente destes pormenores. No dia seguinte, é o funeral. Estou à espera que esteja mais gente, mas logo de manhã, a minha surpresa, sou o único na sala vazia. Eu e ela. Aproveito para me levantar, e entre as lágrimas consigo acertar com um beijo na sua testa fria. O seu cabelo preto contrastava com a imitação de seda que cobre a madeira do caixão. Ainda era uma mulher atraente. Quando nos conhecemos, fazia parar o trânsito. Agora ainda provocaria umas buzinadelas se fosse viva. É a maquilhagem exagerada no seu rosto que revela umas rugas e olhos enrugados. Uma expressão gasta, apesar da pacífica visage da morte. Ninguém me observa e afasto-lhes as pálpebras e coloco a minha cara em frente à dela. ‘-Ó puta, eu não me esqueço do que me fizeste.’ De lá apenas vinha uma reflexão dos meus lábios mexendo, os olhos dela eram inexpressivos, sem alma, sem personalidade por trás, que não uma longa viagem na terra da putrefacção. Reflectiam seus olhos, de forma baça e mortiça, qualquer imagem colocada defronte. Sem trejeitos do rosto emanados de cogitação e apreço ou asco. O cadáver era ainda ela, embora dela mais nada restasse senão o invólucro hirto e frio. Que se foda é melhor que nada. Sou eu que digo que os amores não morrem e o contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença. Como odeio eu esta puta. Como a amo, portanto. Vim ao seu funeral, apesar de tudo, porque tenho a convicção estúpida de que a morte é a última lixívia, lava tudo. Quer dizer, impõe-se por si. Nada há a fazer depois de um de dois morrer. É o fim do jogo, que até pode ter sido de simulação da morte, cada um, ou apenas um fingindo que o outro não existe, não lhe ligando, não querendo saber dele, não lhe cuscando o perfil nas redes sociais. O ghosting é uma forma odiosa de fingir que o outro morreu. Tapá-lo com o cobertor do esquecimento, negando-lhe existência na memória a golpes de martelo. Quando morre uma puta que amei, vou ao seu funeral, lamentar que tenha assim ocorrido. Não quero que morram, quero que vivam e sejam felizes. Apenas que não esqueçam, porque se não esquecerem, eu sei que algures na sua vida feliz, eu assumo um contraste maior, sempre que a minha memória emergir nos seus olhos baços e mortiços. Como augúrio de uma vida que não se concretizou, mesmo asfixiada a minha memória sob um ódio ou ressentimento, que é o que sentem, pois invariavelmente sentem de mim o que qualquer viajante sente de uma armadilha profunda oculta no chão onde esteve quase a cair. Não, o corpo dela aqui prostrado, ainda é ela, o que sobra, o jogo ainda não acabou totalmente, e se estou aqui sozinho, é porque Deus me está a testar em algo, porque senão o capítulo teatral e os adereços seriam diferentes. Pensei em escolher entre alguma dignidade pessoal, ou deixá-la a ir para a terra com esperma meu na sua boca. Se optar pela minha dignidade, sei que aumento o fosso da sua inveja por mim, o que impossibilita a sua capacidade de viver consigo mesma, sabendo que é uma megera, pobre desculpa para desperdício de oxigénio. Mesmo morta, imagino-a algures a zelar sobre o seu corpo. Nem que seja presente na minha mente. Opto pela vingança. Arrasto uma cadeira do átrio, estão todas vazias, porque o outro funeral é daqui a umas 5 horas, e nem os familiares directos do outro, idoso, vieram velar matutinamente. Apoio um pé na cadeira de assento fofo, outro a meio caixão, sem sujar a imitação de seda branca, e a mão esquerda à parede rugosa de reboco imperfeito, enquanto com a mão direita desaperto a braguilha e inicio a masturbação de olhos fechados, pensando nela e nos tempos que passámos juntos. Arrependo-me e penso noutra, porque quero traí-la mesmo neste momento de morte. Abri-lhe a boca à força, mas sem violência desnecessária, roubando algum papel higiénico do mísero WC que ladeia a capela bipolar, e dobrado a meio, compactado, serve para impedir que a boca cerre os dentes. Consigo acertar entre os bonitos lábios vermelhos, naturais, e ao contrário das outras vezes, ela não me continuou a lamber a pila depois de aliviado. Nunca saberei se para me prender em sedução, se por realmente gostar de mim. A ejaculação soube a nada, que é o que sabe toda e qualquer vingança. Desço e sinto-me envergonhado e ressinto-me dela, por me fazer odiar tanto. Faço uma reflexão breve sobre o que fiz, e digo para mim que o prognóstico é claro, estou louco. Mas quero lá saber, a vingança está feita, vai com parte de mim do meu ADN, até à eternidade. Levanto-me e digo para o cadáver ‘-Estás a ver vaca de merda?! Levas comigo em vida e levas comigo na morte…e agora não podes fugir.’ Noto alguma humidade no canto do lábio, que limpo com a sua gola da camisa com que a vestiram. Entra o padre e vê-me compondo o corpo, pelo que diz ‘-Está na hora.’ Olha para as minhas gotas de suor na testa, e para uma sujidade ao de leve na imitação de seda amarrotada, espreitando de seguida a cadeira com a marca de um pé, contornada a pó de gravilha prévia. Dá ordem para que o caixão seja levado, e aperta-me a mão, e vejo na cara dele que se arrepende do automatismo. Nem umas palavras merece, colocam-na logo, cova abaixo. Seco as lágrimas por terem fechado o caixão de vez, por este desfecho e por a morte não me levar a mim, e ter de viver com todas estas memórias. Espetam terra para cima dela, e a toda a velocidade, porque a sirene de uma fábrica próxima apita para a hora de almoço. Não consigo deixar de chorar tendo em conta isto que é a condição humana. A da vida desta pessoa e da sua responsabilidade pessoal na mesma. Que significa toda esta merda, quando de um momento para o outro podemos estar mortos, sem cumprir o potencial que tínhamos, e descartados anonimamente, ou nosso corpo usado para fins de necrofilia ou vingança de um louco qualquer que não conseguiu deixar de gostar de nós. O dia passa e o coveiro vem dizer que o cemitério vai fechar o portão. Olho para cima e vejo que é quase noite e eu não me apercebera. Sacudo as mãos da terra que estava agarrando com força, e sinto-me cansado, com olhos inchados e sigo para a morada dela, rabiscada num papel que o padre me deu, antes de se ir embora para celebrar o segundo enterro. II Quando a conheci, eu ainda tinha toda a minha idealidade. Passava horas a correr pelas ruas à noite, chovesse ou soprasse frio, sempre numa azáfama de cada vez fazer pelo menos mais um quilómetro. Levava o walkman e acelerava nas músicas heavy, e abrandava nas músicas mais brandas. Gostava de músicas com eco, e o futuro piscava-me o olho, com uma parceira prometida que viria matar a solidão e trazer luz à existência, concretizando a querida crença de que existe uma alma gémea para toda a gente,algures. Não concebia muito que as mulheres fossem capazes de crueldade, e que o seu apreço pelo meu corpo tonificado era porque me apreciavam pela pessoa que eu era. Isso dava-me uma confiança estranha, sozinho e em situações sociais, em que era notório que algumas achavam estranho eu ter esta confiança, apesar de a minha roupa ser claramente oriunda de uma qualquer feira, e os meus modos pouco gourmet, me anunciarem dos subúrbios. O ser demasiado carinhoso anunciava-me como carente, o ser facilmente aplacável com um beijo, manipulável. Depois de gostarmos da pessoa, ela pode fazer tudo connosco, porque só a vemos de acordo com essas lentes da nossa adesão emocional que estabelece uma ditadura com poucos suspiros de oposição. Conhecemo-nos num bar ali em Santa Iria de Azóia, que hoje é uma farmácia. Eu estava a jogar bilhar e ela passando atabalhoadamente no corredor para os lavabos, dá uma cuzada no meu taco, fazendo-me falhar a agressão. Digo foda-se e olho para trás. Olhamos um para o outro de alto a baixo, e injuriamo-nos mutuamente. Ela achava que eu tinha feito de propósito, para me meter com ela. Viro-lhe de imediato as costas, assim que percebo que é daquelas palhaças que facilmente me podem meter à porrada com outro gajo qualquer que venha defender a sua honra, ou propor pila em troco de insultador espancado aos pés de nossa senhoria. ‘-Não me vires as costas, estou a falar contigo.’ – diz ela. Viro-me para ela, encaro-a, olho para as suas calças de ganga rasgada pelo joelho, sapatos pretos de salto alto envernizados com esporra divina, sem meias, e mostrando um pouco de delicioso tornozelo. Um cinto com fivela gigante e com a ponta solta enrolada de forma propositadamente atabalhoada como se usava na altura. Blusa branca com soutien preto em forma de apara mamas desportivo, dava-lhe um aspecto dinâmico. Olhos castanhos com sombreado preto como o cabelo, davam-lhe um olhar profundo. O rosto meticulosamente esculpido a mármore branco sob lábios escarlates que só apetecia beijar ou foder. ‘-Eu viro o que eu quiser e bem entender. Vê se tens mais cuidado onde metes o cu quando andas.’ Pela minha expressão de zangado, percebeu que eu não tinha feito de propósito, e ao ver-me olhar em redor dela, mais preocupado com algum cavaleiro branco que viesse tirar de esforço, tentou apaziguar a situação gozando com as minhas botas de pára-quedista: ‘-Belas botas…Vais para a guerra?’. Disse-o com um riso malandro que me desarmou e deixou até inseguro durante umas horas, por causa de gostar de usar botas militares. Foi algures por Fevereiro, e ainda fazia frio e alguma chuva, pelo que ou era para me descolhoar, ou era tansa lá à sua maneira. O que me parecia delicioso, uma tansa como eu, tão, mas tão bonita e bem feita. Voltámos a deitarmo-nos no anonimato um em relação ao outro, e no exame das provas específicas de acesso, encontramo-nos numa escola fina de Lisboa, onde era feito o exame de Filosofia e o de Biologia. Eu perdera um ano, porque, entretanto, tinha ido voluntário para a tropa. Ela tinha ficado um ano a fazer melhoria, para depois ter mais acesso a Medicina, mas acabou por entrar para Biologia, onde fez investigação até morrer. O meu exame foi à tarde, e o dela de manhã. Cruzámo-nos quando eu subia a escadaria da escola e ela a descia. Ambos parámos ao mesmo tempo, e ficámos sem saber como reagir. Ela tomou a iniciativa estendendo-me a mão. Riu-se, e disse ‘-Tu por aqui?’ Demorei uns 2 incómodos minutos a responder, totalmente desarmado. ‘-Vim…vim….vim fazer um exame…’ ‘-Duh, eu sei, também acabei agora o meu.’ ‘-Correu bem?’ – perguntei eu. ‘-Vamos a ver.’ Trocámos números, e vi-a afastando-se com aquele riso enigmático tão sedutor e tão dela, que parecia que era visado exclusivamente a nós, e que prometia algo, se as cartas fossem bem jogadas. Uma espécie de segurança de saber algo acerca do mundo. Eventualmente encontrámo-nos já em pleno período escolar e o primeiro beijo foi à sombra de uma árvore na Faculdade de Ciências. Apesar de tudo, o tempo que passei com ela, revelava com mais intensidade um pressentimento de frustração do seu lado, como que se à espera de algo melhor. Como se eu mesmo fosse um átrio onde se espera por convite para faustosas salas interiores. A minha insegurança, fazia-me tentar cada vez mais agradar-lhe, e no processo aumentar a taxa de asco dela por mim. Como que se aquele que se esforça apenas confirma não acreditar ser por si só, suficiente, para o quer que seja. Tivemos os nossos dois ou três momentos, de onde me lembro mais o dia que passámos no Chiado, e a comermos um croissant na soleira da Sá da Costa, onde eu tinha ido comprar um livro. Todo o dia correra bem, e ela estava realmente feliz por estar comigo, o futuro prometia longevidade à nossa simbiose e a esperança emanava dos nossos jovens corpos. Mas até num naufrágio, há momentos de beleza se o náufrago se afundar de olhos abertos vendo o bailado de aço em direcção ao abismo ao ritmo do metal retorcendo-se e chiando sob o seu próprio peso. De um momento para o outro deixou de me responder às mensagens de texto, de atender o telemóvel, de abrir a porta de sua casa quando lhe tocava à campainha horas a fio. Até o criminoso tem direito a saber o seu crime. Eu não. Havia sido julgado e condenado sem possibilidade de apelo. Como sou orgulhoso, disse para comigo, ‘-Eu quero é que ela se foda.’ Com toda a força que uma mágoa profunda exige. E assim foi, acompanhava a sua vida ao de longe, quase todos os meses andava com um tipo novo, passava por mim pela estação de Metro da Cidade Universitária, e certo dia ficámos frente a frente em ambos os cais. O primeiro olhar dela foi de um profundo lamento, mas pareceu-me que depois se lembrou de uma qualquer decisão ou jura que tomara, e voltou com aquele riso promissor e enigmático, fatal no que concerne a obter validação por pretendentes que nunca passarão disso. Fingimos ambos desviar o olhar e cada um seguiu o seu caminho. Voltei a vê-la umas vezes, em festas que ajudei a organizar na Faculdade de Letras, e a sua confiança estava no topo da sua vida, desejada, tudo lhe corria bem, os homens mais vistosos e promissores perseguiam-na, dando-lhe a ideia de felicidade e liberdade de escolha onde o mundo é a nossa ostra, nós a pérola bem lá no meio. Ser desejada por gajos garbosos, elevava-lhe a auto-estima, a auto-imagem, e o valor social percebido. Eu era útil para se lembrar de onde começara, de onde partira, o quanto evoluíra. Por vezes eu recebia chamadas telefónicas no número de casa, onde passara tantas horas a falar com ela, a ouvir-lhe as inseguranças, a ser o tampão emocional para os seus caprichos, convencido de que era essa a função idealizada do ‘namorado’. Nessas chamadas extemporâneas, alguém, um casal, fodia no outro lado da linha. Uns gemidos de mulher, trespassada por uma pila de alguém. Eu sabia que era ela, ainda hoje me lembro do timbre e do tom dos seus gemidos. Por um lado havia qualquer coisa de reconfortante, ela afinal lembrar-se de mim, tendo em conta a forma abrupta como acabara. Por outro, havia algo de extremamente doentio e cruel, no acto de propositadamente, fodendo com outro, ligar para um 3º … Foi numa dessas chamadas que senti a mais profunda vergonha por ter gostado tanto de alguém, que jurei nunca mais dizer essas palavras, monopolizando os meus afectos na foda e nos beijos e carícias que dou. Se apenas o que tinha feito a esta gaja, era ter gostado dela e ter sido quem sou, talvez ou devesse mudar, ou deixar de gostar. Torna-se o não amor, uma forma de sobrevivência. Uma protecção, que visa evitar a dor, fechando-nos num armário de aço, revestido de corticite e isolado ao som. Meti a chave à porta e o cheiro de comida podre, saiu pela primeira fresta. Uns pontos brilhantes pelo escuro do espaço, parados e assustados. Tinha 3 gatos, que contei assim que acendi a luz. Um, demasiado aterrorizado, os outros dois, em desespero vieram roçar-se nas minhas pernas, cheios de fome e sede. Descobri a comida deles num armário cuja superfície era gordurosa, dei-lhes água, abri todas as janelas, e fui à garagem onde tinha deixado o carro, buscar caixas de cartão que comprara a caminho, no Ikea. Pobres bichos. O cheiro da comida podre vinha do lava-loiças cheio de pratos empilhados, onde ela não havia raspado completamente os restos de pizza e posta de pescada congelada. Que caralho vou fazer eu aos gatos? Já tenho um, 4 gatos é muita fruta. Serei um carcereiro, sempre em tensão para perceber quando pode um deles fugir para a rua? A casa era boa e estava arranjada. Já o recheio revelava uma vida interior dela, a braços com algum demónio, talvez o mesmo que a fizera afastar-se de mim. No caixote do lixo estavam várias garrafas de vinho, vazias. Abri o frigorífico, tinha várias latas de cerveja fresca, talvez para aliciar algum amante mais arisco. Imagino-a a sofrer em frente ao espelho engolindo a raiva ressentida, por levar a peito a rejeição ou a menor aceitação, o cheque em branco, que tinha há uns 20 anos. Incapaz de perceber, acho, que quer então quer agora, a sedução e a rejeição nada terão a ver com ela, mas com a forma como as coisas são. Somos invólucros à procura de neurotransmissores que nos permitam viver com a ideia que fazemos de nós mesmos. Tiro três e sento-me no sofá, depois de ter encontrado os diários dela. É meia-noite quando consigo encontrar um em que fala de mim. A segunda vez que me envolvi com ela, ela começou a ditar condições, que exigia que eu a tratasse de certa forma. A maneira como um homem trata uma mulher, é o que ela precisa para se sentir bem consigo mesma. Quando me exigia um código de conduta que não havia exigido a outros, o que ela me pedia no fundo, era que eu desempenhasse o papel de reflexo amistoso e submisso. Abdicando de ser eu, para me sacrificar a salvar a sua auto-imagem. Se eu assim o fizesse, ela poderia viver mais uns tempos a pensar de si mesma, o mesmo que um qualquer monarca pensa da reverência com que os súbditos o tratam. Que tipo de homem sobra, depois de pessoas a quem amou profundamente e além de todos os defeitos, o abandonam com as velas completamente desfraldadas com o vento da ideia de que é isto a vida, encontrar e desencontrar, e que a união afectiva entre um homem e quem ele ama, é uma ocorrência contextual? Um homem gasto, descrente, vazio e ressentido. Mesmo aquelas que largamos, e que não pudemos senão largar, por deixarmos de nos sentir em casa. Como o ácido da aranha vomitado para dentro do corpo da mosca presa na teia, o abandono, a rejeição, corroem a alma de um homem, que encontre algum sentido na profunda adesão emocional no corpo e alma de outrem. Ou pensas que é só foda? Pensas que não vives a vida de quem amas, querendo que melhore e que a pessoa seja feliz? Tornas-te pessoalmente investido em contribuir para a felicidade da outra pessoa, que em determinada altura, seguirá o seu caminho, deixando-te a ti, com o filho nos braços, de um amor que nunca se extinguirá comos os altos fornos siderúrgicos, do amor que lhe tens. Podes abanicar o calor com o guardanapo mole do esquecimento. Mas em brasa sempre estará a memória de quem contigo fez sentido. Aconteceu, de novo, por acaso. Nos Restauradores, onde convergimos no mesmo dia, para renovar o Cartão de Cidadão. Fiz questão de a seduzir, sem ter ainda maturidade para perceber, que ela precisava mais de uma muleta, de um bocado de argamassa para erguer a sua casa em ruínas, que eu de a fazer apaixonar por mim, para me vingar provincianamente, do que achara que ela me fizera. ‘-João, sabes lá…’ – exclamava com pesar, fumando o cigarro pós copulatório, relembrando as fodas passadas. Os corpos idos, as ilusões desfeitas. É no ocaso, na promessa de penumbra, onde por instantes, todo um silêncio cai, que começamos a perceber melhor o lugar onde moramos. Eu puxava por ela, mas ela não se abria, fosse por pudor, fosse por ter alguma vontade em se comprometer comigo, fosse para não admitir as rejeições, as mentiras e as discussões que lhe haviam enviado à cara os seus defeitos de carácter. Restava-me imaginar, e tinha agora aquilo a que nunca tivera acesso. As memórias dela. Algumas vezes leu-me os textos e censurava-me, mais por raiva de eu não conseguir corresponder às suas fantasias, que por ataque tóxico. Ah mas és um traumatizado que ficou fixo em alguma gaja. Um gajo inválido que não consegue manter mulher, porque o valor de um homem consiste na sua capacidade de convencer ou encantar outro, tal como um encantador de serpentes e a sua hábil flauta. Não, não, não. Sou alguém que pensa o mundo e as pessoas, e tenta perceber porque é que este ou aquele, esta ou aquela, foram imbecis comigo. Tem de haver uma razão compreensível para o acto de sermos filhos da puta uns para os outros. Se é mais de um, há que ver o que há em mim. Se uma natureza plácida, se um sinal na testa que avisa os outros, que podem ser imbecis comigo. Isso é de fraco, o que os fortes fazem é não dar importância e seguir em frente. Não deixar que a ofensa permaneça tempo suficiente na consciência, que dê importância ao que nos ofendeu. Não, tenho de perceber porque é que as coisas são como são. O nosso momento alto foi mesmo uma discussão onde lhe peguei ternamente na cabeça, olhei nos olhos e perguntei para mim: ‘-Que pressupostos prodigiosos são esses, que elaboram os critérios a partir dos quais estas putas se acham melhores do que eu?’ De uma forma absolutamente científica. Ela reagiu mal, exclamando que putas eram essas e se eu a achava uma puta. Eu respondi ‘-Depende do que achares o que é uma puta. Se for alguém que vende a alma a qualquer preço para evitar o abismo de envelhecer e do tédio existencial, és a maior puta de todas.’ ‘-Tu estás é ainda ressabiado por te ter largado antes. Isto é tudo por causa disso. Pois larguei-te porque tens a pila pequena, e fodi outros enquanto andava contigo.’ Os olhos dela brilhavam ao dizer estas palavras. Eu prometi-lhe que iria andar em cima da sua campa. Na altura isto nunca seria interpretado como ameaça de vida. Vou-me vingar quando morreres. Disse-lhe. Chamou-me palhaço e antes que me mandasse embora de casa, comecei eu a sair. Prometi-me não mais levar a sério nenhuma delas. Nenhuma é capaz de introspecção e de pensar além do umbigo. De distanciamento do seu ego. São autómatos, autómatos. Dizia para mim. Autómatos feitos para serem estúpidos para quem não conseguem amar. Doravante iria proibir-me de as ver como humanos. Passavam-me a ferro como rolo compressor, sempre que as tratava fraterna e humanamente. Prometi proteger-me, desumanizando-me. E dançar em cima da campa de quem limpou as botas em mim.
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