Yazoo 'Dont go' 1982 Devo ser realmente um tanso. Sempre imbuído da ideia esperançosa de que pelo menos pensam tanto em mim, como eu nelas, mas sempre, ao mesmo tempo, com a certeza de que penso mais nelas, que elas em mim. A ideia de que são incapazes de amar como eu, mitiga o desnível. Desculpa-las. Mas não aplaca o lamento. Aí uns 20 cadernos pretos pautados, de folha de 60 gramas, e 80 folhas, e apenas em 3 ou 4 encontrei alguma referência a mim. Não estou a ser justo, não os li todos, afinal são mais de 1600 páginas de notas diárias desde que começou a escrever o seu ‘diário’ aconselhada por mim. Apenas procurei as datas que lembro terem sido importantes para mim, e verdade seja dita, ela escreveu sobre mim. Há algum alívio em mim. Parecido com aquele alívio que vem do facto de alguém, uma puta qualquer, que cortou contacto connosco e que foi má connosco, e nos liga a dizer que gostava de ter reagido melhor connosco. Não é bem um pedido de desculpa, mas pelo menos alivia a interiorização que sempre acabamos de fazer, em que por algum motivo merecemos o comportamento de merda que determinado indivíduo teve connosco. As lágrimas acorrem-me aos olhos, e bebo uma cerveja de enfiada. A chorar não consigo deixar de pensar e depois dizer em voz alta ‘-Ironia do caralho ó puta, tantas vezes me partiste o coração, que morreste de doença cardíaca súbita!’ Sossego por instantes, por vergonha de lhe ter chamado puta. Depois de morta. Aconselhei-a, há anos, a escrever, para desenvolver alguma introspecção em si mesma. Tanso como sou, interpretei as suas ansiedades constantes, a sua sofrível capacidade para ser feliz, como a um dedo de distância da capacidade de se perdoar pelo quer que seja que a martirizava lá dentro de si. Hoje sei que era um conflito interior de asco por mim, sem motivo que encontrasse aparente, essa ansiedade. Mais um exemplo em que a minha suposta boa índole me cegava à constatação que a ilusão passara, se esgotara nos seus olhos. E será que era boa índole minha, ou ingenuidade e manha tentando trocar uma boa impressão por disponibilidade horizontal? Um contracto implícito que eu celebrava unilateralmente? Irritavam-lhe os meus modos, a minha falta de vontade de fazer o quer que fosse, que não fosse estar com ela. Perdeu-me, em surdina, o respeito por isso. Sentia que eu a amava, demais. Perdia o sal que sempre dá algum sabor à comida, por fazer da minha vida, estar ao pé dela, beijá-la, trocar ideias espatafúrdicas sobre as pessoas e as coisas. Passado o cortejamento, já não tinha paciência para falar de metafísica, para ser o camaleão que reflectia os meus interesses para me cativar. Finda a necessidade de cativar, é quando a verdadeira pessoa se revela. Olhava de cima para mim, como se eu fosse um pobre paciente de hospício, cego à sua própria doença e incapaz de viver no mundo verdadeiro, precisamente por não conseguir identificar os sintomas dessa ‘doença’. Toma-se então o doido, como um tipo teimoso e defeituoso, perdido a meio caminho no limbo do mundo que deveria ser e o mundo que deveras é. A crença dela na minha inadequação, era tão forte, que por vezes chegava eu mesmo a acreditar momentaneamente, e não sei se ainda hoje não albergo algum complexo parido a partir daí. Quando me largou, não por um, mas por todos os homens do mundo que não eu, eu só conseguia aplacar a raiva que sentia pensando que ela não era aquilo que mostravam as minhas lentes de amor quixotesco, mas afinal uma taberneira no sentido de ser apenas uma aparência, aparência de ter vida interior, e aparência de ter uma verdadeira personalidade por detrás dos actos. Mas não, caralho. Um mero autómato biológico, convencido do seu acesso privilegiado ao Olimpo, que pode ser o morro de um qualquer descampado ranhoso. Uma palonça de vistas curtas, convencida de que a miopia é o horizonte. Mas depois voltava a mim dessa raiva, e dizia a mim próprio, que ela era afinal um ser humano como eu, e que temos todos o direito de amar, e deixar de gostar, e de querer algo melhor, embora eu não veja ainda hoje, algo melhor além de mim, e não é por me andar a comparar com outros. Se calhar porque os meus critérios judicativos, são de molde a valorizar o que considero ser eu mesmo. Afinal, avaliamos tudo com os olhos da nossa interioridade, incluindo…a nossa interioridade. Sentia, pois, para não me sentir louco, a necessidade de partilhar e ouvir a opinião de outros. ‘-Não pá, não estás maluco, essa gaja é que não vale nada.’ Invariavelmente, a todos os que contei, recebia de volta uma história análoga. Que significa afinal uma gaja não valer nada? Epá, como já me cansei de repetir, não é o facto de ir embora. É a forma como o faz. A estética que envolve o acto é a verdadeira medida, quer do que a gaja pensa acerca do mundo, das pessoas, quer do que pensa especificamente de nós. Posso ficar preso no pensamento que me diz claramente, que todos temos falhas de carácter, e elas têm uma maior capacidade para destroçar a nossa flora emocional. Literalmente, partir-nos o coração. Despedaçá-lo em mil pedaços, com dor a condizer, e um sentimento profundo de desespero por uma agressão que não entendemos. Sim, todos temos falhas de carácter, mas não somos todos iguais, nas formas como reagimos à nossa insuficiência humana. Uns encaram a merda que fazem, e tentam não repetir. Outros, pulverizam spray de sanitário com aromas de alfazema química, sobre a merda que fazem, chamando-lhe ouro. Por outro lado, espero sempre uma transcendência ‘delas’, em serem humanas comigo, mas talvez o ser humano não seja o ser correcto. E as coisas são o que são. E nem eu sou um anjinho. Muito do que me acontece, é responsabilidade minha, desde logo a escolha da gaja. A expressão ‘não valer nada’, soa-me tão mal agora, com ela morta. Se calhar porque lhe estou a beber as cervejas que tinha no frigorífico. A janela virada a poente, os cortinados dançando com a pouca brisa que entra sem convite, numa sala com um sofá esgravatado pelas unhas dos gatos, que ela deve ter desistido de reparar, ou proteger. Por todo o lado estão arranhadores, mas debalde, os filhos da puta afiam as unhas onde sabem que não devem. A poltrona onde estou sentado, combina com o sofá, e escrevo estas mesmas linhas, com as folhas de papel apoiadas nos diários dela. Encharcando-me em cerveja, para os poder ler. Cobarde, me sinto. Precisar de coragem líquida, para reviver os pensamentos de alguém que amei tanto. Mas já sei como é, e vou buscar mais ao frigorífico, notando que na estante da sala, tem um minibar, com bebidas brancas de todas as raças. Era uma diferença entre nós, eu preferi sempre as fermentadas, e ela as destiladas. Adorava shots e cocktails, raios a partam. Depois de uma bebedeira, ia religiosamente umas semanas para o ginásio, com sentimento de culpa por causa das olheiras e do dano à pele. Dava gosto ver-lhe aquela energia e esperança, nos momentos em que se dedicava a uma vida saudável. Ri-me, com um solavanco de cabeça para trás, e uma voz qualquer em mim me lembrou que a morte não limpa, ou não deve limpar os crimes. O pedófilo é pedófilo mesmo depois de enterrado. A morte pode é, para alguns, trazer a desculpa de que somos marionetas com a mão de algum titereiro enfiada pela nossa peida acima. Mitigando a responsabilidade individual. Salta-me para o colo, o gato que quando entrei, estava mais amedrontado. Tinha ficado a observar-me, debaixo da mesa de jantar. Conseguia ver os olhos dele apontados a mim, avaliando-me, medindo-me o perfil. Vira-me fazer festas nos outros, atravessar uma perna por cima do braço da poltrona, e acender o candeeiro de pé, lendo e esgravatando e soluçando como velhota senil, ao ler as frases escritas. A tal brisa mexia as cortinas, e a pouca luz que entrava na divisão, dava-lhe um ambiente lúgubre. Estávamos naquela estranha altura dos dias, em que algo parece mudar, por momentos se ouve um profundo silêncio, até que o mundo dos homens volte a produzir ruído de fundo. Como se o tempo assinalasse a chegada de mais uma noite, da mesma maneira que um antigo projeccionista mudava a bobina cinematográfica. O filho da puta ruivo olhava-me atento e esfregava os cornos na minha mão livre, a pedir-me festas. Eu já tinha enchido as tijelas com comida, e este cabrão queria o menu completo, mas acedi, fiz-lhe as festinhas que queria, e o gajo olhava-me atentamente. Parecia querer-me dizer algo. Como não se chegava à frente, fui eu que, retornando a abrir uma lata vermelha de Sagres (que, entretanto, fora buscar mais 6) iniciei as hostilidades, falando para o gato da mesma maneira que um bêbado assíduo fala para o barman, sobre tudo e sobre a sua vida. ‘-Vês? Como se a vida fosse ela mesma, uma condenação e expiação, que apenas conhece alívio após o último fôlego. Não, esta puta, desapareceu-me, completa e intencionalmente, da vida. Para ir para os braços de outro. Eu nem lhe merecia o esforço incómodo de uma justificação. De uma palavra, de uma explicação que me bloqueasse o auto martírio de efabular infernalmente, que mal havia eu feito, primeiro, para o abandono, segundo, para o silêncio criminoso, o tratamento díspar em relação a mim, como se tivesse feito algo de tão odioso, que não merecia qualquer tipo de consideração ulterior. Mas eu só chegava à conclusão, que a minha culpa havia sido apenas, amá-la demais. O que é um erro meu. Ou melhor, uma análise falaciosa acerca da natureza das pessoas, e das condições dos seus relacionamentos, seguida de um comportamento congruente. Eu mesmo esmagado sob o peso da minha idealidade. Mas seria? Eu sempre desconfio das justificações que arranjo, onde passo por muito bonzinho. Tenho de estar à coca com o cabrão do ego, que engana em cada passo do caminho. Será que aquilo a que chamo ‘idealidade’ não é senão uma mentalidade de carência, que faz mimar a gaja de modo a que não se vá embora? Sim, que nós gajos temos esta lógica de merceeiro, onde achamos que por fazermos y de agradável para elas, elas retribuem com x.’ Olhei para o gato quando disse ‘gajos’, pensando que o desgraçado, estava possivelmente castrado. Era gajo, mas não devia perceber do que estava eu a falar. Prossegui. ‘Afinal confirma-se, o problema era meu. Eu é que achava que sermos dignos uns para os outros, estava no contracto. Digno porquê? Então caralho, não achas que mereço pelo menos uma explicação? Foda-se, umas palavras finais? Estás com medo de perder resolução, que ver minha cara te fará mudar de ideias em relação à decisão tomada? Ou apenas não queres ver a dor que me provocas? Não te queres sentir mal contigo mesma, e ficar a pensar mal de ti? É mais fácil fingir que não existo, ou alguma vez existi.’ Falando para o gato, acompanhava as palavras, com um gesticular de acordo, e com expressões faciais condizentes. Eu estava a falar para ela, não para o gato. ‘Estas putas circulam por aí, como se o mundo não fosse uma caixa pequena, onde eventualmente nos voltaremos a ver. Ou que nãos nos voltaremos a encontrar, no Céu ou no Inferno, ou nas escadas do Esquecimento. A sua cruel cobardia é uma saída fácil, que escolhem sempre que podem, convencidas completamente da impunidade dessa escolha. Vai lá puta, eu não te faço mal, nem corro atrás de ti para pedinchar explicações. Foge e finge que não existo, para poderes viver melhor contigo mesma. É que eu sei que pagas o preço. O karma é fodido e a vingança não pertence ao ofendido. O mundo vinga-se delas, por viverem às escondidas. Através da sua consciência. Elas sabem, em maior ou menor grau, que são umas putas. Quando não estão a fingir, ou quando sofrem na pele algo semelhante, constatam que afinal, o ofendido talvez fosse humano, e capaz de sentir dor. Dor decorrente, da forma como nos tratam. Que foram putas com este ou com aquele. E que continuam sem o poder respeitar. Logo, sem o poder amar. A mulher só ama a força, e só respeita quem é capaz de não a respeitar. No fundo, no fundo, elas sabem. É preciso alguma crise existencial, algum rasgão no tecido convencional da vida onde estão habituadas a viver. Por mais que fujam das explicações desconfortáveis, do confronto com as consequências das suas acções na casa emocional de outro, a sua auto-imagem fica manchada e rói-lhes a consciência, eventualmente. Para poderem viver consigo próprias, depois, constroem, como aranhas e teias, uma narrativa mitomaníaca onde o quer que seja que correu mal e seja importante, nunca mas nunca seja responsabilidade sua. Arde o outro para ‘ela’ se poder aquecer na noite fria. Não há como escapar. A filha da puta é assombrada pela sua própria filha de putice, por mais explicações criativas que formule para os seus actos. Estava sempre a celebrar contractos encobertos comigo. Dava-me um beijo e dizia que me amava, e olhava para mim, esperando que da minha boca saíssem palavras equivalentes. Dava para receber, dizia para ouvir. Ressentia-se se por acaso os contractos que só ela estabelecia, não fossem celebrados por ambas as partes, incluindo a parte…eu, que os desconhecia, na existência e nos termos. Excepto um, quando disse que queria estar comigo até ser velha e morrer de artrose. Foi ela que me pediu namoro e eu aceitei. Aceitei a existência e aquela formulação de termos. Gozei, e disse, aceito essas condições e dei-lhe a mão para que me a apertasse selando contratualmente o ‘amor’ que também sentia por ela. Contracto assinado. Não demoraria muito a ser assassinado. Mas como toda a gente, gostamos de ter o empréstimo bancário, mas detestamos a obrigação de o pagar. Como todas as mulheres, reservava o direito de mudar de opinião, quando lhe conviesse, por exemplo, para renegociação do spread, ou aquisição de casa nova para os seus beijos. Aí a palavra dada ia para as malvas, e só interessava a vida à frente. Uma vez confrontei-a, meio a gozar, que sou cabrão quando me chega a mostarda ao nariz: ‘-Mas tinhas dito que era para sempre e que não mudarias de ideias…estavas assim tão desesperada, ou és naturalmente aldrabona?’ Faltava a mais provável hipótese, a de acreditar piamente que seria para sempre e que não mudaria de ideias. Mas não lho podia dizer, pois usaria isso para sair limpa da cena de filme. Imputaria culpas ao ‘amor’ essa coisa indefinida e apenas útil enquanto indefinível, e de quanto ele muda e nos faz mudar. Tudo o que evite a responsabilidade pessoal. Sem saber o que responder, optava sempre pelo mais automático e eficaz, uma cara de enojada para passar o ónus da imbecilidade culpada, para mim, por vezes auxiliando com um acentuar de ataque de vergonha tóxica, com a frase: ‘-Não entendes, pois não?’… como se eu fosse de uma natureza inferior, marginal em relação aos mecanismos do mundo que todos conhecem, menos eu, o incapaz de perceber. A intenção era calar-me, e eu já havia sido muitas vezes calado assim, pelo que lhe respondia em medida: ‘-Sim, não entendo como é que és tão estúpida comigo, sem me saberes explicar porquê.’ Dava-se ao trabalho, nos períodos em que andava com outros que não lhe interessavam muito, de se meter comigo, primeiro por sms, depois pelas redes sociais. Sempre com frases curtas e enigmáticas, que visavam lembrar-me que ela existia, estava indisponível, mas…estava por ali algures, quem sabe se pronta a transformar a indisponibilidade em disponibilidade, naquela forma de ser muito lacónica de toda a mulher que não te quer comer, mas não nega a validação que vem de lhe confirmares o teu desejo. Quando andava com os que realmente lhe interessavam, ou com uns em que o fascínio inicial não havia esmorecido, nada dizia…nem nada respondia, para reduzir ao máximo a probabilidade percentual de alguma coisa correr mal. É assim que se vê quanto outro nos quer, pelas vezes que está disposto a colocar a cabeça no cepo, por nós. Por vezes ligava. ‘-Então, já acabaste a merda do curso? Lol’ Esta era fácil, tinha a licenciatura pendurada pela cadeira de Lógica, e sabia que perguntando, a questão tinha massa crítica o suficiente para me fazer responder, além de que era ambígua o suficiente, para eu sentir a provocação ou ficar a pensar que era de facto preocupação e que ela realmente se lembrava dos pormenores da minha vida. Ou ‘-Estás melhor?’ Ao que eu perguntava indignado e sem entender, ‘-Melhor de quê?’ Ao que me respondia com o mais sepulcral silêncio, para me deixar a pensar, pois ela sabia que eu penso demais nas coisas. Mas porque não me responde? Que quer ela dizer com o ‘estar melhor’? Partia a cachimónia sobre os seus motivos, até que num dia percebi, como que por epifania, que a intenção era meramente foder-me o juízo. O que levava a outra questão. Porque sair do seu caminho, para me foder o juízo? Porque ligava a foder com outro, para que eu a ouvisse? Onde e porquê, esse trabalho todo de exprimir o seu desprezo por mim, e que eu soubesse perfeitamente o quanto me desprezava? Eu via isto como ódio, que é a transmutação do amor, quando o amor não tem pernas para andar nem pulmões para subsistir. Transforma-se em ódio para poder sobreviver, energia nervosa e emocional, lutando para continuar a existir na alma de alguém. Ou então não. Se calhar, pelo caminho, ganhara-me, inadvertidamente, um asco tal, que me odiava. Algo do género, estar ressentida por quase ter caído na esparrela e ter-se ficado por mim. Mas isso não justifica o ódio. A não ser que o ódio seja uma forma de se vingar na vida, fodendo a sanidade mental de alguém inocente o suficiente para não ter cometido nenhum crime mortal, forte o suficiente para não se matar, e introspectivo o suficiente para garantir à operadora da vingança, a certeza de que a sua memória permanecia viva na minha. A resposta mais fácil, é a de que há pessoas que não prestam, não valem nada. À medida que o veneno gasoso me descia pela goela, uma clareza de pensamento gritou o seu canto de cisne. Então, mas se ela me largara por outros, num infindável passar de liana em liana, tal significa que não sou o único abandonado, ou rejeitado. Também o, ou os, gajos por quem me abandonou foram largados, pelo menos em determinado grau, pois há sempre um ou outro, que ‘elas’ querem mesmo manter…mas lá está, se calhar são os que ‘elas’ não conseguem manter, que querem mesmo, mesmo, manter. Havia uma consequência desta ideia. Não ocorreria um momento de lucidez, potencial e ilusório, onde aquela que me rejeitou, bateria com a palma da mão na testa, e diria ‘-Foda-se, que erro cometi deixando o João.’ Não só a minha individualidade estaria diluída no meio de affaires e portadores de pila do seu historial, como eu seria reduzido a um ponto de passagem, e nunca um destino. Além disso, a haver algum lamento da fêmea fatal, no ocaso da sua vida, nunca seria personalizado em relação a mim, ou a outro. Seria sempre em relação ou a uma situação coeva que lhe lembraria ser menos feliz, ou a um conjunto de atributos ou requisitos na SUA vida, que não lograra obter e manter. E apenas temporariamente, apenas quando ocorre a tal ruptura o tecido convencional da via, ou uma situação-limite. Por isso tinha de supor duas coisas, que as mulheres não são capazes de amar, idealmente, como os homens, e o único apreço que podem por estes sentir, não emana do carácter específico, individual, do sujeito do outro lado, mas de um conjunto de atributos a que não conseguem resistir e sempre com carácter de utilidade para ‘elas’. De repente, senti-me um completo idiota, quer por lembrar com saudade e estima toda a magarefe com quem tive intimidade, quer por supor que a forma de amar, isto é, a forma de adesão emocional ao objecto de amor, é igual no homem e na mulher. Aliás pior, de ser um idiota romântico, que nada mais é que um coelho que acredita numa fantasia, entrando na toca de uma raposa com um galheteiro e frasco de picante em cada uma das patas. Não há, portanto, ligadura e tintura de iodo, para o ego obliterado pela rejeição. Nem nenhuma justificação senão a nossa própria estrutura psicológica, que sobrevaloriza a importância que atribuímos, às gajas. Posso dizer que se uma gaja não tiver vulva, o meu interesse esmorece quase a zero, e é verdade. Há um carácter de utilidade na apreciação do feminino enquanto veículo para a minha satisfação, fruindo o corpo de outro que me sacia o desejo. E embora eu saiba que as gajas apreciam tanto, ou quase tanto, o corpo masculino, como os homens apreciam o feminino, não conheço muitas que cortem a orelha ou escrevam 22 volumes de Filosofia densa, para oferecer à tipa que lhes deu para trás, como Van Gogh ou Kierkegaard. Assim de repente, só me lembro da Florbela Espanca, e pouco mais. A mulher não idealiza o amor, mas ama a idealização que o homem faz do amor. Detesta ser idealizada, pois isso limita-la, com uma exigência de divindade, mas gosta de colher o fruto opaco da divinização para fins de engrandecimento próprio. Bajulação sem responsabilidade, portanto. É o que eu digo, vamos para um tiroteio com fisgas. Não, lamento dizer-te, mas o egozinho masculino, dos conas que acham que o amor vale por si mesmo, não tem remédio. Cada gaja que nos passa pelas mãos, é mais uma chaga aberta que nem no momento da morte, desaparece. Vamos com ‘Elas’ na ideia e na lembrança, para o Nada, para o Esquecimento, para a Morte, e nem sei se não é mesmo a lembrança da sua ausência, que faz com que nossas almas sejam imortais. Recusando-se a morrer para pensar no quanto ainda amamos a gaja que deixando de nos amar, nos esqueceu mais rápido que uma curta viagem de liana, por uma selva fictícia. Tal como não há uma mão que desce do Céu para nos confortar, não há nenhum momento futuro que redima a ofensa mortal no nosso ego, quando somos estupidamente descartados por uma gaja de quem gostámos. O inconformismo vem desse mesmo contraste que tem origem na nossa predisposição para um amor idealizado. Mais até do que da constatação de que os critérios de selecção sexual delas, são muito afastados do que seja o mundo real, especialmente se o gajo portador de tal predisposição não for particularmente bonito, articulado ou diligente do ponto de vista material. Não é o ressentimento por não ser escolhido, ou por ser rejeitado, que mais amargura o portador de falo, médio. O ressentimento vem do contraste entre uma visão idealizada do amor, que não consegue deixar de ter, e a angústia de saber que bem pode esperar visão análoga do amor, por parte da mulher, que nunca a vai obter. O homem médio, vive por isso no dilema, de almejar o companheirismo e o receptáculo do seu amor, com a certeza não só de que esse receptáculo não sabe apreciar o depósito, como é incapaz de retribuir da mesma forma. Por isso nos sentimos tão vazios após algumas fodas. Porque o nosso amor cai no chão tal como o esperma interrompido. Por isso, por vezes, nos sentimos tão sós, com a boca dela colada à nossa. Epá, isto não é para vilificar o gajedo. É para dizer, parafraseando muito mal, Kant, que o ‘amor’ nos coloca questões às quais não podemos responder, mutatis mutandis, o ‘amor’ é no homem, um impulso cuja natureza torna impossível a reciprocidade. Tenta explicar isto a uma cachopa. Vai olhar para ti, e passada a surpresa inicial, vai fazer um cálculo do gasto energético baseado na decisão que já tomou, se te vai comer ou não. Se decide que vales o esforço, vai tentar seguir o raciocínio, para te impressionar. Mas, amiúde, o que acontece, é que de te desqualifica, isto é, elabora uma narrativa pejada de características, traços, adjectivos que justificam a tua rejeição na sua consciência. A decisão é sempre tomada a priori. As narrativas ulteriores apenas servem para justificar a decisão tomada. Isto é pouco romântico, concordas? Livra-te sequer de insinuar, que as cachopas não amam idealmente. Bem podes citar milhares de obras literárias desde a invenção da escrita. Nada de mal se pode dizer acerca da deusa. A deusa apenas permite adoração. O adorador, esse fica com a memória venenosa de todas as deusas que adorou. E assim desde o início dos tempos. Mas a deusa, também está refém dos seus critérios, a deusa não pode amar para baixo. Nem ao mesmo nível. Porque o amor só medra onde há respeito, e portanto, só respeita o que tem brilho, que voa... por isso, mais próximo do Sol...em cima. Cada tipa, por mais matrafona que seja, é o instrumento cruel e capitalista da selecção natural, operando a escolha, de quem insemina o seu útero ou não. De certa forma, a civilização pode ser entendida como a gestão dos meios de produção…humana. Onde as feministas hoje escolhem ver uma opressão, e toda a lei e costume são opressivos, outros optam por ver um esforço de alijar o peso capitalista da decisão sexual, a vulva cedida ao mais alto, ‘melhor’ licitador. Foi mais ou menos assim, no início da civilização ocidental, Roma, onde cada legionário podia no fim da carreira, ter acesso a um pedaço de terra, e com ela, uma potencial portadora de útero, onde ele legaria os seus genes à geração seguinte. Sim, a mulher também carrega uma roda de Inferno dentro de si. Ela, a deusa, a dificuldade em permanecer, ele, o adorador, o crente, dificuldade em não se lançar. Uma dança demoníaca, onde a única mão que vicia o jogo, é a coacção externa. A mulher nunca se contenta com o prémio de consolação. A mais marreca, não consegue não exigir do Universo, o melhor homem que acha que consegue obter a partir da sua auto-avaliação, sempre inflacionada, a não ser que seja profundamente traumatizada. E tal como nunca se contenta, raramente consegue fingir o seu desdém pelo gajo que considera abaixo de si, ou a quem botou a mão por falta de outras opções. Nada mais existe no amor, além destas pulsões demoníacas, e as acções individuais que delas recorrem. Gajos estranhos como eu, é que olham para isto a partir do ponto de vista abstracto da dignidade na relação entre dois indivíduos. Talvez porque controlo mal, ou não controlo, a minha pulsão. Quando bebíamos, tínhamos discussões até adormecer de cansaço, meramente teóricas e sem que ela deixasse que se tornassem pessoais, eram meramente braços-de-ferro. Tivemos uma sobre a ideia de que os homens são sabujos com mulheres que consideram atraentes. E eu dizia-lhe ‘-E as mulheres não fazem o mesmo?’ ‘-Olha, os homens tratam-nos como se fôssemos transparentes, fingem que nos ouvem, que nos querem integralmente, mas o comportamento muda assim, que nos apanham na cama.’ Um lapso de língua que eu não perdia para a enconar: ‘-A sério? Conheces assim tantos? Tens de começar a escolher melhor…’ Por toda a nossa história, para poder usar a ilusão de que havia um destino na nossa relação, ela encolhia-se sobre si, por ter deixado escapar o elefante no quarto, a forma como lidara comigo e a consequência das suas aventuras pela terra da Pila Nova. Desviava a conversa, dizendo: ‘-Somos tratadas de acordo com o nosso aspecto físico…’ ‘-E nós também!’ respondia eu. ‘-Há dois anos atrás desprezaste-me por completo, apenas por eu estar barrigudo.’ Eu sacara da carta que me tira da prisão no monopólio. Por ela me ter largado uns 4 anos antes, demorei dois anos a recuperar, através de batata frita, sandes de fiambre e muita cerveja. Passava os dias da minha vida que encurta, a anestesiar-me, a recuperar o corpo, para me voltar a anestesiar. Quando estava quase a esquecer a existência dela, e outras coisas, ela volta a aparecer no meu caminho, vamos tomar café e desliga o telefone. Ao ver-me faz cara de nojo, e subitamente fica com uma vibe de querer sair dali. Aquilo só me deixou pior, como que se gravando as minhas unhas desfeitas pela saída pétrea a pique do Inferno, já no final uma mão demoníaca me voltasse a arrastar para baixo, para a lava dissolvente da pena por mim mesmo. Fiquei exangue de qualquer vontade de estar vivo, de costas ardendo no asfalto como barata tonta amassada por gato que a usou para treino…apenas sabendo que está viva por ainda abanar as patas, à espera de um óbito que demora dias a vir. Ómondiêu, que melodrama este, pensa algum leitor mais expedito. Quem sabe o que é uma relação yo-yo, aquela relação que nunca bem que acaba e nunca acaba bem, sabe do que falo. Nem todos têm a coragem ou a disciplina de cortes a limpo e definitivos. Especialmente conas emocionais como eu. Claro que ela ia negar. ‘-Tu dizes cada coisa…Claro que não foi por isso, foi por estar confusa e carente naquela altura, e precisava de ver-te e estar contigo.’ ‘-Foi por isso que estiveste meia hora e foste-te embora?’ ‘-Meia hora?’ ‘-Sim, eu contei o tempo. É mais sincero admitires, eu entendo os motivos.’ O gato deixara de ronronar, mas ainda me escutava com muita atenção. Sam Kinison 1987 Levanto-me para ir mijar, e caio no chão. Fico a chorar com a cara encostada ao verniz do soalho de madeira, pinho, parece-me… ou faia. Não sei porque choro, nem porque dou tanta importância a estes assuntos. De um ponto de vista, eles para nada importam. Esconderão algo mais que a minha suposta surpresa para com as relações entre as pessoas? Será que é uma forma de vender a mim mesmo a ideia de que sou bonzinho e não partilho o mesmo jogo que todos os outros parecem partilhar? Não sei. Levanto-me e abro por completo a porta da casa-de-banho. O fedor que vem lá de dentro é insuportável. As caixas de areia dos gatos estão lá, e o chão e o poliban estão cobertos de merda. Pobres bichos e pobre eu, que demoro quase uma hora a limpar tudo e a lavar com lixívia, aflito para verter águas. Assim que mudo a areia, um atrás do outro, vêm cagar para dentro dos cubículos, roçando-se nas minhas pernas, como que agradecendo o serviço prestado. Se não estivesse bêbedo, não o teria feito. Não sei quantos dias permaneci em casa dela. Ia enchendo caixas de cartão que entregava nas ONG da caridade, mais próximas. Sei que ao mexer na secretária dela, encontrei um envelope com dinheiro, que me alimentou de pizza ao domicílio e cerveja, até acabar. Num dia ou noutro, dava-me vontade de a enterrar de vez, e ia enchendo as caixas. Metendo os moveis nos caixotes do lixo, depois de os desmontar ou partir. Cansado demais para os carregar em peso, ou ébrio demais para não os levar pelo elevador. Cada dia que passava, a casa, como a memória dela em mim, ia-se esvaziando, até que fica apenas a certeza de que ela existiu e aquele baquezinho no coração, quando a ideia vem à consciência. Perco a certeza de quantas vezes acabámos e reatámos. Mas lembro-me que finalmente a ilusão dela em mim começou a esmorecer e comecei a vê-la por quem realmente era. E o fim da ilusão ocorreu no casamento do tal amigo em comum que nos apresentara. Ela foi de amarelo e as cortinas do recinto estival escolhido para celebrar a coisa, eram quase da mesma cor. O que eu gozava com ela, mas quando vem o fotógrafo, ela foi apanhada a olhar para baixo. Voltei a gozar com ela, lembrando que ficava sempre com cara estranha em qualquer fotografia. Aliás como eu. Foi essa a primeira grande private joke entre nós. Sempre que um de nós era fotografado, começávamos a rir como parvos, pois já sabíamos que nunca ficávamos bem em qualquer foto. Ela não se riu e disse que queria falar comigo. Fomos para o vasto relvado, e à sombra de um carvalho gigantesco, ela começou a desbobinar a razão para a sua postura. Que havia engravidado e havia tirado a criança fora, que não se achava preparada para ser mãe. Que se sentia presa na nossa relação e que achava que tinha de ter um tempo para pensar, e reflectir na sua vida. Eu deixei de ouvir quando disse que tinha engravidado e abortado. Perguntei se sendo meu, se eu não tinha uma palavra a dizer no assunto. Respondeu que não, o corpo era dela e ela fazia o que entendesse, que não se queria prender ainda. Connosco veio ter um casal conhecido a brindar e com conversa de ocasião. Eu perguntei: ‘-Tu estás-me a dizer, que eu, o pai, o dador de metade do código genético, nada tenho a opinar ou que saber, apenas porque o útero é teu?’ ‘-Que egoísta, mas não me surpreende. Em vez de me apoiares e abraçares, estás a fazer uma cena apenas porque te estou a contar agora?’ O casal retira de imediato ao ouvir o teor da nossa conversa. ‘-Além de infanticida, és a pior pessoa que eu conheço.’ Virei as costas, fui falar com o casal recentemente empossado, e disse que por motivos de força maior, me tinha de ir embora. Vários dias estive sem saber o que pensar. Ela devia ter algum momento de clareza, pois ligou-me umas cinco vezes, e eu nenhuma atendi. Decidi que não era o princípio do fim, mas o fim. No ano do senhor de 2015. Ao remexer a sua secretária, encontrei numa gaveta, um dvd, com um filme de hard porn. Com ela e mais três tipos, gravado algures para os lados de Paio Pires, segundo dizia na capa do dito dvd. Devia ser este tipo de descoberta, que a impedia de querer ‘assentar’ fosse com quem fosse. Ponderei se via ou não. Decidi ver, e o que vi, foi a mesma pessoa que eu conhecia, numa figura de meter dó, na minha opinião. Ela perseguia o coelho, toca abaixo, presa das consequências lógicas das suas decisões. A tipa no ecrã do computador Apple, não estava feliz, inundada de pila frenética. Não. Estava atrás de uma concretização de algo que havia idealizado, algo sacado de uma bucket list, tal como escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Era notório que estava a desempenhar uma tarefa e não a celebrar a abundância de falo. Ou seriam os meus olhos? Procurei e não encontrei mais nenhum filme. Portanto, ou se fartou, ou não foi convidada para representar horizontalmente, de novo. Desmontei a secretária, foi para o lixo, fiquei com o material informático, e os objectos mais íntimos coloquei no recuperador de calor, que acendi de seguida. A casa ficou vazia, e apenas fiquei com a fotografia tirada no tal casamento, e a esperança que tenha encontrado paz, onde quer que esteja.
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