Numa rua pouco movimentada de Arroios, eu já era conhecido. Num dos egrégios prédios que ali persiste, existe um restaurante chinês, cuja cave jaz oculta às autoridades nacionais, e onde eu e outros praticamos a arte do esquecimento e da rememoração por expediente opiáceo. Amiúde deito-me nas poltronas alargadas e logo vem um cachimbo ter-me à boca. Assim que ao segundo bafo, o meu corpo se queda relaxado, sei que o que pretendo, vem a caminho. Lembrar os momentos bonitos com as pessoas que amei, e amo. Tenham sido bestas ou bestiais comigo. Lembro quem já morreu, sem chorar, e lembro as putas que antes de um ponto no tempo, eram o meu amor. Lembro familiares, amigos, cães, e o ópio deixa-me na ilusão de ainda estar de mão dada com todos, feliz por existirmos, pelo menos até passar o efeito. Não é à toa que a morfina vive para nos tirar a dor. Lembro-me de tanta gente. O de bom, é não chorar…isso, não chorar, porque me sinto como que defronte um prenúncio de vida após a morte, pois imagino que as minhas memórias dos meus mortos, fazem ainda parte deles, como manifestações suas para me confortarem e dizerem, ‘-Vá lá, não chores…vai ficar tudo bem.’ Lembro com profunda tristeza e saudade. Vem-me à ideia o Borges. Um tipo extraordinário a todos os níveis. Foi com surpresa que me pediram para ir identificar o cadáver. Morreu em casa, e quando entrei, não reconheci o sítio onde anos antes eu era convidado frequente. O cheiro a suor salgado em lençóis bafientos, montes de pequenos pedaços de papel higiénico amarelecido por algum unguento ignoto, acumulavam-se em torno daquela que fora sua cama, como que se fossem uma tribo de adoradores. Qual o ponto de desistência da vida, para nem apanhar os papeis da punheta, do chão, perguntava-me eu. O colchão com uma mancha castanha a meio, onde o seu corpo nocturno alimentara legiões de ácaros, e um cheiro a chulé que não se podia. Comecei a chorar assim que o vi, ao vivo…ao morto, com a cabeça descaída sobre o seu pescoço, encostado na única poltrona da sala, virada para a janela. A autópsia diria que morrera de ataque cardíaco. Ao que parece, há anos que o único exercício que fazia era ir ao supermercado comprar a pouca comida que ingeria. Eu e outros amigos fartámo-nos de o tentar motivar para a vida, mas algo dentro dele o corroía como ácido. Pouca gente sabe o porquê. Eu sei. Foi a Vanda, que foi namorada dele, certo dia, fartou-se ou foi à procura de algo que achava melhor. Não sem antes destroçar o ego daquele que outrora dissera amar. ‘-Não sabes foder, és uma merda na cama, não tens ambição na vida, és um merdas que não usas água de colónia e vestes-te como se tivesses oitenta anos.’ Foi uma das coisas que ele me contou que ela lhe disse enquanto estava a fazer a mala para sair de casa. Sinto-me um bocado culpado. Há uns anos ele ligou-me e disse-me que ela lhe ligara e mandara mensagens no Messenger. Ele não sabia o que fazer. Eu disse-lhe para a bloquear, que ela nem a atenção dele merecia. Ele disse ‘-Tens razão.’ E desligou. Temo que não tenha dito a ela, a quem tanto amou em algum ponto do tempo, o que tinha acumulado dentro de si, e que isso fosse o ácido que o corroeu. Morreu engasgado com o seu desgosto. Não posso imputar responsabilidades a ela, mesmo que seja uma tipa desprezível. Ele é que optou por saltar fora. Aos que lhe chamaram cobarde, por manifesta dor de sentirem a sua morte, eu dizia que não, ele rejeitou esta merda, mais nada. O agente da PJ, fez-me umas perguntas e eu indaguei porque motivo me haviam chamado, a mim, ir ali. Que eu era o conhecido mais próximo, para identificar se havia algo de estranho na casa. Na altura, ainda não se conhecia a razão da morte. Saí de lá destroçado, e a lembrar-me de Borges, um gajo com boa capacidade física e engajado optimista. O que estava no sofá, era um mero invólucro fodido pela pila grande da entropia. Eu apreciava bastante ir a uma discoteca africana na Artilharia 1, que se chamava ‘Jindungo’. Gostava de música africana e de ambiente relaxado. Gostava de ficar a beber cerveja e a perder-me no ritmo, mas detestava, nas poucas interacções que tive lá dentro, de ser tratado como branco, e não como utente normal. ‘-Ah, é para veres como é o racismo estrutural que há neste país, não gostas, temos pena, é para aprenderes.’ Disse-me certa vez uma tipa com quem andava em conversações. A erupção com que falou, provou-me que era uma ressentida das causas sociais. Que me lembre, nunca tratei um preto como preto, nem uma preta como preta. Sempre os tratei, automaticamente, como trato toda a gente, como homem ou mulher. Sim, trato de forma diferente gajas que quero comer, porque não brinco com a comida. Têm de merecer que as trate como pessoas, enquanto não deixam de me tratar a mim, como engate. Olha, como aquela que após uma noite de fodanga, levei ao trabalho a pé, e a 100 metros do trabalho se afasta altiva e até rude, para não a verem acompanhada. ‘-Tás apresentada, amiga.’ Pensei. Caí numa cogitação perturbadora. Estaria eu tão traumatizado, que padecia do que acontece às mulheres na minha condição? Ou seja, estaria eu impedido de me ligar a alguém, por me ter ligado a tantas no passado? Teria eu queimado os últimos fulminantes? Qual é a diferença entre ter perdido a capacidade de entrega e crença numa nova relação, e entre ter de tal forma automatizada uma análise fria e directa aos pontos que repugnam, ganha pelos anos de análise e experiência? Será que é preciso ser ingénuo para acreditar no ‘amor’? Eu faço o raio x, relativamente rápido. É fácil, é só ver como me trata. E perceber como me vê, com o desconto que vivemos na época do tinder e do bumble. Foder uma virgem é uma treta, peço desculpa pela brutidão. Mas agora percebo porque os gajos no passado faziam tanta questão na virgindade. Não tinha a ver com os metros de pila, passados pela vulva. Não era reificação da gaja, mas uma escolha legítima de um sujeito de escolher uma gaja com quem é possível estabelecer uma relação duradoura. Os biólogos evolucionistas, vivem enganados. Acham que a evolução humana é ditada por um fortíssimo impulso dos gajos para impressionar e comer as gajas. O que eles…biólogos, esquecem, é que o impulso de fazer algo de notável com a vida, decorre de querer recuperar o valor não dado, pelas ninfetas que nos rejeitaram pelo caminho. Mais que comer gajas, atingir algo na vida, é uma forma de recuperar o amor próprio, para os homens. Maldição da mulher média. O seu aspecto atrai homens interessantes, como moscas em torno do mel. À medida em que o aspecto se esvai, os que aparecem também não são nenhum prémio na existência. E mesmo que o fossem, a ideia a que se habituaram, de que há sempre algo melhor do outro lado da esquina, impede-as de alguma vez se contentarem com quem seja. E o pior, nem é que o tempo jogue contra elas…é que o tempo já nem lhes liga nenhuma. Violação e homicídio. Foi isso, repetido ad nauseam. Mortes em 2º grau das partes de mim que se entregaram em cada acto íntimo. Sabes que o toque nos prende um bocadinho um ao outro? Quanto mais a troca de um beijo, ou a visão da tua cara quando me venho. Violação, porque quando te vais embora, é como se tivesse passado um cometa pela minha vida, belo, horroroso, temporário. Um cometa que prometera ser Sol, e afinal era uma mera estrela cadente. Julgas que o lamento tem a ver com o carácter efémero de ter acesso à tua vulva? Que se origina numa mentalidade de carência? Dispenso a tua pena e a tua leitura marreca e limitada à qual estás condenada. A avaliar os outros pelo teu umbigo. Violação e homicídio. Pior, morreu a parte de mim que não espera uma ruptura após estabelecer uma ligação. E de forma desnecessária, foste pura e simplesmente estúpida comigo, sempre pelo mesmo motivo, porque te achas melhor do que eu. Não és capaz de deixar de avaliar os outros a partir do teu umbigo. Mas mesmo assim bato-te palmas. Sempre arranjas um pobre diabo que te carregue, enquanto me esventro depondo montes de papel higiénico em torno da minha cama.
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