Sentei-me em frente ao espelho. Olhei prolongadamente para os meus olhos, até ao ponto de desconforto, de reconhecer a existência de algo que não se deixa subscrever pela minha ideia de posse de mim mesmo. Um ente qualquer que é mais do que eu, além do meu controlo esclavagista da minha pessoa, reflecte sobre mim, do lado de lá. Sou obrigado a respeitar-me mais. Perguntei-me sem dizer uma palavra, se tinha feito um trabalho meritório aqui nesta terra, que me podia deixar honrado e descansado pela minha tarefa em ser sempre a minha melhor versão. Mas já sabia a resposta. O arrependimento forçava-me a lamentar, que podia ter cumprido o potencial que acho que tenho, e não ter magoado algumas pessoas, que acabei por magoar pelo caminho. Ser romântico é o mais profundo instinto que um homem pode ter no que diz respeito a desejar que o mundo fosse um lugar melhor. Querer acreditar na unicidade do aperto carinhoso e prolongado dos lábios, é a forma de se enganar a si mesmo, fechando os olhos e imaginando que o amor é uma essência qualquer na forma de piscar de olhos pessoal, do mundo ou de Deus, à sua pessoa. Por isso quando está em torno da que lhe capta os afectos, o tempo parece parar e mais nada existir. As imbecis acham que é só tesão, e não um vínculo único e extraordinário entre dois caminhos que se cruzam. Estou farto de imbecis, e a culpa é minha, de ser tão imbecil a escolher. Não, não sou melhor que ninguém. Mas sei o que quero, mas não me dou ao trabalho de procurar. Qualquer pessoa toca à porta e entra porque a mesma está aberta. Acham que é um efeito que emana dos seus corpos, que estes não se degradarão nunca, e que lhes diz pessoalmente respeito. O que as faz pensar isso é uma profunda inveja por serem incapazes de amar assim, tão profunda e idealmente. Uma mulher olha para um homem como se fosse um cavalo de corrida ou um amuleto qualquer. O homem olha para a mulher como se ela fosse deusa, mistério do universo, ou res extensa, objecto para seu uso, quando se fartou de receber o mesmo tratamento…e considera retribuir de forma igual. O ódio entre nós, tornados joguetes em nome de outra coisa maior, a nós completamente alheia. Condicionados pelos ventos que sopram das modas humanas em nome de outras vontades e ideias. Até que ponto o outro olhar emanado por detrás dos olhos, vem em busca daquilo que eu seja? Até que ponto aguentamos olhar a sério uns para os outros de frente e bem lá fundo, onde incomoda por não percebermos para o que estamos a olhar? Até que ponto não procuramos apenas a superfície uns dos outros, reconfortante apenas por nos conseguir enganar por mais meia estação? Acreditar no destino é uma maldição para quem acredita. Bem-aventurado aquele que acha que é tudo casual e aleatório. Que não tem de lidar com a dor de uma rejeição que não entende, por alguém em quem ainda acredita pertencer. Monólogo em frente ao espelho, para alguém que no final não está lá, o espelho no fim não reflecte imagem nenhuma, o monólogo é um diálogo para uma mulher idealizada. Liga-me um amigo, que quer jantar comigo. Trabalha como guia e especialista de arte portuguesa na Idade Moderna. Aliás, foi assim que nos conhecemos, numas aulas. Que tinha um engate em Coimbra, num Sábado, e que se eu podia dar o tour a um grupo de canadianos, para ele poder ir a Coimbra atrás de uma morenaça de quem me mostrou as fotos num perfil qualquer de rede social. Eu disse-lhe que não era guia acima de água, nem de arte moderna. Epá não há problema, mostra-lhes Lisboa e vai dando umas lérias que eles não percebem nada. O jantar era afinal, a paga, e já estava no bucho. Seja. Sábado de manhã, os olhos dela não largavam os meus, dois buracos verdes em carne branca, por vezes tapados por um berrante cabelo ruivo. Em inglês ia explicando umas merdas de arquitectura, e as pracetas e as efemérides e as mortes. No Restelo, ou por lá perto, ficaram horrorizados com a história dos Távoras aos 4 ventos, e ela ficou a minha maior fã quando percebeu o trocadilho de que do outro lado do rio, a mesma cidade é Almada, e do ‘nosso’ lado, desalmada. Ao jantar ouviam deliciados as minhas memórias deslumbradas sobre as várias Lisboas que conheci, e deixei alguns incomodados quando indiciei que a Lisboa dos turistas, é como ter uma filha violada por cães raivosos, todos os dias. Ela antagoniza-me, o que é um sinal de me querer, dizendo que os turistas deixam cá dinheiro e eu digo que apenas deixam dinheiro para oportunistas cujo modelo de negócio é meter outros a servir à mesa. E que nada percebem dos sítios, pois passam por eles como a raposa de Torga, na vinha. Ela disse que eu estava a generalizar, que por acaso tinha cá casa, e ia passar a morar cá. Quando eu disse ‘-Good for you.’ Ela perguntou-me se a queria ver. Todos à mesa cruzaram olhares uns com os outros, e eu disse que sim. Entrámos em casa dela e foi logo fazer um café, ali por alturas da Graça. Descafeinado, atalhei. E ela perguntou porquê. Respondi que se bebesse café às 23 da noite, iria passar a noite sem dormir. Respondeu-me ‘-Thats a double shot for you then.’ Porra. Não me lembro de alguém tão directo e com vontade de receber o meu suor pingando no seu rosto alvo. A casa estava cheia de caixas, estava a fazer as mudanças, e ao primeiro beijo dei graças a Deus por não ser esta, ou parecer, daquelas que compõem a tragicomédia das aplicações de engate, com as mesmas frases, roupas, e até a perninha alçada e língua de fora para parecerem joviais. Hinos à frivolidade que não servem para mais que enganos e reprimendas se por acaso lhes perguntas o que significa a língua de fora, a perninha dobrada pelo joelho e a sapatilha branca a tocar com a biqueira no chão, as fotos de ginásio com headphones hipertrofiados e licras justas ao corpo. O tinder e o bumble são casas mortuárias e ecos ao infinito de gente que se imita, e que parasita outros para fugir das monotonias diárias. Na cama, passado o período refractário e tentando não cair na fantasia melosa de pensar que ‘This is it’, acordamos de manhã e beijamo-nos, e ponho-me a andar que tenho de fazer. Ela pede-me para ficar e pergunta-me se me voltará a ver. Respondo que sim, claro, só hoje não posso, que tenho trabalho. Ao Domingo, pergunta. Sim ao Domingo. És casado, sim, sou, com o meu trabalho. Qual é o teu trabalho, pergunta. É entender. Não gosta da resposta, mas não insiste. Ao sair pela porta, digo-lhe para me ligar quando quiser, ou quiser que eu venha ter com ela. Terça-feira liga, e acedo a ir ter com ela. Já na cama, exausto e feliz, volto a lembrar a imagem que vi ao espelho. E quando percebi que sou uma tarefa de mim mesmo, muito mais importante que a satisfação das minhas vontades imediatas, agora de colhões vazios é fácil falar, arrependi-me profundamente pelo tempo gasto em bocas que não eram lar. De rompante alguém entra pela porta, à nossa direita, e ela salta sobressaltada da cama. Era casada e o gajo viera directo da Portela, do aeroporto, desconfiado de que algo se andava a passar, mesmo antes de eu aparecer na vida de ambos. Levanto-me de imediato, visto as cuecas, e só digo ‘-Foda-se, não posso ter um momento de paz.’ Eles discutem e constato com algum asco e horror, que este é daqueles filhos da puta que acha que se espancar o outro, ela por artes mágicas fica isenta da traição. Ah filha da puta, penso eu, achas que sou um ping de computador? Que anda aí a fazer-se a tudo que mexe. O gajo vem com uma soqueira, que tinha no bolso do casaco Camel, a dizer que me vou arrepender de me meter com as mulheres de outros. Ela aos gritos, e eu aviso o tipo para meter aquilo no bolso, e que eu não sabia que ela era casada. Não usa aliança, não tem fotos numa casa para a qual se está a mudar, nada. Não sou adivinho ó cabrão. O gajo está cego e avança, falhando-me o rosto por pouco, porque me esquivei. Apanhei-lhe a têmpora com uma cabeçada, e ao vê-lo cair no chão, aproveito a dica para me por dali para fora. Mas ele não apaga, e de um dos bolsos tem uma Glock 9mm escondida, e ilegal. Sinto duas pontadas nas costas, e todo o mundo abranda, até os gritos tresloucados dela. Um sentimento de calma parecido ao de quando nos mijamos na cama, invade-me, e o chão de soalho flutuante, parece subitamente convidativo para um abraço. Vejo sangue escuro tornando-me numa ilha, e vem-me uma lágrima ao olho de imaginar a aflição da minha mãe. Desde que me conheço que faço tudo para tentar agradar-lhe, que seja feliz aqui nesta terra. Foda-se. A porta é arrombada por alguém do lado de fora, que estaca à minha imagem prostrado no chão. Passa algum tempo, tocam-me no pescoço, e o som do mundo vai baixando, e a última imagem que vejo é a de um bombeiro que me levanta a cabeça para me enfiar uma máscara de oxigénio. Já não vais a tempo camarada. Uma luz branca e difusa dirige-se a mim, e pergunta-me ‘-Como estás João?’ Tento olhar a forma da luz que me envolve, mas estou meio combalido como que me habituando a novo líquido amniótico. Penso em sentar-me e sento-me, mesmo sem haver cadeira ou sequer as minhas pernas e rabo. Olho para baixo e nada vejo senão uma forma de luz, que parece divertida comigo. Quando a fixo, sem lhe perceber os contornos, parece ficar séria e diz-me sem soltar um som: ‘-Fica aqui meu menino.’ Não sei quanto tempo passa, mas sei que volta com um saco preto, de plástico daqueles do lixo. Isso vejo plenamente. Como se tivesse um gato meio morto lá dentro, o saco mexe-se. ‘-Quem és tu?’ – pergunto eu. ‘-Sou um anjo, mas isso não é importante.’ Se estou morto quero falar com Deus, mas até eu sei que Deus não fala connosco. Mas sei que Ele está por ali. Sinto mais alguém naquele espaço. Espanto-me por só estar eu ali. Com tanta gente a morrer, parece que temos tratamento personalizado. ‘-Sabes o que é isto João?’ Digo que não. ‘-É um outro que como tu queria sair do saco preto do Infinito Esquecimento. Vamos dar-lhe a mesma oportunidade que te demos a ti. E estás aqui porque lhe vamos dar o mesmo corpo e alma que te demos a ti. Todas as capacidades e oportunidades.’ Minha alma estava parva, ou melhor, eu estava parvo. Vi o quer que seja sair de dentro do saco e entrar num corpo de bebé, e como em Imax ou Cinemascope, vi toda a vida daquele filho da puta decorrer, com os meus defeitos e virtudes, mas tirando todos os resultados que não tirei. Ele era feliz, plenamente lá em baixo. Percebi a intenção da mensagem que me davam fora do tempo, fora do espaço. Era para mostrar que eu não sabia o que era estar vivo, viver, fazer o melhor possível. Abanei a cabeça que não tinha e admiti, tendo de dar a mão à palmatória. Sou um falhado de facto. Espero não ter magoado alguém. Foda-se. Um desespero tomou conta de mim, e qualquer castigo que me quisessem dar eu aceitaria. ‘-O que me vai acontecer agora?’ ‘-Voltas para dentro do saco.’ Chorei, mas há de facto, razão para o lamento. Morto por um corno, descubro que me atraiçoei. Vou para aquilo que pensava ser o Céu, e então percebo que Céu e Inferno existem, mas que a gerência é a mesma.
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