Ela soluçava amiúde, à noite, sozinha na cama, depois de ter metido os miúdos a dormir. Lê umas páginas de livros fáceis de ler, para ver se chama o sono e para sentir que a vida não está estagnada. Sente-se evoluir ao ritmo de cada página de romances de cordel, sente uma alteração decorrente da leitura, mas não o suficiente para ter o tapete varrido debaixo dos pés. Pergunta-me o que eu achara do que me contara. E eu perguntei-lhe : ‘-Queres a minha opinião fofinha, ou o que realmente acho?’ Olho para a cara dela a tentar perceber se vai ser ela o unicórnio que não encara a minha opinião como um ataque pessoal, uma censura proveniente de ódio, uma manipulação que lhe visa baixar o valor ou a estima, e mantê-la controlada, apenas…porque lhe digo o que penso, e o que penso não é agradável para seus ouvidos. Peso as minhas palavras de modo a conciliar a minha jura de não trazer mágoa ao mundo, com a intenção de provocar uma introspecção no outro, vejam bem o arrogante que sou. Como se as pessoas levassem a sério, quem não conseguem respeitar. O que ela queria ouvir era que eu concordava com a sua opção em abandonar o marido. Disse-lhe, que da forma como me contara as coisas, eu só podia achar que ela era um pobre destroço humano a meus olhos, na medida em que largara o marido por motivos fúteis, por lidar mal com a sua própria idade, pelo sentimento análogo ao desespero de uma vida que parece que lhe passou ao lado, e que todas as suas relações a partir daí não teriam passado de um afã pessoal em envenenar essas mesmas relações, para conduzir as mesmas a pontos de ruptura, onde ela corta de forma resoluta e espectacular, com a outra pessoa, com a intenção última de mascarar para si mesma, os motivos frívolos pelos quais se envolve, e os motivos frívolos e egoístas pelos quais se afasta, ao mesmo tempo que o corte espalhafatoso e provinciano, a encenação representada para si mesmo, desnecessária, mesquinha, lhe dá a sensação de que faz algo de grandioso, do tamanho do seu ego e da sua suposta paixão. Ah pois, anda por aí muita gente que acha que é grande por achar que aquilo que pensa dos seus afectos, é grande também. Dei-lhe o exemplo do sapo e do boi, e do quão difícil para ela era inchar até ao tamanho almejado por seus olhos. ‘-És muito pequenina. Mas não tomes isto como uma crítica pessoal, julgo que o teu tamanho vem do mecanismo de defesa do teu ego, da lavandaria que tudo lava, incluindo os vestígios do local do crime.’ Creio que não percebeu, mas isso não a impediu de responder: ‘-E se fosses para o caralho? Mas não tomes isto como uma crítica pessoal.’ Pronto, não era o unicórnio. Perguntei ‘-Pediste a minha opinião e respondes-me assim?’ As feições do rosto haviam mudado nela, a aspereza do que eu dissera, ainda que à sombra da honestidade, magoara-lhe um âmago que só esperava confundir anuência com paixão incondicional que ela era, é, e será para sempre…incapaz de reciprocar. Um animal ferido não tem considerações éticas. E a vida burguesa dela, apesar de nada ser senão anedótica para com outras histórias de vida mais agrestes, era ainda assim, um calvário de pequenas feridas e mágoas, de pequenos ocasos de bondade por parte de outros, por certo tendo a ver com o facto de que o aspecto físico condiciona muito a forma como nos tratamos uns aos outros. Há um viés inescapável, para com as pessoas bonitas, que ela não era. Nem por dentro, no que me dava a conhecer, nem por fora. Andava pela casa, com berros grandes e ostensivos, enquanto o meu esperma lhe escorria pelas pernas abaixo, em direcção à casa-de-banho, tentando projectar uma personalidade que não tinha, mas fingia ter. Da mulher resoluta e que trata por ‘tu’ a vida. Alguém cuja ideia do mundo é a acertada por ser igual à dos demais. Com feitio inicialmente pacato, talvez se tenha deixado atrair por comportamentos estridentes, como forma de deixar marca memorável na mundividência dos ‘outros’ de onde retira para si própria, a sua auto-imagem. Que isto de não ter introspecção, força a que parasitemos a imagem que os outros têm de nós, para confirmarmos a nossa auto-imagem, que não conseguimos formular, por manifesta incapacidade e cobardia, de olhar para dentro. Aquilo a mim, ofendia-me. Fazia com que ela se assemelhasse a uma taberneira. Toda a sua proactividade e voluntarismo, além de soarem a falso, pareciam-me uma deselegância. E dizia-lho. Ela respondia que eu tinha medo de mulheres fortes. Eu ria-me por confirmar assim que a minha suposição sobre ela, estava certa. Ela queria que pensassem que era forte, por ter um feitio de merda. Eu ria-me e respondia que gosto de mulheres fortes,fracas e até marrecas, desde que femininas. Que não quero encarar numa tipa, o mesmo comportamento agressivo e confrontacional, que encaro todos os dias no trânsito, por parte de labregos que recorrem sempre à ameaça física para condicionar um estranho que conduz uma anónima viatura. Dizia-lhe a ela, que esse tipo de postura decorre, porque não tem consequências. Nenhuma mulher se arrisca a levar um murro na cara sendo forte e proactiva para com um homem. Ao passo que, pancadaria no asfalto, ou noutras situações onde não há peso nas acções, resultam em dentes partidos e falanges deslocadas, pelo que há mais reservas, na proactividade e voluntarismo no mundo dos homens. Sim, os tipos não hesitam em espancar ou outro, por uma fracção do desrespeito com que uma qualquer ninfeta possa ter para com ele. Geralmente, depois de dizer isto, lá iniciava ela o fado das suas tretas. Os lugares-comuns repetidos ad nauseam, para justificar a sua posição sobre as coisas…sem introspecção que a sustentasse. Chamava-me machista, falava de masculinidade frágil, e engolia a maior parte do que queria dizer, pois ainda acreditava que eu iria confirmar a ideia que queria ter de si própria. Eu via claramente as contas de merceeira que fazia, o cálculo energético que lhe norteava as acções. Via através das suas atitudes, da sua forma de tratamento, a minha posição na sua mundividência, aferindo sempre se eu retribuiria ou não, o seu próprio investimento energético na coisa. Nas poucas vezes em que olhei a fundo nos seus olhos, via um quid lá por detrás deles, suponho que a sua verdadeira identidade, afogada em milhares de tácticas militares com finalidade defensiva. Que todas juntas, formavam uma nova 'ela', bem distante do ponto de partida. Lamentava, pois era esse quid náufrago, que lhe permitiria alguma vez, voltar a fazer alguém apaixonar-se por ela. Mas ela havia escolhido. Havia escolhido a si, e a não voltar sofrer o que fosse. Só que as merdas não funcionam assim. Determinando desta forma o que permitiria que a vida lhe enviasse, apenas fazia uma lavagem cerebral a si mesma, sem consciência de tal, porque não tem introspecção, ou pelo menos, uma que fosse além do choro à vista de uma praia num Inverno lúgubre. A escolha é sempre a mesma, ou escolhes a verdade ou a felicidade. Ambas são mutuamente exclusivas. Aproximara-se de mim, uns meses antes, numa sessão de dedicatórias, e imediatamente senti a vibe da minha instrumentalização, de acordo com uma imagética alienígena para mim. Parece-me que aos olhos dela, eu simbolizava todos aqueles badboys com algum brilho que a desprezaram ou fizeram sofrer no passado. Um objecto com brilho, que por outras palavras, é um artefacto que reflecte luz. Conquistar-me tornou-se desde então, a sua forma de provar a si mesma e ao mundo, que tinha o que era necessário para manipular os afectos de alguém que considerava, ainda que temporariamente, acima, numa qualquer escala social que imaginava na sua mente colectiva. Um pouco como um gajo alivia a tensão de uma má opinião de si próprio, seduzindo a rapariga mais bonita da escola ou do trabalho. Troféu que permite viver mais um pouco consigo mesmo, ou pelo menos asfixiar a crença interiorizada de que somos filhos de um deus menor no cômputo geral e no meio da restante macacada. As rupturas estrondosas, a opção por tarefas hercúleas à partida, apenas visam engrandecer o tal sujeito que se sabe pequeno, afundando lentamente sobre o peso de um outro ficcional, que toma as rédeas à frente do quid, que gradual, e lentamente, vai morrendo, sem terreiro onde se exprimir dançando enquanto chove. Como peça de puzzle que não se encaixa senão com uma marreta, queria forçar-me a encaixar nas suas ideias e crenças sobre o mundo e as pessoas. Além de que era mais uma com a mente dividida pelo grupo de amigas, que afogam mágoas em jantares intermitentes de codependência tribal. Pergunta-me o que quero que use de lingerie, e compra uma que lhe parece agradar-me, completamente diferente do que eu sugerira. E ressente-se por não me provocar efeito. Ou o efeito esperado. Cálculo energético. Não, não entrara a bordo. Infere a partir daí que sou um caso perdido, que não exprime as emoções por ela, que a reconfortam. O outro reduzido a mera caixa de ressonância de um wishfull thinking. No fundo, que não a apaziguem na crença que quer ter do mundo, das pessoas. Do sexo. Começo a perder a tesão por ela, e percebo que cortará comigo o quanto antes, para não passar pela vergonha de situações constrangedoras, de perceber que um gajo a fode noites inteiras numa semana e noutra prefere nem aparecer lá por casa. O que mostra, que no fundo sabem, sabem bem, que há a possibilidade de ser tudo uma avaliação a si mesmas, não ao que ‘verdadeiramente’ são ou foram, mas à personagem de merda que desenvolveram para se protegerem a si mesmas da inevitabilidade da dor. Putas hedonistas que optam por uma vida de fingimento à procura de vidas genuínas. E antes que o outro, desiludido pela pantomina do enamoramento, corte polida e gradualmente, cortam elas, corta ela, sem apelo nem agravo, de forma grandiosa, para mascarar a sua própria pequenice. Passamos metade da vida a sonhar, e a outra metade a acordar para o pesadelo. Ela diz ‘-Tu és um completo traumatizado.’ Oiço, e cogito, sobre o significado da afirmação. Que algures paira a acusação de inadequação, de ser amargo por causa das circunstâncias da minha história, do meu Do, como dizem os japoneses. Por outro também percebo que há um intuito de iludir, além de vexar, ou enconar. Como se ela, controlasse uma supranarrativa segundo a qual, a visão justa das coisas e dos acontecimentos, seria contraposta a discursos como o meu, toldados pela amargura dos narradores. Como se fosse um ameaço de divindade com melhor acesso ao real que os restantes transeuntes. Como se enunciar coisas que ferem, que doem, que estão mal na natureza das relações hodiernas, fosse um escarro na harmonia. Como se todos preferíssemos uma ilusão e matássemos quem quer que viesse como mensageiro das más novas. Há quem diga que sou um tipo de trato difícil. Eu digo que me aborrecem de morte, as personagens inventadas por quem desconhece ter identidade própria.
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