Acordei de um sonho, a meio da noite, onde estava preso por algo, não podendo sair, mas não vendo o que me prendia também. O que sentia, era que algo de interno me mantinha aprisionado, incapaz de sair. Seria baixa auto-estima ou uma mentalidade batida de criança assustada? O que me prendia à situação desesperante e meio difusa do sonho? Desço da cama, sei que não voltarei a adormecer, a tempestade nocturna amaina, e meto mãos a merdas que tenho de fazer e tenho procrastinado. Mantenho o som do computador desligado, e a meio das tarefas pousa em mim o pensamento sobre a adequação daquilo que acho que sou e aquilo que acho que as pessoas pensam sobre mim. Se tenho a inteligência necessária para controlar o ego do meu orgulho, ou o orgulho do meu ego…sei lá. Porque se não tenho, percebo que posso desagradar a muita gente, impondo comportamentos meus que não consigo não ter, sob pena de sentir de alguma forma, que me estou a trair. Tenho o telemóvel enfiado num dos volumes da ‘História de Portugal’ que estava a ler, e por estar o som abafado, não ouvi as mensagens que chegaram. Uma era dela, a perguntar se me apetecia ir a casa dela. Há 3 horas. Posso ir de jipe, mas não tem a inspecção. Tenho de ir com aquela merda à IPO. Mas será que quero mesmo meter-me para o meio de Lisboa, para pinar uma tipa que deve estar a dormir agora, ferrada no sono. Rio-me e lembro-me de quando isto nem era uma questão que me passava pela cabeça. Repito para mim, ‘-João, tens de engolir cada vez mais moeda falsa, fabricada por ti.’ Porque senão, bem o sei, nem vale andar atrás das cachopas. Respondo-lho à sms dizendo se quer que a vá comer à bruta. Foda-se, para comer à bruta tenho de acreditar, e a minha fé anda tão baixa nos dias que correm. Recebo uma resposta. ‘-Já cá devias estar.’ Lacónica. Vou tomar banho de água fria, escolho uns boxers que não estejam rotos ou desbotados. Meto perfumante, e ao olhar ao espelho exclamo ‘-Cabrão, tens de ir correr.’ Passo horas sentado e o pneuzinho acena do outro lado da reflexão. Chegado à casa dela, (deixei o carro na Expo e fui o resto de TVDE) e depois de ouvir a censura da minha mãe, primeiro que sou maluco por sair a estas horas, e depois com o habitual ‘-Andas numa rica vida…’ – não ouvi mais porque fechei a porta de casa rápido o suficiente- ligo por Whatsapp, e digo, ‘-Boazona abre aporta.’ Um clique metálico destranca a passagem, e quando me abre a porta, recebe-me coberta por uma camisa branca de homem, toda nua por baixo, que é como dorme. Gracejo perguntando se a camisa é do marido, mas não me deixa acabar a frase porque me enfia a língua boca a dentro, o que me faz ficar logo pronto para a comer em cima do estirador que tem o espelho que nos saúda à entrada. Aí uns 15 minutos após os gritos dela e o estirador a bater na parede, os vizinhos do lado batem com algo de madeira na citada parede e lá do outro lado ouve-se uma voz que diz ‘-Parem de foder pá!’ Desatamo-nos os dois a rir, ela mais preocupada pois tem de os ver todos os dias. Mesmo tento parado, ouvimos a discussão que se passa do outro lado da parede, despoletada pelo nosso acto lúbrico, aparentemente. ‘-Vieste-te?’, pergunta ela. ‘-Não.’ – respondo eu. Debruça-se sobre mim, e começa a engolir-me a pila, puxo-a para cima, e digo que não tem de retribuir nada. Ah mas que quer. E eu digo que temos tempo, e ela responde que tem de sair daqui a duas horas. E eu, mas foda-se e disseste para eu vir? Fico aqui a fazer o quê? Ela diz para me acalmar, posso dormir na cama dela, que vai mas volta, um não sei quê não sei onde. É uma tipa que conhece e faz parte da malta inteligente e fina de Lisboa. Dezenas de malta que desconheço por completo, todos muito certos e bem-sucedidos na vida, que descendem sempre de alguém importante. Rio-me sozinho por pensar que Lisboa e a vida intelectual da cidade, é em parte uma comunidade endogâmica, de gente fina mesmo que se digam de ‘esquerda’, que se perpetua ao longo de décadas. Quando me leva aos bares dela, diz-me aquele é o tal que pintou o grande quadro y, e é neto de um qualquer grande poeta dos anos 50. Aqueloutro, filho ilegítimo do maior escultor português do neo neo retro realismo. Foda-se, e eu que sou filho e neto de proletários anónimos. Digo-lho. Ri-se divertida, e faz questão de me beijar, esfregando o seu casaco no meu, forçando as peles mortas dos animais que nos aquecem, a gemer mais um pouco a partir do Além. Lembro-me disso e reconheço que ela até é fofinha e decente comigo. E deixo de estar chateado, festejo-lhe a franja e beijo-a ternamente e em breve penetro-a devagarinho. Sai satisfeita do quarto, e adormeço. Quando acordo é dia e estou sozinho. Vejo se tenho chamadas. Tenho 3, não atendidas, que tinha aquilo no silêncio. É de um amigo que se está a divorciar, ou para divorciar, há anos. Que precisa de falar comigo. Na pastelaria onde nos encontramos, evita chorar por haver muita gente à volta. Eu feito estúpido, vou-lhe dizendo para largar a gaja. O filho dos dois é crescido, já não adianta permanecer com ela para não traumatizar o miúdo. A quantidade de tipos que eu conheço na mesma situação, é elevada. Ficam, porque é a coisa correcta de se fazer, neste mundo dos homens. Auto-sacrifício tendo em conta o bem presente e futuro da vida da criança. Mas há algo mais. Neste destroço em forma de gente, que passa 10 minutos a remexer o açúcar no café, como que se os círculos desenhados a preto morno, o fizessem pensar. Destroçado entre uma opção que já tomou mas não consegue concretizar. Destroçado entre as ruínas da fantasia decorrente do seu investimento emocional, numa relação que achava ir durar para sempre. E agora essa certeza desapareceu. No lugar dela voltou a ameaça de solidão, e pior, a ausência dela. ‘-Mas como podes gostar dessa puta?’ – pergunto eu, estupidamente. Sei perfeitamente que o sexo prende a malta emocionalmente, a menos que a tipa seja mesmo, mesmo execrável. Mesmo que nos vá limando, pound of flesh a pound of flesh…até que sobre apenas uma ameaça de carcaça do nosso ser anterior. A mulher julga que esculpe o homem, tornando-o melhor. Transforma um bloco acabado e útil, numa massa disforme, ornamental, sem função. Quando se apercebe do seu cinzel cego, o objecto perde a utilidade e enjoa como ornamento demasiadas vezes visto. E ele não a consegue largar. Sou estúpido de novo e pergunto, ‘-Se te aparecesse uma gaja boa, de quem gostasses, ias ver, largavas essa num instante.’ Não o devia ter dito. Insinua que o problema de gostar de uma gaja, é uma questão de abundância de alternativas. Desvaloriza todo o investimento emocional que ele fez na tipa e na vida em comum. Não sei. Ele olha para mim, ri-se, e volta a cair no seu mundo inescapável. Ela tem-no bem enrolado no seu dedo. E ele concorda, ou não. É uma merda gostarmos da outra pessoa. Não nos passa pela cabeça sair. De noite volto à casa dela, e após afagos vitaminados no chão da cozinha, adormeço e sonho que estou preso e pendurado num penhasco. Que só roendo a perna pelo joelho me liberto. Faço-o. Caio. Não há para onde ir. Os anos passam. Dá-me a fome, mas já nem erva há que me sustenha, quanto mais carne que eu possa perseguir. Para não morrer, vou comendo pedaços de mim mesmo, só para prolongar mais uns instantes, a estadia do lado de cá. Com dores, gasto, dorido. Mas cá. Se é isto estar vivo, Deus tem sentido de humor. Sinto no sonho, que Ele sorri e lança lá do alto, a Sua aprovação, porque pelo menos luto, esbracejo na miséria. Foda-se. Acordo. Visto-me. Saio porta fora. Para não voltar.
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