2 Eu levava-lhe flores, que ela cheirava, e agradecia com um sorriso tão falso como o seu esforço em mascarar uma necessidade de que as suas parceiras no banco de jardim da escola, a vissem sendo cortejada por um menino bonito, mas pouco popular, naquele contexto. Espreitando por cima do meu ombro, mordia o canto do lábio inferior, enquanto Daniel, o badboy com cabelo à Duran Duran, passava no corredor atrás de mim, a caminho das aulas, com a confiança que um quociente alto de consideração social juvenil, faculta. Eu servia naturalmente, para exprimir valor por ser desejada, e assim definir-se na hierarquia das amigas. Mas apenas enquanto me sujeitasse a exprimir visivelmente o meu desejo por si, de modo a subir, como um balão de ar quente, o seu valor aos olhos da restante macacada. Para o resto fazia questão de mostrar o seu desagrado. Estava definido o meu papel, como oferenda aos pés da deusa. Eu não servia para companheiro da ninfeta, apenas como símbolo do seu valor aos olhos de quem lhe captava consideração. Vida difícil a dela, manter-me no anzol sacrificial, e manter-me à distância que o nojo exige...ao mesmo tempo. Ah, mas somos adolescentes, e não sabemos distinguir o cotovelo do piaçá naquelas idades, certo? A rejeição tem algo de social, os outros assistindo, a rejeição torna-se um qualquer recibo de invalidez, ao contrário do lixo. Diz-se que o lixo de um homem é o tesouro de outro, mas o rejeitado, é aos olhos de todos, alguém não passível de merecer amor. Ou beleza, que vai dar ao mesmo. Há uma espécie de coacção social em surdina, onde o pobre, de dons e/ou de meios, é sempre merecedor do castigo do desprezo. Que aprenda por si, esse pobre diabo, a resolver os dilemas da natureza, já que toda a gente acha que percebe como funciona o mundo. O pobre diabo, no fundo, lembra aos outros, a volatilidade do apreço dos demais, a forma como hoje somos bestiais e amanhã bestas. No fundo, sabemos em algum grau, que a nossa popularidade, decorre de uns quantos indicadores contextuais, e que vantagem ganha é para manter. Mas toda esta verve nunca curou o facto de ela ter combinado ir comigo ao cinema, e depois deixou-me à espera na paragem de autocarro. Indagando eu com os meus botões, que fizera eu, para merecer aquela gratuidade cruel. Quando somos culpados de algo, é fácil perceber o menos bom que nos acontece. O meu único mal não dependia de mim, era ser pobre e não popular. Um neurotípico. Alguém, com quem se ela fosse vista, lhe retiraria brilho no recreio da C+S de São João da Talha. Mas se não tinha intenção de sair comigo, porque havia respondido que sim ao meu pedido? Umas semanas mais tarde vi a sua boca na boca de outro, mais apreciado pelas personagens importantes (daquele microcosmos) que eu, um visitante de uma outra C+S qualquer dos arrabaldes lisboetas, cuja fama o antecedia. Decidira comigo, que se ela fingia que eu não existia, eu iria retribuir o favor. Os anos passam, vou para a tropa e depois entro para a faculdade. Sem dinheiro para um SEAT Marbella, usava e abusava do L12, do passe social, e num autocarro da Rodoviária Nacional, voltei a vê-la. Na busca do prémio mais popular, mais brilhante, andava agora com um tóne qualquer do Casal Ventoso, rumando entre concertos, dos Xutos, para os dos Ena pá 2000, que era o que estava na moda na altura, a par da imensa onda de heroína que assolava Lisboa. Ambos estavam cadavéricos, mas foi ele que morreu de overdose. Ela continuava a prostituir-se em Coina, para os pais não descobrirem de onde vinha o dinheiro, e os vizinhos a vergonha. Certo dia, eu vinha de boleia do trabalho que me pagava as propinas e vi-a de manhã pedindo boleia. Saí da boleia, fui ter com ela e jurei-lhe amor eterno. Pediu-me 30 euros. Desde que eu tivesse dinheiro, só a tinha de dividir com o dragão âmbar. Certo dia achou, que não era correcta a exploração a que me sujeitava, e colocou o braço magro e semelhante a uma página de braille, entre os meus boxers e só parou quando os meus gemidos pararam. Sacudiu a mão para a relva do jardim, onde previamente censurávamos a vida burguesa, e sem limpar bem a mão, sacou de um cigarro que acendeu. A ejaculação havia feito com que me decidisse a salvá-la, e consegui. Raptei-a para o Porto, onde não conhecia ninguém, e ia visitá-la todos os fins de semana ao centro de reabilitação. Queria apenas que ficasse boa, se bem que aquela punheta nunca me abandonasse a ideia. Eventualmente saiu, e engordou e recomeçou a estudar. Aprendi a não receber sequer um obrigado, e passado um ano, encontrámo-nos na Biblioteca Nacional, onde trocámos números que conduziram até a uma cama em Arroios, onde ela chorou e confidenciou que sempre se censurara por nunca me conseguir escolher, que pensar nisso a fazia sentir derrotada e imbecil. A cara dela mudara, bem como o seu corpo, tornara-se mais desejável, e com as solicitações, passou a ser fria, distante, e novamente cruel, comigo. Era convidada regular para programas televisivos, de onde o novo namorado era costumeiro. Ela adorava o brilho, a futilidade e a sensação de fazer algo importante, nem que fosse por momentos. Largou o curso e abraçou com todos os braços, a nova amiga cocaína. Certa vez tentou vender-me um time sharing, que era um dos seus expedientes para fazer dinheiro para o vício. Eu fiquei chocado e perguntei-lhe se sabia quem eu era. O que me dissera e o amor que trocáramos. Rebolava os olhos como se eu fosse um deficiente mental, por ter tal conversa. Convidei-a para ir ter comigo aos jardins de Belém às 3 da manhã, para lhe dar dinheiro. Ela nem desconfiou, só pensava no dinheiro. Quando me apercebi que ninguém passeava à beira do estuário, dei-lhe um soco violentíssimo no queixo, dissimulado por detrás de um plátano. Fiz a viagem calmamente até Castelo de Bode, e do corpo apenas mantive o braço que me masturbou, e que ainda hoje tenho debaixo da minha almofada. Comi-lhe o rosto para fazer para sempre parte de mim, e deixei-a afundar paredão abaixo, para todo o sempre castigada a não voltar a ver nada de brilhante, senão eu na sua memória de morta.
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