Foda-se, um gajo anda por aqui revoltado, por não ser entendido, quando é tão claro porque o é. A fábula do Hans Christian Andersen., do patinho feio, é disso exemplo. Aquele ‘eterno’ sentimento que temos, de falta de valorização e incompreensão por parte dos outros. Por isso Nietzsche falava das ‘gélidas alturas’, isolados em montanhas, por sermos quem somos, ou descermos ao sopé em direcção ao que os outros esperam que sejamos, com pulso de ferro cor-de-rosa. Ser quem se é, é um trabalho solitário, demasiado solitário. Resistir a ser o que os outros esperam que sejamos, um trabalho amargo. E por ambos os trabalhos mencionados, amiúde recebemos a aceitação de muito poucos, ou poucas. Podemos fingir, podemos ser uma parte superficial e amena de quem somos, polida, com savoir social, mas arriscando sempre o abandono, a desvalorização. À noite amaldiçoamos os deuses, envergonhados, por termos de fingir ser aquilo que sabemos não ser. Pior, amaldiçoamos a necessidade a que não conseguimos resistir, de ser algo de diferente, para poder ter algum vislumbre de amor. E depois, no final de tudo isso, revoltamo-nos com a nossa auto condenação a uma frustração que decorre de não conseguirmos evitar perder tempo e energia nervosa em torno das avaliações dos outros sobre nós. Por isso, de não sermos livres. Amaldiçoamos a nossa traição. Traímo-nos a nós próprios, para que nos amem, aqueles que nos abandonarão, inevitavelmente, quando o brilho passar, e a utilidade se esvair. Penso, comendo-a por trás e encostada na parede molhada do chuveiro de sua casa, que posso perfeitamente mudar esta perspectiva amarga e depressiva, optar por uma vida de exultação. É melhor, pois sinto a pila murchar. Porra, concentro-me no seu rabo cebola de comer e chorar por mais. Mas concentração não é suficiente, tenho de me forçar a acreditar, e a acreditar que aquilo faz algum sentido, comer esta locutora da Rádio Renascença, que calhou deixar-se seduzir num dos nossos treinos. «-Que foi? Já não gostas de mim?» diz ela quando me sente fora do ambiente. «-Não tola. Estou aqui vai fazer quase uma hora e não me consigo vir. Se não gostasse de ti, estava a fazer um frete. E eu fretes, não faço.» «-Eu estava a gostar.» diz ela acompanhando as palavras com o fechar da torneira. «-Não te preocupes, sexo comigo, não é problema, mesmo que eu seja daqueles que pensa demais.» Quer dizer, foi duas vezes, e uma ainda recentemente, mas isso é informação que não deve sair do nosso peito. O mundo não tem de saber o quão a foda é uma métrica da e na nossa vida. Com os corpos secos por toalhas felpudas, e desidratados por acção recente da água, reparo na belíssima cara dela à contraluz de umas velas do Ikea que acendeu no seu quarto, e quando a beijo, a puta faz de propósito para ter uma boca encharcada em fresca e hidratante saliva, como que saída de uma fonte glaciar. Como se transmitisse sem palavras que não só saliva por mim, como saliva arfando, e assim arrefecendo o mosto da sua boca com a passagem forçada do ar. Todo o meu corpo exigia tal nutrição e assim que a pila ressuscitou como pescador judeu farto de caverna, encontrou uma outra mais abaixo do umbigo, onde entrou como se nunca tivesse conhecido o lugar. Agora sim, o velho motor a gasóleo, de dois tempos, lograra arrancar, e estivemos naquilo tempo indeterminado, que só terminou pela manhã, com as bocas secas, a pele encharcada, e a oração pedindo repetição ad aeternum de uma felicidade possível. Liga-me o Fonseca, acordando-me de um sonho agradável, que tínhamos combinado ir buscar o sofá para a casa de recém solteiro. Foda-se, esquecera-me completamente. Assim que me vê vestir, indaga porque me vou embora, e digo que me esquecera completamente. «-Olha lá, pensas que sou alguma puta que comes, e bazas assim que queres?» «Oi?» perguntei eu, no meu melhor brasileiro. «-Achas bem, saíres agora? Sabes como me vou sentir a seguir a fechares a porta da rua?» «-Peço desculpa, mas antes de ter entrado pela porta da rua, tinha dado a palavra a um amigo que me pedira ajuda. Esqueci-me de te avisar com antecedência, mas o broche que me fizeste à entrada foi tão bom, que faria esquecer qualquer diabo de atormentar o Céu.» Tentei fazer-lhe um afago no rosto, mas deu-me uma bofetada no antebraço. E eu disse, «-Eu volto daqui a nada, tenho de o ajudar.» «-Tu pensas mesmo que sou uma puta, e que voltas a minha casa quando quiseres.» Não tínhamos de perto ou de longe, intimidade um com o outro para este tipo de conversa. Calei-me, pois senti que estava ali a mais. A máscara caíra. Também ela não conseguira manter a farsa por muito tempo. Ou os testes anteriores, lhe revelaram, que por lhe retorquir de forma sensível, eu era um conas. Pois bem, o conas calçava as botas. «-Se sais por aquela porta, não temos mais nada a dizer.» O conas saiu pela porta, fechando-a calmamente. Encontrei-me com o Fonseca em frente à casa da tia dele, que doara o móvel. Era daquelas pessoas que não vincando rasto na memória dos restantes, não provocando impressão durável, era no entanto, o sal da Terra. É uma daquelas personagens que parece condenada a não granjear qualquer estima ou valorização por parte dos demais. Podia ter sido engenheiro aeroespacial, entrou para o curso no Técnico, mas uma mudança de alma, um arrufo de namoro, fez inverter a marcha espiritual. Há gajos que são engraçados e gajos que caem em graça. Essa alteração fez com que se dedicasse à Antropologia e o condenasse a trabalhar numa loja de peças auto. Conhecemo-nos numa escavação, e a minha verve impressionou-o, por eu conseguir articular por palavras, significados que só ele achava pensar e sentir. Na ocasião, foi uma directora de obra que achava que quem escavava numa intervenção era bicho que estava sujeito a uma hierarquia sob o seu dedo indicador. «-Quem diz a que horas se almoça sou eu!» Eram 2 da tarde, e estava tudo esganado de fome, e eu, acartara vários carros de mão com terra lá dentro, e ela respondia a um dos miúdos que se queixara de ter fome. Eu ouvi a conversa, e como sempre não consegui manter a boca fechada, ao contrário do resto da miudagem que ainda acredita que a sujeição é uma estratégia de progressão laboral. Ouvindo-a, sacudi-me, tirei o boné e dirigi-me ao pavilhão criado para o efeito de nos dar almoço a todos, por parte da autarquia, que ali éramos todos alunos ou de Arqueologia ou Antropologia a fazer a parte de estágio. O motivo pelo qual alguns 'multidirectores'torcem o nariz a t er malta com mais algumas voltas em torno do Sol, é esta, há certas merdas que não passam. A malta vendo-me das trincheiras, imitou a minha postura, e a directora sentindo-se desautorizada orientou o seu discurso para mim, perguntando «-Onde pensa que vai?» «-Almoçar!» respondi eu. «-Mas eu não dei ordem para tal.» Achei graça à expressão, voltei-me para ela e rindo exclamei «-Quando eu comecei a trabalhar foi quando saíste da escola primária, e estágio não é trabalho.» Eu sei que foi um bocado ao lado, mas ela percebeu a ideia, tanto que me retorquiu de novo «-Vou fazer queixa de si, e não vai terminar o estágio.» Com a ameaça a minha veia vernacular já não podia evitar dar um ar de sua graça. «-Por mim podes ir fazer queixa do caralho que ta foda.» Ficou vermelha e desarmada pela linguagem e pela minha indiferença aos seus joguinhos de poder, especialmente em frente a uma multidão de alunos, pessoas que iniciavam a sua vida profissional naquele meio. Daquele dia em diante, passei a ser o herói de Fonseca, por quem nunca passara pela ideia, a possibilidade de fazer frente a quem quer que fosse, que nos injustiçasse de alguma forma. Primeiro desconfiei quando se sentou à minha frente na mesa debaixo da tenda. «-Como conseguiste fazer aquilo?» «-Aquilo o quê?» «-Aquilo, desafiar a responsável que te vai avaliar no fim do estágio.» «-Espera aí.» Levantei-me e fui falar com as cozinheiras que me mandaram sentar e aguardar pela comida, que entretanto haviam recebido ordens da directora, para que não servissem ninguém. Farto da estupidez, disse «-Minhas senhoras, isto nada tem a ver com o vosso trabalho. Se não me servem a comida eu vou atrás do balcão e sirvo-me. Se insistirem em meterem-se à frente por um motivo que não vos diz respeito, eu vou-me embora daqui e não volto mais.» Por não se perceberem o que se passava, e por acharem que o meu à vontade emergia de uma suposta autoridade que eu teria, afastaram-se para trás e eu próprio enchi o meu prato, o dobro do habitual. A outra ainda ficou pior. Calculei que me puxassem as orelhas no dia seguinte, mas foi logo após o almoço, fui convidado a ir aos Paços da autarquia falar com o director dos arqueólogos. Que entrou a pés juntos, dizendo que eu me arriscava a punições. «-Que punições? Oh amigo, faltam-me 5 dias para atingir o que me é pedido em estágio, se não fizer até ao fim do Verão, faço para o ano, não tenho pressa. O trabalho que fiz até agora vai ser avaliado de forma objectiva, e a senhora que está a dirigir os trabalhos, cometeu vários erros processuais, para não falar de prepotência e falta de profissionalismo. O tipo verificou que assustar não era a melhor proposta, e tratou de aliciar com a dispensa de 5 dias, que me podia ir embora, que me seria contabilizado todo o tempo, avaliado objectivamente, desde que eu não metesse os pés perto da escavação. Concordei, pelo seguro falei com malta conhecida e fui fazer os 5 dias ali para os lados do Tojal, numa daquelas escavações que não é para fazer mas ir fazendo. O Fonseca procurou-me no facebook, pediu amizade e depois disse que me queria pagar uma cerveja. Que a tipa levou uma piçada e foi arredada da direcção, e passou a fazer apenas os desenhos. Respondi «-Que se foda. É mais uma frustrada, coitada.» Todo o causo provocara impacto nele. Não é para me gabar que o partilho. Até porque lhe disse, «-Eu já fui um bocado enconado, como tu. Até que perdi a paciência, que nunca foi muita.» Ás vezes basta um pardal fugir da gaiola para os canários perceberem que não tem porta. Quando se sentiu à vontade comigo, começou a confidenciar mais da sua vida mental. Ao que eu lhe dizia, que apesar de ter cursado Antropologia, fazia perguntas de Filosofia. Em várias merdas que me contou, pelo que descreveu, revi-me nalguma e respondia-lhe «-Olha, temos algo parecido, somos daquelas pessoas não abençoadas com a capacidade de impressionar os outros, não por falta de atributos, mas por falta desse encanto específico. Ninguém nos parece dar o valor que achamos ter ou merecer. é uma maldição mas temos de aprender eventualmente, a saber viver com ela, e a não deixar que nos mate a espontaneidade.» Ele ficou de olhos tristes, mas eu disse-lhe «-Não fiques triste. Se te cagares para a opinião da maior parte dos outros, não te afecta tanto. Isto está cheio de malta que avalia outros a partir do diâmetro do seu próprio umbigo e da cor dos seus próprios olhos, que a valorização por parte de outros, é como encontrar agulha em palheiro.» Os neurotípicos, os com energia estável, e pouco espampanantes, são os que geralmente parecem invisíveis aos mais próximos. Mais vale cair em graça que ser engraçado, era o que eu não parava de repetir. E o momento em que ele o entendeu foi quando eu narrei um lanche com uma ida namorada e um amigo dela e das outras 3 que à mesa partilhavam croissants de chocolate. E quando esse amigo foi verter águas, todas gabavam a sua verve sedutora, a sua classe a tocar na mão da empregada e na reacção da mesma, 'engatada', evidenciando sinais de conquista que eu não vislumbrara minimamente. O que mais me chocou foi a minha namorada da altura embarcar no encómio. Logo eu, com fêmeas q.b. no CV. Até rima. Pensei para comigo, se reconheces carácter sedutor a outros, e não a mim, tenho de melhorar, e no mês seguinte andei com outras duas e com ela, claro, que para a impressionar...mas depois não lhe contei porque que ganharia eu em destroçar-lhe o ego? Depois contaria aos 4 ventos que eu era adúltero, e não que ela me desvalorizara e relativizara. Deixá-las morrer na ignorância. Pelo que a invisibilidade é uma moléstia de patos para com cisnes. Parece self help, mas não é. Ele ouvia estas merdas e aquilo parecia fazer sentido para ele. Eu citava constantemente Camus. Não há destino que não se transcenda com desprezo. E eu desprezo a maldição. E nem me vou esforçar para impressionar patos. Vê lá tu, cito Camus e Confúcio, e esta ou aquela gaja prefere um gajo com um carro bom que acha que Nietzsche é uma marca de Vodka, se ri com piadas boçais e básicas que faz. O seu a seu semelhante. O que ele me contava da sua vida, parecia comparável à minha, e quero crer que fui e sou uma presença frutuosa na sua existência. Quando chegámos à casa da sua tia, agradeceu-me a amizade e a ajuda. «-Deixa-te dessas rabolhices e anda lá buscar o sofá, que ainda vais pagar o almoço.» Beijou-a na cozinha, perguntou como estavam os netos, ela disse que bem, e retorquiu, quando ele pensava voltar a namorar ou voltar a casar. O tipo ficou encavacado, e disse que acabara de romper com a namorada, que não tinha cabeça para isso. E ela insiste, por detrás do avental de cozinha e das felpudas botas de velho, lamentando, tu nunca consegues manter uma mulher. Ele fica sem palavras, e diz, por fim, ó tia, eu não as consigo ou quero forçar. Se querem ir embora vão, é lá com elas. Ela dá o exemplo do filho, que tem um casamento ‘forte’ e que não aparenta ter prazo. O tipo encolhe-se cada vez mais, interiorizando o seu pouco valor enquanto pessoa. Por estar mal fodido ou por ser sei lá, um revoltado da vida, exclamei: «-Ó minha cara senhora, mas a senhora acha que nos tempos de igualdade de género, a mulher tem de ser cortejada e apaparicada para ser mantida? Que merda de igualdade é essa? Então o seu sobrinho foi encornado, teve a dignidade de se afastar pela quebra do vínculo voluntário mais sagrado entre duas pessoas, e a senhora ainda o menoriza com recriminações? Mas vocês mulheres agem e protegem-se em grupo? Não admira que mandem nesta merda toda!» Ela fica lívida olhando para mim, incrédula por alguém lhe dar resposta, e recrimina-me pelo desplante de falar alto na casa dela. Apesar de eu ter falado tão alto como alguém que sussurra uma cena de filme a outro num cinema. Havia jogado a carta da propriedade, de lhe dever respeito no espaço que considera seu, como se nesse espaço as suas opiniões também estivessem imunes a crítica alheia. «-Não se preocupe, estou de saída.» Cruzei os dedos à espera que dissesse que se saísse pela porta, nunca mais nos falaríamos. Recorreu à brejeirice de tal forma, que o Fonseca teve de dizer para sairmos rápido com o sofá em peso pela porta da rua. «-Obrigado tia!» Na rua, pediu-me desculpa, e agradeceu-me por o ter defendido. Revoltado pelo que a tia lhe dissera, diz que concorda comigo, quando defendo a pergunta, que acha o gajedo ser…algum prémio na Existência? «-Mano, andam todas iludidas, mas é como os pássaros, é deixá-los pousar. O karma é fordido e vai ser fordido quando caírem ‘nelas’.» A forma como desabafo a coisa soa peculiar e de alguma forma, começamos a rir. Quando deposito o sofá na sala dele, recebo uma mensagem de whatsapp. «-Desculpa, não estava em mim, se calhar disse coisas que não devia ter dito, podes passar por cá?» Na rua, a tarde saudava os estorninhos em torno da sua cama em forma de freixo alto, e as sirenes das fábricas anunciavam a pausa do canastro proletário de outrora. No meu telemóvel a tecla do bloqueio de número havia sido premida e na segunda-feira seguinte, iria frequentar outro ginásio. O conas voltara a sair pela porta.
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