Pediu-me para ir ter com ela ao Sol Poente, na sua casa ali na Lapa. Eu não tinha muito que me apetecesse fazer, e queria começar as operações lúbricas assim que ela chegasse, tendo por garantido, na minha imaginação, que me chamara para repetir os últimos 20 dias e tal, de sangue, suor e saliva em torno de quem mais se distraía do existir através do corpo do outro. Toquei à porta, mas ainda não havia chegado. Resolvi ir para o café em frente e controlar a sua entrada. Imaginei uma hora no máximo, distraído entre uma cerveja e o meu Dostoievski. Mas ao entrar, estava a dar a bola, e o ruído parecia-me gorar os planos. Mas sentei-me a um canto, ia vendo a bola, e roendo uns tremoços e ‘minuins’. A bola é uma merda que agrega quase toda a gente que se junte no mesmo espaço, um bypass racional que como a cerveja ou o tinto, aproxima os entes, pelo sacrifício ritualizado dos neurónios. Cometi o erro de dar a minha opinião, contra a opinião de dois ou três, que comentavam mais alto, o jogo. Estala o debate, de opiniões contrárias, onde eu tinha algum crédito de reserva, por ser desconhecido de todos no local. Lá me devem ter achado graça, e ao mesmo tempo um qualquer desafio, pois o meu linguajar e capacidade argumentativa, era novidade e convidava a novas vagas de rebate, por parte do interlocutor. Consta até, que certa tarde, num comício e bebício entre comunistas, defendi as virtudes do Estado Novo, de forma polida e correcta, por estar meio bêbedo, claro. Por alguma estima, e pelo tal carácter de desafio, deixaram-me falar o tempo suficiente, deste meu capricho, para desencaminhar um ou outro, para a minha via argumentativa. «-Camarada como crias unidade numa mole populacional, se não criando ficções nacionalistas? Portugal sempre foi um país de filhos da puta que só pensam no seu umbigo, pelo que o Salazar deve ter lançado a mão ao que podia, para criar uma qualquer identidade nesta malta, gerações após gerações exploradas por capitalistas transfamiliares.» Custava-lhes, também por estarem meio ébrios, ouvir qualquer encómio ao senhor de Comba Dão, mas, saiba-se lá porquê, o meu ‘argumento’ fazia-los pensar, até porque me socorria de Marcuse e da traição do proletariado de hambúrguer na mão, aos ideais marxistas. Às vezes dá-me para estas merdas. Certa vez quando saí com dois amigos meus, pretos, passei a noite a tentar convencê-los que eu também era preto, apesar de ser tão branco como parede caiada, só pelo facto da minha avó ser originária de uma terra na foz do Sado, para onde fugiam muitos escravos. Gosto da refrega verbal, gosto do jogo de ganhar a discussão. Foi sem esforço que me vi envolvido numa discussão alargada sobre o maior jogador de bola de todos os tempos, e eu claro, defendia o Eusébio e logo a seguir o Chalana. Uns defendiam o ido Gomes, e outros o Cristiano Ronaldo. Conversas da treta, que ajudam a fazer passar o tempo, e que fazem invariavelmente que as imperiais pagas por outros se empilhem à minha frente, à espera que as sorva com goela de pato. Nenhuma conversa fica muito tempo no mesmo sítio, e às tantas o assunto, por causa de um exemplo dado, sobre a fidelidade clubística, descamba para o campo de relações entre homens e mulheres. Calei-me. O tema puxa por mim, e não me quero deixar arrastar para o centro do que debatem. O ambiente escurece com a passagem de mais um dia de Sol, e o fumo do tabaco torna este cabaré em algo com mais estilo que a luz do dia normalmente permite. Estou no meu ambiente, o debate e o putedo. Atrás de mim cínicos, à minha direita, platónicos, à minha esquerda, aristotélicos, à minha frente, idealistas, uma sinfonia desgarrada que versa todos os assuntos. Vejo-a entrar em casa e congratulo-me por ter mais afecto pelo debate, que pela vulva. É sinal de liberdade, penso. Liberdade de vozes prenhes de paixão no debate, no envolvimento de cada participante que chama a si a sua experiência e observação, para completar ou reformular as perspectivas dos interlocutores. O fumo de tabaco, a cacofonia e o cheiro a carne assada e suor, fazem que o ar seja denso, ocupado, atarefado. Por cada mesa,um ou outro amargurado com o quer que seja, fala de amor e de desilusão amorosa, facilmente dispersa com a artificial atribuição de um monopólio dos defeitos, ao grupo de pessoas que caracterizam os amantes. Elas maldizem deles e eles maldizem a elas. Que as mulheres são criaturas instáveis e caprichosas, com particular pendor para a maldade gratuita. Tresloucadas pela sobrevalorização de bens materiais e validação emocional, como forma de conseguirem viver consigo mesmas. Eles, retratados por elas como brutos, que não percebem as nuances sentimentais, o complexo edifício emocional e simbólico da mulher, esse bicho acima de deus, que parece não lograr alguma vez, ser entendido pelo mundo. Que são manipuladores e mentirosos, e que andam com esta e com aquela, num lamento pestilento, não da traição de uma alma irmanada, mas da escolha de uma tipa qualquer que assume o lugar de rival. Riem-se deles, que não sabem como lamber o clitóris, e são retratados quase de forma subhumana, pela falta de sofisticação em saber o que é um sommier. Observo calado, e escuto os argumentos, de lado a lado, iniciada a contenda, que por vezes se agudiza por um encontrar de testas de um ou outro mais exaltado, uns sorrisos de escárnio desta ou daquela que assim desvaloriza o interlocutor que a visa. Creio que estão no espaço, uns 2 ou 3 idealistas românticos, eu incluído, e perante a vergonha para com a sua forma de ver, estão calados, evitando denunciar a sua crença por via de sons para que outros oiçam. Cada um afoga como recém-nascido não desejado no alguidar do parto, as suas ideias sobre o poder transformativo do amor, o vínculo profundo e significante entre duas almas, que passam a não poder viver suportavelmente sem a companhia uma da outra. Afoga-se a ideia do homem tradicional como protector, apaixonado, e das mulheres como femininas, sensíveis, com ética e princípios, que não tratam os tipos como objectos animados desprovidos de alma e de sensibilidade nula para com as suas acções. Os pragmáticos estão no meio do recinto, de costas para o balcão. Para eles, as relações são um mal necessário, uma condenação a la Sartre, um meio para o fim da reprodução humana e da sociedade que reduz o eterno homem lobo do homem. Os mais conas encaram as relações como uma forma de crescimento pessoal e iluminação acerca do que seja a ‘vida’, deixando completamente de lado, a guerra civil que opõe os vários lados das barricadas, pelas quais os indivíduos se dividem, consoante o que querem, o que têm no meio das pernas, o baralho genético recebido, a idade, etc. Há os sofisticados que acham que tudo se resolve com relações abertas e poliamor, e que se opõem aos que sonham pelo regresso a uma vida tradicional, mais propagada pela Disney, que pela realidade objectiva passada. Fora uma ou outra erupção emocional, característica de velhas rixas entre os transeuntes, os debates que geram a cacofonia, são extraordinariamente bem-educados, com polidez, e com respeito uns pelos outros, na hora de falar. Não se ouvem muitos atropelos e levantar de voz. Os magoados não conseguem mudar de opinião. A que defendem está ligada às feridas fatais a que não conseguem escapar. Elas como eles, suspiram pelos prémios que já foram, eles lembrando mais a traição ou o abandono, e elas lembrando mais a memória da sua culpa assumida de não ter conseguido fixar o gajo considerado como prémio. No fundo dois grupos, ordenados de acordo com a profundidade do sofrido, que decorre também, da importância dada ao amor, às relações, entre pessoas. Se para um gajo ou gaja qualquer, há uma significação do namorico como algo de tão trivial como de ir a uma reunião de trabalho, o dano é menor que na cabeça daquele ou daquela, espíritos sérios e envolvidos, que quando se apaixonam, apaixonam a sério e, portanto, a traição ou mágoa, são mais difíceis de ultrapassar. A divisão entre borboletas e elefantes. Mas os grupos são heterógenos, pois alguns de ambos os lados, consideram que o amor é um interessante tema de pensamento, outros consideram que é uma coisa muito pessoal, pessoal demais para qualquer tipo de leveza. Quando me farto do ruído que entretanto amaina, escuto as ressacas, aquela malta que acha que descobriu o segredo, que o suposto sucesso reflecte um valor próprio qualquer, completamente alheios aos motivos reais desse sucesso. Um fogueiro reformado, com dedos rebentados e feios, de décadas de trabalho, diz que a coisa nada tem de segredo, que basta falar, falar muito com a outra pessoa. Um polícia de folga, diz que basta chegar sempre com o bacon em casa. E vestir bem, e ter um bom carro. Um grupo de 4 mulheres diz que basta serem levadas regularmente a jantar e a passear. Que sejam românticos com elas. Que é meio caminho andado. O polícia pergunta se alguma vez andaram com gajos que são o contrário do que defendem querer. Dizem que sim, mas quando eram novas e não sabiam o que queriam. Ele ri-se, e elas ficam irritadas, fechando-se sobre si em codependência. O dono do café, diz que é o quererem levar a rumo, um destino comum. Que é a comunidade de interesses que tem com a mulher, que faz manter o casamento decano. A conversa continua lá dentro, eu venho cá fora apanhar um pouco de Sol, sentado em cima das grades do móvel das bilhas do gás. Dirijo-me à porta da rua do prédio, plenamente convencido de que se aproxima mais uma sessão do acto menos original conhecido pela Humanidade. Paro a meio caminho e pergunto-me se quero realmente repetir esta parvoíce sem sentido, mas lá está, a coisa só não tem sentido porque a contrasto com o sentido que eu acho que as coisas devem fazer, e eu sou um romântico idealista. Dou dois passos e pergunto-me se não estou demasiado cheio de passado. Tingido com o negrume de memórias do menos positivo, que somos programados pela Natureza, a lembrar com mais clareza e intensidade. Toco à campainha e subo ao primeiro andar. Ela recebe-me com uma cara sombria. Não nos beijamos e percebo que está nervosa e constantemente agarrada ao smartphone. Pergunto que me queria, uma vez que me convidou a ir a casa dela. Ela responde que é para falar directamente na minha cara, que as coisas não estão a dar para ela, e que temos de deixar de nos ver durante uns meses. Eu ri-me, e disse meio zangado meio a brincar que não tínhamos relação para isso, e que escusava de me ter conduzido ali, que ia perder meia hora a voltar para trás. Ela responde que então para ti eu valia pouco mais que o tempo que perdes a vir para aqui. Ficou fodida por eu não ter o choque do afastamento que solicita. O que é mau para o seu amor próprio. O descartado ainda assim tem valor utilitário, de degrau para o seu amor próprio. Eu digo que não diz nada com sentido. Que fui ter com ela, sem saber que queria deixar de me ver. Afinal é só durante umas semanas e para meter a cabeça em ordem, segundo me diz. Chega até a agarrar-me na mão e a metê-la no meio do seu peito, e suspeito que é apenas para me comprometer o suficiente, para me poder descartar totalmente e assim salvar a sua face para consigo mesma. Tiro a mão e digo que deve ter feito alguma má interpretação acerca da pessoa que sou. Viro-lhe as costas e desejo-lhe felicidades, de certa forma aliviado, e creio que ela também. Demoro mais uns minutos no café, indo ao WC libertar a cerveja previamente ingerida, e vejo que pára um Alfa Romeo em frente ao prédio de onde recentemente saí. Ela vem à porta receber o tipo que dele sai. Rei morto rei posto penso eu. É assim, no mundo, na vida. Bolos em vitrinas rotativas, que são substituídos à medida em que são comidos pela voragem do tempo. E as pessoas, como cacos velhos, acabam os seus dias agarradas às suas memórias e à surda interrogação, sobre o porque não conseguiram resolver a equação do que é manter outro no acto de amor mútuo.
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