Quando era pequeno, ia com a minha mãe às drogarias, e eu sabia que não podia fazer birra pelos carrinhos que olhavam para mim por entre as pequenas montras de vido, estrategicamente colocados em a cal, a ré, as picaretas e o betume, para vender aos filhos dos clientes, mais um bem de consumo. O orçamento familiar não esticava, e eventualmente eu habituara-me à ideia de certa carência nestes bens supérfluos. Uma indigência mitigada, até por um céu que me parecia então, mais azul do que o que vejo hoje. Eu e os meus irmãos partilhávamos os brinquedos e a tijela de sopa. Nunca passámos fome, mas também nunca desenvolvemos uma mentalidade desafogada, e naturalmente sedutora, porque liberta da sombra do constrangimento material. Quando chegou a altura de constituir família, 30 anos depois, a exigência material do necessário na epopeia de criar gente sob um tecto, decuplicara. As exigências mínimas subiram, eu nunca tive um carrinho de bebé onde me passeava, hoje é fundamental ter um carrinho de designer, oval e estiloso, de preferência com uma marca estampada e visível, Porsche, por exemplo. Hoje, tudo o que não obedeça a pormenores que me parecem fúteis, não chega para seduzir uma mulher de ‘qualidade’. Como se tendo um tipo, que provar continuamente, que é necessário trazer o bacon para casa, e trocá-lo por outros bens materiais, para provar o seu próprio valor. Curioso como a inflacção do útero trouxe a queda da natalidade e a catástrofe demográfica. E o suicídio galopante. Portugal está a desaparecer, mirra todos os dias enquanto mais um dos seus velhos e suicidas vai para enterrar e cremar. As gerações não se estão a regenerar, e em breve o colapso demográfico será total, uma vez que já é irreversível. Temos até, neste momento, um presidente que nos seus tempos de comentador, apelava à imigração de gente que viesse para trabalhar, pois iriam ajudar a pagar as nossas reformas. Os portugueses são o povo mais racista do mundo, odeiam portugueses. Sou técnico de frio e ar condicionado num instituto de estatística, e passo horas a falar com os investigadores, que adoram partilhar dados comigo, que os ouço sofregamente. Uns mais arrogantes porque sou um mero técnico, outros radiantes, porque alguém demonstra muito interesse pelo seu trabalho, um leigo. Sabem também, que se me derem tempo de antena e simpatia, serei sempre célere a supervisionar pessoalmente o seu conforto térmico, a pedido. Como está tudo automatizado, passo horas a observar as pessoas que passam pelo passeio pétreo junto ao estuário, e a tentar perceber as suas vidas. Saio do trabalho e vou para uma casa, onde a mulher olha para mim como se eu fosse a sua cruz a carregar, sente-se bem se virar para mim os holofotes das frustrações da sua vida, do falso sentimento de superioridade pelo seu curso de relações internacionais, que em lado nenhum lhe granjeou o sucesso que pensava vir a ter nesta vida entre as gentes. Os meus miúdos olham para mim como se fosse pouco mais que um burro de carga da liquidez bancária, desde que foram para a secundária, que se ressentem comigo por não lhes poder dar as roupas de marca, os tarifários ilimitados, os bilhetes para todos os concertos ocasionais. De amigos, passaram a olhar-me com desdém, e até eu fico ressentido comigo, pois imagino que a culpa só pode ser minha. Ela andou uns anos a ser comida por todos da Tuna universitária, onde ela fazia de questão de se fardar a rigor e percorrer a pé Lisboa para mostrar ao mundo que o ensino superior lhe comprovava uma diferente e excelsa natureza comparada com os demais. Acabado o curso, andou a ser comida nos vários empregos de escritório que arranjou, onde por vezes, a ascensão na carreira também ocorre na horizontal. Quando me conheceu disse logo «-Olha, não admito a ti ou a ninguém, que me julguem pelo meu passado. Descobri-me e ao meu corpo, e não tenho alguma vergonha disso.» Tive de me calar até hoje, por um vídeo dela que vazou para a internet, que me mandaram, onde estava na cama com 3 tipos, e com o cigarro preso nos dedos. Eu já a conhecia antes de a conhecer, e quando a conheci, não me lembrei de quem era. Só muito mais tarde associei o rosto e a diferença dos anos. De modo, que não a posso julgar, segundo ela diz, como se uns ditadorzecos de meia tijela viessem dizer às gentes o que fazer ou não fazer, polícias de merda, no serviço de censores, que vêm controlar o natural acto do juízo. Mas não julgo o quê? Por acaso não julgo um pedófilo ou assassino? Porque não haveria de criticar uma mulher de igual forma pelo seu comportamento? Ah, mas não julgas os homens pelo mesmo critério, se fodem muito são garanhões, e elas umas putas, seu machista. Eu não fodi muito. Uma ou 2 namoradas antes do curso, e uma depois, que me largou antes de eu conhecer a minha mulher. Escrever ‘minha mulher’ é estranho, como que uma contradição nos termos. Mas quantos gajos fodem assim tanto? Os que fodem pouco não são julgados como inadequados? Como geeks sem virtudes sociais? Porque raio não se pode julgar opinativamente, uma mulher que foi a bicicleta da aldeia, viciada em oxitocina, em orgasmos e na validação da sua vida, de pila em pila? O geek, o indigente, esse ao menos é condenado à solidão pelos imbecis que o rodeiam. Já a gaja ‘empoderada’ toma as suas decisões e usa a vagina como bem entende. Uns condenados, outros com livre-arbítrio. Mas só julgamos uns, porque se tornou moda ideológica. Sou emancipada sexualmente. Não, és uma puta. Mas quem és tu para me julgares? Ninguém, mas posso sempre escolher que imagem formulo de ti, e tu és uma puta. Vai à merda. Vai tu. Comparar os homens que fodem muitas mulheres, é comparar a excepção com a regra. É bem mais fácil a promiscuidade através do Bumble e Tinder, para uma mulher mediocremente atraente, que para um homem elegante. A vulva como bilhete de passagem pela vida. Portanto, vês, comparar o acesso ao sexo, de mulheres e homens, é algo enviesado. Uma tipa com vibrador é vista com admiração, como alguém que toma conta de si, um tipo com artefacto semelhante, é apenas mais um que desce na escala social porque é percebido pelos outros, como alguém não amável, incapaz de seduzir. És uma puta. Não sou, tu é que odeias as mulheres. Não odeio, mas podia odiar. Todas as que fazem render o peixe da vulva, pernoitando em homens até que começam a perder o rigor da carne. De liana em liana, sempre atrás do coelho mágico da validação, dentro de uma cartola de onde, o coelho, nunca chega a sair, mas é de imediato, trocado por outro. Pelo caminho, escarros na nossa individualidade, tratados como preservativos velhos e decadentes ao Sol de Verão, lembrando já apenas, as actividades nocturnas de pares anónimos. Fico com impressão de que é mais fácil para elas, embora reconheça que não é fácil de todo. Têm uma janela limitada para fazer render o peixe e acertar na lotaria genética. Passamos a tratarmo-nos uns aos outros como res extensa, que desempenha uma peça teatral, nupcial. Obtido os corpos, as emoções, as distracções para o ego, outro reeditar da aventura pretérita. Estás a falar do quê? Do mercado da carne e de como vivemos as nossas guerras civis sob a cama do ‘amor’. Um fingimento infindável, para esconder o peso insustentável de sabermos que existe um fim, e que os pequenos prazeres apenas nos lembram dele. Por vezes os vigilantes do Instituto chamam-me para espreitar por detrás do vidro que nos permite ver quem está lá fora, mas não quem está dentro, alguma miúda que escolheu aquele poiso para ver o azul aquático defronte à sombra e trocar conversas. Vejo-as agarradas aos smartphones, encostadas nos vidros fumados do Instituto, a darem conversa no Whatsapp, a 2,3 ou mais ao mesmo tempo, como se fosse uma espécie de leilão onde se regateia as condições mais aprazíveis de um qualquer contracto que envolve a perda de tempo e de meios. Dou comigo a pensar nesta transacção, e na justiça da mesma, onde o amor, nelas se segue facilmente, após um ameaço de carne, uma promessa de beijo, um sorriso enigmático. O acesso ao prémio apenas decorrente da retribuição possível e contratualizada previamente. Somos todos condicionados a levar o melhor que podemos desta vida. Porque censurar as mulheres para usarem as armas que a Natureza lhes deu? Agora estás a falar melhor. Não, a minha questão é apenas ser justo. Coisa que desconheces por completo. Oh, lá está, vai à merda pá. Como pode haver justiça quando dizemos aos rapazes que têm de ser reverentes com as raparigas, e às raparigas ensinamos que o mundo é um lugar hostil particularmente para elas, e que esse lugar lhes deve tudo? Que podem ser astronautas, e não se devem conformar a ser meras técnicas de AVAC, que é para isso que servem os rapazes? Olho para a sanha consumidora desta gente que povoa as ruas com fraldas descartáveis, descartando o que era mais sustentável, e menos asseado, concordo, das fraldas de algodão? Como, será a história do consumo humano e obliteração deste planeta, a mera narrativa dos ciclos de paradas nupciais? A minha, lá está a estranheza de dizer ‘minha’, também me disse que a tinha de tratar como princesa, abrir-lhe as portas e pagar jantares. Só quando percebi que era a personagem do tal vídeo, é que me perguntei, quantos dos seus parceiros anteriores, haviam feito os truques e a humilhação que me exigira a mim. Na pandemia ela e os miúdos ficaram em casa, eu não pude. Todos os dias recebia o fel de horas passadas em isolamento, no final do dia ao chegar a casa após folgar por breves momentos as costas vergadas debaixo de um compressor que há muito devia ter sido substituído. Vinham as discussões, a culpabilização por uma vida abaixo de óptima cuja responsabilidade era minha. O som não parava de me atingir, enquanto acabava a sopa de pedra encostado à janela, espreitando a azáfama dos vizinhos, e invejando um ou outro que parecia ter na mulher uma amiga, e não uma proprietária. Toda a minha história até àquele ponto me parecia surreal, tão enterrado estava o meu espírito nas condições presentes. A minha infância, o Portugal dos anos 80 e 90, a juventude passada de mota, de bailarico para bailarico. Eu percebo porque ela me escolheu, pareceu-lhe o adequado, jogar pelo seguro com um tipo que seria, por certo, facilmente manobrável. Casámos com ela grávida de outro, e convenci-me de que era o preço a pagar por ter mulher, que é a moda corrente de não ligar à sua história e carácter, porque todas as mulheres são feitas de pompom. Nos primeiros dois anos foi submissa, ao terceiro, veio o nosso filho mais novo, que desde esse dia até hoje, me é lançado à cara nas discussões, como uma espécie de favor que ela me fez, para o qual nenhum pagamento é possível, senão uma gratidão infinda. No check up dos 50, descobri que era infértil de nascença, e foi a única vez que me embebedei e chorei, mas nada disse a ninguém, tão habituado estou a não ser quem sou, mas o que todos esperam que eu seja. Quando me lançava à cara que era a mãe dos meus filhos e que a devia respeitar, que abdicara de uma vida profissional gloriosa para ser mãe, isto é, para ser responsável por metade do seu código genético, eu fiquei olhando para ela mudo, apenas amargurado pela inexistência de motivo pelo qual eu percebesse merecer o quer que seja, que dela recebia. Como pode alguém assim odiar outro, com um desprezo tão agudo que lhe negue alguma humanidade? Eu, que raio fiz eu? Por ser pacato, neuro típico, dar-me bem com toda a gente? Lembro-me de ouvir o instrutor da tropa dizendo que não interessa sermos engraçados, mas cair em graça. Finalmente fazia sentido. Todo o sentido, eu era um dos despojados da terra. Despojado de virtudes sociais, e de encantos capitalizáveis em apreço. Era um condenado, afinal, condenado a ser o pasto da vida de outros. O princípio do fim da minha servidão voluntária, ocorreu com a promoção dela no novo trabalho. Passou a chefiar uma equipa, a responsabilidade subiu-lhe à cabeça, e fundou um novo grupo de amigas, com quem vivia por proxy. Do grupo de 6, duas eram presenças habituais nas discotecas do Oeste, sempre convidadas por email, para os acontecimentos do marketing, para as solicitações fáceis, que decorrem da simetria facial. Vivia por elas a fantasia de um tempo perdido, de glamour, de apreço insuflador do ego por via do fino trato de um gajo decente, cosmopolita, sofisticado. Boa parte deles descartava-las após o coito, com exactas leituras das suas personalidades. Com os anos as doses de atenção iam diminuindo, e a ressaca era preenchida com vinho e calças de ganga apertadas. As outras três eram casadas, mas sempre com aquele suspiro por se terem comprometido demasiado cedo. Viviam por proxy a vida das duas mais audazes, e tornavam-se cada vez menos gratas e fieis aos maridos. A minha mulher, engasgo-me de novo, vivia cada vez mais amargurada neste círculo. As solteiras desencaminhavam as casadas, e as casadas pressionavam os maridos a serem «melhores», aquele esforço especial de aplacar a deusa, que brande constantemente, a ameaça da ruptura. Homens prisioneiros do próprio desejo, que preferem fazer tudo, até abdicar de si próprios, para manter o mau sexo anual, o sexo contratual e institucional, onde ambos fecham os olhos e sonham estar com um outro qualquer. A zona de conforto exige aderência, e vão cedendo aos caprichos, fazendo e sendo como lhes dizem para ser. Eles, pobres diabos que desconhecem que ela, a deusa, quer que mudemos, mas depois é incapaz de nos amar, se mudamos. Havia ainda alguma esperança para mim, a reforma não estava longe e ainda havia tempo para eu deixar de maldizer a minha vida. Os que acediam aos caprichos delas, com medo de as perderem, acabavam invariavelmente por ficar sozinhos, encornados, humilhados, destratados. Não sem antes foder a vida de todos os outros à volta, pois as deusas mostravam umas às outras, o quanto conseguiam domesticar o pet lá de casa. Estabeleciam uma hierarquia entre si, sob o monte de esqueletos que compunham a espontaneidade perdida dos seus companheiros. Não as podemos amar pelo que são, nem são nossas, nunca. Quando dizemos que nos amamos, é porque é a nossa vez de fruir a sua intimidade.
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