I
A semana passada, digamos que era uma vez, numa repartição pública onde queimei mais algum tempo da minha vida, que afinal se faz nestes entretantos, tentando renovar um documento, cujo emolumento desnecessário, reverte para o bolso estatal, e de bancos falidos. À hora de abertura, a fila já contava com cerca de trinta pessoas, alinhadas com distância segura. Era quase meio dia, quando estava eu finalmente em frente ao guichet, por detrás do qual uma fêmea de cerca de quarenta Invernos atendia o cidadão que se apresentasse diante dela, contemplando tudo em volta com o mais completo ar de desdém pela sua e alheia vida, que amaldiçoava os planos juvenis, e que apenas devido à relativa segurança laboral e prestígio social, não abortava por completo uma vida aquém do prometido e esperado. Ainda o cidadão à minha frente não havia terminado o mar de assinaturas, e já a funcionária se preparava para o almoço, a quinze minutos de fechar a loja, isto é, legalmente. Acontece que o documento que renovo, tem de o ser anualmente, e lembro-me dela em anos anteriores. A garrafinha de água do Luso fica sempre vazia, por esta altura, para ter o pretexto de a ir encher àquela máquina em que os garrafões invertidos deixam escapar água fresca. Entre as assinaturas, o levantar-se e o encher a garrafa, queima quase todo o tempo restante, e o desgraçado ou desgraçada que tem o azar de estar na sua vez, tem de ir almoçar e voltar depois do almoço, sem atraso, pois perde a sua vez. Chegada a minha vez fiz-lhe ver que ainda demoravam quinze minutos a terminar o sacrílego esforço, e que o meu assunto apenas demoraria cinco minutos. Não demora não, as coisas não são assim. Garanto-lhe, tem aí o selo branco, é só imprimir, tenho a quantia certa, nem cinco minutos são. Você não manda no meu expediente, ninguém disse que mandava, apenas contestei que demoram apenas cinco minutos a resolver um problema, pelo qual espero desde a abertura, sem responsabilidade de ser a caríssima a única a atender este tipo de burocracia. Desculpe, não quer que eu me desidrate, faltava só esta, eu não poder ir beber água. Minha senhora, de todo, vá beber água descansada, desde que me garanta que concede os cinco minutos para os quais o Estado português lhe paga para resolver coisas deste tipo. A chantagem emocional que tentara, não surtira efeito, os presentes estavam lentamente a perceber que teriam todos de voltar depois. Calhou bem esse lag. Ela não se comprometeu, pois, percebeu que eu lhe cortara a saída para a habilidade cronológica que era já hábito. Como forma de lavar a face, tentou outro estratagema que foi explicar como funciona o sistema informático, com problemas desde manhã. Claramente para queimar tempo. Minha senhora, o tempo que está a explicar, é mais bem empregue se tentar o que sugiro, pode ser que dê! Vamos ser positivos. Agora a teimosia e renitência em fazer qualquer tipo de vontade à minha pessoa, via-se encurralado ante o gozo e calma que via que eu tinha na situação. Faltam dez minutos. Desculpe, vou ter de ir beber água, não me estou a sentir bem. Não me surpreendeu a falta de originalidade, falando alto como que querendo colar a sua indisposição ao meu requerimento, isto é, tornando-me um dos ‘outros’, os maus, os insensíveis, os egoístas, de modo a mobilizar lanças contra mim e amanteigar resistências. Levantou-se virou-me as costas e olhou para a cidadã que lhe pareceu mais conivente com a situação, e fez uma careta de desagrado e censura na minha direcção, num célebre e batido ataque de vergonha, que muitos confundem como conflito na visão das coisas, mas que a frio, é apenas uma fricção de vontades. A dela, de levar a vida na maior economia de energia possível, e da melhor forma possível, na minha, idem. Vá, mas não se demore, que os quinze minutos são devidos, e pode teoricamente atender mais três pessoas, comigo incluído, para poder ir almoçar descansada. Foi esta frase a que tirou do sério. Foi aqui que a merda bateu na ventoinha. A indisposta e quase anémica de dois minutos atrás, transmuta-se na colérica sanguínea que a passo rápido e com a garrafa um quarto cheia, se dirige para o guichet para o fechar, com uma sobranceria e autoridade que envergonhariam um velho senador romano. Para mim, três quartos vazia. Ao fechar o guichet como que me castigando e me fazendo frente, indiquei, beba a água, estava com sede, noto que nem lhe tocou, olhe que a cólera pode ser efeito da desidratação. O volume da sua raiva subiu de novo, mas não se manifestou. Indiquei que escusava de fechar a loja, pois se o fizesse eu apresentaria reclamação no livro para o efeito. Pois faça, que me ralo eu, desabafou ela, só depois pesando as palavras. Mas veja, que se eu apresentar a reclamação, é obrigada por lei a facultar-me o livro, e vamos atrasar o seu almoço à espera que eu escreva uma reclamação, e olhe que escrevo muito e rápido. Gosto de notar muitos pormenores. Ela não tinha pensado nisso. Olhava-me fixamente fazendo de novo uma apreciação da minha pessoa, que contrastava com a sua primeira avaliação. Levantei um joelho ao peito e depois outro. Que está a fazer? Estou a mostrar-lhe partes de mim que não consegue ver daí, na apreciação que está a fazer. Cinco minutos são o que lhe peço, que se mos tivesse dado há quinze minutos atrás, eu já estaria longe daqui e a senhora a almoçar. II Sentou-se. Quando se sentiu forçada a encarar derrota, foi quando uma trintona, bem arreada mas baixa, se intromete entre o balcão e eu, e começa a falar alto sobre a falta de respeito que as pessoas têm por quem trabalha. A intenção era clara, capitalizar da minha pseudo vitória contra o sistema, lendo o ódio que a funcionária me tinha, e tentando tirar partido disso, ou seja, com ‘empatia’ incinerar-me a mim, para ela poder – como paga- entregar o documento que a levara ali, antes de a outra ir almoçar. Calmamente indiquei que apesar de gostar deste tipo de ménages, sou eu que convido e não acedo a quem por força se intromete, e que portanto ela quanto muito devia segurar a vela da burocracia. A senhora funcionária pública lá manda imprimir na impressora wifi, o documento que ali me levara, entretanto a fêmea estratega, levantou-se de novo, e um dos quatro homens presentes na sala, senta-se no pequeno sofá minimalista que estava encostado a um canto, por certo planeando passar a hora de almoço garantindo o lugar na fila, jogando Candy Crush no telemóvel. Ao ver a parceira aproximar-se os seus níveis de coragem voltaram a valores altos e tenta incitar nova discussão com um apelo emocional, «-Sabe Deus como eu ando, e nem me deixam ir almoçar.» dizendo com um menear de cabeça para a outra, como se ambas, porque detentoras de vulva, tivessem um entendimento da supra realidade, apenas acessível às detentoras de tal aparelho reprodutivo. Apoiando-se uma à outra em subcomunicações pouco subtis, escuto nas minhas costas a utente dizendo para as minhas costas «-Pois é, há gente sem classe nenhuma, fazem parte dos problemas deste mundo, deviam ficar em casa e aproveitar para pensarem na forma como são.». Respondi automaticamente e sem querer «-Ao invés vêm para um local público exercitar esperteza que não possuem e fazer barracadas a que se habituaram.». «-Bruto!»- responde ela «-Vou dizer ao meu namorado para vir clarificar isto, ele trata de ti ó imbecil.» «-Acredito que sejas capaz de o meter ao barulho, de o lançar para uma situação que desconhece, porque o manipulas, mas avisa para eu trazer o meu taco de boisebol.» «-Boisebol? Nem falar sabes, ignorante. Baseball.Baseball!» - retorque ela jocosamente. «-Não, é boisebol, para dar nos cornos do boi.» Não sei se foi a forma como disse, se foi uma catarse da plateia em relação ao j ene sais quoi de irritante que a tipa tinha, que uma risada geral emerge pelo silêncio, vexando a interlocutora. Acredito que o comeback tocou nalgum nervo dela, mas senti logo que estava a ser desagradável para um gajo que só provaria ser menor, se se deixasse manipular e viesse de facto tirar satisfações de mim, por causa de uma namorada histriónica. Ciente disso, completo de dobrar o papel e coloco-o no bolso, até que ela, que está nas minhas costas diz «-Olhe lá…» ao que me viro e ao virar-me sou presenteado com uma bofetada com o máximo de força que aquele indivíduo conseguiu dispensar ao braço. III Entre sentir o ardor na minha cara e controlar a indignação que me irrompe bem de dentro, olho bem nos olhos dela, e nem um sinal de arrependimento, ou de consciência do mal feito, o que aumentou a minha raiva, aparentemente era mais uma das pessoas que achava que por ter pito é inimputável perante os outros em relação às suas acções. Pensava comigo, «-Arrefoda-se, outra?! Mas devo ter algo na cara que convida a que me batam. Lembrei-me logo de Susana e da mesma linha de acção que usou comigo. Mas há alguma lei escrita em que se diga que a mulher pode bater no homem, e eu não li o memorando?» Aparentemente não tinha na sua experiência de vida, uma situação que desaconselhasse este tipo de acção, nem um sistema moral que proibisse a utilização de violência contra outro, neste tipo de situações. Pois bem, se eram essas as regras deduzi que se aplicariam a mim também. Ninguém na sala disse nada, apenas olharam, nem um comentário, apenas o silêncio interrompido pela chapada que devolvi, mas que infelizmente o meu braço sendo um pouco mais pesado, provocou o arremesso do sujeito, a uns bons dois metros no sentido do movimento semicircular que o meu braço iniciou, primeiro com dois passos que se engalfinharam um no outro, depois com uma queda ao solo, já perto do vaso com uma planta língua-de-sogra que estava perto da entrada. A violência do estalo acelerara a cara num sentido e os cabelos no sentido contrário, portanto a cara estava agora coberta pelos cabelos e ela despenteada. A sua cara olhava incrédula para as suas mãos e depois para mim, parecia estar em choque pois na sua imagem do mundo uma agressão sua nunca motivara uma agressão de outro. Perante o meu rosto impassível, onde não havia a fraqueza do remorso por onde pudesse pegar, onde percebera que sozinha não me iria castigar, passou ao plano B, começando a chorar com o ar mais desconsolado que lhe era possível. A mesma plateia que assistira em silêncio à agressão de que eu fora alvo, virava-se agora contra mim com epítetos como monstro, e bruto, e alguém chame a polícia. Pego no telefone e ligo para a esquadra mais próxima para comunicar a ocorrência, e o choro dela reúne à sua volta umas 3 mulheres e dois homens, um deles abanando a cabeça e dizendo, ó amigo seja homem e não bata nas mulheres, se quiser posso ensinar-lhe umas coisas. Enquanto me atendem da esquadra ela capricha no ar de desconsolo e vulnerabilidade, e um dos que a socorria ao escutar dela que ela apenas se descontrolara e que não me tinha feito nada, enfunado pela esperança da atenção que um mulherão daqueles lhe dava, achou que podia provar à dama que tinha valor de potencial alvo de favores, sexuais ou outros, espancando o alvo que com os deditos ela apontava. Assim que do outro lado o agente atende o telefone, sou meio surpreendido com um soco na orelha que escutava o altifalante, partindo o telefone e rasgando-me um bocado do lóbulo do courato. Olho para encarar o agressor e recuo um passo, que me permite desviar do segundo soco com a mão esquerda, dado com demasiada força e desequilibrando o pugilista, que do canto do olho vê a minha cabeça aproximar-se demasiado rápido, chocando com a sua arcada supraciliar abrindo a pele pelo choque de ambas as massas ósseas. Jorrando sangue vem de novo na minha direcção recebendo um pontapé baixo assente na rótula, que o faz baixar o torso, e estando um cinzeiro no balcão, daqueles de loiça, não contou que o mesmo fosse desfeito no lado oposto do crânio abrindo outra ferida do outro lado, fazendo-o aterrar com os seus cerca de 130 quilogramas de carne impregnada de proteína de ginásio, com mais violência que a dama a quem tentava mostrar valor. Um seu amigo que estava fora do recinto vendo que o companheiro, habituado a espancar outros, não dava conta do recado, entra e apanhando-me de costas, pontapeia-me com violência, fazendo sair carteira, o papel que ali me levara, cartões de visita, tudo, pelo casaco fora. As costas começaram a doer-me de imediato, e virando-me de repente para enfrentar o novo agressor, verifico que tem uma perna à frente, que varro com um pontapé baixo, fazendo-o desequilibrar e cair e por sorte não cai com a vista em cima de um caco do cinzeiro, apenas raspando com a cabeça que mesmo assim não evita um corte e corrimento copioso de sangue. O outro tentava-se levantar e aqui a raiva tomou conta de mim, meti-lhe as mãos no colarinho e gritei-lhe bem alto que tipo de pessoa era para não se ralar de espancar um homem para agradar a uma mulher. Se se deixava ser joguete e que a maior virtude de um homem é o estoicismo de não ceder o seu poder a quem o pode manobrar, com o seu próprio desejo. O seu amigo levanta-se enquanto eu disserto sobre a vida com o primeiro, e retirando uma navalha com cerca de 15 centímetros, do bolso avança na minha direcção, eu com ambas as mãos ocupadas, bastando um movimento rápido dele para touché e eu ver a luz ao fundo do túnel. A meio de caminho de chegar a mim, uma Glock é encostada à sua têmpora. O tipo que se sentara no sofá era afinal um polícia fora de serviço, que assistira a tudo. Sentindo o metal na testa, a navalha cai automaticamente, e eu largo também o primeiro bailarino. A dor nas costas tornara-se insuportável, como se me tivessem quebrado ao meio, tal não foi a violência da guinada. A situação de desconsolo da esbofeteadora passara milagrosamente e levantara-se de novo, vendo a situação que provocara, sangue no chão, cacos por todo o lado, arguia que eu provocara tudo começando com ofensas. Subitamente os restantes alinhavam pelo discurso do agente da autoridade, defendendo que nem eu ofendera nem iniciara as agressões. Ligam para a esquadra de novo. Apanho a custo as minhas coisas, incrivelmente o telefone funciona, e assim que reencaixo o ecrã, recebo uma chamada, era Fernanda. A Fernanda é um dos meus mais antigos onofes, um onofe é um caso ‘amoroso’ que decorre de forma intermitente, ora está on, ora está off. Ora decorre, ora se suspende. O que faz dele onofe, é a certeza de que eventualmente voltará como uma espécie de Eterno-Retorno para a cueca. Ao ver o nome dela no visor exclamo «-Arrefoda-se, hoje não é o meu dia.» Fernanda agora não posso falar, falamos depois. Pela voz e pela submissão do início de ritual de reaproximação, anuiu rapidamente. O carro patrulha havia chegado, e a malta ia toda para a esquadra para identificações e averiguações. Reparei no meio do burburinho geral, que a agressora me olhava de forma diferente, com olhar mais terno e receptivo, admiração até. Não me espantava, pois havia infligido violência física em outros dois à sua frente e aposto que se a sua vulva fosse da EDP, estaria nesse momento a produzir energia hidroeléctrica. Chamam-lhe hibristofilia. É bastante comum nas mulheres. Ao sair pela porta, ligam-me de novo, era o Pedro Salgado. O Pedro é um amigo meu dos tempos do call center da antiga Netcabo. Um gajo porreiro, a todos os níveis genial, mas com uma mentalidade em relação às mulheres, pior que a minha. Engenheiro de Electrónica do Técnico, onde por vezes dá aulas, é dos poucos gajos que conheço que alia a arrogância intelectual dos engenheiros com uma curiosidade e amor à ciência que lhe permite abertura de espírito para debater com outros, mesmo que de áreas que geralmente desconsideram por achar que Letras são tretas. A nossa primeira discussão foi sobre a minha afirmação de que a Informática não é uma ciência exacta, e conseguindo modificar a temática para o campo metafísico, passou a ter-me mais respeito, o suficiente para me ligar várias vezes por mês para discutir vários assuntos. «-João, ela saiu de casa!» Pedro, não posso falar agora, tenho de resolver umas coisas depois ligo-te sem falta.
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