«-Então, João, conta-me, quem te magoou tanto?» Tinha os lábios pintados de preto, como aquelas miúdas góticas dos anos 90. Ficava-lhe bem, o preto nos largos lábios carnudos. É muito bonita e bem feita. E apesar de apostar num aspecto alternativo, com botas da tropa envernizadas e palmilhas fofas de marca para não magoar os pés, bem como um coração fofo na biqueira de aço submerso, das botas de marca cara, era uma pessoa aprumada. Era e é, que felizmente está viva. Já estou tão cansado desta pergunta que já nem me dou ao trabalho de asfixiar a frustração com a almofada da polidez. É que já não me indigno. Tenho a fama, que me interessa o que os outros pensam sobre mim. Mas ela, havia sido bem disposta comigo, se bem que a início, um pouco arrogante por sentir que os meus cabelos brancos são uma qualquer expressão de desvalor no mercado na carne. Leu mal em mim que eu andasse à procura de algo. Pois quem procura está em carência, e quem procura faz aumentar o valor da mercadoria, do bem que se tem para a troca. Estranho como a beleza ainda tem tal efeito em mim, mas já não me controla como antes. Desta feita, sou eu que não quero entrar num contexto onde conheço quase todos os cantos à casa. Será que é isto envelhecer? Perder a pouca paciência que se tinha? E no entanto não consigo parar de me meter com as mulheres que se metem ao meu caminho. Como se uma fornalha nuclear em fissão constante num qualquer submarino atómico ao largo dos Açores, afundado mas com cadáveres lá dentro nas abissais profundidades a largar radiação. Escorpião escorpião. «-Queria uma tshirt dos Type O Negative que tem ali na montra.» - disse eu, aliviado por encontrar merchandising a preços decentes na capital do império. Vou ter de a poupar, ia pensando comigo, pois uma tshirt a 10 euros, o algodão deve ser uma merda. Ela traz-me um pano de algodão pesado, e eu ao toque vejo logo que a peça de roupa é como uma mulher que amamos e queremos usar durante muito tempo. «-Grande banda, da velha guarda.» Foda-se, da velha guarda, penso eu. Parece que foi ontem que fui comprar o álbum deles acabado de sair, ali pelos lados do Rossio. Entretanto a banda acabou há quase 20 anos. Olhei para ela e disse «-Não digas coisas assim, que me fazes sentir velho!» e ri-me. Ela olhou para mim com espanto e reserva, por a ter tratado por ‘tu’, não fosse eu ser um maluco qualquer, um rebarbado. Mas como me viu a olhar para o lado e a rir sozinho, percebeu que eu não estava na performance de engate, que é aquela personalidade ensaiada que todos temos quando queremos engatar outros, deslumbrar com uma ficção nossa. «-Na altura que estavam na moda, eu não lhes achava muita graça e demorei a entrar no trabalho deles.» - acrescentei eu, voltando à conversa com ela. «-Eu ouvi-os através do meu irmão que era metaleiro, e agora é contabilista.» e riu-se ela, com a mesma presença de espírito com que eu me rira antes, e acabámos a rir os dois. Disse-lhe que sabia porque se ria, porque o contraste da mudança é tão incongruente. Que na faculdade os gajos que escreviam na revista de Letras, também achavam que eu era um punhetas vindo das franjas de Lisboa, e que por não ser de Literaturas era um arrivista, um cowboy. A maior parte dessa malta agora é funcionário público e tem gosto especial por conhaque e brandy. E eu, 1400 páginas do quer que seja, escritas à mão. «-Escreves?» pergunta. «-Não, expresso-me a preto para papel, de formas que considero bonitas.» Ela fica de novo séria a olhar para mim, com o seu cabelo preto preso em rabo de cavalo, olhos grandes castanhos por detrás de uns óculos de hastes pretas e lentes quadradas. Uma saia escocesa vermelha berrante a condizer com o coração nas botas, e uma blusa branca sob um blusão de cabedal motoqueiro dos anos 50. A imitar o Schott Perfecto. Clássico. Fazia-me lembrar as suicide girls, outra moda passada, revista por mim nas tatuagens dos seus braços. Tinha um relógio da Casio, vintage, digital, todo preto menos o mostrador digital. «-Eu também escrevo.» - diz-me ela. Digo-lhe que fico muito feliz por ela, que escrever-mos para a gaveta hoje em dia, é a melhor forma de recuperar alguma sanidade da imbecilidade corriqueira actual. «-Gostava de ler algo teu.» disse-me, depois de uns 15 minutos a ouvir-me falar sobre a minha preferência pela narrativa intimista em forma de first person shooter. E eu respondi «-Viuva Profissional ponto com. Tenho aí alguns textos.» Levei duas tshirts, e ao sair ela veio ter comigo à porta sorrindo para um cliente, olha podes dar-me uma opinião um dia destes? E passou-me uma resma de folhas impecavelmente brancas, dactilografadas com um preto intenso, bem melhor que o da minha impressora marreca. «-Epá, não ando com muito tempo para mais leituras…» «Vá lá, eu pago-te um café e dizes-me o que achas!» Acedi e trocámos números. Li aquilo no comboio. Ou melhor, metade no comboio, metade à noite, em casa sozinho. Muito bom, impressionou-me bastante. Muita maturidade para a sua idade, e era uma pessoa cuja escrita revelava uma indagação natural e sombria sobre as coisas do mundo. Sem aquelas superficialidades de que sofremos na vida e ultrapassamos as barreiras, ou de frases hermeticamente fechadas para parecerem complexas para o olho que nelas não encontra sentido, sem arriscar uma ideia estruturada sequer. Não, esta ia ao âmago da inquietação. Lembro-me de estar a ler, e a pensar que sempre procurara uma namorada com uma vida interior assim, alguém com quem eu não tivesse de fingir ser outra pessoa, como quando queremos engatar alguém e desempenhamos uma personagem. Uma namorada que ao olharmos o mar e eu tivesse uma tirada das minhas, como «-Estás a olhar para o maior cemitério de navios da Europa.» apontando com o dedo para o Bugio, acenasse que sim com a cabeça e se deixasse inebriar pela consequência da minha palermice. Ao invés de meter mais uma moeda no mealheiro da minha desqualificação. Não sendo pretensioso, alguém em que eu não tivesse de amarrecar as costas para estar na sua casa. Porque é que me aparecia agora, alguém assim, e não antes? Deus parece ter uma veia sarcástica. Combinámos ir ao bar do Trindade, perto de onde trabalhava. Queimei a língua no café, e ao ouvir a sua pergunta, demorei mais do que é normal, a responder. «-Então, João, conta-me, quem te magoou tanto?» Lera o meu blogue. «-Como assim?» perguntei eu, fazendo render o tempo, testando a sua impaciência para ouvir a minha opinião das suas páginas. Do meu lado esquerdo, uma vitrina opaca devolvia-me o meu reflexo, e eu vi a minha cara, pesada, bolachuda, com os olhos carregados, e desejei conseguir evitar esta postura de velho gasto que não sou. E respondi-lhe de acordo, «-É inteligente, mas deslocada essa pergunta. Se calhar a resposta é ‘todas’.» «-Deslocada porquê?» - devolve. «-Porque o motivo da mágoa, não é o terem ido embora, mas a forma como o fizeram. A malta pensa que os homens sofrem por causa da rejeição. Do se irem embora. O que magoa mesmo, é a forma pouco humana com que a maioria trata os outros nestas situações.» «Acho que percebo, mas dá-me um exemplo.» diz, com alguma curiosidade. Eu não ia estar a expor o rol de encontros e desencontros, como amante infeliz, e por isso optei por um exemplo genérico ou metafórico. «-Eu compreendo em parte essa forma cruel de lidar delas comigo…Têm de ser ásperas, para se desligarem emocionalmente, porque se convenceram de que sou algo a afastar, para se poderem afastar, a crueldade e a estupidez deve parecer-lhes lógica, como forma de materializar uma decisão já tomada. Mas do outro lado, o outro sente-se detentor de alguma forma fatal de lepra. Mas eu entendo. Olha é como o gajo ou gaja que mata bezerros e tem de os ver como montes de proteína comestível, e não como crianças que gritam de desespero degoladas e penduradas por uma pata a escorrer.» «-Ew, que gráfico!» exclama ela. Eu baixo os olhos, desiludido com a primeira frase infantil que escuto da boca dela. Parecendo que percebe, atalha de imediato, «-Acho que entendo. O que te custa, é a negação de discurso e acharem que não entendes, e que por isso têm de vestir a pele de cabras. Como o meu avô lá na terra, não se pode dar ao luxo de se afeiçoar às ovelhas, que mata na Páscoa, porque senão não as conseguia matar.» A profundidade estabelecera-se entre nós. O silêncio também. Eu fiquei com aquela palavra a soar na minha cabeça, ‘matar’. Era essa a imagem que eu via na vitrina opaca. Uma pálida sombra do que eu era, à procura de recuperar a alegria perdida entretanto, no pouco sangue que me sobra das sucessivas degolações. Perdido, à minha procura. «-Que achaste dos meus textos.» «-Gostei, imenso, tens muito talento.» Eu acreditava no que dizia e ela no que ouvia. «-Se bem que falte um capítulo.» acrescentei. «-Falta? Qual?» pergunta curiosa e expectante. «-Aquele onde nos apertamos abraçados numa qualquer profundeza abissal irradiando radiação que mate todas as memórias em redor.» Fiquei parado, vendo-a pelo canto do olho, e esperando que me desiludisse e fizesse aquela cara ‘wtf’de estranheza e ‘cringe’ e o diabo a sete. O tempo e o silêncio decorreram com desconfortável monotonia, até que ela disse, «-Esqueci-me da caneta ali em casa, vamos lá buscá-la.»
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