I A manhã desponta como um presságio de vómito e ele olha para as mãos caídas para o chão, lassas e indolentes como que em sintonia com a ressaca imperatriz. Haviam dançado a noite toda numa coreografia horizontal de cuspo, suor, esperma e sangue, e desta guerra fratricida apenas se ouviram os disparos de gemidos, queixumes e segredos contados para dentro, sob um colchão encharcado em fluidos corporais. Só com alguns vodkas tónicos no bucho foi ele capaz de copular com Ana Santos. Ana foi nos tempos de escola, aqueles em que a testosterona nos faz cair na embriaguez telúrica das forças que agem em nós, uma paixonite fulminante mal resolvida. Ele circulava calmo e em paz, encharcado no suor de ter jogado basquetebol a tarde inteira, quando uma voz o chama. - «Olá.» ‘Olá.’ – foi o que saiu da boca dele. Cabelos negros encaracolados faziam a moldura de uma cara sagaz e exótica cujos dois olhos apontavam para ele com um misto de divertimento e curiosidade. Nariz redondinho e arrebitado na ponta, lábios salientes e carnudos acentuavam o carácter melanóide da ninfeta branca como cal que a ele dirigira a saudação. - «Queres ir ao cinema?» -«Chamo-me João.» -«Eu sei como te chamas, tenho-te observado.» Ela andava sempre acompanhada por duas amigas colegas, e compunham um dos trios mais populares de cachopas da Secundária. Sempre colocadas estrategicamente à entrada do refeitório, em intervalos onde se queimavam os tempos mortos sem aulas, numa espécie de passerelle juvenil misturada com arena de gladiadores, onde a mocidade esgrimia inteligência emocional e técnicas de socialização. Um microcosmos de sociedade, tão complexo como outro mundo qualquer, com as suas leis e regras, com as suas excepções. Com os seus anti-heróis. Ele era um desses. Baixo na hierarquia, o pai não lhe dava nem os meios nem a oportunidade para socializar, ir ao café, a casa de amigos, passara uns tempos na passerelle até perceber que não só não queria subir a escada, como rejeitava a existência da mesma, regateando com a realidade, como se a mesma desse um cu em relação à sua subjectividade e ideia de como o mundo deveria ser. Borrifou-se para aquilo, virou costas, e preferia passar o tempo ao Sol ou à chuva, jogando, transpirando, ganhando, perdendo, caindo, por vezes até baldando-se à aula para terminar um jogo em que decidira ganhar custasse o que custasse. Quando respeitava a sirene que chamava a população escolar para a pequena boca que passa por porta das salas de aula, entrava na mesma encharcado, e em aulas de 90 minutos só a cerca de 20 do fim tinha o corpo arrefecido o suficiente para deixar de esvair moléculas compostas de hidrogénio e oxigénio pêlos poros dilatados de uma pele que dissipava calor. Para depois da sirene voltar ao mesmo ritual. Fluxos e refluxos de uma maré composta de sprints para um lado do campo e para o outro, em velocidade vertiginosa que mesmo a malta do futebol achava ridícula pelo esforço cardiovascular. E duravam horas e horas e no fim um sentimento de paz com o mundo, análogo ao que viria a sentir anos mais tarde na exaustão das cópulas sucessivas. Sem energia dentro do corpo, aparece o Nirvana da humildade. Após tácticas e demonstrações de capacidade técnica, tal como no amor, com mitologias e façanhas próprias, tal como no amor, o basquete de rua é uma perfeita metáfora. Não gostava da racionalidade do basquete de pavilhão, frio, assertivo e colectivista. Tremendamente eficaz. Não, para ele era o de rua, aquele em que pretos e brancos demonstravam a finesse e o estilo próprio, em que os primeiros pareciam preferir a elegância e o exercício de estilo, as fitas, e os segundos a eficácia e as tácticas mecanizadas e os triplos, num bailado de galão quente raramente segregado ou segregacionista. No campo, éramos irmãos pelo tempo em que jogávamos nas mesmas equipas. Conhecíamo-nos uns aos outros, o estilo, a jogada preferida, as limitações. Ele, adorava penetrações. Para o cesto. Mais tarde trocaria a preferência por penetrações para outro tipo de objectivo, primeiro vulvas e depois almas, escusado será dizer. Adorava acelerar de tal forma que quando dava os dois passos e estendia o braço para cima, tentando tocar com os dedos no aro metálico, tinha de acelerar a subida de forma a que não fosse bloqueado, o que é a humilhação suprema no basquete de rua, pior que perder. Ser abafado significa que a nossa intenção e técnica, e inteligência foram negadas. Negadas pela observação e acção de outro. Ele, como os outros, era baixo para o jogo. Mas não se ralava, sabia qual a sua impulsão e calculava bem onde tinha de começar a subir perpendicularmente em relação aos latagões que invariavelmente apareciam na escola ou no ringue perto de casa, para desafiar os autóctones. Quando subia e vinha o abafo pelo correio, passava a bola a outro incapacitando no ar o incauto que seguia no despeito voador pela gravidade fora, no seu encalço. Ele não era particularmente fascinado pelas fintas, de corpo, pelo teatro que ludibria o outro. Era pela penetração, rápida, incisiva, só com o cesto em vista. O objectivo, claro, cristalino, único, apenas ele e a sua vontade de o atingir, de depositar a bola na vulva de boca virada para o céu. Tivessem 2 ou 3 metros ele não queria saber, queria era pontuar, fazer a equipa atingir o objectivo, acutilante, inexorável. Findo o jogo, raramente os outros se conformavam e havia sempre lugar a desforras, e quando o resultado se repetia, reorganizavam equipas para dar mais luta. Dentro do jogo, outro jogo, ser o melhor da equipa. Menos passes falhados, menos cestos perdidos. No caso dele, menos penetrações falhadas. Epá fazes sempre a mesma, pareces um coelhinho da selva. Ok, faço, só com a esquerda, ou cesto de costas, ou meto-a no cesto à frente da tua cara. Invariavelmente não chegavam a tempo, pois não subindo por aí além por causa de ossos largos e pesados contribuírem para peso estrutural, subia rápido, e o outro invariavelmente sabia que ao subir quando lá chegasse com a mão já a bola havia entrado no cesto. Pelo que a imagem que se repetia era a de uma resignação quando dado o espaço suficiente ele fazia magia em dois passos. Se cometiam o erro de marcar homem a homem, deslocava-se levando o defensor a colidir com colega de equipa, criando o desequilíbrio. Ou ficava solto e marcava ou marcado fazia marcar. Perdeu, muito, muitas vezes, se calhar mais do que ganhou. Talvez não. Foi abafado, ganhou jogos com cestos de meio campo e nos últimos segundos. Dias houve em que não ganhou um único jogo. Torceu todas as articulações do corpo. Apanhou boladas nos testículos, andou a coxear pela vila, perdeu unhas, ficou com os dedos abasalados nas articulações entre falanges. Certa vez não morreu por sorte, afundando um copo de Coca-cola numa tabela que tinha os parafusos podres e cedeu quando ele se pendurou no aro para impressionar umas cachopas que passavam de soslaio. Embatendo ruidosamente no chão, a tempo ele conseguiu fitar o pesado rectângulo da guilhotina, e o aro da forca californiana. A única fita que precisou salvou-lhe a vida. De resto era a mesma liturgia de encaixar o corpo nos espaços que os outros descuravam, sempre com o objectivo em mente. Em alguns dias, o tornozelo inchado como papaia demasiado madura, provocava-lhe mais dor que o admissível e não jogava. Noutros, o calor era tal que não compensava a correria para as casas de banho para beber água pela torneira. Noutros o campo estava ocupado por efemérides da pequena comunidade. Num desses dias foi ao refeitório quando Ana o chamou. -«Ok.» -«Boa! João espero-te 5ª feira na paragem de autocarro e vamos ao Areeiro ao Alfa e decidimos lá qual o filme a ver!» Vira-lhe as costas e parte em direcção às amigas que encostadas na parede se riam, como que se numa piada privada que ele só interpretou, valha-lhe o abençoado ego, como uma catarse emotiva após possivelmente ter sido muito falado como amor secreto, afinal a cachopa sabia quem ele era, possivelmente o observara a penetrar para o cesto e com o seu porte e destreza atlética, se apaixonara passando o resto do tempo a falar dele. Fazia sentido. Fazendo o que tinha a fazer, beber um Sumol, sai ainda meio abananado, do refeitório, em direcção ao campo. Ia celebrar o ser apreciado por fêmeas, com uma jogatana bem regada a fluídos corporais com aroma a condizer. Pelo caminho as nuvens brancas no firmamento azul profundo cantavam em coro «-Vês, vês, o mundo está de olho em ti, validando-te com a fêmea popular que te fará rei no jogo a que viraste costas!». Finalmente uma fêmea, onde posso resgatar uma história marital infeliz dos meus progenitores, fazendo tudo bem para todo o sempre. Ah, e sexo. Mais imaginado em possibilidade que possível de imaginar. A confiança na justeza do mundo era tal, que parecia profética. Alguém o valida, alguém de casta económica superior o valida. Alguém que via a MTV e sabia o que era sofisticação e usava roupa de marca. Vês mundo, o amor vence tudo e esbate as fronteiras entre indivíduos. Olha, em duas horas apaixonara-se. Já só via o rosto dela, os cones mamários e o rabo sob as calças da Levis. Confiante fazia cestos de olhos fechados e até de costas, com os outros a morder a conformação por este ser um daqueles dias em que tudo sai bem a certo jogador e que contra o destino não há resistência. Na 5ª feira está religiosamente sentado aguardando o autocarro laranja e branco da Rodoviária Nacional. Passa um, dois, três… Espera meia hora, depois uma hora, depois uma hora e meia. Passa Vasco, seu amigo, que lhe pergunta que faz ali. Explica. Sabedor de algo que ele ignorava, Vasco coloca-lhe a mão no ombro dizendo que ela já não vem, que era melhor subirem a rampa que levava para mais perto de casa, uma vez que moravam relativamente perto. Aparentemente, Vasco parecia já ter passado pelo mesmo. Chegou a casa e a única coisa que lhe passava pela ideia assumia a forma de uma pergunta, porquê? Não tinha aulas na 6ª por ser feriado, na 2ª dirigiu-se ao refeitório, lá estavam as 3. Assim que dobrou a esquina, gargalhadas ecoaram pelo corredor. Ao dirigir-se, sem entender nada, a Ana, ela levanta-se rapidamente e foge para dentro do refeitório, rindo-se audivelmente, como se perseguida por um jogral. Ele fica especado, e quando fogem, não corre atrás. Excepto no basquete. Para onde voltou. Porquê, perguntava-se, sem interacções anteriores, porquê a ele? A pergunta adensou-se quando duas semanas depois a viu, num vértice do pavilhão escolar rectangular, com a boca que ele sonhara beijar, na boca de um gajo que ele nunca vira antes. Um gajo menos enconado com a vida, mais citadino e com patine na ganga de qualidade da vida. Como aqueles jogadores que só de vermos mexer ou driblar a bola, sabemos que jogam pouco ou à pouco tempo, ele se comparava com o ignoto rival, certo de que nisto que as cachopas gostam, este afundaria na sua cara, sem tirar os pés do chão. A técnica ou a inteligência social, a que ele virara costas, apareciam assim triunfantes ante amante vencido que outrora nos rejeitou. -«Vês, não consegues fugir ao jogo.» - diziam as nuvens cinzentas no céu. Tão depressa como surgira a paixão desaparecera. Paixões validacionais são assim, instrumentais como o objecto que ele se sentira, mascarando com sentimento o demónio interior do sentimento de inadequação. II 27 anos passaram desde que a Ana Santos decidira rir-se com as amigas, à conta de um anónimo qualquer, pertencente a um mundo de castas por elas claramente apreendido. O toque de sonar submarino ecoa pelo quarto, a onde ele regressara após um treino solitário no campo de basquete do parque urbano, às 2 da manhã. Um convite para reunião de alunos da escola secundária, sob a forma de repasto, à moda das merdas que se vêem nos filmes americanos e que sustentam redes como o Facebook. Que se lixe esta merda, pensa ele. Como que em nota de rodapé, uma declaração de interesse em assistir ao evento, de Ana Santos. A foto de perfil era claramente antiga e melosa para uma moçoila de 4 décadas. O seu rancor transmutado em falha de carácter fê-lo procurar indícios de curvas descendentes na vida dela, como que se após tanto tempo, não tivesse esquecido o ultraje. Como que se o mal do outro aliviasse o seu, ou fosse até o seu bem. Duas vozes ecoavam na sua cabeça provocando curto-circuito numa análise que queria racional. Borrifa-te para isso que é uma infantilidade, e vê, analisa a pessoa que te magoou desnecessariamente para ao menos entenderes o porquê e extirpares o cilício de uma vez por todas. Claro que se tiver uma vida infeliz, embora não traga satisfação, traz honrarias ao demónio em mim. Ou penseis que sois feitos apenas de luz e Deus? Fui. No pavilhão gimnodesportivo, 4 filas compostas por mesas rigorosamente alinhadas como se formatura militar, opunham outras 8 colunas de comensais que provocavam ruído constante ensurdecedor a um observador de fora. No meio, a quantidade vocabular de lembranças e emoções agarradas a essas lembranças, projectadas pelo ar, era tal que permitiriam a um profeta levitar e caminhar sobre elas. Calhou, como piada cósmica, ficar a 3 lugares de distância de uma tal Ana Santos. De frente para ela. Reconheci malta do basquete, da associação de estudantes, da declamação poética em alemão, de tudo aquilo em que me envolvi naquela escola. Mas as pessoas mais interessantes, a meus olhos, não haviam comparecido na maior parte. Os underdogs, os deprezados pêlos alpinistas sociais e pelo status quo em igual medida, não apareceram. Eu, estava no meio, nem completamente ostracizado, nem minimamente integrado nas redes de sofisticação social onde o lugar de cada um é reafirmado endogamicamente numa espécie de peer review. Anos passados, e a fantochada já não tem a mesma sombra de misticismo. Como revermos prédios ou artefactos que nos parecem maiores na memória que ao vivo. As personagens que outrora com assertividade e integração pareciam feitas de barro diferente, aparecem agora como folhas secas que teimam em não cair da árvore e continuam a dizer adeus ao vazio conforme dita o vento que as abana. Os cachopos populares e os seus risos amarelecidos por anos de café, continuam a espalhar o mesmo charme saloio de enquadramento, de adequação, de total aceitação ontológica a um mundo que não querem sequer ver como problemático porque lhes arrancaria essa assertividade que como método infalível no passado, continuam a exercer como equipa ganhadora para o futuro, sem mais delongas cogitativas sobre o assunto. Os chinos, os polos de marca, os Stan Smith branco imaculados, os relógios de catálogo de marca de roupa interior, as sugestões de bons restaurantes onde comer, e de bons planos de fim-de-semana onde sempre se deixa escapar um ou outro pormenor acerca do estilo de vida. E os sorrisos, confiantes e omnipresentes, mas nos olhos contrastando já um gérmen de sabedoria fatal sobre a existência, borra-lhes a pintura como cagadela de mosca em toalha de mesa branca. Alguns, os mais sabidos sabem disfarçar, fazendo passar esta mágoa por detrás dos olhos, como um placebo de experiência de vida, como se a vida se repetisse e desse em ritmos de onde pudéssemos extrair lições anulando a diferença em cada experiência repetida, e evidenciando as semelhanças que só existem na nossa cabeça. Os olhares fatalistas, e a exalação lenta do fumo do cigarro como que aguardando a maturação por mais uns momentos, de um qualquer pensamento profundo, ou dito de oráculo, fazem do silêncio involuntário da boca cheia de fumo, o dador de uma profundidade charmosa, mesmo quando o assunto é a forma como estacionam a stationwagon na bomba de gasolina quando vão pagar o combustível, ou como exigiram ao mediador de seguros que incluísse a quebra parcial de vidros, como extra não pago. Ele não sabe se estas pálidas personagens o são, por contraposição com uma memória que os elevou, ou se por uma real indigência existencial, só outrora mascarada com a certeza e graça da juventude. Agora o sofisticado era ele, certo, em absoluto de que este tipo de cogitação era exclusivo dele, e que caso toda a gente pensasse analogamente e fingisse apenas estar noutro registo, isto não é o mundo, mas o Inferno. As camisas bem engomadas, lisas e rosas, arregaçadas pelas mangas, para dar ar de respeitabilidade laboral e enquadramento com a vida contextual deste purgatório metafísico, as outrora ninfetas revelando amores fáceis por amizades femininas decanas de outrora, com riso fácil para fingir felicidade de uma vida bem vivida. Ao terceiro copo de sangria bateu-lhe, repetimos a mesma peça até ao último suspiro. O sucesso ou insucesso inicial têm um preço. Não deve cuspir na mão que me deu o gume mas não a pega. Ao pousar o copo na mesa, bate-lhe uma mão no ombro. «-Passas-me o jarro de sangria?» Era Ana. Olhando para a zona onde estava sentada, viu um jarro ainda com fruta amarelecida e liquido no seu interior. Era claro que o reconhecera e viera ter com ele para falar. Será que tantos anos a fizeram envergonhar-se do odioso crime de ser humana? Da inadmissível falta para com ele só punível com esquartejamento lançado aos pontos cardeais, no mínimo. Enchido o copo, disse obrigado e voltou para o seu lugar. Havia inadvertidamente iniciado nele uma ideia de vingança, por causa de uma variável que ele não calculara, a sangria no jarro perto dela estaria demasiado doce ou amarga ou com borra, e a do jarro dele ainda suava gotículas de condensação na pele do vidro. Ele só viu uma qualquer velhaquice da parte dela, e meteu em curso uma velhaquice resposta. Levantado-se e analisando-a à distância, formaria o plano. E que plano seria esse que faria a reposição de uma injustiça marcante para a história do Cosmos? Comer a gaja e largá-la, humilhada por ter sido preterida e usada, usando o sexo como arma de arremesso contra um moribundo em coma vegetativo. Havia nela uma alegria esforçada, além do normal naquelas bandas, e a sua beleza pueril esvanecera-se o suficiente para se perceber, quem a não conhecesse antes, que era como a estátua de Ozzymandias, uma honra a glórias passadas. «-Olá.» - diz-lhe ele. «-Olá» - responde ela com um olhar de estranheza forçada e com intuito de provocar inadequação, especialmente se acompanhado com esgar facial para uma cúmplice que confirma e conforta a segurança da interveniente num mundo mútuo, tal como quando eram adolescentes, vincando a força mental do seu mundo de regras e leis, sob a dos outros através da lei do mais forte, a do número. E no caso das cachopas apetecíveis, por pretendentes que dizem tudo o que Penélope quer ouvir. Mas isto apenas funcionava no tempo em que ele não via isto como insegurança e frivolidade por parte dela. Este pensamento reforça-lhe a confiança, e insiste. «-Foste ali tirar-me a sangria, agora deves-me uma dança.» Ela responde «-Dança? Bebeste demais rapaz, estás a ouvir alguma música?» A forma como ela reagiria dir-lhe ia, como agir, de acordo com o firmware mental da criatura, a capacidade de encaixe e acima de tudo o sentido de humor, que se vê sempre que um estranho age de forma heterodoxa connosco, mas ainda assim, dentro de certos limites saudáveis de respeito e dignidade pelo outro. «-Eu não disse que era uma dança vertical.» Ela agora tinha a moralidade do lado dela, podia fazer uma barracada, escusada quando alguém é só socialmente inadequado. Há uma fina linha de crime e castigo entre o enxovalho que se pode dar a um inadequado e a um boçal brejeiro, e ele jogava com isso. A uma inspiração de espanto por boca escancarada, ela exclama para a sua cúmplice de longa data «-Ana, tu ouviste o que ele me disse, chama aí alguém, os seguranças, este porco.» Sim a outra também se chama Ana. Sem migalha de qualquer dívida com ele, ele percebe que se não lhe dá o benefício da dúvida, é porque ela não se lembra dele, o que é mau para o seu ego mas bom para o seu plano, paradoxalmente. A outra começa a chamar os latagões do costume, aqueles que as validavam numa rede de codependência e uns três levantaram-se e caminharam na direcção dele. «-Tola, não te lembras de mim?» - diz ele, com um sorriso aberto e fingindo franqueza e exclamação no tom de voz. «-Chegámos a curtir no canto do pavilhão, eu depois mudei de área e fui para Saúde?!» - as roldanas mnemónicas dela começaram ingloriamente a trabalhar, embora o anzol, canto do pavilhão a prendesse numa obscura memória que dava alguma validade á possibilidade de o conhecer, mas não reconhecer. «-Nããão…» «-Eh pah, não me digas, Ana Santos, moras no 3º andar naquele prédio ao pé da farmácia, tinhas só calças Levis, e esta também se chama Ana.» Ambas começaram a reconhecer informação que roçava algum ponto G da memória. «-E quando andávamos, durante pouco tempo, tu dizias que gostavas de tipos directos. E eu agora na brincadeira estava certo que me reconhecias.» «-Não, não te reconheço, mas pera, acho que me lembro de termos tido uma curte…xii já foi há tanto tempo.» A cara dela não estava convencida mas ostentava aquela cedência de quem não quer insistir em algo que não tem a certeza, e se ele dizia ter curtido com ela, por certo era alguém sociável e pertencente ao grupo de codependentes, portanto alguém a quem não era prudente, hostilizar e correr o risco de ser marginalizada por maior influência social desse de quem não se lembra. Mas a pré-selecção impede que o tipo não seja in ou popular, portanto e à partida, não havia risco, mesmo que tivesse de fingir uma rememoração. Três latagões abordam-no, «-Então, que se passa.», olhando para a boca, dela, de onde saiu o apelo. «-Ele diz que andámos e me conhece, mas está difícil lembrar-me.» Um deles olhando-o de forma ameaçadora, tenta capitalizar no espancamento de outrem para agradar à fêmea. E quem sabe obter a sorte da vagina dourada. Quem sabe. Quem sabe se os mesmos esquemas de adolescência não funcionam aqui. «-E disse-me que me queria, epá tu sabes.» - resume ela. «-Dude, isso não é educado.» «-Vais ter de sair, a bem ou a mal, e parece-me que prefiro que saias a mal.» Completamente inamovível ele diz assim «-Caros, ou se afastam, ou a única coisa que vão ingerir mais hoje, terá de ser por via intravenosa. E vem do cavalo a quem um dia a vossa mãe chamou ‘amor’.» Um silêncio caiu entre os 6. Ele parecia adoptar a táctica da ratazana ante predador que a supera, atacar primeiro. Mas a calma como disse o que disse, e como se afastou do centro geométrico formado pelo triunvirato de salvadores da honra, e como olhou o mais dominante dos 3 nos olhos, provocou uma perda de reacção en masse. O silêncio foi quebrado pelo do meio, nem o dominante nem o frustrado, o silencioso. «-Migas, continuas um maluco pá.» «-Migas? Estás a confundir-me com alguém pá.» «-Tou nada, chegámos a jogar à bola pá, no campo do Sanjoanense.» «-Não, amigo, eu jogava era basquete.» «-Sim, isso foi depois, mas lembro-me de jogar à bola contigo. Jogaste a avançado num jogo contra o Bairro da Knorr e marcaste uma data de golos. Ganhámos por causa de ti.» Agora era ele que ficava em suspenso por causa da sua memória, ou da incapacidade de a controlar por completo. Parece que esse jogo era mítico e que os outros tinham ouvido falar do seu desempenho, que ele tinha a certeza quase absoluta de ser errado, não fosse o pormenor de dizerem que jogava a avançado, pois era uma das duas posições que gostava de fazer a jogar à bola. Calou-se. O mais agressivo e frustrado jurava a pés juntos que não era ele. A Ana vendo que toda a agressividade se diluíra e que o desconhecido brejeiro podia ser alguém no seu esquema de coisas, afirma que se lembra dele e que afinal, era tudo verdade e ele sempre fora assim, ‘maluco’. «-Ganda maluco pá, que tens feito?» «-Tenho perseguido e pinado gajas que me rejeitaram na adolescência, como forma de vingança pelas frivolidades que me presentearam quando eram novas e as selectoras.» Silêncio de novo. A estupidez e honestidade com que receberam as palavras, criou a tensão que se aliviou em gargalhadas. «-Migas, és mesmo tu!» E ele, «-Mas quem é esse Migas? O meu nome é João. João Figueiredo, tem um mangalho que mete medo.» Novo coro de gargalhadas, mais pela tensão que pelo humor fácil. Ainda que em rima. Afinal, não era um impostor desbocado. A fêmea havia reconhecido o mesmo a quem beijara no vértice do pavilhão. Afastaram-se não sem que o frustrado, o olhasse de soslaio e de forma desprezível, ao que ele nem se dignou mexer o pescoço para reconhecer. Ficou a saber que ela estava divorciada, e a expressão nos olhos e a disponibilidade de atenção com ele, que não queria ficar solteira muito tempo fosse porque motivo fosse. Já tinha idade para ter filhos adultos, mas a leitura que fez dela fê-lo suspeitar que não. Andou no carrossel de pila nos tempos de faculdade, que permite hiperbolizar a capacidade de escolha, raios até aos 36 a mulher só não fode se estiver sepultada. Ou se não quiser. Lá terá escolhido um bom projecto, quando começou a competir com a sua imagem de 20 anos. Aos 36 ainda a gravidade não é madrasta e a replicação não cedeu à perda de informação mitocondrial. As carnes estão firmes, pouco esforço é preciso para manter a figura e o rosto ainda destoa como bela flor germinada no meio do alcatrão. As roupas elegantes caem bem no corpo assim maduro e capaz, e o colagénio deixa a pele bem agarrada ao aparelho muscular, sem sobras pouco económicas. Qualquer trapinho cai bem. A sua confiança decuplica a cada olhar de aprovação masculino, e a donzela comprova a profecia autocumprida de que se tornou obra de arte, e é nessa mentalidade de abundância que existe, a de que é um bem eterno e raro, a quem nunca faltarão admiradores, pois que o mundo lhe deve. Quem não lhe confirma a fantasia é só porque a não consegue comer. Os americanos chamam-lhe a parede. Uma forma do tempo dizer à gente, desculpa lá mas eu acabo-me para ti. A parede parece ser mais dura para elas, especialmente se o único motivo pelo qual recebem atenção é a beleza do corpo. Bem-aventuradas as sortudas na fortuna genética. A rotação de homens em peregrinação que passam pela sua vida, são num primeiro momento uma bênção, mas no fim como em tudo na sorte da mulher, uma maldição. Se a teoria das noivas de guerra tem algum nexo, quantas mais ligações amorosas na mulher, mais difícil é progressivamente, a mulher prender-se emocionalmente de forma profunda com qualquer homem. Isso permitiria que as mulheres esquecessem facilmente o amante anterior caso o mesmo morresse nas guerras de tribos opostas por recursos. Acaba-se a beleza mais rápido, envelhecendo a pele duas vezes mais rapidamente que a dos homens, como também se lhe gasta o amor mais rápido. Quando decide assentar com o amor, vai estragada com as sombras dos machos marcantes, numa altura em que a beleza física não lhe traz a atenção e selectividade de outrora. Instala-se a amargura, porque o jogo tão doce revela-se sem as paredes de algodão cor-de-rosa, afinal apenas me davam atenção pelo meu aspecto, mas sou um ser humano, pode dizer quer a mulher bonita quer o underdog da C+S. E as feias também. São as regras do mercado da carne, mas pelo menos as aceitáveis ainda vão tendo ameaços de amor. A adoração que provocam nos tipos que as idolatrizam, passam por osmose o fascínio de quem cede o biscoito. Tratadas como estrelas tratam os pretendentes como fãs. Está certo, a mulher é a selectora. Ele conduz o teatro de operações até ao quarto de pensão mais reles de que se lembro. Ambos com gin a bombear nas veias com algum sangue à mistura, sentem o rodopio do globo celeste e caem num lunar abraço em cima do colchão. A cara dela, outrora rechonchuda e redonda onde a carne mostrava personalidade sobre o osso, exprime a firme vontade óssea do crânio. Não a pode encher com donuts, porque a partir de certa idade a gordura não vai para onde se quer. A parede abdominal revelava curva acentuada e vestígios de cesariana são ainda descobertos numa arqueologia do seu ventre, feita por algum estudioso de culturas antigas intrigado pela civilização que erigiu um belo monumento agora em ruínas. A excessiva magreza agravada pela perda de massa muscular revela a dama como esqueleto por detrás de belo papel de embrulho, e quanto da sua ilusão foi poderosa e sarcástica para ele. Os pés dela revelam um retrocesso como que numa qualquer ida glaciação, a pele lassa e os nervos e tendões visíveis, assumido gradualmente a morfologia dos pés de velho. Secos, colapsados sobre si, com os vales dos dedos bem visíveis. O preenchimento do corpo que parecia brotar de dentro, implode, restando à pele acompanhar o fluxo e refluxo. A pele ficou baça, com sinais que ganham patine, e a área do cotovelo pende para o solo, triste e cabisbaixa. O rabo declina em grau de convexidade, passando a servir apenas de fina almofada entre o sacro e a dureza. As mamas parecem agora dois sacos de pasteleiro despojadas do seu conteúdo, com apenas alguns lípidos mantendo-as erguidas. Na cara, as dificuldades e os sofrimentos por outros, bem como a desilusão por sonhos perdidos, trilharam vales. Ele não se acanhava pela análise meramente física da pessoa que lhe mexia na gaita, tentando puxar as calças para baixo. Mas uma mágoa tal por causa da injustiça do mundo, ao qual o indivíduo resiste e determina como o percebes resiste ao mar, fazem-no soltar um lamento de tristeza. Sim, a vida é celebração, mas nos outros vejo a minha morte. Parou, beijou-a na testa. Beijou-lhe a mão e foi-se embora. Ao sair, ela boquiaberta, pergunta, «-Que estás a fazer?» «-O mesmo que tu me fizeste, nada.» Parou. Pensou. Disse, «-Vê-se mesmo que não conheces o Migas.» Ela sorriu. Ele despiu-se. Deitou-se com ela e acordou ressacado.
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