Em ambiente bovino bípede na altura das compras de Natal, a gerente de loja vem ter comigo e toca-me no ombro.
A erecção capitalista por bens de curta durabilidade bate-me também no ombro e vejo a loja a abarrotar, e nela bastantes praticantes do gamanço ilegal. Posso apenas fazer cara de mau e circular como manequim a ver se desincentivo o furto à força de uma farda. Malta de favelas às portas de Lisboa não se preocupa com isso. Muito menos quando faço a pausa para a refeição, que é quando volto e vejo mais alarmes desarmados, pelo chão. «-Eu sei que não é a sua função, mas pode ajudar-me a mover um expositor?» Instintivamente ajudaria de qualquer maneira. Não parece mas gosto de fazer força. A voz dela havia cambiado para uma rouquidão gutural e suave, quase infantilizada. Fora do registo normal de cinismo e passivo-agressividade agora pretendendo algo de mim, o instinto funcionava de forma a obter o que pretendia, recorrendo a truques que sempre funcionam, fazendo-se de frágil para provocar a boa vontade e impulso de proteger, neste caso, ao gajo anónimo que ela vê todos os fins-de-semana e não lhe pede nada. Ela manda nos funcionários da loja, mas não no manequim de farda e isso faz toda a diferença. Talvez outros antes de mim tenham cedido goles de ascendente à figura do ‘chefe’. Eu não. Não é por achar que sou especial ou algo do género. É porque me estou mesmo a cagar. E oscilo apenas quando a monotonia se revela tal que ou me entrego ao ambiente ou morro de tédio, só para depois constatar que me prostituí na mesma lengalenga de repetição a que vós chamais de ‘vida’. «-Bora lá.» disse eu, percebendo a incongruência da sua vocalização. Chegado ao móvel, vencida a inércia do soalho, resvalou como ferro de marcar por banha derretida, tudo empurrado por ela. Era só um testezinho de merda, para ver se conseguia obter algo de mim. Ok, se te dá prazer os joguinhos, joga para aí. Duas horas antes eu tinha estado na minha semanal reunião com o meu psicólogo, que numa rara ocasião em que não termina a sessão com uma discussão sobre os limites da ciência da sanidade, me diz a primeira coisa de jeito desde que começámos nesta relação de codependência, onde eu partilho o meu dinheiro, e ele aluga os couratos aos meus pensamentos sobre a natureza humana. Ele como gerente de loja, mental, e não de centro comercial, acha que o diploma na parede me mitiga a veia polemizante. «-João, a tua falta de confiança actual e até depressão, apenas e somente emanam do teu trauma recente de sentires que a tua capacidade de avaliar os outros nada vale, tendo em conta a desilusão que te provocaram. O espírito, confirmando a sua incapacidade de avaliar os outros, sente-se menor, inferiorizado, o que o leva a duvidar de si.» Foda-se. Como não vi isto? De modo que no trabalho estava a pensar nisto. Quando as minorias étnicas são por mim apanhadas a tirar alarmes electrónicos das roupas, gostam de me gritar na cara, inchar o peito e avançar na minha direcção. A um sujeito que me gritava na cara com frustração de não ter roubado nada de jeito, ocorreu-me a justeza da avaliação do psicólogo. Como é que chegou lá e eu não, eu que sou o gerente da minha loja? Gritarem e armarem confusão é só uma forma de intimidar. Prefiro, aos que se escondem À frente de toda a gente. Quando me gritam na cara e insultam os meus antepassados, olho para o desalinhamento dos dentes, da expressão do rosto esticado, das testemunhas de violência por detrás da retina, da posição dos punhos cerrados. Respondo sempre com voz meiga e educada, menos erotizada que a da gerente arrastadora de expositores, mas ainda assim projectando respeito firme ao abordado, ou abordada. Encosto-me a um canto e olho como ‘Terminator’ a paisagem humana de sofreguidão de consumo, onde alguns exemplares de manada tratam os objectos com um desprezo de inconsciência ecológica. Perdido em tais lucubrações alguém me arrebanha todo o baixo ventre com palma da mão alargada. «-E que tal eu abocanhar-te esta pila gorda toda e chupá-la até mudares de cor?» diz uma voz vinda a cerca de metro e meio do soalho por onde se arrastam expositores. A expressão calhou bem e fez-me ejacular duas sonoras gargalhadas, que tiraram um pouco da coragem à autora. A jovem repositora, baixinha e com olhos semi-cerrados como o Billy Idol, em linguagem corporal típica de quem quer passar uma mensagem sexualizada, olhava com esse tipo de intenção, à medida que eu retirava com meiguice a sua mão dos meus países baixos. «Isso não teria graça, eu mudo de cor facilmente.» disse eu rindo. Imagino que teria feito uma aposta com as outras, a ver se desconcertava o vigilante. Vendo rechaçado o seu método originalíssimo de obter ascendente sobre o sexo oposto perguntou-me com cara de ofendida, «-Quem te fez mal? Porquê tanta amargura e falta de sofisticação…» Bem não foram bem estas palavras, mas semelhante. Respondi enquanto lhe virava as costas e circulava com cara de mau pela loja, «-As finanças fizeram-me mal, muito mal.». Ri-me sozinho com a minha presença de espírito. Sempre que algo assim me acontece sinto-me alvo da atenção de Deus. Um arranhar da monotonia só para que Ele me diga que ‘Yo sacana, não me esqueci de ti.» Ao circular com cara de mau, ia olhando nos olhos de todas as cachopas que repõem roupa, e a dobram com cuidado absorvido. A maior parte desvia o olhar por asco, afinal quantas fardas passaram pelo mesmo papel, os cabelos brancos que já me polvilham os flancos também não devem ajudar, eu entendo isso. Mas acho que é mais pela minha cara de mau, e falta de paciência que faz parecer forçada qualquer tentativa de socializar em ambiente de trabalho, ‘-Então a semana foi boa?» ou «Quando vais de férias?» e outras catadelas sociais que visam meter os indivíduos a falar de nada em especial uns com os outros. Umas têm boas nádegas, a pele esticada mas a compleição parece-me frágil, fico com a sensação que se brincasse com alguma delas, desmontaria o brinquedo. Nã. Dispenso. Ainda estou a pensar na minha suposta crença de não saber ler os outros, será que a cachopa não fez aposta nenhuma e foi a forma atabalhoada de se fazer directamente a mim? Nunca saberei, e não me importo.
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