Eu tremia por causa do vento frio que se faz sentir à beira das águas do estuário, mas o Sol de Inverno estava a pique e a cerveja com a sua frescura, de forma estranha, parece tornar o frio interno em calor externo e portanto, apenas o vento se tornava desagradável. Ela, na interminável sucessão de cigarros de tabaco barato, que ia enrolando e fumando com mais amor pelo ritual que pelos coices de nicotina, apreciava a atenção que eu lhe dava, seu ego ouvia-se inchar como balão virgem na boca de criança sôfrega. Não pela atenção de mim, mas pela atenção em si, cada vez mais difícil de captar por olhos de gente não muito decaída no altar dos anos. Recordava ela os tempos de atenção anteriores, onde cada mancebo era uma prova externa do valor interno, onde cada apaixonado aparecia como só mais uma nota na sinfonia cósmica que elogiava a existência do indivíduo feminino, representado pêlos olhares de desejos nos olhos de outros. Mais cruel que a ilusão, só a realidade, que mostrava que passando o período de pele esticada e relativo assombro pelo mundo, que naquelas idades é a ostra da mulher bonita, o longo ocaso até à morte apenas traz à outrora flor sedenta de Sol, o anonimato da penumbra. Poucas coisas existem de mais terríveis para uma mulher, que sentir que passa a ser invisível. Uma delas é ser-se homem. Vês, é que se a ninfeta a partir da primeira menstruação, dos primeiros augúrios de mamilos na brisa de Verão, se torna visível e entra na ilusão da aprovação masculina que a vê como um corpo, a possuir, a saborear, a manter e a proteger, o homem não desejável passa a maior parte da vida invisível, sem uma mão ou lábios que o façam sentir desejado. Aprende e interioriza que não é digno de amor e que se alguma mulher dele se enamora, tal é por outro tipo de interesse. Não recebe nem saberá receber amor. Por mais feia que seja a ninfeta, o superior desejo, oferenda da superior testosterona, permite que a maior parte delas sempre encontre um gajo qualquer que as queira cobrir, ou pelo menos cortejar. Poucas ficam sem atenção masculina, apenas se o caso estético for mesmo grave, ou se vivem isoladas num barril de castidade. O truque, como diz o ingénuo Lawrence das Arábias, é não importar que dói. É não ralar se as tipas nos perseguem ou não. Se caminhamos no meio da estrada, nem loucos selvagens nem abastados e promissores partidos, os carros passam todos por nós. Nada há de mais solitário que nascer sem dinheiro e sem vantagem financeira e social. Torna-se invisível para as gajas e vê-se reconduzido a pescar em barris restritos, o café do bairro, as gajas das aulas de dança, ou outro microcosmos relativamente fechado em si, que permita que o grupo não seja obliterado pela oferta do mundo aberto. O tinder, bumble e outros obliteraram as únicas escapatórias dos gajos que caminham no meio da estrada. Perdido nestas cogitações nem me apercebi de que falava há meia hora do namorado. Meio irritado por estar a falar de outro na minha companhia, por teste ou labrega velhaquice, disse-lhe: «-Esse desgraçado não me parece ser um mau diabo.» Se tivesse dito que lhe tinha mijado no copo de cerveja quando o fui buscar, não tinha provocado reacção tão adversa.» «-Mas quem pensas que és, não te admito que te refiras a ele dessa maneira, ele é uma excelente, excelente pessoa, e …» A lenga lenga continuava. Com ameaços de se levantar e ir embora, na convicção de que eu já estava fisgado por umas sessões de sexo anterior, futuro, uns enrolanços sob os ciprestes da Expo, e promessas fingidas de amor, não expressas por palavras, mas pela insistência dela em que a sua companhia era prova suficiente do especial que era a nossa relação. Tentava-se convencer e a mim, que éramos tão especiais que só o facto dela estar ali, era prova conclusiva. Obviamente que não, claro que é prova apenas de que nem uma efabulação semielaborada eu era merecedor a seus olhos, não tendo enquanto humano qualquer serventia que não o plano último da sua acção, vingar-se do seu namorado nem que para isso tivesse de reificar outro. E na cabeça das gajas a única forma de vingança plena, é encornar o gajo com quem está, tocar-lhe no ponto, no orgulho próprio, traindo a relação que têm com ele, num acto violento psicologicamente, mais apontado ao valor próprio do indivíduo, como quem marca gado com ferro em brasa, toma lá que também és corno. Já não te podes gabar aos teus amigos. Contava que ele de forma não regular, mas faseada, lhe mostrava que ela não o dominava, e por ela, leia-se os quatro lábios entre as pernas. Os isolamentos dele, os jogos emocionais de braço de ferro a ver quem menos liga ao outro eram narrados como ofensas que se admiram. E eu apenas os percebo como gestão da relação com uma tipa que é o maior desafio dela mesma. Reconheci inteligência ao gajo, e percebi a frustração e desespero de gostar daquela gaja, e conhecê-la ao mesmo tempo, o que é paradoxal. Depois de todas as ameaças, e avisos e frases que apenas visavam dar a si mesma uma opinião de si, como digna e moral, eu perguntei-lhe: «-Então se ele é assim, porque lhe meteste os cornos?» Não respondeu, mas eu sei porquê. Porque ambos sendo inteligentes há muito que as discussões passaram das palavras, percebem demasiado bem quando o outro está a mentir. A única forma de controlo e manipulação do outro, passa a ser a verdade. Não lhe diz que fornicou com outro, mas através do comportamento, do que o olhar exprime quando ostensivamente quer esconder algo, diz-lhe – se o olhar usasse palavras - «-Olé, toma lá a vingança ó corno. Não te metas fino que faço de novo.». No dia seguinte, já preparando a forma de descartar como fralda usada, pois a vingança estava consumada e eu ajudara a vergar o gajo – que viu que não era bluff, o bluff que ele pensava que ela fazia – liga-me a altas horas e relata as suas suspeitas de que ele era gay, num claro contra-relógio que indicaria quanto pelo beiço eu estaria, e assim assinando a minha inferioridade, libertando-a para me descartar com uma consciência mais ou menos limpa, que se convencera previamente de que éramos especiais um para o outro, e que agora me desqualificando a isentava de responsabilidades, pois o amor, esse ser de largas costas, a induzira em erro e a prova estava que eu a desiludira, me revelara um ser sem sal e chacalídeo que aguentara até altas horas da madrugada escutar um chorrilho de desabafos caprichosos, e ainda sentenciara – por falta de paciência – frases e ideias laminares sobre a profusa confusão na qual ela se perdia. Também essa suposta confusão, como tinta de choco, serve para que o interlocutor coloque o pé na argola da armadilha, à primeira frase de censura do amante oficial, desqualifica-se do sidekick, eu, por ter a audácia de criticar uma pessoa tão humana e tão boa. Se a provinciana velhaquice falasse por palavras, diria «-Para estares a falar mal de uma pessoa tão boa a quem traí por boa natureza convencida de amor, é só porque és mau, reles, não nobre, inferior, invejoso, que fazes de tudo por qualquer gaja que esteja disposta a trair o namorado, e portanto és descartável.» Tal como uma namorada muito alta que tive me dizia «-João, sou grande, mas também sofro.» também nesta eu compreendia quando dizia que não me via como vítima ou que não tinha problemas em me magoar. É que por fora, mantenho bem a compostura, através de uma análise constante das motivações dos outros, para os entender. Isto transparece como frieza e velhaquice, falta de nobreza, como merecedor de castigo análogo ao de Ícaro. Esta troca de vítima sacrificial, onde retiramos da lareira, a nossa responsabilidade, para colocar o outro como mau da fita, é o que chamo de lixiviação, deixar outro arder pelo fogo que pegamos. Divirto-me como Espinosa se divertia a olhar para as teias das aranhas, olhando estas manobras, muitas vezes não conscientes, das cachopas. Nelas tento avaliar a origem da sua falta de respeito e estima pela minha pessoa, o que por sua vez me permite aferir sobre os seus critérios e daí, para a forma como olham para o mundo, por detrás da falsidade das palavras e encenações. Coloco-me eu próprio na armadilha para servir de isco ao predador, ele leva a ilusória ideia de que é o selector e que me rejeitou, eu levo a paisagem interior dos seus pensamentos, para poder comparar com outras que tenho e assim poder formular leis gerais, e comparar em que os indivíduos se distinguem, e como eu próprio funciono. Aquela treta do Pessoa, do poeta fingidor, que finge que finge. Se calhar é uma defesa para não sofrer tanto. Os trejeitos, as frases, os comportamentos repetem-se. E o mais interessante permanece, os critérios de rejeição, dessa emoção que arde de dentro para fora como uma azia feita de ácido molecular, que parece consumir o pouco valor próprio que sentimos quando uma pessoa sofrível se cruza connosco. É este o fogo amoroso, que arde sem se ver.
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