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Apocalipse coronário

18/1/2023

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​As primeiras notícias surgiram na televisão pela manhã.
Metade de Lisboa estava a arder, e não haviam ligações com a Margem Sul, e a A1, IC17, estavam por algum motivo, bloqueados.
Eu tinha pedido o dia para ficar em casa, e tinha planeado escrever um texto ou ler parte de um livro.
Levei a cadela à rua e dei comer à cadela e ao gato, feito de outros animais mortos que eu não conheci, e que faço por esquecer, apenas devido ao meu apego emocional a estes 2 quadrúpedes em particular.
Os únicos inocentes na minha casa, eram os dois periquitos que apanhei perdidos na rua, um deles veio-me chamar à minha marquise, e a fêmea veio contra mim fugida de um gato.
 Havia outro, que trouxe para casa por ter pena de o ver numa gaiola zincada, sem ver a luz do dia ou o ar fresco da noite, metido num canto de uma parede de loja de animais onde fui comprar comida para periquitos. Morreu nas minhas mãos, com o peito inchado depois de ter comido todas as sementes pretas quando mudei a comida. Eu não sabia que os bichos podiam morrer de gula.
Ou melhor, sabia, mas tinha-me esquecido.
Alheio aos problemas que consumiam, literalmente, o mundo, sentei-me à secretária, liguei a Pioneer dos anos 80, e meti a tocar música dos 90. Desliguei, porque em vez de me inspirar, só me levava para longe do sentimento lúgubre que me dá jeito para escrever. Sobre os colapsos coronários dos meus amores que não me escolheram. Ou abandonaram. Ou usaram. Ou outras merdas do tipo, que são mais importantes do que a fome em África ou os números galopantes do suicídio à escala global.
Ao abrir a caneta, a tinta permanente mancha-me os dedos, digo «-Foda-se.»  e vou lavar as mãos.
Desmonto o aparo, limpo com papel higiénico, volto a montar, e dou-lhe 3 abanões súbitos para fazer fluir a tinta, para onde interessa.
Com as folhas de papel branco à frente, pergunto-me a mim, sobre o que vou escrever.
O abandono? Já fiz muitas paredes de texto sobre isso. Sobre a traição? Não, não quero perder muito tempo a vitimizar-me pelo comportamento de outros. Sei no fundo que vou falar do mesmo, da dinâmica entre as pessoas, os jogos que jogamos nas nossas cabeças, as contas de merceeiros que fazemos de modo a levar o melhor para nós, desta vida, neste mundo.
Passa-me pela ideia escrever sobre a Patrícia. Mas para mim é sagrada. Foi a única que de uma forma ou outra se comportou à altura comigo, mas mais do que ter a ver com a sua personalidade, de ser bem formada, deve ter tido a ver com o facto de ter sido eu, a partir-lhe o coração. Se calhar as pessoas lixam-se umas às outras não só por egoísmo, mas também por causa de se anteciparem à desilusão que inevitavelmente sempre ocorre se vivemos uns com os outros, tempo suficiente para nos conhecermos.
Escrever sobre a Patrícia só me iria fazer sentir estar na merda, ser uma merda. Escrever sobre outra, alguém a quem acusar de todos os males do mundo, só me faria sentir igual a uma feminista ressabiada que nenhuma responsabilidade assume de nada, culpando sempre o sexo oposto por tudo o que de mal lhe ocorre. Não, eu sou responsável pelas minhas escolhas, defeitos, e consequências de ambos.
Enquanto não sei sobre quem vou falar, começo da minha forma tradicional, com alguma consideração filosófica de pacotilha, generalizando merdas que pertencem ao domínio do particular.
Começo por falar na minha obsessão por pessoas que se acham melhores que eu. Pergunto-me de onde vem esta vertigem acerca da necessidade de agradar a quem não consegue retribuir. É a minha natureza de homem, orgulhosa, arrogante e viciada em reparar mecanismos, que me seduz para organismos? Organismos animados pela crença de que o seu valor enquanto seres conscientes, cognoscentes e sociais, suplanta o meu valor, do tipo como um vampiro seria capaz de cheirar o meu coração menstruado por detrás de uma parede de cabeças de alho?
O que está por detrás da avaliação feminina acerca dos potenciais parceiros amorosos, é a tal natureza divina, é um olhar penetrante e um acesso privilegiado à realidade? Ou é um conjunto de critérios tornados intuições ao longo de 100 000 anos de evolução?
Melhor ainda, se é uma estrutura inconsciente que determina o consciente das cachopas, como é que aqui o ‘je’ nunca percebeu que tinha de perceber o olhar judicativo da fêmea, e aplicá-lo a si, de forma a ser como o choco e lubrificar o seu caminho até à vulva?
Ah pois é, é difícil fazer avaliações difíceis sobre nós próprios, perceber que nada há de extraordinário nas avaliações femininas, mas que há muita ‘extraordinariedade’ na puta de teimosia na minha pessoa, que teima de forma tresloucada, acreditar no mito da alma gémea, e por arrasto, que é o mais correcto ser a versão preguiçosa de mim mesmo, uma triste desculpa para não me esforçar o suficiente na luta implacável que é a reprodução.
Epá, mas queres ver que as minhas lamúrias não passam de uma tentativa de fugir à minha responsabilidade por ser preguiçoso, ou de algum modo achar ser especial?
Queres ver que a recusa em adoptar o método que observo noutros, é uma teimosia minha que visa apenas dar-me a ilusão da superioridade moral, que no fundo não passa de achar-me melhor que os demais? Queres ver que sou woke e feminista ao mesmo tempo?
Ou será que sou alguém que eleva demasiado a fasquia do que seja um ser humano e as relações do mesmo com o que o rodeia? Estarei ainda infectado com o fungo do idealismo?
Onde está a divisória entre soberba e elevação ética? Oh céus, estes problemas de primeiro mundo.
Recebo várias mensagens no whatsapp, e ao ler, não acredito no que leio. Parece que os fogos em Lisboa ocorrem igualmente noutras capitais com aeroporto, e que é um novo vírus que ainda não se conhece a origem mas que provoca ataques súbitos de instintos homicidas, e tendências pirómanas.
Os meus amigos e algumas amigas perguntam se estou bem e aconselham ou a fechar-me dentro de portas e não sair à rua, ou a sair de Lx.
Respondo a todos, assegurando que estou bem, e volto ao trabalho, que os meus problemas de primeiro mundo são mais importantes que outra pandemia.
Recomeço nas folhas em branco, e pergunto-me se não fui de peito feito e livre vontade, colocar-me nas bocas das lobas, e agora queixo-me de ter sido devorado por elas, só me restando os ossos e alguns nervos. Se o meu próprio desejo é aqui o homicida, ou se é a suposta natureza feminina, comum a metade dos indivíduos deste planeta, a responsável pelo dóidói.
Mas claro que é o meu desejo.
 
Existem dois tipos de prisão, as facultadas pelo estado, e as facultadas pela minha própria volição.
 Desejar é estar preso. É estar dependente do outro. É ceder-lhe poder. Os estóicos não comiam bananas com a testa e sabiam o que diziam.
Raios, eu próprio escavei eremitérios medievais nos lugares mais isolados deste país, onde a malta se refugiava dos caminhos sinuosos do mundo, e da incapacidade em lidar com o que fosse a natureza feminina. Lembro de estar a alinhar cortes numa dessas escavações, e perguntar-me a mim mesmo de que fugiam aqueles gajos, e de que se queixavam daquela civilização, se o ar era limpo, a comida de melhor qualidade, e as mulheres mais ingénuas, por comparação com o presente.
Toca o telefone. Mais um amigo a dizer para eu ver as notícias.
A Coreia do Norte atacou a do Sul, o Japão apoiou a Coreia do Sul, a China a do Norte e declarou guerra ao Japão, os Estados unidos enviaram 5 porta-aviões para a zona, a India declarou guerra ao Paquistão e à China por causa de disputas na fronteira, e a Turquia andou a ocupar ilhas gregas.
Os especialistas chamam-lhe a III Guerra Mundial, e eu só consigo dizer «-Esta gente está toda maluca. Já não bastava a Ucrânia.»
Agradeço o contacto do meu amigo e despeço-me dele, não sabemos quando vão começar a voar bombas radioactivas por cima das nossas cabeças, pelo que cada minuto é precioso, antes da chegada do fim.
Olho para o relógio e é quase meio-dia, vou ao Aldi comprar o almoço, vou a guiar e apensar em fazer um bife de atum, carregadinho de mercúrio, acompanhado por um arrozinho de tomate.
Chegado à loja, as prateleiras estão quase vazias, consigo apenas trazer um saco de batatas para cozer, tenho uma lata de sardinhas em casa. Parece que as cadeias de distribuição romperam por completo, e parece que milhões afluíram aos supermercados para se prepararem para o Juízo Final.
Esta malta, egoístas que não pensam nos outros.
O dia está a correr mal, as notícias e o telemóvel são uma distracção, desligo ambos e volto à tarefa mais importante do momento, ruminar como vaca detentora de vários estômagos, as ofensas imperdoáveis que acho ter sofrido.
Depois de comer, recomeço a escrever, desta feita sobre o que faz o mundo girar, as paradas nupciais do macaco nu.
Que as vemos em todo o lado, as mulheres a aprender o twerk e a dança do varão, os homens nos ginásios e nos stands de automóveis de grande cilindrada, elas contribuindo para a hecatombe ecológica ligada ao vestuário, e eles à hecatombe ecológica ligada à guerra para obter recursos para as tribos alargadas a que chamamos ‘nação’, ou ‘burguesia’.
No fundo somos todos formigas, marionetas dos genes, em perpétua parada nupcial, lutando pela obtenção do melhor parceiro possível. E todos a acharmos que somos diferentes.
Alguém me liga para o número fixo. Era ela.
Não falávamos há anos.
Queria ver-me, e combina encontrar-se comigo aqui perto.
Visto o casaco e saio de casa, finalmente um evento digno de nota, penso eu subindo a minha rua, apesar do brilho intenso a que se segue um bonito cogumelo em forma de nuvem, que se eleva no Céu até às graças do Criador.
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