Ela estava sentada à minha frente, e tinha uns olhos verdes enormes que eram acompanhados de uma profunda expressão de tristeza, daquelas tristezas em que só me apetece mergulhar. Sou atraído pela tristeza dos outros, especialmente se decorre de uma quebra que a ‘vida’ dá no sujeito. Já me disseram que sou uma espécie de condor que voa preguiçosamente pelas alturas ascendentes, à espera de pequenas mortes para rodear os cadáveres que me alimentarão a escrita. O que vale é que não é como ratos de laboratório. Mas como entes, sujeitos ao mesmo esmagamento que eu. Compreender os processos que nos erodem até sermos meros grãos de areia incógnita num qualquer cemitério. Ela tinha um rosto lindo, e para a idade não estava mal, sendo apenas pouco mais nova que eu. Eu conhecia-la de fotos do grupo de Facebook, do grupo de investigação onde estou metido. A foto que tinha no perfil, era bem pior que o rosto à minha frente. Uma pessoa honesta, pensei eu. Mete a foto actual, sem filtros, e não a foto onde está melhor. Tinha de meter conversa com ela, queria conhecer a sua história, e obviamente comê-la. Quem não presta para comer, não presta para trabalhar. E eu estava num jantar de um grupo de trabalho. Na ponta da mesa, no restaurante chinês, tinham ficado as 4 mais novas cachopas do grupo, que mandavam vir mais vinho verde que crepes, e ainda eu não tinha terminado o meu crepe, e já as ouvia com gritinhos estridentes. A que estava à minha frente, na foto de perfil, estava mais gorda, deduzi que tivesse passado por um período de abuso de tinto, o que faz inchar logo a cara. Mas de alguma forma deu a volta, porque estava muito bem agora. Da ponta da mesa ouvi a frase que acompanha o brinde «- Cada tacho tem a sua tampa!» Preferi ignorar a imbecilidade, mas não consegui, colocando-me a forçar conversa com alguns professores que estavam no lado oposto da mesa, para me distrair das intencionais chamadas de atenção vocalizadas alto, para todos ouvirem. Parece que lhe chamam ‘liberdade de expressão’. Cruzei a perna e toquei ‘acidentalmente’ nela. Desculpa, estas mesas são demasiado apertadas. «-Não faz mal.», diz ela. Tu pertences ao ramo filosófico do grupo de investigação, perguntei eu, sabendo de antemão a sua formação académica. «-Sim, eu também sei que és filósofo, vi no teu CV no website do departamento. Como vieste parar aqui? A um departamento de História?» «-Podia perguntar-te o mesmo.» - digo eu a rir, mais por perceber que ela também sentira a curiosidade de saber quem eu era, do que pela piada do meu apontamento. O tal grupo de 4 miúdas, ainda nem viera o segundo crepe e já estavam enfrascadas com vinho. Falavam cada vez mais alto e com intenção crescente de chamar atenção e de vincar a sua individualidade, um pouco como os rapazes falam alto para também dar nas vistas. Duas eram bonitas, e outras duas pintavam o cabelo de verde e púrpura respectivamente. Para não variar, as que tinham menor sorte genética, eram as mais agressivas. Quase toda a gente na mesa parecia desagradada, mas sem coragem para uma expressão de desagrado que fosse, para não passar por agente de censura ou opressão do mini ‘matriarcado’. Não sei se era pelas 4 serem indefectíveis pesquisadoras dos estudos de género, leia-se ódio ao masculino, e, portanto, estarem na crista da onda da moda académica, se era por terem medo de quem pinta o cabelo com cores adequadas a alcatifas de bordel. O catedrático da coisa estava no canto oposto ao delas, e só quando gritavam de forma estridente, fechava momentaneamente os olhos, como que a proteger o cérebro, dos estímulos nos tímpanos. Rodeado de culambistas como é normal nestas ocasiões, não tinha mãos a medir nas interacções que o solicitavam. «-Momoa!» - gritavam bem alto, fazendo um brinde a cobro de uma piada só entre elas, que não custava adivinhar a quem estava de fora. «-Mas qual é o teu tema de investigação?» pergunta-me ela, sabendo que o mesmo estava escarrapachado no mesmo sítio onde obtivera a informação anterior. O que denotava uma vontade de continuar a falar comigo, pois já seria detentora da informação solicitada. «-Naufrágios, de navios e de pessoas.» respondi eu, arrancado da minha cogitação em relação ao brinde das excelsas cachopas. «-Naufrágios de pessoas? Como é isso?» «-Sou um filósofo existencialista, estudo o naufrágio do indivíduo, no navio da Existência.» - confesso que disse isto com algum desdém, como qualquer arrogante quando instado a definir o que raio faz em meios estudantis, quando devia estar a dar aulas para suportar uma qualquer gaja que o aprecie pela generosidade e feitio marcado. Ela, se fosse outra, diria «-Ah, interessante.» e esquecia a resposta críptica. Mas parecia realmente interessada. «-Espera, estudas as pessoas que morrem nos navios que se afundam? É isso?» «-Sim, mas também estudo as pessoas que morrem afundando-se na vida.» Um silêncio incómodo entre nós, e eu a ver nos olhos dela que me estava a avaliar a sanidade mental e a sua segurança decorrente. Não sabia se me havia de levar a sério. «-Como assim, não estou a perceber.» Eu não estava a gostar de tanta pergunta, não por ela, mas por causa dos risos histéricos e gritinhos irritantes. E sem querer escapou-me, «-Estudo olhos tristes como os teus.» Ela olhou-me como se me tivesse apanhado a mijar na papa cerelac de um qualquer infantário. Pronto, lá se vai a gaja, gritou o meu ego. Da ponta da mesa voltam a gritar brindando: «-Cada panela tem a sua tampa!» O ponto de irritação não me permitia ficar calado, e exclamei : «-Epá, podem falar mais baixo, não incomodando os outros com os gritos e brindes que não deixam ninguém falar e ouvir normalmente?» Quem estava à mesa parou para olhar, porque também eu elevara o tom de voz. Concentrei-me no meu prato à espera que não me respondessem, para eu não começar a disparatar e sair ainda mais irritado da coisa. «-Isto é típico da patriarquia, a oprimir a livre expressão das mulheres.» Pronto, que se foda, pensei eu. Saio do restaurante ou saio deste grupo de investigação. «-Olha lá, tu é que estás a oprimir o direito dos outros com essa vitimização estúpida.» «-Ah agora sou estúpida…» responde a de verde, elevando a voz para ser ouvida em ambas as extremidades da mesa. «-Exprime-te da forma que quiseres, desde que deixes os outros usufruir do mesmo direito, e eu não te chamei estúpida, disse que a vitimização é que era estúpida.» Como me viu dando explicações calmamente, e como o seu grupo de apoio olhava de forma embevecida para ela confrontando a patriarquia, foi crescendo a sua coragem e agressividade. Eu devia ter ficado calado, já sei que estas conversetas estão perdidas à partida. Ela olhava com olhos verdes grandes e tristes para um lado e para o outro, claramente incomodada pela ocasião, que trouxera alguma tensão para a sua imediação geográfica. «-Típico dos opressores ficarem indignados com a liberdade alheia.» Ri-me, porque desisti de responder com a minha indignação. Perderia sempre, numa discussão emocional, onde não interessa a articulação lógica das premissas. «-Mas quais opressores? Alguma vez te oprimi? Quem são os opressores?» «-A patriarquia, os homens que não pensam como nós, os machistas.» «-Eu estou nesse grupo? Que conheces tu de mim para afirmar que eu já te oprimi alguma vez?» «-Acabaste de oprimir, reagindo à nossa espontânea liberdade de celebração.» «-Para ti oprimir, é censurar tudo aquilo que fazes mal? Não estou a perceber onde está a questão de género por dizer para baixarem os festejos de forma a que os outros presentes nesta mesa, possam falar entre si.» «-Não podem ver uma mulher feliz por ser mulher.» «-Camarada, tanto se me dá, se és mulher se és uma girafa. Estás a fazer demasiado ruído, nada tem que ver com o que tens no meio das pernas.» «-Tudo tem que ver com o que temos no meio das pernas.» «-Estás a ser sexista. Demasiada importância dás a isso. Mas que merda de brinde é esse dos tachos e tampas e panelas.» Continuar a insistir na dissociação entre mau comportamento e questões de género, seria improducente pois ela só iria repetir como papagaio que lhe estavam a retirar direitos, para não perder a face. Assim tinha que expor a imbecilidade da ideia de que existe uma pessoa para cada outra pessoa. Pelo menos no actual clima. «-É um brinde a encontrarmos uma pessoa compatível connosco.» Todos os outros à mesa voltaram às suas micro relações, verificando que se desenvolvia uma conversa que não era do seu interesse. «-E como defines tu, ‘compatibilidade’?» perguntei eu. «-É uma pessoa que pensa de forma parecida, partilha gostos, tem algo a ver connosco, esse tipo de coisas. Que não discutamos, que me sabe dar valor e fazer coisas por mim.» «-Ou seja, para ti ‘compatibilidade’ é alguém parecido contigo, com o bónus de satisfação dos teus desejos?» Ela pressentiu a rasteira na pergunta, mas depois de vocalizada alto, não podia alterar a sua definição, e foi obrigada a anuir. «-Sim… mais ou menos.» respondeu esfregando uma mão por cima da outra em posição paralela ao tampo da mesa. «-Esta pergunta é para as 4.» disse eu. «-Se, hipoteticamente, fosse possível casarem e viverem com um vosso clone, feito de propósito para vos agradar e dar serviço continuamente, quanto tempo vocês acham que permaneceriam casadas ou a viver na mesma casa?» Olharam umas para as outras, primeiro achando a pergunta ridícula, até que uma das mais bonitas, que estava naturalmente no topo da hierarquia daquele grupo, pela forma mais calma como agia, disse que «-Provavelmente nem uma semana.» As outras riram-se e começaram a debater entre si ai sabes que sou uma cabra e às vezes sou impossível. A última porção de crepe estava quase a entrar na minha boca, quando uma delas me interpela perguntando «-Porque fizeste essa pergunta?» «-Porque peguei na definição que a vossa colega deu. Ela projectou aquilo que gosta ou pensa que gosta, noutra pessoa, achando que seria feliz com um clone acéfalo, modelado para lhe agradar e fazer a existência mais suportável. No fundo não quer a radical alteridade do outro, mas a confirmação da sua crença.» «-Sim, e o que interessa isso?» perguntou ela, parecendo querer saber o meu fio de pensamento. «-Interessa que não existem pessoas compatíveis umas com as outras, meramente avaliações pessoais que determinam ou não, a quantidade e qualidade de coisas que estamos dispostos a tolerar e aceitar noutros. Por exemplo, no caso dos homens, a gaja pode ser uma cabra ou uma monhofonha, que a maior parte dos gajos não quer saber, desde que seja fisicamente atraente. E as gajas também têm este tipo de critério.» «-Então não acreditas senão no determinismo biológico?» «-Sim, é o mais seguro ponto de início de análise. A antropogénese também se processou acima do pescoço. Os homens são o sexo romântico, mas são convencidos do contrário, para que o carácter pragmático do amor feminino, seja mascarado. O que entendo. Muito bem até. Metade do encanto do selector sexual, a fêmea, está na projecção de uma aura de divindade.» «-Estás a querer dizer que a mulher não é romântica?» «-Estou. Para cada Florbela Espanca existem 20 Bocages.» «-Isso é treta, e tu és um chauvinista.» respondeu a de cabelo verde. «-Uma pergunta para as 4, quantas vezes entregaram cartas de amor ou poemas ao vossos alvos de amor?» Após uma pausa demorada, o silêncio só foi interrompido por um desabafo de uma delas, «-Eu escrevia poemas…», ao que eu perguntei logo, «-E alguma vez os entregaste?» Silêncio. Havia malhar enquanto o ferro estava quente. «-Uma pergunta para a mesa.» disse eu elevando mais a voz «-Quantos nesta mesa escreveram poemas, cartas de amor, e entregaram ao alvo da sua idealização?» Estavam 6 homens na mesa, eu incluído, e 10 mulheres no total. Apenas 5 homens levantaram a mão. A situação explicava-se por si, e não achei necessário dizer mais nada, e foquei-me na mulher à minha frente. E ela pressentindo isso, diz-me «-Por acaso concordo contigo.» E eu não sabia o que lhe responder. Mas respondi: «-Com uma cara bonita como a tua, esses olhos tristes têm de certeza um motivo.» Ficou desconfortável, pois o tema interessava-lhe, mas eu era um completo estranho, de quem não tinha a menor ideia em relação à personalidade. «-Que tem isso a ver?» perguntou a ver se tapava com o pé, o buraco no chão do que eu insinuara, mandando terra para cima. «-Tem a ver que se dizes que concordas que os homens são os românticos, os teus olhos tristes significam a perda de um par de olhos alheio, algures no tempo, ou o sentimento de culpa por alguns corações partidos, porque não os conseguias remendar nas fases em que te apareceram.» Ela olhava para mim, e eu percebi que ela entendera perfeitamente a nota. Mas usou a colocação da vaca picante com molho de soja, para demorar o seu tempo a decidir se respondia. Finalmente, diz, «-Sim, um pouco. Mas é igual para todos, não é?» «-Não sei.», respondi eu. «-Nunca consegui ser assim tão cabrão, que destroçasse tanto o coração de outros. Deve ser o lado bom de não ser visto como prémio.» e ri-me. Sozinho. Ela baixou os olhos. Eu percebi que tinha acertado no diagnóstico. Ela estava dividida entre continuar a conversa, ou atalhar para a cordialidade devida, ante um gajo que considerava estranho e que não conseguia perceber que tipo de engate seria este, pois o gajo à sua frente nenhuma postura de engate tinha, senão fazer perguntas e lançar hipóteses, que traduzem atenção. E atenção é engate. Do lado chegam-me sons ao ouvido: «-Então mas devíamos contentar-nos com qualquer parceiro que nos aparece à frente, não podemos ser nós a escolher quem queremos…no fundo somos meros receptáculos de esperma?» Era uma pergunta, para mim. Não percebi logo, o encadeamento da mesma, em relação ao que eu havia dito. Quando achei encontrar um nexo possível, percebi que tinham continuado a falar entre si, o grupo, e que esta pergunta era uma barreira a que haviam chegado, no seguir da minha argumentação. Nem se preocupou, a de cabelo verde, a inteirar-me do processo de pensamento. «-Que critérios são esses que baseiam a escolha? Meros critérios de gosto que exprimem a preferência pessoal de cada indivíduo, ou uma espécie de hive mind que dita o que é desejável ou não?» «-Um pouco das duas.» respondeu a de cabelo púrpura. «-Não. De todo. Os sexos nem nisso são iguais. A pornografia masculina é demasiado variada, e essa sim, exprime um apetite pela variedade que vai de grávidas a marrecas, gordas, tudo. Basta passar pelo pornhub e ver as categorias. Já as mulheres, de acordo com o livro ‘Dataclysm’ se concentram no desejo dos 20% de homens mais atraentes e bem sucedidos.» As duas de cabelos pintados, automaticamente desabafaram que isso era uma generalização, e que elas não conseguiam arranjar namorado, porque os homens têm medo de mulheres fortes e independentes. E eu respondi «-Não, os homens não querem é lidar com mulheres que confundem azeite com liberdade de expressão.» Demoraram a perceber, mas responderam as duas «- Não conheces nada de nós, como podes fazer esse juízo de valor?» «-Pela forma agressiva como me têm tratado, não me conhecendo de lado nenhum, acham que a forma de tratamento agreste é isenta de consequências. Por exemplo, no mundo dos homens, esse tipo de postura já teria terminado com uma das partes a convidar a outra para uma conversa no estacionamento. Portanto, a cautela é generalizada. O problema em não arranjarem namorado nada tem a ver com o vosso aspecto físico, mas em se tornarem pessoas desagradáveis porque querem transmitir que têm personalidade. Querem ser amadas e bem tratadas como toda a gente, mas para quem vê de fora, escolhe não se envolver, por causa da vossa postura.» Eu estava à espera que o debate azedasse depois desta proposição mais pessoal, mas felizmente elas calaram-se, e eu voltei à carga: «- Em relação à escolha, critérios demasiado elevados são a paixão por um ideal comercial, e uma desumanização do ser humano masculino comum, que se torna invisível se não pertencer ao topo da pirâmide. E depois ainda há a questão sobre o contentar-se com determinada escolha e o «direito» a ter algo de «elite», de topo – cada ‘indivídua’ deseja o melhor de tudo, não se podendo contentar com o resto… e todas pensam assim. E acabam por agir como grupo. Agem em grupo, porque todos achamos ser um especial floco de neve num nevão.» Mas deixaram-me a falar sozinho, ou porque as venci pelo cansaço, ou porque não queriam continuar a trocar golpes, que também acabavam por lhes doer. Senti-me sozinho na mesa, pois já ninguém me dava trela, e eu havia expresso umas respostas além do verniz que a situação exigia. Não pedi sobremesa, e não bebi café. Saímos alternadamente após pagamento ao balcão, e quando estava a meter a chave à porta do carro, uma voz atrás de mim disse : «-Queres ir beber um chá a minha casa?» Voltei-me e vi uns bonitos olhos verdes, mas um pouco menos tristes.
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