De novo as folhas amarelas arrojavam pelo chão, perdidas em rodopios de decrepitude em direcção ao esquecimento de que alguma vez haviam existido. Sigo contra o vento, como gosto, com os olhos semicerrados e como sempre, a sensação de pandemónio à minha volta, agrada-me. Um toque de telemóvel rasga-me a fruição desta pequena amostra de caos, e ao atender, do outro lado alguém exclama: «-Sou a tua morte, vem ao teu velório, Alto de São João, às 15 horas.» Assim como surgira, a chamada terminara, desligada em cheio na minha cara. Não resisti a soltar umas gargalhadas, até pela patetice de entreter a sério a ideia do meu funeral, uma vez que estava vivo. O meu espírito filosófico, que alguém pode confundir com indecisão, faz-me colocar de novo a questão, «-Estou, mesmo…vivo?» Da Avenida de Berlim, onde me encontro, ao Alto de São João, não dista muito, e eu gosto de andar a pé, especialmente nesta Lisboa de agora, onde de quilómetro em quilómetro vejo uma loiraça estrangeira de outras paragens, daquelas que nos fazem fervilhar o sangue e querer copular de forma demoníaca, ou angélica, como preferires. Ponho-me a caminho, faz anos que não vou ao cemitério de referência da minha capital. A última vez que lá estive, na cremação do pai de uma antiga namorada, perdi-me nos corredores entre tumbas arrebentadas e cúbitos aos elementos, pois cadáveres antigos não têm a segurança do sentimento de alguém que zele por eles. Glórias passadas decaídas em esquecimento eterno, tanta história por detrás dos restos mortais das anteriores pessoas ali depositadas como meros traços a negro numa folha de papel branco que visa capturar o pensamento que lhe deu origem. Sempre achei que um monte de ossos andrajoso é ainda assim um vestígio de um quid que merece respeito pelo mero facto de algures na linha do tempo, ter existido, ter sido um processo histórico em forma de gente. Uma dialéctica de ser e pensar como criança, a volúpia suada da juventude e o cinismo do ocaso. Cheguei. Na sala branca e ladrilhos escarlates, algumas pessoas em redor de um caixão, cujas caras me são familiares. Espreito para dentro do caixão e curiosamente não me assusto, com o que vejo. Um cadáver que é mesmo a minha cara. Não posso dizer que sou eu, pois eu estou a ver um cadáver, e o cadáver nada vê, digo eu. Deixa-me processar esta merda. Sento-me numa cadeira ao canto, e esforço-me para que lógica me torne esta experiência inteligível. Estou a sonhar? Que merda de sonho, e parece tão real? É possível sonhar com o vento do qual ainda há pouco vim? Alguém se senta a meu lado. Alguém grande pois consigo ver que as pernas são quase o dobro das minhas, a partir da posição encurvada com que brindo a cadeira com pés cromados. Uma longa veste, de estranho linho negro, arrasta-se em parte pelo chão. Nos dias que correm, todos somos zelosos pela nossa imagem, e pelas nossas roupas, quem seria esta pessoa que vestia roupa vários tamanhos acima do próprio número e que arrastava assim tecido pelo chão? Se não estou a sonhar, será que estou morto e no caixão está o meu corpo a caminho da incineração enquanto estou por aqui aos caídos e perdido? Mas como justificar que ainda há pouco senti o vento no meu rosto, se apenas o rosto de Deus tem existência, pelo menos enquanto vogava sob as águas? Será que o gajo no caixão é apenas parecido comigo? Mas como explicar o telefonema críptico? E a curiosidade que tenho de levantar a cabeça e ver quem se sentou ao meu lado, mas no fundo acho que não o quero fazer pois tenho medo de confirmar que de facto estou morto. Não gosto de fugir. Olho, e os meus medos confirmam-se, um crânio de branco esmalte contempla-me a partir de órbitas vazias, rodeado pelo tradicional capuz cónico. Do negro interno sai uma espécie de riso sarcástico. Arrisco uma frase, «-Confirma-se, morri.» Silêncio. Se calhar a morte não fala, apenas nos faz companhia. Volto a perguntar algo, «-Ao menos posso saber como morri?» Silêncio, e o mesmo olhar fixo para mim, como se me estivesse a pesar com olhos inexistentes. Confesso que me incomoda, mas se de facto estou morto, que mal pior me pode acontecer? Olha para aí, o que é bom é para se ver. Se não fala, deixa-me sorver tudo até ao último momento, pois ainda tenho a minha consciência, isto de saber o que sou ou não sou. A minha família chora de facto em torno do caixão. Anos de ligações emocionais, vertidos em lágrimas que toda a gente deita quando um ente querido morre e percebemos que o nosso grau de alheamento sobre o esquema geral das coisas, é quase total. Um ou outro amigo agarrado à borda do caixão, tenta captar para si o último momento a sós com o cadáver, que apenas já só simboliza uma relação passada e ida entre dois seres que se escolheram nas circunstâncias. Engraçado, nem um dos amores passados aqui está. Nenhuma conquista, nenhuma paixão assolapada de tempos recuados veio prestar o último adeus. «-Ó morte, não achas engraçado que nenhuma das mulheres que amei e que me disseram amar, esteja aqui presente? Acho estranho como no final de contas, das ilusões de paixão ao início e de tudo o que decorre até ao fim, as relações são apenas fingimentos de merda entre as pessoas, que brincam ao amor. Foda-se morri, devia ser perdoado, ou visitado por alguma que olhasse para trás e dissesse que em certa altura desta vida amei este gajo. Nenhuma, dá que pensar não?!» Não esperava resposta, a pergunta era só para mim. Mas uma resposta veio: « - Eu não sou a morte, eu sou a tua morte.» Superado o espanto de ver um amontoado de ossos despojado de carne, fazer vibrar o ar em cordas vocais inexistentes, pensei no que fora dito. «-Foda-se, se és a minha morte, és muito impessoal.» «-E, no entanto, eu estou aqui a acompanhar-te, e as tuas mulheres não.» Esta frase, estivesse eu vivo, seria daquelas que me faria sentir uma pontada no músculo cardíaco. Adeus ó ilusão que vais daqui. Tem razão. Tento desculpá-las. «Elas não têm culpa. Se só amam condicionalmente, ou oportunisticamente percebe-se porque é que é tão fácil ultrapassar a vivência com alguém que se reduziu a um mero cadáver abandonado num qualquer cemitério da memória. Nós é que somos defeitos de fabrico. A investir demasiada energia nervosa em amores faz de conta. Se soubesse o que sei hoje será que tinha gostado de alguma? Se calhar não. E olha que gostei o suficiente para me lembrar de todas. «-Irias ao funeral de alguma?» perguntou-me rindo-se. «-Sabendo, de todas. E até em vida lhes ligaria a perguntar como vais, e a desejar que estejas bem. Não o fiz porque a mulher só respeita a força, e actos comuns de cordialidade são vistos como fraqueza. Como sensibilidade ou segundas intenções que atestam a indesejabilidade genética. Assim é preferível amargar até morrer, com as memórias de amores infelizes que só nos mostram continuadamente que tudo foi em vão, um entretém.» «-O teu tempo está a terminar, a tua consciência termina em breve. Escolhe agora como queres apagar. Com o sentimento de amargura por causa da verdade ou de outra forma?» Pondero na minha resposta. De que nada me adianta lamuriar de como as coisas são. Ao contrário, a suposta capacidade de amar eleva-me acima das meras símias determinadas por milhões de anos de antropogénese. A melhor bofetada na cara é dar-me grato pela experiência e exercitar a mais bonita expressão em língua portuguesa: «Entregar a alma ao Criador». Como se não fosse nossa e apenas algo emprestado. A morte livra-me gradualmente do ego, e portanto os dóidóis mitigam-se com o passar do tempo. Sinto-me deveras grato pelos rostos e bocas, e almas que comigo foram partilhadas. Sem querer sorrio um pouco. Vejo-me envolto em redemoinhos de vento, primeiro forte, que esmorecendo vai fazendo diminuir a luz até à escuridão total que me abraça com mais amor que as paixões passadas que de mim se esqueceram. 'The Sixth Sense' - all rights reserved - fair use -
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