I
Os telhados de chuva zincavam a tua paixão corroída pelas dores do pó. Continuo observador das equações prenhes de intermináveis variáveis, olho cada mulher com quem me envolvo como uma manifestação de Deus que me olha de volta através dos olhos de cada uma que olha para mim e interage comigo. Pouco mais que robots cartesianos filhos de um deus enganador. E finalmente vi ontem o que Deus me queria mostrar. O reflexo da minha fraqueza cuspida na corrida a que me entrego para a fornicação, para me perder nela, na mulher, esquecendo-me de mim ou de uma qualquer verdade fatal contemplada antes de estar vivo. Que horror é esse de que fujo, em mim ou de onde vim antes de nascer? Como estátuas de barro nos envolvemos na decadente dança da cópula, e enojo-me com o olhar surpreendido da alma que me vê, precisamente porque quero estar sozinho a observar. A verdade do seu olhar revela a mentira do meu, salva-me o orgasmo. Esperando por elas, de forma a enganar-me a mim mesmo, como se os momentos em que o corpo se contorce e alivia de uma tensão que logo volta, fossem apóstolos de uma eternidade de que se foge. Coitadas das cachopas assim usadas por mim. Castigo-me a mim mesmo amando-as, como se o meu desgosto pagasse a sua reificação. II Por vezes o deus enganador lá tem pena de mim, furtando-me ao sal da Terra. Ao amargo cloreto de sódio no meio das coxas de mulheres de pouca qualidade. Leia-se, cheias de demónios por elas vistos como anjos com cornos e pernas de cabra. Vejo os defeitos nelas e nos outros, só até ao momento em que amo. Com a clareza e simplicidade de criança. E desejo a fundo que sejam o melhor que lhes é possível. Ao mesmo tempo que tento perceber a máquina que lhes funciona por detrás dos olhos. Arrogante e orgulhoso que sou, jogo-lhes na cara como funciona essa máquina demoníaca, mas todas sem excepção convencidas de que são inteligentes o suficiente para verificar que sou louco, desdenham. Não se podem dar ao luxo de ver. Tolinho, eu, penso que consigo decifrar o código, e ganhar-lhes no próprio jogo. E de repente, percebi porque perco sempre. Porque me interesso. Interesso-me porque sinto. Sinto porque as uso com o meu frágil ego. Não chega suplantá-las em intelecto. Há que aniquilá-las moralmente. III Assim era Joana. Não fosse mulher, e seria um daqueles gajos intragáveis que só conseguem ter amigos com menos carácter ainda que eles, pelo fascínio da violência ou da falta de cobardia. Ou talvez não. Para as amigas ela era uma leoa aformigada, uma lutadora nesta vida cruel de primeiro mundo, onde uma leve tontura é cantada como decapitação. Forte, esforçada, lutadora. Para elas. Para mim, triste alma perdida na árdua batalha de desmantelar um homem, dia após dia fodendo-lhe o juízo em trabalho de sapa psicológico, só para ter o gosto de eventualmente o alterar, conseguindo assim a satisfação de saber que se influenciou alguém. E assim que o consegue, se segue o desprezo, por aquele que trucidou, ter claudicado, afinal se ela o vence, ele não era forte o suficiente. Porventura, alguns rebelam-se interiormente e dizem basta. E mandam a gaja ir dar uma volta. Totalmente dedicada em dedicar a vida a infernizar o ex marido que pela saúde dele, dela se afastou. Joana dedilhava-se à noite com torpor erótico numa fantasia de si própria como esta força contra o mundo tão cruel que a astrologia reflectia. Lutadora.Esforçada.Mãe coragem. Era a personagem que representava. A amiga em comum dizia maravilhas dela, conhecendo-a apenas de um local de trabalho partilhado em tempos. Quantos pederastas, estupradores e assassinos não andarão por aí à solta, a quem apertamos as mãos e dizemos os bons dias. Só conhecemos o outro pela superfície do convencional. É aí que eu entro, sou bom a revelar o que há debaixo do verniz, com a minha prosápia estéril. Pouco ou nada sabemos dos outros além das personagens que todos representamos. Sou bom a representar, a fazer emergir o Mr. Hyde de cada um. Não gosto, mas a vontade de saber sobrepõe-se. De ir ao limite e perceber de que é feito o outro. Joana queria a minha atenção. Saber que outra alma dependia de cada palavra sua. Atenção gratuita sem ter que dar nada em troca senão umas promessas vagas. Não é o método que me espanta. Mas a facilidade com que aplicam sempre as mesmas avaliações serôdias. Queria saborear com a língua o doce sabor da liberdade que vem com o sentimento de se ter opções. De se saber em posição de escolha. Era assim que seus olhos brilhavam quando olhavam para mim. Como um artigo com utilidade. IV Andava com outro, com quem concebeu um filho que já era mórula no seu útero quando me conheceu. Mas ainda assim não desdenharia em ver-me arder no seu altar. Porquê? É esta a pergunta mais interessante. Porque sou codependente? Porque me interesso? Porque sou curioso acerca da natureza dos outros? Ou porque fui educado a mirar a natureza maravilhosa da fêmea, esmagado pela sua divindade. É isso, quebro os ídolos pelos pés de barro. Porque a alma é uma dádiva sem manual de instruções. A dona do útero captando recursos de machos diferentes que assim também propagam genoma. A mulher é o portal da vida, é natural que se sinta deusa, ainda que não a produza sozinha. V A conversa decorria entre garfadas que eram como as vagas atlânticas entre as quais Joana se permitia infiltrar a sua personalidade ensaiada, e condimentada com uma resolução sem quartel, só visível para os outros, tal como os collants negro baço sob saia de xadrez desbotado um palmo de Goa abaixo do joelho. Artista de maquilhagem, sabia elevar o seu aspecto a alturas que o betume facial e tintas ocre permitiam. A diferença entre normal e bonita joga-se nesta atenção aos pormenores. A cor certa no local certo das pálpebras, o escarlate adequado e a base a tapar todas as imperfeições do rosto, como que uma empreitada paga à hora de aplicação de estuque e argamassa.
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